Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


A DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO FAMILIAR NAS ATIVIDADES DE PRODUÇÃO DE FARINHA DE MANDIOCA NA COMUNIDADE SANTA ANA, NORDESTE PARAENSE, AMAZÔNIA BRASILEIRA

Autores e infomación del artículo

Livio Sergio Dias Claudino*

Universidade Federal do Pará, Brasil

E-mail: livio.claudino@gmail.com


Resumo
O objetivo deste artigo é analisar os processos de divisão social do trabalho em família de agricultores residentes no Nordeste paraense, em um Projeto de Assentamento de Reforma Agrária, que tem na fabricação de farinha de mandioca (Manihot sculentus) sua principal atividade produtiva. Foi realizada pesquisa de campo, por meio de observação e entrevistas com roteiros de perguntas abertas, e permanência na residência da família estudada. Como principais resultados, identificamos a divisão do trabalho por gênero (masculino e feminino), bem como a definição de espaços específicos de produção como “roça”, “pedaço” e “pedacinho”, cada um deles destinado à uma categoria de filhos, futuros herdeiros. Constatou-se também a dificuldade de gerenciar as atividades produtivas, principalmente devido à pequena extensão de terra disponível para a família, provocando tensões para a saída de alguns filhos para procurar trabalho fora do estabelecimento, em outras atividades.
Palavras-chave: Projeto de assentamento, Mãe do Rio, Roça.
Abstract
The aim of this paper is to analyze the processes of social division work of family farmers living in the northeast of Pará, in a Land Reform Settlement Project, which has the production of cassava flour (Manihot sculentus) as its main productive activity. Field research was carried out through observation and interviews with open question scripts and stay in the residence of the studied family. As main results, we identified the division of labor by gender (male and female), as well as the definition of specific production spaces such as “farm”, “piece” and “little piece”, each destined to a category of children, future heirs. It was also found the difficulty of managing productive activities, mainly due to the small amount of land available to the family, causing tensions to leave some children to look for work outside the establishment, in other activities.
Key words: Settlement project, Mãe do Rio, Roça.
Resumen
El objetivo de este artículo es analizar los procesos de división social del trabajo familiar de los agricultores que viven en el noreste de Pará, en un Proyecto de Asentamiento de la Reforma Agraria, que tiene la harina de mandioca (Manihot sculentus) como su principal actividad productiva. La investigación de campo se llevó a cabo mediante observación y entrevistas con guiones de preguntas abiertas, y permaneció en la residencia de la familia estudiada. Como resultados principales, identificamos la división del trabajo por género (masculino y femenino), así como la definición de espacios de producción específicos como "granja", "pieza" y "pieza pequeña", cada uno de ellos destinado a una categoría de niños, futuro herederos También se encontró la dificultad de gestionar actividades productivas, principalmente debido a la pequeña cantidad de tierra disponible para la familia, lo que provoca tensiones para que algunos niños busquen trabajo fuera del establecimiento, en otras actividades.
Palabras clave: Proyecto de asentamiento, Mãe do Rio, Roça.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Livio Sergio Dias Claudino (2020): “A divisão social do trabalho familiar nas atividades de produção de farinha de mandioca na comunidade Aanta Ana, nordeste Paraense, Amazônia brasileira”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (marzo 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/03/divisao-social-trabalho.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2003divisao-social-trabalho

