Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


DESENVOLVIMENTO, NEOLIBERALISMO E GLOBALIZAÇÃO NO BRASIL: A INSEGURANÇA NACIONAL COMO HERANÇA POLÍTICA

Autores e infomación del artículo

Sheyla Borges Martins*

Gilmar Ribeiro dos Santos**

UNIMONTES, Brasil

E-mail: carolmarci@gmail.com


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar a crise de insegurança nacional e do sistema prisional brasileiro, relacionando-os ao contexto de desenvolvimento do país, a partir da década de 1930, período desenvolvimentista que marca o início da industrialização e da modernização brasileira, passando pelo cenário marcado pelas políticas neoliberais do final do século XX e do período neodesenvolvimentista no início dos anos 2000. A argumentação busca demonstrar em que medida esse processo está ligado à forma como a Segurança Pública no Brasil corresponde às nuances das exigências políticas e econômicas do contexto do neoliberalismo e da globalização, guardando traços de um estado penal, altamente punitivo, que persiste historicamente.

Palavras-chave: Desenvolvimento no Brasil, Neoliberalismo, Globalização, Sistema prisional brasileiro, Estado penal no Brasil.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Sheyla Borges Martins y Gilmar Ribeiro dos Santos (2020): “Desenvolvimento, neoliberalismo e globalização no Brasil: a insegurança nacional como herança política”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (marzo 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/03/globalizacao-brasil.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2003globalizacao-brasil


Introdução

Dados do Ministério da Justiça (2017) apontam que 726 mil pessoas se encontram encarceradas no Brasil. Esse número revela que continua aumentando o total de presos, a taxa de encarceramento e o déficit de vagas no sistema prisional brasileiro. Ocupamos o terceiro lugar no ranking de população carcerária do mundo, ficando atrás apenas dos EUA, com mais de 2 milhões, e China, com mais de 1,6 milhões de presos.

No período 1990-2016, a população carcerária no Brasil aumentou 8 vezes, enquanto a população nacional cresceu apenas 39%.  Mas o aumento do número de pessoas presas não é o único problema do sistema prisional: o número de vagas diminuiu em todos os estados. A taxa de ocupação é 197% e seria necessário duplicar o número de vagas para atender a demanda (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017).

A interpretação desse quadro, a partir da análise de sua conexão com os fatores econômicos, sociais, culturuais e políticos que compõem o processo de desenvolvimento e moderninazação do Brasil, deve ser contextualizada dentro de um panorama em que a Segurança Nacional tem sido fundamentalmente prejudicada por políticas promovidas pelas principais instituições da globalização que enfraquecem e fragmentam o Estado e militarizam a sociedade, contribuindo sistematicamente para o acirramento da violência e da criminalidade.

De acordo com Wacquant (2011), a economia capitalista mundial criou um fenômeno que pode ser descrito com precisão como a “globalização da insegurança”, gerando conflitos em nações e comunidades desestabilizadas e aumentando a desigualdade, a pobreza e a privação. Nesse sentido, é necessário delinear os contornos da economia internacional e sua manifestação enquanto Estado Neoliberal e seu impacto sobre a insegurança nacional, já que, enquanto processo econômico que promove livre comércio através de uma variedade de instituições e acordos, o neoliberalismo contribuiu significativamente para a redução da segurança em vastos setores da população em todo o mundo e também no Brasil.

O Estado Neoliberal conseguiu combinar  a desregulamentação econômica, destinada a promover o mercado e seus mecanismos como o dispositivo ideal não apenas para orientar estratégias e transações econômicas,  mas para organizar as atividades humanas, incluindo o fornecimento privado de bens públicos, por supostas razões de eficiência, com a criação de um aparelho penal expansivo e proativo que penetra as regiões inferiores do espaço social e físico para conter os distúrbios e desarranjos gerados pela difusão da insegurança social e aprofundamento da desigualdade, desenvolvendo a supervisão disciplinar sobre as fraquezas do proletariado pós-industrial com o intuito de reafirmar a autoridade do Estado, de modo a reforçar a sua legitimidade (WACQUANT, 2011). Analisar a relação entre a crise do sistema penal brasileiro e o seu processo de desenvolvimento e modernização dentro de um contexto neoliberal e globalizado é o objetivo deste texto.

Precede a crise política, econômica e de insegurança que marca o cenário brasileiro no final da segunda década do século XXI, um panorama de crescimento caracterizado por sérios problemas estruturais, políticos e sociais. O pressuposto básico adotado é que a forma como se deu o processo de industrialização e de modernização do Brasil, certamente lança luz sobre os desafios que hoje enfrentamos. Os fatores analisados são aqueles considerados como verdadeiros legados, já que refletem em boa medida o contexto atual. Antigas configurações, práticas e experiências demonstram como a recente história brasileira apresenta-se como uma dinâmica multifacetada e permeada por nuances políticas e institucionais ao mesmo tempo próprias de um período histórico geral, o da globalização e reafirmação dos ideais neoliberais; e peculiares, resultantes de um processo de modernização bem específico. A crise na segurança pública no país, certamente é consequência desse processo.

