Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


RITINHA E “A PONTE PRETA” – A COLONIALIDADE DO SER E DO PODER E SEUS EFEITOS SOBRE AS MULHERES E SEUS CORPOS

Autores e infomación del artículo

Maíra Soalheiro Grade *

Antonio Rediver Guizzo **

Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Brasil

E-mail: maasoalheiro@hotmail.com


Resumo
A representação da condição do gênero feminino como inferior ao masculino é um fenômeno que ainda hoje se manifesta de maneira clara em nossa sociedade, e é facilmente demonstrado pela análise dos índices de violência contra as mulheres e de feminicídios, que seguem em constante crescimento. Neste contexto, o presente artigo se propõe a analisar as relações de poder representadas no conto “Debaixo da Ponte Preta” de Dalton Trevisan e, ainda, a maneira como o conto se aproxima da realidade, na medida em que o conto possibilita um ponto de partida para a discussão sobre o espaço da mulher na sociedade brasileira - esta sociedade em que vivemos e que, como herança do colonialismo, ainda hoje se apresenta como patriarcal, racista, machista e homofóbica. Quanto à metodologia referente ao presente trabalho, utilizou-se o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica e abordagem qualitativa. As relações de exploração desenvolvidas pela metrópole em relação às colônias atingiram de forma especialmente violenta as mulheres, seus corpos e sua sexualidade, consistindo em um aspecto relevante na análise do espaço social concedido à mulher e da representação feminina na literatura.  

Palavras-chave: Gênero, Violência, Colonialidade, Literatura, Dalton Trevisan.

Resumen
La representación de la condición del género femenino como inferior al masculino es un fenómeno que aún se manifiesta claramente en nuestra sociedad, y se demuestra fácilmente mediante el análisis de las tasas de violencia contra las mujeres y del feminicidio, que continúan creciendo. En este contexto, el presente artículo pretende analizar las relaciones de poder representadas en el cuento de Dalton Trevisan "Debaixo da Ponte Preta" y, también, la forma en que el cuento se acerca a la realidad, en la medida en que el cuento proporciona un punto de partida para la discusión sobre el espacio de las mujeres en la sociedad brasileña: esta sociedad en la que vivimos y que, como legado del colonialismo, sigue siendo hoy patriarcal, racista, machista y homofóbico. En cuanto a la metodología relacionada con el presente trabajo, se utilizó el método deductivo, con investigación bibliográfica y enfoque cualitativo.
Las relaciones de explotación desarrolladas por la metrópoli en relación con las colonias afectaron especialmente a sus mujeres, sus cuerpos y su sexualidad de una manera particularmente violenta, constituyendo un aspecto relevante en el análisis del espacio social otorgado a las mujeres y la representación femenina en la literatura.

Palabras clave: Género, Violencia, Colonialidad, Literatura, Dalton Trevisan.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Maíra Soalheiro Grade y Antonio Rediver Guizzo (2020): “Ritinha e “A ponte preta” – a colonialidade do ser e do poder e seus efeitos sobre as mulheres e seus corpos”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (febrero 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/02/colonialidade-ser-poder.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2002colonialidade-ser-poder