1. INTRODUÇÃO

Não existe uma forma única de caracterizar a organização do trabalho no contexto da agricultura familiar. Cada família se organiza de formas distintas e dinâmicas, ao longo do tempo e do espaço. A intensa diferenciação no interior dos agrupamentos familiares segue pondo em prática as suas funções segundo diferentes lógicas e contextos. No entanto, uma característica comum à estas categorias de agricultores é o fato do trabalho ser baseado em relações familiares, garantindo simultaneamente a sobrevivência e a socialização dos indivíduos (MOTA, 2008). É pelo trabalho, que a chefia do grupo, juntamente com a família, proporciona os meios de reprodução física e social da casa, sendo este um mediador da relação entre o homem e a terra (GARCIA-JUNIOR, 1983). Isso quando há terra disponível para materializar a força de trabalho. Na Amazônia brasileira, as dinâmicas de exclusão social pela impossibilidade de acesso à terra se intensificaram nas últimas décadas.
Devido às diversas formas de privações, que impedem a permanência dos filhos nos estabelecimentos, diversas estratégias são traçadas pelos agricultores no intuito de enfrentar os constrangimentos que impossibilitam a absorção de toda a mão de obra familiar no estabelecimento.  A buscar por ocupações fora do estabelecimento, o assalariamento, a venda de força de trabalho temporariamente, conforme destaca Schneider (2009), ou as saídas do agrupamento familiar por meio dos casamentos, de acordo com Stropasolas (2006), são algumas das estratégias adotadas.
Embora o “vazio” deixado pelos que saem possa ser tão grande a ponto de comprometer a viabilidade de exploração produtiva do estabelecimento, como no caso de casais idosos, estas “saídas” servem como reguladoras de conflitos e tensões, especialmente entre os membros mais jovens e as mulheres, originadas principalmente do ambiente de tantas incertezas quanto ao futuro. As distintas formas de organização e divisão do trabalho familiar são indicadoras do encaminhamento que será dado aos jovens quanto a permanecer ou sair dos estabelecimentos. O exercício de atividades específicas ou o cultivo nas áreas principais ou secundárias são fatores importantes para a percepção do direcioidnto dado aos jovens da família. Por esses fatores, é importante situar os dados demográficos da família, as condições econômicas, a disponibilidade de recursos produtivos e, a especialização ou não em alguma atividade agrícola, para compreender como as diferentes formas de divisão social do trabalho são coerentes com formas de enfrentamento dos constrangimentos da modernidade.
Este texto tem por finalidade caracterizar um grupo nuclear de agricultura familiar, indicando principalmente como ocorre a divisão social do trabalho. Será apresentada primeiramente o grupo, o sistema de produção, indicando as atividades desenvolvidas pela família, os principais conflitos. Em seguida, aprofundaremos as análises no sistema de produção de mandioca para a fabricação de farinha.