O Estado Brasileiro e o desenvolvimentismo

O primeiro ciclo de desenvolvimento no Brasil compreende o período que vai de 1930 a 1985. Num extremo, a transformação do país de uma economia agrária e voltada para exportações primárias, para uma economia moderna e com base industrial. No outro extremo, o fim da Ditatura Militar e o início da redemocratização. A década de 1930 é tida como o palco do início da industrialização e modernização do Brasil. Foi nesse período que finalmente as relações capitalistas se consolidaram no país, sendo o Estado o protagonista. Em se tratando de um processo que é situado geográfica e temporalmente, a modernização somente encontrou condições de surgir quando o sistema econômico do qual fazia parte transformou-se em capitalista. (PEREIRA, 1983).  Para isso, foi necessário que o sistema tradicional entrasse em crise e a estrutura da sociedade se organizasse em torno da ideia de que o desenvolvimento deveria ser o objetivo. De fato, ele passou a ser um projeto de toda a sociedade.
A especificidade desse projeto no primeiro ciclo tem como características fundamentais, de acordo com Bresser Pereira (1983), a industrialização como força motriz. Ela foi o fator desencadeador da modernização brasileira e, para se ter uma ideia do alcance que suas mudanças trouxeram para toda a sociedade, entre 1930 e 1961 a produção industrial no Brasil apresentou crescimento de 683%. Esse “surto” trouxe em seu bojo outra característica importante: a substituição das importações, tida como a saída para o Brasil, tendo em vista as restrições no aumento das exportações.  Surge nesse contexto a classe de empresários industriais, agente indispensável durante as três primeiras décadas da “revolução industrial” brasileira. Por trás dessa dinâmica, houve o crescimento cada vez maior da participação do governo no investimento nacional.  (PEREIRA, 1983).
Há que se ponderar também a coexistência de frações consideradas “atrasadas”, expressas pelas classes dominantes, com as modernas, promovendo mudanças na estrutura social e conservando aspectos indispensáveis para a manutenção dos interesses das camadas dominantes da sociedade. É a chamada “modernização conservadora”, que promoveu o reordeidnto social sem conseguir – já que não pretendeu – romper com a ordem estabelecida anteriormente. (VIANNA, 1997).
Tivemos a partir de então um Estado marcado por intensos paradoxos: ele conseguia ser ao mesmo tempo liberal, ou pelo menos inspirado pelos ideais liberais, mas sem a correspondente economia que sustentasse tais ideais. A economia se moldava aos interesses políticos e a própria industrialização pode ser considerada um “projeto político”, orientado politicamente e voltado para o capitalismo de Estado. Obviamente, a análise dessa transformação deve levar em conta as características do Brasil: o tamanho do país e a fragmentação geográfica e, principalmente o tamanho da sua população.
É inegável que essa transformação tenha gerado avanços sociais, ainda que pequenos, se comparados aos dos outros países nas mesmas condições. Os indicadores sociais melhoraram, como também melhorou o acesso aos serviços básicos. Porém, o processo de modernização foi altamente contraditório e desequilibrado. Ainda que tenha havido crescimento econômico nas duas primeiras décadas do Estado Desenvolvimentista – 1930 e 1940 -, ele concentrou-se nas regiões sudeste e Sul. A concentração de renda, que sempre foi extremamente alta, persistiu. (PEREIRA, 1983).
A década de 1950 foi notadamente um período de transformismo. Nasceu aí o nacional-desenvolvimentismo, programa voltado à consolidação de um capitalismo de Estado, sob a premissa de que a incômoda condição de subdesenvolvimento poderia ser vencida. A via para se alcançar a superação do atraso seria uma coalizão nacional popular, em que os principais segmentos sociais e políticos convergissem rumo àquilo que Vianna (1997) chamou de “Revolução Passiva”. Elites políticas, partidos de esquerda, movimento sindical e operário poderiam resolver por vias pacíficas alguns dos principais empecilhos ao desenvolvimento e promover reformas econômicas e políticas capazes de transformar completamente o Brasil, promovendo o crescimento econômico e o desenvolvimento social (VIANNA, 1997), já que “a regra geral é que o desenvolvimento tenha como aspecto dominante de seu processo a transformação econômica e como resultado por excelência o crescimento do padrão de vida da população no seio da qual ocorre o desenvolvimento”. (PEREIRA, 1983, p. 16). Esse contexto foi marcado por uma intensa onda de otimismo com relação ao futuro do país.
Esse sentimento, porém, começou a tomar nova forma a partir da década de 1960. Nesse período, a euforia se transformou em pessimismo e o Brasil entrou num contexto de crise, que assumiu contornos não somente econômicos, mas, sobretudo, políticos, alcançando o patamar de uma crise social. (PEREIRA, 1983).
De acordo com Bresser Pereira (1983), depois de 1950, as intervenções fortaleceram o crescimento desproporcional do setor industrial, com ênfase na indústria de bens de consumo duráveis. As altas taxas de crescimento desse período foram, no entanto, possíveis por fatores internos específicos: regime político autoritário, crença geral e apoio ao desenvolvimentismo, e talvez ainda mais importante, por possibilidades externas: crédito abundante no mercado mundial.

A intervenção do Estado sob a égide do Welfare State

Na segunda metade do século XX os efeitos econômicos, políticos e sociais da Segunda Guerra Mundial fizeram os Estados Unidos entrarem em uma nova era de sua história econômica e política. Durante os dezesseis anos precedentes, o povo americano tinha sofrido doze anos de depressão econômica, quatro anos de tempo de guerra e privação econômica. Aqueles dezesseis anos haviam composto uma era aparentemente interminável de emergência nacional, a que governos em todos os níveis, mas de forma mais impressionante o governo federal, tiveram que responder de maneira sem precedentes.  (FIORI, 1997).

Nesse contexto, proporcionar bem-estar aos cidadãos tornou-se uma característica fundamental do estado ocidental. Despesas sociais aumentaram  rapidamente; sistemas tradicionais de socorro que prestavam assistência apenas aos mais necessitados foram transformados em sistemas abrangentes de benefícios universais através do estado de bem-estar social.

De uma forma geral, o welfare state é visto como um fenômeno da modernização, produto da crescente dificuldade provocada por uma economia que gerou muita desigualdade, dominada por grandes corporações. Além dos processos de diferenciação de rendimentos de indivíduos e famílias, que criaram problemas de mercado que deveriam ser resolvidos pelo Estado, houve a evolução dos direitos sociais enquanto consequência da institucionalização dos direitos políticos.