Introdução

É preciso que parem de nos matar. A frase, muito repetida em cartazes de manifestações contra a violência de gênero, infelizmente não constitui um exagero. No Brasil, de acordo com dados divulgados pelo Atlas da Violência de 2019, houve um aumento de 5,4% no número de feminicídios, quando comparados os dados dos anos de 2016 e 2017. Além disso, a taxa de homicídios de mulheres negras, além de ser maior, apresenta um crescimento percentual expressivamente maior se comparado ao das mulheres não negras. Entre 2007 e 2017, a taxa de feminicídio considerando como vítimas apenas mulheres negras cresceu 29,9%, enquanto os números referentes às mulheres não negras aumentou 1,6% (IPEA, 2019).
Diante de tal cenário, que retrata uma realidade presente no Brasil e em toda a América Latina, não é necessário um esforço muito grande para encontrar na literatura narrativas acerca de violências sexuais contra mulheres e das sucessivas violências a que muitas vezes as mesmas mulheres são submetidas quando procuram os órgãos policiais e judiciários para relatar o crime do qual foram vítimas. Nesse e em inúmeros outros aspectos é possível visualizar de forma clara a desigualdade decorrente das representações sociais conferidas historicamente a homens e mulheres, por meio da atribuição de características de submissão do gênero feminino ao masculino.
A violência contra as mulheres, processo decorrente de forma direta da desigualdade acima destacada, se manifesta de forma ainda mais evidente em sociedades coloniais, como consequência das relações de exploração desenvolvidas pela metrópole em relação à colônia.
Neste contexto, o presente artigo possui como objetivo observar as relações de poder representadas no conto “Debaixo da Ponte Preta” de Dalton Trevisan e, ainda, a maneira como o conto se aproxima da realidade, na medida em que a obra possibilita um ponto de partida para a discussão sobre o espaço da mulher na sociedade brasileira - esta sociedade em que vivemos e que, como herança do colonialismo, ainda hoje se apresenta como patriarcal, racista, machista e homofóbica.
Com o propósito de alcançar tal objetivo, faremos uma breve análise a respeito da obra, que descreve a violência sexual sofrida por Ritinha da Luz, adolescente, negra e pobre, um texto por meio do qual as vozes dos personagens se entrelaçam e se contradizem na tentativa de explicar e justificar a violência praticada.     
Por fim, trataremos das formas de representação das mulheres na literatura e, ainda, refletiremos sobre os motivos pelos quais socialmente ainda se verifica frequentemente a culpabilização da vítima em casos de violência no Brasil.

Ritinhas, Anas e Marias – A arte imita a vida ou a vida imita a arte?

As construções discursivas sobre a inferioridade da mulher, quando observadas no decorrer da história, naturalizaram a aceitação social da dominação masculina nos mais diferentes âmbitos da sociedade, tanto nas relações afetivas quanto nas demais interações sociais, constituindo a principal causa dos índices elevados de violência contra a mulher. Por se tratar de um processo construído histórica, discursiva e simbolicamente, profundamente enraizado em nossas estruturas de pensamento e relações sociais, a desigualdade e a violência dela decorrente frequentemente são temas de livros, filmes e séries televisivas.
No conto “Debaixo da Ponte Preta”, de Dalton Trevisan, publicado em O vampiro de Curitiba (1998), o autor narra a violência sofrida por Ritinha da Luz. A personagem, de dezesseis anos, negra e empregada doméstica, decide, ao sair do trabalho, caminhar até a casa da irmã Julieta, localizada atrás da Ponte Preta. Durante o caminho, é levada à força por três soldados para um matagal adjacente à linha férrea e, lá, é espancada e violentada pelos três homens – que representam o poder do Estado - além de mais três ou quatro indivíduos. Após o crime, Ritinha, abandonada severamente machucada e chorando, é encontrada por um guarda-civil, que a conduz à delegacia.
A narrativa do conto, com um estilo de escrita semelhante aos depoimentos judiciais, apresenta as vozes dos personagens e do narrador contrapondo-se, tal como se verifica no trecho abaixo transcrito:

Alfredo de Tal, vinte anos, solteiro, soldado, achava-se à noite debaixo da Ponte Preta, na companhia dos colegas Pereira e Durval. Após algum tempo, Durval abordou uma menina, com quem se dirigiu ao mato próximo. Logo Alfredo e Pereira seguiram o companheiro e, um depois do outro, desfrutaram a rapariga. Prestes a partirem, um indivíduo se apresentou como guardião da estrada e, em troca do silêncio, exigiu que segurassem a moça. Então a arrastaram para lugar escondido, onde ninguém escutasse os gritos. Chegaram dois rapazes, um deles de treze anos e, ajudados por todos, se aproveitaram da negrinha. Como era tarde, Alfredo retirou-se com os colegas para o quartel. Só na manhã seguinte soube da confusão, em vista da ordem para comparecer à delegacia. (TREVISAN, 1998, p. 78).