2. METODOLOGIA
A pesquisa foi realizada em uma comunidade chamada Santa Ana, no município de Mãe do Rio, nordeste paraense, Amazônia brasileira. Trata-se de um Projeto de Assentamento (PA) chamado de Itabocal, que já existe há 12 anos. De acordo com Pessôa (2007):
“Antes de se tornar um PA, denominava-se Gleba Itabocal. Sua desapropriação aconteceu por interesse social para fins de reforma agrária, através do Decreto no 97.609, de 04 de abril de 1989 e sua emissão de posse ocorreu em 24 de março de 1994, sendo regularizado e destinado para assentamento de agricultores através da Portaria no 4, de 10 janeiro de 1995, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA. Nessa área existem moradores que a ocupam há mais de 20 anos. O PA possui uma área de aproximadamente 39.680 ha, localizado na microrregião do Guamá e mesorregião do Nordeste paraense, abrangendo os municípios de Irituia, Mãe do Rio e Capitão Poço, com uma organização atual de 27 comunidades” (PESSÔA, 2007, p. 59).
Os dados foram coletados coleta de dados foi entrevista e observação direta, com participação durante as etapas de cultivo de mandioca e produção da farinha. Foi utilizado o recurso caderno de campo, e roteiro de perguntas abertas. Gradualmente, nos momentos oportunos, eram realizadas perguntas e observação. O tempo de permanência no estabelecimento foi de três dias, em abril de 2009. Nas análises sobre a divisão social do trabalho, incluo um filho não residente (casado que habita a 2 km da propriedade, na vila), visto que ele desempenha diariamente suas atividades agrícolas no estabelecimento da família 1, e uma filha (casada, que mora em outra microrregião) que em época de colheita retorna ao estabelecimento para “ajudar” nas atividades com a mandioca.
3. CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA FAMÍLIA-ESTABELECIMENTO E SEUS FLUXOS
A família estudada é do tipo nuclear (WOLF,1976, p. 88), com os pais e filhos habitando sob o mesmo teto, no qual se constata a produção e consumo como duas unidades indissociáveis (HEREDIA, 1979). A família residente é praticamente composta por adultos, com apenas um membro menor de 15 anos. O trabalho fora do estabelecimento é praticado exclusivamente pelos homens, em roçados de vizinhos, a fim de garantir uma renda pessoal maior que a adquirida no estabelecimento, enquanto às meninas é priorizado estudar. Além dos filhos residentes, o casal possui mais três filhas que moram em comunidades próximas, e um filho (31 anos, casado) que mora na vila, mas que desempenha papel fundamental nas atividades produtivas no estabelecimento.
Como a permanência de todos os membros é inviável, apesar de quatro membros da família já terem “saído” do núcleo familiar (três filhas e um filho), ainda existe a “preparação” para a saída de outros e futura constituição de novos grupos familiares. Por outro lado, um dos filhos (B), está sendo “preparado” para permanecer no estabelecimento. Para Wolf (1976), esta situação provoca crescimento de tensões na solidariedade da família, acentuando as tendências centrifugas, sendo percebidas em uma fala do pai: “era muito mais difícil sustentar quando eram nove filhos, agora melhorou”, já que são apenas cinco (filhos).
A propriedade localiza-se a cerca de 1 km do centro da vila, e a 1,5 Km de distância de uma escola de 2º grau. O estabelecimento foi adquirido inicialmente pelo genitor do patriarca da família, por meio de ocupação espontânea antes da década de 1950. Era uma área bem extensa, que foi dividida em 1970 pelo INCRA para processos de colonização e Reforma Agrária 2. Atualmente possui área é de 25 hectares. Predomina solo de textura arenosa.
A principal atividade produtiva no lote é o cultivo de mandioca (Manihot sculentus) para a produção de farinha. Os cultivos em destaque como fontes de renda e alimentação da família são a pupunha, a banana, pimenta-do-reino, coco-da-baía e goiaba. A finalidade comercial desses cultivos lhes confere o caráter masculino, no qual os tratos culturais do pomar são desempenhados especialmente pelo pai e os dois filhos mais velhos, que também são responsáveis pela comercialização de alguns dos produtos. Às mulheres cabe transformar os produtos cultivados em alimentos, seja preparando cozidos, saladas, sucos, etc. A venda de parte da produção dessas culturas garante renda para compra de produtos industrializados como açúcar, café e sal e produtos de higiene e limpeza. Estavam investindo no plantio de mudas de pupunha sem espinhos e de menor porte, a fim de facilitar a colheita.
Outra fonte de renda importante são os seguros sociais. O casal é aposentado, e também as duas filhas recebem bolsa-escola mensalmente. O dinheiro da aposentadoria do pai é investido principalmente nos cultivos do roçado, enquanto o dinheiro da aposentadoria da mãe é investido na compra de eletrodomésticos da casa. O dinheiro da bolsa escola vai principalmente para a manutenção do estudo das filhas.
 4. “ROÇA” E “PEDAÇO”: CONFIGURAÇÕES SOCIAIS DO TRABALHO PELO ESPAÇO