O embasamento intelectual desse processo foi o Keneysianismo, apoiando-se basicamente no pressuposto de que o governo deve aumentar a demanda para impulsionar o crescimento, já que a demanda do consumidor é a principal força de uma economia. O resultado desse pressuposto é a defesa de uma política fiscal expansionista, cujas ferramentas principais são os gastos com infraestrutura, educação e pleno emprego. A teoria Keynesiana foi desenvolvida na década de 1930, no mesmo contexto de modernização brasileira, quando a grande depressão tinha desafiado todas as tentativas de acabar com ela. (VICENTE, 2009).

Vicente salienta que na medida em que o desemprego se arrastava na Grã-Bretanha no período entre guerras, chegando ao nível de 20%, Keynes investigava as causas dos problemas econômicos da região, e a Teoria Geral do Emprego, Juros e Dinheiro foi o resultado.  Esta teoria revolucionou a própria maneira como os economistas pensavam a economia (2009). Por que os governos não investiam em obras públicas e contratavam empregados? A teoria de Keynes defende o gasto deficitário durante as recessões econômicas para manter o pleno emprego. Essa conclusão, obviamente, encontrou oposições, haja vista que na época os orçamentos equilibrados eram uma prática padrão, mas a ideia logo ganhou força e os EUA colocaram as pessoas para trabalhar em projetos de obras públicas.

Nesse momento, houve no Brasil uma retração da produção industrial, com racioidnto de energia elétrica, e ainda que esse problema tenha sido resolvido, isso não significou a superação da crise. As vendas dos bens duráveis caíram consideravelmente e, por consequência, o país começou a conviver com o desemprego industrial, redução de jornadas de trabalho e subempregos (PEREIRA, 1983). No campo político, os problemas de representatividade se evidenciaram. Significativa parcela da população não tinha direito ao voto e a crise de representatividade se manifestava naquilo que Bresser Pereira chamou de “divórcio entre governantes e governados”. (1983, p.135). Todos esses fatores contribuíram para a emergência de um fenômeno que caracterizou as relações políticas no país entre 1964 a 1985: o militarismo intervencionista. Consideráveis frações da sociedade foram excluídas não apenas da modernização econômica, mas também do processo político: seja durante a ditadura dos regimes militares ou durante dos períodos de “democracia restrita”.

Em consequência das condições internacionais e dos desequilíbrios internos, o crescimento diminuiu gradualmente e com a crise da dívida externa no início de 1980, a economia estagnou-se, evidenciando a vulnerabilidade financeira e as deficiências distributivas no país (PEREIRA, 1983). Os altos níveis de desigualdade de renda pareciam perpetuar-se, sendo considerados produtos das políticas de desenvolvimento no modelo brasileiro.  Havia a impressão, também, de que o Keneysianismo não conseguiria fazer com que o Brasil alcançasse os países mais desenvolvidos (ibdem).

A grande inversão se deu com o declínio do keynesianismo e a ascensão do neoliberalismo nos 35 anos após a Segunda Guerra Mundial (1945-1980). Esta foi a época em que ferramentas modernas de política monetária (controle de taxas de juros) e política fiscal (controle de gastos do governo e impostos) foram desenvolvidas. Essa inversão pegou carona nos deslocamentos sociais e econômicos associados à era da Guerra do Vietnã e aos choques nos preços do petróleo, que dominaram a década de 1970.

No entanto, esses deslocamentos apenas forneceram um ponto de entrada. A última fagulha do dinamismo neoliberal se encontra nas divisões intelectuais do keynesianismo e sua incapacidade de desenvolver entendimentos públicos da economia que possam competir com a retórica neoliberal dos “mercados livres” (HARVEY, 2005). Nas últimas décadas do século XX, muitas sociedades experimentaram mudanças políticas, econômicas e culturais que as transformaram por meio da implementação de modelos menos regulamentados de capitalismo, mudanças na estrutura e responsabilidade das organizações nos setores público e privado. 

O Brasil no contexto do Neoliberalismo: a Governança do Estado e do Mercado

Considerando a provisão do bem-estar hostil ao crescimento econômico, o neoliberalismo surge como um movimento ideológico internacional, com vistas a propagar seu ideário político e econômico por todo o globo. De acordo com Harvey (2005), esse movimento está ligado às organizações que promovem e oferecem recursos para sustentá-lo.
Retomando os preceitos do liberalismo clássico, o neoliberalismo emergiu como um movimento que procurou desmantelar as principais instituições e políticas keynesianas. Embora seja considerado como um fenômeno distindo do liberalismo clássico do século XVIII, sua essência guarda os fundamentos da corrente liberal econômica e política que surgiu na Europa nesse século.
No Brasil, o período de redemocratização pós ditadura militar inicia-se caracterizado por um consenso unificado na política e apoiado pela estabilização econômica: mudanças nas políticas, reformas estruturais e institucionais deveriam ser implementadas. Acreditava-se que os investimentos estrangeiros recebidos diretamente, permitiriam sair da crise. Com o fundo ideológico do neoliberalismo, os pilares mais importantes da transição brasileira orientada para o mercado, foram, além da estabilização econômica, as reformas  estruturais recomendadas pelo Consenso de Washington: liberalização, privatização e desregulamentação (BOITO JUNIOR, 1999).
Até o final dos anos de 1980, o Brasil era uma das economias mais protegidas e fechadas do mundo. A liberalização do comércio começou em 1988 com uma modesta redução de tarifas que evoluiram para uma grande ruptura com o protecionismo e um drástico ciclo de liberalização do comércio (PEREIRA, 2004). Diversas regras restritivas e leis foram removidas, controles de preços foram eliminados, a lei de proteção ao consumidor foi posta em vigor e inúmeras emendas constitucionais foram aprovadas no intuito de remover a discriminação contra o capital estrangeiro (PEREIRA, 2004).
Antes de 1994 a principal característica do Estado Brasileiro era o controle discricionário e a flexibilização nas políticas fiscal e monetária. Depois, no entanto, principalmente a partir do Plano Real, surgiu o consenso político e social de que a estabilidade de preços tinha que ser a prioridade econômica. Implícito no modelo neoliberal de desenvolvimento estava a ideia de que as mesmas políticas que visavam estabilização econômica serviriam ao desenvolvimento social e, em sentido mais amplo, o desenvolvimento humano, como mostra Bresser Pereira (1999). A nova moeda e a queda da inflação converteram-se em aumento da renda real para camadas de baixa renda, diminuindo a pobreza, sem, no entanto, impactar a desigualdade social.
A era FHC é considerada um período liberal. Sob os anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, as taxas de crescimento continuaram baixas e os avanços sociais alcançados foram bastante modestos. Começava a ficar claro que a liberdade do indivíduo através do mercado deveria ser repensada. Os críticos desse governo defendem que tais liberdades só poderiam ser alcançadas através da provisão do Estado. Principalmente dentro do contexto da globalização.

