Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


PARA ALÉM DA DIMENSÃO ANATOMOFISIOLÓGICA? NOTAS SOBRE A ABORDAGEM DA SEXUALIDADE NO LIVRO DIDÁTICO DE CIÊNCIAS

Autores e infomación del artículo

Iuri Oliveira Mateus*

Fernanda Telles Márques**

Universidade de Uberaba, Brasil

E-mail: iuri.27@hotmail.com


RESUMO
O artigo reflete sobre o espaço reservado à construção e ao estudo da categoria da sexualidade humana e das questões de gênero em livros didáticos de uma coleção de Ciências para o ensino fundamental II. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental que confronta as propostas e os resultados contidos na legislação que trabalha a discussão da categoria gênero no âmbito escolar e nos livros didáticos em questão. Os dados permitiram observar que os livros analisados, mesmo que não exponham conteúdos flagrantemente preconceituosos, pouco contribuem para a desconstrução de preconceitos e de tabus envolvendo as categorias em questão. Neles, a sexualidade é reduzida à sua dimensão anatomofisiológica, sem que se considere aspectos socioculturais e psicológicos igualmente relevantes. Assim, ainda que de boa qualidade em vários outros aspectos, o material contribui para a manutenção de status quo na medida em que reforça estereótipos e omite a existência de manifestações da sexualidade humana distintas da heteroafetividade.
Palavras-chave: Educação e diversidade. Sexualidade. Livro didático. Ensino de Ciências.

ABSTRACT
The article reflects on the construction and study of the category gender and human sexuality in two books of a Collection of Science Books for Elementary School II. It is a bibliographic and documentary research that confronts the proposals and the results contained in the legislation that works the discussion of the category gender in the school scope and in the analysed textbooks. The research data allow us to observe that the books analysed, even if they do not expose clearly biased content, contribute little to the deconstruction of prejudice and taboos involving sexuality and gender. In them, sexuality is reduced to its anatomophysiological dimension, without considering equally relevant sociocultural and psychological aspects. Thus, although of good quality in many other aspects, the material ends up contributing to the maintenance of the status quo by omitting the existence of manifestations of human sexuality distinct from heteroaffectivity.
Keywords: Education and diversity. Sexuality. Textbook. Science teaching.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Iuri Oliveira Mateus y Fernanda Telles Márques(2020): “Para além da dimensão anatomofisiológica? notas sobre a abordagem da sexualidade no livro didático de ciências”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (febrero 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/02/abordagem-sexualidade-ciencias.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2002abordagem-sexualidade-ciencias

1. INTRODUÇÃO
Nas sociedades multiculturais que vivem em regime democrático, a questão da diversidade de modos de ser e de estar no mundo é tema relevante, posto que diretamente relacionado ao pleno exercício da cidadania.
Partindo desta perspectiva, da inter-relação entre diversidade e cidadania, o artigo elege como objeto o estudo da sexualidade humana e de concepções de gênero e diversidade sexual no livro didático de Ciências adotado nos anos finais do ensino fundamental II. Para tanto, parte da seguinte questão condutora: que concepções do Outro se fazem presentes no material em questão, e como estas poderiam relacionar-se com a formação de valores democráticos?
Sabemos que a sexualidade humana não se resume a sexo orgânico, compreendendo aspectos afetivos, políticos e socioculturais que se sobrepõem a disposições instintivas e à programação biológica (MATEUS; MÁRQUES, 2018).
Visto deste modo, esperado seria que, também no material didático da disciplina de Ciências, houvesse um esforço de interdisciplinaridade – por nós considerado como necessário para o adequado tratamento de uma temática que está longe de limitar-se a aspectos anatomofisiológicos e ao campo das Ciências naturais (CASAGRANDE e CARVALHO, 2009).
Autores como Louro (2004, 2008) e Altman (2005) apontam, entretanto, que no ensino de Ciências, especificamente, ainda é prevalente a abordagem do tema restrita a explicações sobre a saúde reprodutiva ancoradas em elementos como os mecanismos da procriação e os cuidados na gestação. Assim, não se descarta a possibilidade de o material didático elaborado para o componente curricular nem sempre considerar que a sexualidade consiste em uma construção sociocultural, influenciada por valores e regras de uma determinada cultura – e constituída, portanto, por discursos e práticas variáveis no espaço e no tempo.
O artigo, que apresenta resultados parciais de um processo de iniciação científica desenvolvido ao longo de dois anos no âmbito de uma pesquisa mais ampla 1, se encontra organizado em quatro seções. Na primeira informamos os aspectos metodológicos da pesquisa, na segunda apresentamos dados quantitativos do estado do conhecimento, na terceira abordamos o documento educacional que parametriza, no Brasil, o ensino de Ciências, para, na seção final, apresentarmos resultados obtidos na análise preliminar dos livros didáticos.

2. METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa bibliográfico-documental, cujo objetivo geral é identificar e refletir sobre a maneira com a sexualidade é apresentada em livros didáticos de Ciências e as concepções de gênero e de diversidade sexual eventualmente incorporadas a referido material.  
O trabalho teve início com a pesquisa bibliográfica, feita a partir de levantamentos nas bases de dados SciELO e Portal de Periódicos da Capes. Para tanto, foram adotados os descritores primários “gênero”, “sexualidade” e “diversidade sexual”, em cruzamento com os descritores secundários “livro didático” e “livro didático de Ciências”. O material encontrado foi organizado em tabelas, triado e incorporado parcialmente ao referencial teórico da pesquisa.
A pesquisa documental teve início com o estudo de documentos educacionais envolvendo a inserção e o trabalho com a categoria gênero no âmbito escolar. Em seguida, foram selecionados os livros didáticos e investigados os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Ciências no terceiro e o quarto ciclos do fundamental.
Na etapa seguinte, passamos ao trabalho com os livros, que fazem parte da coleção “Ciências Naturais: aprendendo com o cotidiano”, publicada pela editora Moderna. Para tanto, recorremos à Análise de Conteúdo na modalidade categorial temática, o que fizemos utilizando fundamentos do método proposto por Bardin (1995), com releituras de Campos (2004). 
Iniciamos o trabalho com a leitura flutuante dos livros, necessária enquanto pré-exploração da totalidade do material. Depois, a partir de uma ficha elaborada para este fim, partimos para a seleção das unidades de análise, recorrendo aos temas suscitados no decorrer da leitura flutuante. Ao final, realizamos o processo de categorização temática, que consiste em classificar “elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), a partir de critérios previamente definidos” (BARDIN, 1995, p. 117). Os indicadores de enfoque empregados foram: enfoque relacionado predominantemente à dimensão anatomofisiológica; enfoque relacionado predominantemente à dimensão morfológica; enfoque relacionado predominantemente a aspectos jurídicos; enfoque predominantemente biopsicossocial;  enfoques mistos 2.
Os achados dos livros pesquisados estão sendo colocados em triangulação com a pesquisa bibliográfica e com os documentos educacionais estudados, o que resultará em outra produção com os resultados finais da pesquisa.

3. PANORÂMICA DO ESTADO DO CONHECIMENTO (2010-2016)

Além de leituras introdutórias para a familiarização com a temática, a primeira etapa da pesquisa foi constituída por um mapeamento do estado do conhecimento. Sua realização se deu a partir do levantamento e da triagem de produções recentes em duas importantes dados de dados:  Portal de Periódicos da Capes e Scientific Electronic Library Online – SciELO.
Primeiro foi realizada uma busca isolada dos descritores primários “livro didático” e “livro didático de ciências”. Depois, os resultados foram colocados em cruzamento com os descritores secundários “sexualidade”, “gênero” e “diversidade sexual”. Aos resultados encontrados aplicamos, na sequência, os filtros: publicações entre os anos de 2010-2016, feitas em língua portuguesa.
Ao cruzar os descritores secundários (sexualidade, gênero e diversidade sexual) com o descritor primário “livro didático”, foram encontradas, na base de dados do SciELO, nove produções que trabalhavam conceitos de sexualidade e gênero. Esse valor corresponde a 6,7% dos 119 resultados encontrados ao se buscar o descritor “livro didático” isoladamente. Dessas nove produções, apenas duas abordam a construção da categoria gênero como uma extensão da sexualidade humana, sem utilizar o conceito de gênero como um campo da Língua Portuguesa; o que corresponde a 1,7% dos 119 achados citados anteriormente. Ao se cruzar os mesmos descritores, no Portal de Periódicos da Capes, foram encontradas 67 produções. Esse valor corresponde a 21,4% dos 313 resultados encontrados ao se pesquisar o descritor “livro didático”. Das sessenta e sete produções, apenas seis trabalham conceitos de sexualidade, gênero e diversidade sexual de acordo com os interesses da pesquisa em desenvolvimento, o que corresponde a 1,92% das 313 produções encontradas (MATEUS, 2018).
Já ao se analisar o descritor primário “livro didático de ciências” isoladamente, no banco de dados do SciELO, foram encontrados 5 resultados. Ao se combinar esse descritor com os outros três: sexualidade, gênero, diversidade sexual, foram encontradas 0, 1, 0 produções respectivamente, mostrando que 20% das produções recentes abordaram a palavra gênero associada ao livro didático de ciências. No entanto, as menções à palavra gênero, feitas ao longo do texto, não fazem referência à categoria gênero de interesse para esse trabalho. Ao se analisar esse mesmo descritor principal, isoladamente, no Portal de Periódicos da Capes, foram encontrados 8 resultados. Ao se cruzar o descritor principal com os descritores secundários, obtém-se resultado apenas na combinação “livro didático de ciências” x “gênero”, porém nenhuma das produções se encaixa nos perfis buscados para essa pesquisa. Sendo assim, não foram publicadas, entre os anos 2010-2016, em língua portuguesa, produções que discutem questões da construção da categoria gênero associada à sexualidade e à diversidade sexual dentro do livro didático nas bases de dados do SciELO e no Portal de Periódicos da Capes (MATEUS, 2018).
Assim, do cruzamento dos descritores veio a constatação de que, ao mesmo tempo em que aumentam as discussões sobre gênero, diversidade sexual e educação escolar, a produção acadêmica sobre a abordagem da mesma temática no livro didático de Ciências mantém-se escassa. Chamou nossa atenção que, considerando especificamente a diversidade sexual, na base de dados SciELO não tenhamos localizamos nenhum material, e no Portal de Periódico da Capes tenhamos encontrado apenas dois artigos, conforme apontado na tabela 2.