Na família estudada, o centro de decisões é o pai da família. É ele quem controla as tarefas agrícolas, decidindo o tipo de cultivo, a área a ser utilizada, a época de plantio e o destino final dos produtos. Para Heredia (1979, p. 57), o controle sobre os processos de produção reafirma o caráter “masculino” da unidade de produção, conferindo autoridade à figura paterna, em oposição ao espaço feminino representado pela casa. Essa construção social dos diferentes espaços de produção agrícola é categorizada por Heredia (1979) pela coletividade ou individualidade. A autora identifica a configuração de dois tipos distintos de “roçado”: i) o familiar, onde todos os membros trabalham e desempenham “mais ou menos” as mesmas atividades; e, ii) outro individual, onde alguns membros da família implantam os mesmos cultivos do roçado familiar, mas com finalidades individuais, também chamados de “roçadinho”.
Na família em questão, foi identificado dois espaços de produção distintos pela configuração coletiva e individual. O espaço principal é a “roça da família” (chamado de “roça”) e o espaço secundário é chamado de “pedaço”. Esse último é um espaço individual designado pelo pai, a ser cultivada pelos filhos homens. Enquanto a produção obtida na “roça da família” é distribuída na forma de bens de consumo3 para todos os membros da família, a produção do “pedaço” é administrada pelo filho que a cultivou. Um dos filhos afirmou, sobre a renda obtida em seu “pedaço”, que: (...) “o meu dinheiro (obtido com a venda da farinha) eu gasto na farra (na linguagem popular quer dizer festa, ou passar o tempo com amigos) (...) na vila (...), e compro roupa e sapato”.
O “pedaço” é o espaço de individualização da força de trabalho, e configura dentro do estabelecimento a independência e a posição social ocupada no grupo familiar (HEREDIA, 1976 p. 107). No grupo familiar estudado, o filho residente mais velho (B) que parece ter sido “escolhido” como sucessor, possui o maior “pedaço”, enquanto os outros dois (S e F) dividem um mesmo “pedaço” ainda menor e mais limitado4 que o do filho “escolhido”. O fato de os dois filhos dividirem um mesmo “pedaço” é tido como espaço de cooperação e ajuda mútua, fortalecendo os laços já definidos na consanguinidade. O momento em que cada espaço de produção vai ser trabalhado é definido pelo pai, sendo que ele distribui os insumos (sementes e demais ferramentas), reforçando sua autoridade sobre os meios de produção (HEREDIA, 1976 p. 107). A prioridade é sempre o trabalho na “roça”, depois no “pedaço”. Esta organização permite diminuir as tensões originadas da necessidade de garantir a reprodução física e social do grupo familiar e as aspirações individuais dos jovens.
Distintamente dos homens, as mulheres não possuem espaços de produção agrícola ou “pedaços”. Suas necessidades pessoais são satisfeitas com a renda da mãe, renda dos cultivos da roça da família e dos benefícios sociais. A divisão social do trabalho adotada nessa família indica o caráter “masculino” das atividades na “roça”. As mulheres participam durante a colheita e processamento da mandioca em farinha, mas sua força de trabalho é considerada “ajuda” na “roça” e não trabalho, não havendo mulheres que tenham “pedaços” cultivados. Neves (1981) e Stropasolas (2006) indicam que as novas perspectivas com a educação das meninas é um dos motivos para essa reduzida inserção das filhas nas atividades da roça. Na família observada, as duas filhas estudam e não deixam de ir à escola para trabalhar na roça ou mesmo em atividades domésticas.
A caracterização do espaço de trabalho em “roça” ou “pedaço” perfaz uma temporalidade espacial dinâmica, uma vez que um local de “roça” pode vir a ser um “pedaço”, nos diferentes ciclos produtivos ao longo do tempo. A classificação é utilizada principalmente como forma de distinguir os espaços sociais de trabalho, as funções, os projetos futuros para com o membro da família e também a hierarquia vigente no estabelecimento. Enquanto para o filho “escolhido” para se constituir herdeiro sucessor no estabelecimento recebe uma área maior, e também mais responsabilidades sobre as necessidades familiares, aos demais filhos o tratamento é distinto. Além de classificar a posição social do membro que o cultiva, os espaços de produção se distinguem também em função dos cultivos neles presentes.