Pode se observar que neste trecho Nelsinho tem sua voz misturada à voz do narrador, numa clara tentativa de eximir-se da culpa pelo ato praticado. Assim como no fragmento destacado, durante todo o conto, as vozes dos personagens se entrelaçam e se contradizem na tentativa de explicar e justificar a violência praticada.
Repete-se, porém, nas diferentes narrativas, a afirmativa de que Ritinha teria sofrido a violência por ter se sentido “seduzida” por um dos soldados, o personagem de nome Durval, e tal fato, na narrativa do conto, se deve apenas ao fato de esse soldado ser loiro. A violência teria partido somente do foguista Miguel, descrito como “morenão”.
Nota-se, portanto, a presença do mito do europeu civilizado e da barbárie dos povos colonizados, uma vez que as características físicas europeias de Durval são utilizadas como uma versão de defesa dos personagens, mesmo tendo restado claro pela versão de Ritinha que ela não conhecia nenhum dos agressores e nem pôde vê-los durante a prática da violência, pois sua cabeça foi coberta com a túnica de um dos soldados.
A análise do conto também permite identificar uma tentativa dos personagens de diminuir a gravidade do crime que praticaram. Em um dos trechos, o personagem Miguel afirma que praticou o ato com o objetivo de resguardar sua virilidade, como se o estupro fosse justificável se praticado em defesa da honra e da manutenção da dominação masculina, vez que Ritinha teria se submetido “de livre e espontânea vontade ao desejo dos outros, e quando chegou a sua vez quis se negar, agarrando-a para não ficar desmoralizado perante a família.” (TREVISAN, 1998, p. 79).
Toda a narrativa é de uma violência impactante, um retrato cruel da violência sofrida por Ritinha, que permanece praticamente silenciada em todo o conto, sem voz, sem direito de escolha, marcada de forma indelével e definitiva por sua sexualidade, violentada e espancada apenas pelo fato de ser mulher e negra.
A colonização teve efeitos nefastos para a nossa sociedade, na medida em que obteve sucesso em seu objetivo de inserir em nosso imaginário a ideia de que os colonizados seriam seres que necessitavam ser dominados pelos colonizadores, conforme destaca Lugones:

[...] o processo de colonização inventou os/as colonizados/as e investiu em sua plena redução a seres primitivos, menos que humanos, possuídos satanicamente, infantis, agressivamente sexuais, e que precisavam ser transformados. (LUGONES, 2014, p. 941).

As relações de poder que se estabeleceram a partir da colonização, portanto, tiveram como elemento central a propagação da ideia de inferiorização dos colonizados, em virtude de supostas diferenças biológicas que os transformariam em indivíduos menos desenvolvidos que os colonizadores. Nos dizeres de Quijano, 

[...] la codificación de las diferencias entre conquistadores y conquistados en la idea de raza, es decir, una supuesta diferente estructura biológica que ubicaba a los unos en situación natural de inferioridad respecto de los otros. Esa idea fue asumida por los conquistadores como el principal elemento constitutivo, fundante, de las relaciones de dominación que la conquista imponía. 1 (QUIJANO, 2005, p. 778).

Esta relação de exploração desenvolvida pela metrópole em relação à colônia atingiu de forma especialmente violenta as mulheres, seus corpos e sua sexualidade. A parte mais perversa deste processo é que, nas palavras de Lugones, os colonizadores, sob o pretexto de cumprirem uma missão civilizatória, possuíam

[...] acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma exploração inimaginável, violação sexual, controle da reprodução e terror sistemático. [...]E colocar os/as colonizados/as contra si próprios/as estava incluído nesse repertório de justificações dos abusos da missão civilizatória. A confissão cristã, o pecado e a divisão maniqueísta entre o bem e o mal serviam para marcar a sexualidade feminina como maligna, uma vez que as mulheres colonizadas eram figuradas em relação a Satanás, às vezes como possuídas por Satanás. (LUGONES, 2014, p. 938).