O desenvolvimento Brasileiro no contexto da Globalização

A globalização da economia assentou-se nos princípios do neoliberalismo. A partir do final da década de 1980, com a nova divisão internacional do trabalho, assistimos ao fortalecimento das empresas transnacionais, com investimentos globais e sistema financeiro. Este é o período da produção e acumulação flexíveis, da tecnologia da informação e comunicação e, sobretudo, de desregulamentação das econômicas nacionais.
Neste cenário, diversas consequências puderam ser sentidas de forma diversificada entre os países, considerando o seu nível de desenvolvimento e posição dentro do sistema global. As economias nacionais foram abertas e houve por todo o mundo a orientação para políticas fiscais e monetárias voltadas para a queda da inflação. Com isso, a regulação estatal na economia passou a ser mínima e o setor empresarial do Estado passou por um intenso processo de privatização. Em consequência, houve a diminuição do peso das políticas sociais no orçamento público. Os países em desenvolvimento, sobretudo os latino-americanos foram subordinados aos organismos multilaterais e as recomendações eram altamente restritivas com relação à intervenção do Estado.
Países como o Brasil foram atingidos de forma mais aguda pelas imposições. Os países centrais atacaram a autonomia política dos países periféricos e o Estado-nação teve comprometido o protagonismo das iniciativas econômicas, sociais e até mesmo políticas. Boaventura de Sousa Santos ressalta que as relações interestatais atravessaram todas as fronteiras e as ações transnacionais comprometeram a capacidade de condução dos fluxos dos Estados-nação. A partir de então, os estados mais poderosos deixaram de ser a maior ameaça à soberania dos países periféricos. Esse papel passou a ser desempenhado pelas empresas multinacionais e agências financeiras privadas. (SANTOS, 2002).
A globalização é um exemplo literal do “imperialismo econômico” na forma da chamada “nova economia do desenvolvimento”, na qual não somente a economia, mas as dimensões sociais do desenvolvimento necessitam ser pensados a partir da reconstrução do Estado, para que sua capacidade de intervenção seja equacionada dentro da expansão do capitalismo financeirizado e globalizado (OLIVEIRA, 2006). De acordo com ele:

A financeirização do capitalismo, (...) chamada, equivocamente, de globalização, abriu as comportas dos sistemas monetários e financeiros de cada capitalismo nacional. As dívidas externas, contraídas ainda no período chamado de grande liquidez (1970), foram para a periferia do sistema incluindo o Brasil e a América Latina, as primeiras formas da mundialização, ao lado, evidentemente, da forte presença das multinacionais. Mas estas operavam ainda num campo determinado pelas decisões internas (...) (OLIVEIRA, 2006, p. 273).

Nesse cenário, a relação entre o Estado e a burguesia se altera radicalmente, tornando o Estado uma espécie de refém do novo poder econômico centrado nas multinacionais produtivas e financeiras. No discurso dominante, esta situação é apresentada como “inevitável” porque está ligada a uma “globalização da economia” imposta pelo jogo livre das leis do mercado.
São raros os termos econômicos tão impregnados de ideologia quanto a palavra “globalização”. Num grau ainda mais elevado do que para a expressão “progresso técnico”, estaríamos frente a um processo em relação ao qual a sociedade mundial contemporânea, em seus diversos componentes – os países e, dentre esses, as classes sociais –, não teria opção a não ser se adaptar. (CHESNAIS, 1995, p.3).
Nessa mesma direção, Martins (2011) argumenta que o processo de globalização não é considerado de forma apropriada, já que a sua dimensão dialética é negligenciada e perde-se de vista a relação entre estruturas de produção e forças produtivas diferentes. Sendo um processo revolucionário, a mundialização deu início a uma nova era, que é sistêmica e que produz de forma global e que, principalmente, abriga processos multifacetados, marcados mais pela intensificação do que pela ruptura. Interações transnacionais intensificam-se, e numa combinação de homogeneização e universalização, intensificam e impactam dinâmicas, além de econômicas, políticas, sociais e culturais, como observa Chesnais:

[...] ao se observar as coisas de perto, percebe-se que o conteúdo efetivo da globalização é dado, não pela mundialização das trocas, mas pela mundialização das operações do capital, em suas formas tanto industrial quanto financeira. Avalia-se que as empresas transnacionais (como matrizes, filiais ou demandantes em contratos de subcontratação transfronteiras) respondem por dois terços do intercâmbio internacional de “bens e serviços”. Aproximadamente 40% do comércio mundial pertencem à categoria “intragrupo”. (CHESNAIS, 1995, p.4).