5. A DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO NAS ATIVIDADES COM A MANDIOCA

A fabricação de farinha é a atividade produtiva mais importante para a família estudada. E o cultivo da mandioca é que proporciona à área o sentido de “roça”. Sem mandioca plantada, a área é apenas um “Centro”, mesmo que já tenha feijão (Phaseolus vulgaris), milho (Zea mays) ou outros cultivos plantados. Geralmente feijão e/ou milho são plantados em consorcio com a mandioca, porém, só é atribuído ao local o valor de “roça” após o plantio das manivas. Na região da Zona da Mata pernambucana na década de 1970, Heredia (1979) encontrou situação distinta, uma vez que a presença tanto de mandioca, feijão ou de milho denotava ao lugar o sentido de “roçado”.
Os diferentes membros do grupo familiar participam de uma ou mais atividades do processo produtivo da farinha de mandioca, caracterizando um processo de divisão social do trabalho mais ou menos peculiar, onde as atividades consideradas mais pesadas ficam a cargo dos membros mais fortes e habilidosos no manuseio dos instrumentos de trabalho. Enquanto aos homens é determinado o trabalho de se sobrepor à capoeira e lavrar o solo, às mulheres são atribuídas as funções consideradas mais delicadas e menos masculinas, como descascar a mandioca.
A limpeza da área é considerada a atividade mais “pesada” dentre todas as dispensadas ao cultivo da mandioca, já que para isto é preciso roçar, derrubar, queimar e coivarar capoeiras de até 10 anos, embora este tempo venha reduzindo cada vez mais. Os filhos mais jovens não participam da limpeza da área, sendo responsabilidade do filho residente mais velho (B) juntamente com trabalhadores diaristas contratados pelo pai5 . Embora os outros filhos sejam capazes de tal atividade, apenas B desenvolve esta etapa do processo produtivo, manifestando assim sua capacidade enquanto “herdeiro” sucessor do estabelecimento perante os demais membros da família (WOLF, 1976; STROPASOLAS, 2006). Por outro lado, o pai paga a outros para realizar esta tarefa “pesada”, reafirmando sua condição de autoridade sobre os meios de produção familiar, evitando a “perda” de sua posição de “chefe” mantenedor da família.
Após a limpeza e preparação da área, é iniciado o plantio, que geralmente é feito após semear milho ou feijão. O processo consiste em abrir as covas, deitar as manivas, previamente selecionadas e cortadas, e cobrir com a terra que foi retirada da cova. Normalmente estes procedimentos são realizados pelo pai e todos os filhos homens residentes. A divisão do trabalho destas etapas, no período observado, ocorreu da seguinte maneira: os filhos mais velhos vão abrindo as covas por entre as plantas de feijão (atividade considerada mais “pesada” no momento do plantio da mandioca). Enquanto o pai e o filho mais jovem selecionam e cortam as manivas, as deitam nas covas, cobrindo com terra logo em seguida.
A divisão do trabalho acima apresentada configura a posição dos membros no grupo, bem como as suas perspectivas em relação ao trabalho agrícola no estabelecimento. Enquanto o pai, mesmo afirmando não “poder mais trabalhar na enxada” por estar doente da coluna, permanece ali, executando, coordenando e orientado as etapas do trabalho, mantendo sua posição na hierarquia familiar. Esta situação foi apresentada pela mãe quando disse que “o velho [pai] não quer perder para os novos [filhos], aí fica lá até... (...), depois tá aqui reclamando de dores”. Por outro lado, o filho mais jovem, mesmo com pretensões de “sair” do estabelecimento, realiza as atividades mais “leves” como forma de garantir sua função na unidade de produção e unidade de consumo dentro do estabelecimento.
Durante o plantio, o filho mais velho que não mora no estabelecimento geralmente não participa, devido “ele ter família, tem que cuidar da sua “roça” 6. Este filho realiza outros negócios com o pai, seja por trabalhar em outras etapas da produção de mandioca ou farinha, seja pela venda dos produtos de sua “roça” a seu pai, ou outro tipo de troca. Em muitos casos, os membros da família deste filho (duas filhas adolescentes e a esposa) são mobilizados para “ajudar” nas atividades com a mandioca dentro do estabelecimento.
As capinas, em geral até quatro no período do inverno, são realizadas por todos os filhos, em especial pelo filho mais velho residente (B), que também realiza outras atividades produtivas (fazer farinha, colher/tirar pupunha, entre outras). Os filhos mais jovens (F e S) permanecem na roça até as onze da manhã, não retornando após o almoço, motivando conflitos internos à família, especialmente pelo fato deles ficarem assistindo televisão na maior parte da tarde, indo à tardinha para a vila “jogar bola” (futebol). Ao que parece, por mais que o pai e o irmão mais velho residente “reclamem” existe uma flexibilização para com estes membros (F e S), fato que pode ser entendido (entre outros) se considerarmos que a “permanência” destes no estabelecimento é fundamentalmente momentânea e por vezes não “incentivada”.
A colheita e processamento7 da mandioca acontecem de oito meses a um ano após o plantio. Nestas etapas, em função da concentração de atividades em um curto período de tempo, todos os membros da família são “mobilizados”, entre homens e mulheres, inclusive a filha não residente, junto com seu esposo. Assim alguns membros voltam a fazer parte do grupo familiar, de maneira “temporária”, em especial aqueles que não conseguiram se estabelecer economicamente em sua nova unidade familiar (WOLF, 1976). 
Neste sentido, no momento da colheita e “fazer farinha” (transformar a mandioca em farinha) estabelecem-se complexidades no processo de divisão do trabalho, onde à priori todos os membros participam de todas as etapas, mas gradualmente vai se percebendo processos de divisão do trabalho. Como todos possuem as habilidades requeridas, e os recursos estão disponíveis dentro do estabelecimento (WOLF, 1976), perceber a divisão do trabalho no “fazer farinha” é bastante complexo, exigindo maior tempo de acompanhamento e análise minuciosa de detalhes rebuçados na comunicação não falada durante o exercício desta atividade.
Terminado o processamento, parte da farinha é destinada ao consumo familiar, ficando à cargo da mãe disponibilizar gradualmente outras “misturas” para acompanhar a farinha. Visto que o pai já conquistou clientela mais ou menos fixa, e os custos e dificuldades para levar a farinha para “rua” são elevados, parte da farinha é vendida no próprio estabelecimento, pelo pai ou pela mãe ou pelo filho mais velho residente (B)8 . Algumas vezes B vende farinha na “rua” no intuito de agregar maior valor ao produto, mas geralmente trata-se da farinha produzida do seu “pedaço”. Podemos considerar, neste caso, que esta prática representa o tipo de socialização para o comércio que este filho recebeu, já que este tipo de conhecimento será necessário se o mesmo “assumir” a direção das atividades do estabelecimento.    