O emaranhado de vozes presente no conto nos permite desvelar os meandros da violência praticada contra Ritinha, não apenas a violência sexual, mas as relações sociais – profundamente marcadas pela colonialidade - e desigualdades que transparecem no imaginário de nossa sociedade e de nossa literatura, especialmente no que se refere à mulher negra, ainda perceptível contemporaneamente.
Contrapõem-se, em muitas representações literárias, a imagem da mulher negra como desfrutável e a imagem do homem branco dominador, e em muitos textos se retrata a mulher como responsável pela violência sexual, por ser sedutora e provocante. Darci Ribeiro, ao tratar do comércio de escravos, ilustra de forma bastante clara esse pensamento: “Tratava-se de negrinhas [...] que alcançavam altos preços, às vezes o de dois mulatões, se fossem graciosas. Eram luxos que se davam os senhores e capatazes” (1995, p. 163).
Michely Peres de Andrade, ao tratar das representações das mulheres negras na literatura brasileira ao longo dos últimos séculos, destaca que existe um histórico de estereótipos, que

[...] transitaram entre a hipersexualização e a infantilização. Quando hisperssexualizadas, essas mulheres são representadas como perigosas, dotadas de uma sexualidade que escapa às normas. Por outro lado, há as representações que infantilizam a população negra. Tal infantilização engloba desde o servilismo e a humildade subalterna até as caricaturas do “crioulo doido” e da “nega maluca”. Não raro, são personagens descontroladas e inconsequentes, características que justificariam o controle dos (das) personagens brancas sobre a narrativa e a resolução dos problemas que se apresentam ao longo da obra. (DE ANDRADE, 2017 p. 3).

O monopólio do saber por muito tempo foi concedido aos homens, negando-se às mulheres o acesso à educação formal e, consequentemente, à produção de discurso. Nesse sentido, a produção discursiva e a aceitação de tais discursos como verdadeiros em nossas relações sociais são responsáveis pela geração de efeitos de poder, conforme destaca Foucault:

[...] a verdade não existe fora do poder ou sem poder [...] Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2013, p. 51-52).

A construção da identidade da mulher por meio da escrita, desta forma, apenas retratava o que pensavam os homens sobre tais seres, submissos, misteriosos e inferiores, gerando, na grande maioria dos textos, conforme sublinha Michele Perrot, imagens que, por serem produzidas por homens, “nos dizem mais sobre os sonhos ou os medos dos artistas do que sobre as mulheres reais. As mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem descritas ou contadas”. (PERROT, 2017, p. 17).
As mulheres colonizadas, conforme destacam as teorias que estudam a colonialidade do gênero, não possuem identidade, não são consideradas enquanto seres” (LUGONES, 2014). No imaginário social e nas representações literárias, observa-se a visão da mulher negra apenas como objeto sexual, passível de ser desfrutado e, conforme destaca Meneses:

[...] se excluyeron a los grupos indígenas y a las comunidades negras como partícipes de la cultura y de la sociedad brasileña. Pero al mismo tiempo esta bibliografía continuó proyectando el papel de las mujeres negras e indígenas como culpables por la lascivia de los hombres blancos, supuestos heterosexuales e monogámicos; depravados por las negras y por las indias, tal como la imagen de Eva descrita por San Agustín, culpable de la caída de Adán en el paraíso. (MENESES, 2017, p. 41)2 .

A concepção das mulheres como culpadas pela violência sexual que sofriam foi autorizada inclusive por decisões judiciais que, proferidas em um passado recente, impunham dúvidas com relação ao depoimento das vítimas de estupro. Era comum que Juízes constassem, em suas sentenças, expressões como “a vítima possuía comportamento pouco recomendável”. Deixava-se por conta dos Juízes decidir se a vítima de estupro, por meio de um comportamento entendido como inadequado ou promíscuo, poderia receber uma parcela de culpa pela violência que sofreu, demonstrando que o Estado, por meio de seus órgãos, acaba por reproduzir processos de dominação, conforme destaca Segato:

 

[...] el discurso de la colonial modernidad, a pesar de igualitario, esconde en su interior, como muchas autoras feministas ya han señalado, un hiato jerárquico abisal, debido a lo que podríamos aquí llamar, tentativamente, de totalización progresiva por la esfera pública o totalitarismo de la esfera pública. Sería posible inclusive sugerir que es la esfera pública lo que hoy continúa y profundiza el proceso colonizador. 3 (SEGATO, 2011, p. 15).