De todo modo, a desigualdade entre as nações aumentou consideravelmente, as catástrofes ambientais, os conflitos étnicos, migração e crime organizado ganharam corpo e manifestaram-se também com maior intensidade (SANTOS, 2002).
No campo político, Boaventura de Sousa Santos aponta as tendências fortemente verificadas da globalização. Primeiramente, houve um esvaziamento do aparelho estatal nacional, fenômeno que ele designa como “desnacionalização do Estado”. Em consequência, uma mudança no papel do Estado, que passou apenas a coordenar as relações, provocando a desestatização dos regimes políticos. Desse modo, o impacto do contexto internacional sobre os estados aumentou e o resultado foi a internacionalização do Estado nacional (SANTOS, 2002). Diante desse quadro, a questão principal seria compreender se esse novo contexto implicou na adoção de um novo modelo de desenvolvimento.  Quais foram as estratégias adotadas pelo Brasil para minimizar a ampliação descontrolada da globalização?
Não se pode negar que os governos considerados neoliberais deixaram um legado comprometedor para o desenvolvimento do Brasil porque não conseguiram adotar um modelo econômico que contribuísse para a efetividade do progresso econômico e social no país. O quadro que se consolidou através das políticas adotadas foi de  fraco crescimento econômico; gargalos na infraestrutura econômica e social; desnacionalização da economia brasileira; fracasso da política social do governo e da eliminação das desigualdades sociais e regionais, sem contar o estado de agravamento da insegurança nacional.
A desnacionalização da economia brasileira progrediu através de investimentos diretos em fusões e aquisições de empresas nacionais. Enquanto houve um agravamento das contas externas e o avanço do processo de desnacionalização, também ocorreu um crescimento econômico muito baixo.
Uma das consequências mais graves do baixo crescimento econômico registrado no Brasil desde a introdução do modelo neoliberal foi o aumento do déficit público,  fato que impediu a capacidade do governo de desenvolver, em todos os níveis, políticas públicas de investimentos em suas economias.     Estas análises permitem identificar a devastação provocada na economia brasileira pelo modelo neoliberal, cujo balanço é extremamente negativo de todos os ângulos (BOITO JUNIOR, 1999).
O advento da disciplina do mercado global sobre uma economia nacional impôs a sua eficiência sobre a oferta interna de bens e serviços e sobre os fatores de produção - capital, trabalho e matérias primas. A globalização passou a ser entendida como um novo modo de organização social que os capitalistas criaram para conduzir relações sociais dentro de uma economia mundial. Isso levou ao surgimento de princípios do mercado global como a acumulação flexível e a internacionalização do Estado-nação (MARTINS, 2011). Assim, o estado de bem-estar como provedor de tais bens e serviços é atraído diretamente para a dinâmica da globalização - sua mobilização e perpetuação.
Como o capital internacional pôde atravessar as fronteiras nacionais em busca de melhores oportunidades de investimento, a competição entre os Estados-nação e seus cidadãos foi intensificada. O principal problema com esta posição é que ela é apresentada como se não houvesse outra alternativa (SANTOS, 2002), quando é mais uma questão deles exercendo uma escolha que favorece um tipo de arranjo social em detrimento de outro. O fracasso do Consenso de Washington em proporcionar um crescimento mais rápido nos países em desenvolvimento - na verdade, proporcionou um crescimento mais lento - contribuiu para uma reação negativa que desacreditou de forma significativa o neoliberalismo.

Considerando as modernas perspectivas teóricas do desenvolvimento, não podemos perder de vista que as capacidades humanas são o grande objetivo e também o meio para o desenvolvimento. (SEN, 2000). Na lógica do mercado sempre ocorrerá “subinvestimentos” em serviços que expandam as capacidades das pessoas, já que seu retorno não se dá a curto prazo. O único caminho de obtenção de investimento em recursos voltados a essa expansão passa pelo envolvimento ativo do Estado.

Esta é uma questão central para se pensar o Estado Desenvolvimentista no século XXI. Certamente, diferentes papéis do Estado em diferentes dimensões do desenvolvimento se sobrepõem. Não há quem negue que a garantia de estabilidade econômica acaba melhorando a condição de segmentos mais pobres da sociedade. No entanto,                 as mudanças mais recentes em diversos países e, sobretudo as teorias desenvolvimentistas modernas, apontam novas modalidades de intervenção, voltadas sobretudo, a busca do bem-viver.

O governo Lula e o Brasil do início do século: uma experiência neodesenvolvimentista

O fracasso em retomar o crescimento econômico, o aumento do desemprego e a queda na renda das classes médias durante o segundo governo FHC foram os fatores responsáveis pela vitória esmagadora de Lula em 2002 (ALMEIDA, 2012). Ele assumiu a presidência do país em janeiro de 2003 num momento bastante agitado: contexto de crise externa, baixo crescimento, política interna incerta e desvalorização do Real. A primeita tarefa do governo Lula foi reconquistar a confiança dos mercados e combater a inflação e o endividamento.

Sua orientação política de esquerda foi mostrada quando de imediato houve a preocupação com as questões sociais. Novas reformas institucionais foram promovidas e houve a unificação dos programas federais de transferência de renda. Essas ações levaram posteriormente à políticas mais inclusivas. O sucesso econômico alcançado estavam em consonância com os resultados sociais: o país alcançava assim o crescimento redistributivo e inclusivo, já que o PIB apresentou crescimento per capita maior nas porções mais pobres da população. A taxa de emprego formal aumentou, e, por consequência, houve aumento dos ganhos médios. A pobreza diminuiu drasticamente e as desigualdades de renda e regional caíram (ALMEIDA, 2012).

É importante ressaltar que esses resultados podem ser explicados, pelo menos em parte, pelo contexto internacional favorável. Ainda assim, surgia um consenso sobre os impactos positivos das políticas em vigor. Mesmo quando o contexto internacional mostrou-se desfavorável, o Brasil seguia o rítimo de crescimento positivo. O país, definitivamente não foi afetado pela crise de 2008 de forma drástica, como também é verdade que a sua recuperação se deu de forma acelerada do que em outros países. As políticas econômicas bem sucedidas de expansão do mercado interno e inclusão social explicam o comportamento do país durante a crise (ibdem).