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A apresentação do grupo familiar e das dinâmicas de produção e divisão social do trabalho, atravessadas por repartições de relações de gênero são deveras instigantes. É possível constatar que a divisão social do trabalho familiar não segue normas ou padrões pré-estabelecidos, e dependem de diversos fatores que muitas vezes não podem ser controlados pelo próprio grupo familiar. Por sua vez, os membros da família buscam (individual ou coletivamente) diversas estratégias no intuito de rearranjar a disponibilidade da força de trabalho, umas vezes “preparando” os membros para sair, outras vezes os “convocando” para desempenho de algumas atividades, por um determinado período de tempo.
Analisar as variáveis apresentadas neste artigo pode fomentar reflexões e debates sobre o conjunto de valores antes incumbidos à família, mas que vêm sofrendo novas conformações em função de diversos fatores como, a escassez de terras, a possibilidade de assalariamento, o acesso a educação e às informações, entre outros.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEREDIA, B. M. A. de. A morada da vida: Trabalho Familiar de Pequenos Produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MOTA, D. M. da. Reflexões sobre o trabalho e a família no espaço rural. Anais 3º Encontro da Rede de Estudos Rurais. 2008. Campina Grande - PB. UFCG.
NEVES, D. P. Lavradores e pequenos produtores de cana. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1981.
SCHNEIDER, S. A diversidade da Agricultura Familiar. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.
STROPASOLAS, V. L. O mundo rural no horizonte dos jovens. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.
WOLF, E. R. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 

*Docente. Universidade Federal do Pará. livio.claudino@gmail.com
1 Este possui “roça” na terra do pai, e passa a maior parte do dia cuidando de sua “roça” ou da “roça da família”. Esta relação será tratada mais adiante.
2 O patriarca relata que o INCRA em 1970 demarcou toda a área que pertencia a seu pai em lotes de 25 hectares e distribuiu para diversos pequenos produtores, que ele chama de “invasores”.
3 Refiro-me a todos os produtos, seja na forma de consumo alimentício ou outros adquiridos com a renda obtida da venda dos produtos da roça.
4 Digo menos acessível por ser mais longe da sede, e localizado em terra “menos boa”.
5 Este paga os diaristas com o dinheiro que recebe da aposentadoria de trabalhador rural.  
6 Similar ao “pedaço”, mas neste caso o pai chama de “roça”, ao que parece, por se tratar do cultivo responsável pela manutenção da família de seu filho.
7 A. Não foi possível acompanhar a colheita. B. Convém lembrar que o processamento deve ocorrer logo após a colheita, dada a características fisiológicas da mandioca.
8 No caso, refere-se apenas à farinha produzida coletivamente. Existem variações quanto à comercialização da farinha produzida individual. Esta muitas vezes é comprada pelo pai, que paga um preço menor que o de mercado, e depois revende no próprio estabelecimento, embora ele afirme preferir vender a farinha produzida por ele, já que é mais saborosa.


Publicado: 26/03/2020

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