Desta forma, em um passado recente, seria possível que um caso como o narrado no conto “Debaixo da ponte preta” culminasse em uma sentença de absolvição dos acusados. Isto porque, somando-se o fato de que cada um dos envolvidos na violência sexual apresentou uma versão diferente, à afirmação de um deles que a relação sexual com um dos acusados foi consentida pela vítima, além do local ermo onde a vítima se encontrava e das roupas que vestia, o depoimento da vítima Ritinha poderia ser desconsiderado pelo Juiz, inocentando os responsáveis pela terrível violência sofrida pela menina de dezesseis anos. O Estado, desta forma, nos dizeres de Andrade (2005), acabava duplicando a vitimação das mulheres, visto que

[...] além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas ( estupro, atentado violento ao pudor, etc.), a mulher torna-se vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classe) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero) recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da violência sexual. (DE ANDRADE, 2005, p.5-6).

Na atualidade, não obstante, modificou-se o tratamento jurídico dado ao depoimento da vítima. Este, quando em consonância com as demais provas produzidas no processo, possui significativa importância na valoração das provas pelo Juiz, por se considerar que os crimes contra a liberdade sexual em regra são cometidos em lugares distantes dos olhares de possíveis testemunhas.
Entretanto, apesar desta aparente evolução no tratamento estatal à vítima dos crimes de estupro, ainda se observa na Justiça brasileira uma prática que acaba por excluir e oprimir a mulher vítima de estupro. Ou seja, as mulheres seguem sendo vítimas de violências físicas, sexuais e simbólicas, na vida cotidiana e no tratamento que recebem do Estado, vez que em nossa sociedade patriarcal 

[...] indígenas, negros y mujeres deben seguir guardando su lugar de tercera categoría, pues esa situación pasó a ser constitutiva de la armonía social. Así, se hace difícil romper com esquemas mentales instaurados en la sociedad, donde el machismo y el patriarcalismo siguen reinando sin aceptar cambios que vengan a echar por tierra esa arquitectura social. 4 (MENESES, 2017, p. 41).

Podemos observar a relação desigual entre homens e mulheres, no que se refere aos corpos, também na perspectiva simbólica que reveste os atos de violência sexual. O estupro, quando cometido contra as mulheres, constitui uma demonstração e afirmação do poder constituído; quando cometido contra homens, possui o condão de reduzi-los à condição feminina, conforme destaca Maria Rita Segato:

Cuando se viola a una mujer o a um hombre, la intención es su feminización. Esto porque nos atraviesa um imaginario colectivo que confiere significado a la violación y que establece la relación jerárquica que llamamos “gênero”, es decir, la relación desigual que vincula la posición femenina y la posición masculina5 . (SEGATO, 2013, p. 77).

Revela-se, portanto, que os efeitos da colonização se renovam e continuam produzindo efeitos em nossa sociedade e nos corpos das mulheres, consoante destaca Lugones:

O longo processo de subjetificação dos/as colonizados/as em direção à adoção/internalização da dicotomia homens/mulheres como construção normativa do social – uma marca de civilização, cidadania e pertencimento à sociedade civil – foi e é constantemente renovado. (LUGONES, 2014, p. 942).

Por todo o exposto, evidencia-se, no conto daltoniano, que as representações sociais e culturais da mulher dialogam com a história de exploração decorrente da colonização da América Latina, sendo possível observar na narrativa sua clara correlação com a contemporaneidade, demonstrando que para a superação da herança colonial, no que se refere às diversas formas de violência a que foram e são submetidas as mulheres no Brasil ainda possuímos um longo caminho a percorrer.