No segundo mandato, o governo Lula seguiu com a estabilização monetária no topo das medidas da agenda de desenvolvimento. Nery (2010) chama a atenção para o fato de que a demanda doméstica foi estimulada de forma ampla por medidas como a expansão de programas sociais e políticas de incentivo ao crédito. Essas medidas indicavam um movimento que tinha colocado o Brasl no caminho de um Estado Social de Desenvolvimento. Outro elemento importante na agenda social do governo eram as intervenções no mercado de trabalho, com aumentos constantes do salário mínimo e estímulos (simplificações tributárias principalmente) à criação de emprego fomal.

Ao contrário do que se poderia prever, durante o governo Lula, ainda tendo conquistado o poder através de um partido de massa e base operária, a hegemonia do grande capital foi mantida e a burguesia teve sua participação ampliada, inclusive na política. Ainda assim, não podemos afirmar que houve uma adesão aos preceitos neoliberais. O governo Lula se rearranjou para acomodar a burguesia no poder e entre outras iniciativas, incentivou sobremaneira o desenvolvimento da produção industrial, porém, voltada para o mercado interno. Em contrapartida, as relações econômicas internacionais foram diversificadas e os Estados Unidos tiveram sua participação reduzida nas transações.

A presença dos sindicatos foi ampliada e redefinida, ainda que a mobilização social não tenha aumentado. Podemos chamar de “passivo” o apoio que o governo recebeu (ALMEIDA, 2012). A burguesia, por sua vez, apoiou de forma marcante o governo e isso faz eco com a mudança ideológica traduzida pelo abandono da luta antisistêmica. De acordo com Almeida (2012), as continuidades, como se pode ver, foram predominantes em relação às rupturas. Não houve, por exemplo, avanços consideráveis no que tange à agenda da reforma agrária, como se esperava.
Por outro lado, outras marcas do desenvolvimento devem ser mencionadas quando se trata de analisar o período do governo Lula. A implementação de políticas sociais, sobretudo as compensatórias, não se deu à custa do desestímulo das atividades do grande capital. O resultado foi aumento do emprego e renda, redução da pobreza e diminuição da desigualdade social. O Brasil dos anos 2000 desmentiu a assertiva corrente de que a diminuição do setor público na economia é impeditiva para a intervenção do Estado (NERY, 2012).
O desenvolvimento da produção se deu em meio a uma política fiscal, cambial e de crédito, com aumento de consumo, de exportações e pagamento da dívida pública. O nacionalismo desse período foi pautado por uma prioridade: a inclusão social. A partir de então, o Brasil passou a ocupar um lugar menos marginal entre os países da periferia. Com elogios às políticas implementadas, o país atinge um lugar de protagonismo internacional.
Em 2012, Amartya Sen, economista indiano vencedor do prêmio Nobel de Economia em 1998, esteve no Brasil e afirmou em entrevista 1 que a economia brasileira passava por um bom momento. Sen não se referia apenas ao crescimento econômico do país, mas, sobretudo, ao caráter distributivo da riqueza gerada, que impactou profundamente os indicadores sociais. O crescimento brasileiro naquele momento era inferior ao da China e da Índia, mas o economista chamava atenção para as “vantagens” do processo em relação aos demais.  Na Índia, por exemplo, a renda per capita continuava baixa e a evolução dos indicadores sociais era consideravelmente mais baixa em relação ao Brasil.
Ainda assim, comparando esse período de desenvolvimento brasileiro com o Nacional desenvolvimentismo da década de 1950, Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida aponta que:

É sempre bom lembrar que o apogeu do nacional-desenvolvimentismo, contrariando fortes expectativas, teve curta duração. Ao insistirmos nas distinções entre ele e o neonacional-desenvolvimentismo, esperamos fugir à crença ingênua de que a história se repete. Apesar das similitudes, que tendem a ser hiperbolizadas pelos apologistas, trata-se de complexos político-ideológicos distintos em diferentes contextos históricos. Mas é muito difícil ignorar, nos dois casos, o déficit dramático de lutas políticas autônomas dos dominados. Já se disse que a história não se repete. Farsas podem produzir danos atrozes e cabe à análise científica auxiliar pelo menos o vislumbre de novos desafios. Sem isso, superá-los fica bem mais difícil. (2012, p. 706-707).

Ao final do governo Lula e com o início do mandato de Dilma Roussef na presidência da República em 2011, a questão a ser respondida era: Para onde vai o Brasil? Por menores que tenham sido os impactos da crise econômica de 2008 no Brasil, não há como dizer que o país passou incólume, sobretudo em se tratando de uma realidade de mercados financeiros globalizada como a atual.
De acordo com Amartya Sen (2012), a própria crise é resultado de falhas no funcioidnto desses mercados. O que ocorre é que o gasto estatal com amparo aos mercados acarreta endividamento. O autor ressalta que somente uma economia estagnada faz parecer que as políticas sociais são um peso para os países. Diversas experiências na história do capitalismo mostram que a saída para as crises sempre foi o crescimento e não a austeridade. Amartya Sen defende um equilíbrio entre o livre mercado e intervenção do Estado na direção das suas responsabilidades frente à população.  O Brasil, apesar de todos os avanços, não apresentava o equilíbrio perfeito no início da segunda década do século XXI. Nada obstante, não havia, como ressaltou Amartya Sen, nenhum país em perfeito equilíbrio. 

A insegurança nacional e o regime prisional no Brasil: história e persistência cultural nos processos políticos

A consequência mais grave do modelo de crescimento econômico registrado no Brasil desde a introdução do modelo neoliberal foi o aumento do déficit público, fato que impediu a capacidade do governo de desenvolver, em todos os níveis, políticas públicas de investimentos em sua economia e em áreas centrais de especialização como saúde, educação, seguridade social, infraestrutura e segurança pública. O Brasil ainda apresenta consideráveis ​​desigualdades regionais por ser muito concentrado, tanto em termos demográficos quanto economicamente.  Além de não ter alcançado grandes avanços na superação das desigualdades regionais, as desigualdades sociais também estão longe de serem superadas.  Os índices de pobreza no país demonstram que a arena social se traduz em não ter promovido a verdadeira inclusão social dos pobres. As taxas de desemprego são altas e  os gastos públicos com benefícios para o desemprego aumentam sem parar no Brasil. 
Estas análises permitem identificar a devastação provocada na economia brasileira pelo modelo neoliberal, cujo balanço é extremamente negativo de todos os ângulos. Um sistema dinâmico como a economia de um país como o Brasil, quando está sujeito a "flutuações" é levado a um ponto de bifurcação a partir do qual o sistema evolui; ou para uma nova etapa de reestruturação e superação dos problemas; ou colapsa. (PEREIRA, 2004). Esta foi a situação enfrentada pelo Brasil no início do século XXI. Questão fortemente ancorada no campo das decisões políticas.
Decisões políticas nascem a partir de ajustes de alta complexidade. De acordo com o as abordagens institucionalistas, o processo político está estruturado pelas instituições, estruturas, grupos de interesse, redes de política, contingências e tempo (PETER; HALL, 1996). Trata-se de um processo incremental, cumulativo, construído a partir de experiências anteriores. As decisões do passado, assim sendo, afetam a dinâmica de desenvolvimento político, criando oportunidades e limitações para estratégias políticas, para o desenho institucional e dos resultados políticos atuais. É por isso que a inércia institucional pode ocorrer, bloqueando perspectivas de mudança e inovações. (NORTH, 1994).
As normas institucionais afetam sobremaneira a forma com que as funções atribuídas às instituições são exercidas. Os atores políticos são movidos não apenas por interesse próprio, mas também e ainda mais pelas funções institucionais e valores herdados. As organizações coletivas formam interpretações dos atores sobre seus interesses e preferências, que podem mudar ou não em função do aprendizado político em um determinado contexto institucional e histórico, ou seja, da “dependência de trajetória”.
Segundo North (1994), a dependência de trajetória se configura como uma herança cultural da sociedade, fruto do processo de aprendizagem, em que há uma contínua condução de características e efeitos de sua influência mútua, de um período para o outro. Dessa forma, as condições atuais e futuras estão ligadas a determinações do passado, e são, portanto, produtos do prosseguimento das instituições de uma sociedade, sendo a análise de seu ambiente institucional, a fonte mais segura de compreensão de seu processo histórico.
Nesta tradição, há uma ênfase sobre a inércia das instituições, como o auto-reforço dos sistemas e sobre os obstáculos à mudança decorrentes de normas organizacionais destinadas a perpetuar os padrões existentes. A persistência cultural pode se tornar cada vez mais dilatada, perpetuando regras, padrões e medidas que reforçam os valores centrais. A “rigidez institucional” centra-se na forma como as instituições desenvolvem normas e práticas, resistentes à reversão. A Dependência de trajetória reforça essas regras e práticas (PIERSON, 2000).
Os acontecimentos passados condicionam os acontecimentos subsequentes, ainda que tenham ocorrido de forma não premeditada, já que os “indivíduos podem escolher suas instituições, mas não o fazem em circunstâncias que eles mesmos criaram, e suas escolhas, por sua vez, influenciam as regras dentro das quais seus sucessores fazem suas escolhas.” (PUTNAM, 1996, p. 23).

Nesse sentido, os Estados menos desenvolvidos encontram-se presos em um ciclo de pobreza e desigualdade do qual não há uma fuga óbvia. Juntos, esses fenômenos podem exacerbar a deterioração de outros componentes de segurança nacional, que por sua vez pode agravar a segurança econômica e humana em um outro ciclo de auto reforço, onde o resultado é potencialmente prejudicial para o poder do Estado, conduzindo a conflitos prolongados.

A segurança nacional é um conceito amplo, com três níveis de análise: o sistema internacional, o Estado e o indivíduo e seu escopo inclui políticas econômicas e sociais.  (WACQUANT, 2003). A coletividade é o objeto fundamental da segurança.  “Coletividades humanas" são os cidadãos de um Estado que funciona como o principal provedor de segurança. 

Porém, a globalização econômica continua impondo seu processo de internacionalização do comércio através de uma divisão internacional de trabalho a serviço do capital dominante. Sob as políticas neoliberais do regime econômico global macroeconômico -  estabilização, desregulamentação e privatização - juntamente com o programas de ajuste, as receitas do Estado diminuiram significativamente. O resultado é crescimento lento e baixo da renda per capita.

Desemprego e disparidades de renda aumentaram drasticamente.  As instituições financeiras internacionais respondem defendendo cortes de gastos do governo, exacerbando ainda mais a fragmentação do capacidade militar e estatal para manter ao controle. A insegurança no nível humano no Brasil, enquanto uma consequência do neoliberalismo, contribuiu para um ambiente propício de crescimento da criminalização e criação de redes de corrupção, comércio de drogas, armas de fogo, etc.  Uma espiral descendente de perda de legitimidade, desordem crescente e fragmentação militar cria o contexto em que as “novas guerras” acontecem.