Considerações finais
A presença constante em nosso cotidiano de notícias relacionadas à mortes e violências cometidas contra mulheres demonstra que é necessário pensar, produzir e reproduzir cada vez mais conceitos de consagração da igualdade entre homens e mulheres. Isto porque a desigualdade de gênero, tão fortemente associada à nossa compreensão de mundo e às nossas estruturas de pensamento, faz com que a violência contra a mulher ainda ainda se observe de forma clara no Brasil. Tal processo decorre, dentre outros fatores, do processo de colonialidade do ser, que possui consequências sobre o corpo, a liberdade e a vida das mulheres.
A manutenção de tais estruturas de pensamento faz com que possamos constatar que, apesar dos esforços para a elaboração de leis e políticas públicas que possuem como objetivo a diminuição dos índices de violência contra a mulher, ainda ocorrem, cotidiaidnte, situações em que opiniões, discursos e até mesmo decisões judiciais machistas são aceitas socialmente.
Pode se observar, portanto, que os processos de dominação patriarcal são constantemente renovados em nossa sociedade e, lamentavelmente, são reproduzidos e corroborados pelo Estado.
Diante do exposto, o presente artigo, por meio da contraposição entre a violência sofrida por Ritinha no conto Debaixo da ponte preta e a observação da violência contra as mulheres em nossa sociedade atual, permite sugerir que o enfrentamento das colonialidades é indispensável para que as mulheres consigam romper com a invisibilidade histórica decorrente da colonização e possam (re)construir sua existência, libertando-se dos processos de violência a que seguem sedo submetidas cotidiaidnte.

Referências Bibliográficas
DE ANDRADE, M. P. “Um defeito de cor”: Diáspora negra e (de)colonialidade de gênero na literatura brasileira contemporânea. Anais do 18º Congresso Brasileiro de Sociologia, 2017. Disponível em: http://sbs2017.com.br/anais/resumos/PDF-eposter-trab-aceito-0602-1.pdf. Acesso em 24 nov. 2017.
DE ANDRADE, V. R. P. Sexo e gênero: a mulher e o feminino na criminologia e o sistema de justiça criminal. Boletim IBCCRIM. Ano 11, nº 137, abril, 2005, p.02.
FOUCALT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
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LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3): p. 935-952, setembro-dezembro, 2014.
MENESES, G. G. L. Racismo o colonialidad del saber en la historiografía brasileña, de Francisco Varnhagen a Gilberto Freyre. In Religación. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades Vol II, Num. 5, Quito, Marzo 2017, pp. 33-50.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. CLACSO, Buenos Aires, 2005.
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RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Compa­nhia das Letras, 1995.
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TREVISAN, D. O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1998.

*maasoalheiro@hotmail.com Rua Mato Grosso, 1781, Centro, Santa Helena-PR, Brasil, CEP 85892-000. Mestra em Políticas Públicas e Desenvolvimento (PPGPPD) – UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-Americana). Professora de Direito na Faculdade Educacional de Medianeira – PR (UDC Medianeira).
** antonioredguizzo@gmail.com Rua Mato Grosso, 1781, Centro, Santa Helena-PR, Brasil, CEP 85892-000. Doutor em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2014). Professor Adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em em Literatura Comparada (PPGLC).
1 A codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma suposta diferente estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade aos outros. Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo das relações de dominação que a conquista exigia. Tradução nossa.
2 Os grupos indígenas e as comunidades negras foram excluídos como participantes da cultura e da sociedae brasileira. Mas ao mesmo tempo esta bibliografia continuou projetando o papel das mulheres negras e indígenas como culpadas pela lascívia dos homens brancos, supostamente heterossexuais e monogâmicos: depravados pelas negras e pelas índias, tal como a imagem de Eva descrita por Santo Agostinho, culpada pela queda de Adão no paraíso. Tradução nossa.
3 O discurso da modernidade colonial, apesar de igualitário, esconde em seu interior, como muitas autoras feministas já destacaram, um hiato hierárquico abissal, devido ao que aqui poderíamos chamar de totalização progressiva pela esfera pública ou totalitarismo da esfera pública. Seria possível inclusive sugerir que a esfera pública ainda hoje continua e aprofunda o processo colonizador. Tradução nossa.
4 Índios, negros e mulheres devem seguir guardando seu lugar de terceira categoria, pois esta situação passou a ser constitutiva da harmonia social. Assim, torna-se difícil romper com esquemas mentais instaurados na sociedade, onde o machismo e o patriarcalismo seguem reinando sem aceitar mudanças que venham a lançar por terra essa arquitetura social. Tradução nossa.
5 Quando se estupra uma mulher ou um homem, a intenção é sua feminização. Isto porque nos atravessa um imaginário coletivo que confere significado ao estupro e que estabelece a relação hierárquica que chamamos gênero, isto é, a relação desigual que vincula a posição feminina à posição masculina. Tradução nossa.


Publicado: 24/02/2020

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