 Efetivamente, o “fracasso do Estado” é acompanhado por uma crescente privatização da violência.  Como a maioria da população torna-se empobrecida, a luta pela sobrevivência é explorada pela guerra do crime, que recruta jovens desempregados e empobrecidos a serviço de antagonismos locais. (WACQUANT, 2011). Por isso, o enfraquecimento sistemático da segurança equivale a uma verdadeira globalização da insegurança nacional. De acordo com Wacquant (2003), a escala pura e implacável deste processo demonstra que a ordem econômica  internacional, que é baseada no paradigma neoliberal, deve ser fundamentalmente transformada se quisermos que esse processo seja revertido nos interesses da segurança na maioria dos países do mundo.

A ascensão do estado penal no Brasil ao longo do último quarto de século XX é uma resposta ao aumento da insegurança social, não da insegurança criminal, na medida em que as mudanças na política de justiça estão interligadas com as mudanças nas políticas de bem-estar.  O processo de expansão do encarceramento é um reflexo da busca pela disciplina das frações precárias da classe operária pós-industrial. Deste modo, um sistema prisional diligente não seria um desvio, mas um componente do Estado Neoliberal.

O governo de insegurança social posto em prática no Brasil implica, portanto, uma mudança da ala social para a ala penal do estado. É a manifestação da inclinação da atividade estatal do social para o braço penal e a incipiente penalização do bem-estar (WACCQUANT, 2003).

O emparelhamento institucional de ajuda pública e encarceramento como ferramentas para gerir os pobres indisciplinados é uma resposta penal que o Estado dá a doenças urbanas e distúrbios sociais. Para Wacquant (2011), a penalização associa a socialização e a medicalização como estratégias alternativas pelas quais o Estado pode optar por tratar condições e condutas indesejáveis. A transformação de bem-estar em uma direção punitiva e a ativação do sistema penal para lidar mais com a clientela tradicional de assistência aos desamparados corresponde à degradada “assistencialização” da prisão.

De fato, a seletividade social étnico-racial da prisão continua estável e foi mantida, ou melhor, reforçada, uma vez que ampliou enormemente sua crise, demonstrando que a penalização não é uma lógica mestra abrangente que atravessa cegamente a ordem social para ligar seus vários constituintes. Pelo contrário: é uma técnica distorcida que segue acentuando as divisões de classe, etnia e lugar, operando para dividir populações e diferenciar as categorias de acordo com concepções estabelecidas de valor moral. O subproletariado urbano da América vive em uma "sociedade punitiva", mas suas classes média e alta, certamente não. (WACQUANT, 2003).

Considerações finais

Os altos índices de criminalidade podem ser reconhecidos como limitações da justiça penal, que marcam e mascaram uma falha política. As raízes e as modalidades do enorme impulso da hipercarcerização no Brasil estão na rota dos preceitos do Estado Neoliberal. O aparelho penal é um órgão central do Estado, expressivo de sua soberania e instrumental na imposição de categorias, moldando as relações e os comportamentos através da penetração seletiva do espaço social e físico. A polícia, os tribunais e a prisão não são meros técnicos anexos para a execução da ordem legal, mas veículos para a produção política da realidade e para a supervisão de categorias sociais privadas.

É possível notar que a reconstrução do Estado após o colapso do pacto social keynesiano implicou não apenas uma atividade renovada de promoção da competitividade internacional, inovação tecnológica e flexibilidade, mas também, e mais distintamente, a reafirmação vigorosa de sua missão penal. Existe hoje o reconhecimento generalizado de que mercados financeiros internacionais podem ser propensos à instabilidade e que o crescimento induzido pelas exportações não é suficiente para o desenvolvimento interno e pode promover uma “corrida para o fundo” nas democracias e instituições que promovem inclusão social e que são necessárias para o desenvolvimento. Diferentes ciclos e modelos de desenvolvimento foram aplicados no Brasil. A descrição do caminho desenvolvimentista percorrido pelo país nos últimos 80 anos demonstra a existência de uma variação, mas também, em certos aspectos, continuidade de configurações institucionais.

Mecanismos que buscam direcionar coercitivamente a conduta dos cidadãos são "intrínsecos à política democrática liberal" e refletem suas políticas internas e contradições.  O funcioidnto da política punitiva da pobreza no Brasil após a dissolução da ordem keynesiana revela que neoliberalismo não traz o encolhimento do governo, mas a ereção daquilo que Wacquant (2003) chamou de um “estado centauro”, liberal no topo e autoritário na parte inferior; que apresenta faces radicalmente diferentes nos dois extremos da hierarquia social: um visivelmente atencioso para com as classes média e alta, e um temível para a classe baixa.

Apresentando desde o início da sua constituição enquanto Estado moderno uma grande exclusão social e uma absurda concentração de renda, o Brasil teve com a Constituição de 1988, a consolidação da possibilidade de garantia de direitos sociais e a pavimentação de uma base para reformas orientadas para o mercado. Para além da busca pela inclusão social e redução da pobreza e da desigualdade social, podemos afirmar que as primeiras décadas do século XXI são caracterizadas por um novo modelo de desenvolvimento, marcado pela expansão do mercado interno através de políticas macroeconômicas, visando a integração regional e diversificação de exportações para outros países.

O Estado Neoliberal promoveu a ampliação e exaltação do setor penal  para que ele possa “controlar” as repercussões sociais causadas pela difusão da insegurança social nos degraus inferiores das classes e hierarquias étnicas. O neoliberalismo propagou uma “cultura de controle”, e difundiu políticas punitivas em ambos os domínios, bem-estar e criminal.  Sociedades como o Brasil, que adotaram uma política penal super punitiva, inspirada nos EUA, viram suas populações prisionais aumentarem como resultado. Isso não aconteceu porque o país chegou finalmente ao estágio da "modernidade tardia", mas porque tomou a rota de desregulamentação do mercado e estado mínimo.

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*Professora do Departamento de Política e Ciências Sociais e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.
**Professor do Departamento de Política e Ciências Sociais e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES.
1 Entrevista à Revista Veja disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/mercados-justica-e-liberdade/

Publicado: 11/03/2020

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