3 GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NOS PCN - CIÊNCIAS

Publicados em 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) são uma coleção de documentos educacionais brasileiros que estabelecem diretrizes para uma educação comprometida em formar dentro de valores democráticos. A coleção foi elaborada em meio a muitos debates envolvendo profissionais da educação e sociedade civil, e nela foi estabelecido que questões concernentes à sexualidade seriam abordadas transversalmente e não mais por uma perspectiva restritamente biológica, como geralmente ocorria com o componente de Ciências, lembrando que por muito tempo a disciplina de Ciências foi o único espaço curricular em que era possível falar de sexualidade na escola.
Os PCN eram sustentados pela ideia de que também compete à educação escolar contribuir para o fortalecimento de valores democráticos. Vista como um dispositivo fundamental para a cidadania, a escola, por tal perspectiva, deveria estar preparada para conduzir reflexões sobre temas que dizem respeito a direitos garantidos na Constituição Federal, tais como os direitos à educação, à liberdade de crença, à família etc.
Os PCN para o ensino de Ciências nos terceiro e quarto ciclos do Fundamental são um documento de 139 páginas separado em duas partes. O texto inicia contextualizando as Ciências Naturais para referido nível de escolarização e demonstrado suas conexões com as questões da cidadania e da tecnologia assim como os conteúdos previstos: Terra e Universo, Vida e Ambiente; Ser humano e Saúde; Tecnologia e Sociedade. Os objetivos, critérios de avaliação e demais orientações didáticas são apresentados na segunda parte do documento.
O termo diversidade, com 25 menções no documento (tabela 1), aparece relacionado sobretudo à temática da biodiversidade, com poucas menções em associação a questões culturais.  Em momento algum o documento fala em diversidade sexual ou em diferentes expressões da sexualidade.
A expressão gênero, mencionada quatro vezes no documento, é utilizada uma vez em referência ao sistema de classificação dos seres vivos (reinos, filos ou divisões, classes, gêneros etc.), uma vez como sinônimo de “tipo”, e duas em um contexto próximo das discussões sobre sexualidade. Nelas, entretanto, o texto informa que “uma abordagem ampliada sobre as relações entre as pessoas e a formação da identidade de gênero, entre outros aspectos de interesse”, encontra-se no volume dedicado ao tema transversal Orientação Sexual.
O texto sustenta que “a área de Ciências pode contribuir para a formação da integridade pessoal e da autoestima, da postura de respeito ao próprio corpo e ao dos outros, para o entendimento da saúde como um valor pessoal e social, e para a compreensão da sexualidade humana sem preconceitos” (BRASIL, 1998, p. 22). Ao analisar a frase, entende-se que o estudo do corpo dentro das Ciências Naturais se dá de três maneiras: corpo-individualidade, corpo-saúde e corpo-identidade. As duas primeiras abordagens são trabalhadas durante os documentos de forma clara e explícita; já a terceira é pouco explorada, ficando restrita a passagens nas quais se incentiva a discussão de questões relacionadas à sexualidade, como identidade sexual, prazer, masturbação e preconceito.

4 OS LIVROS DIDÁTICOS

Na presente seção serão apresentados resultados da primeira fase da análise dos livros didáticos de Ciências pelo plano de trabalho de Iniciação Científica. Conforme informado na Introdução, foram escolhidos exemplares da coleção Ciências Naturais – Aprendendo com o Cotidiano, publicada pela editora Moderna.
Cada volume é organizado em quatro grandes seções, subdivididas em capítulos. Ao final, os livros apresentam, ainda, uma interessante seção que propõe atividades experimentais, enunciada como Suplemento de Projetos.
No Guia de Livros Didáticos pode-se encontrar uma a resenha da coleção assim como das outras aprovadas pelo processo de avaliação do Programa Nacional do Livro didático - PNLD. Este acervo permite uma comparação entre as propostas pedagógicas para uma melhor escolha daquela que atenda os interesses do consumidor.
A resenha da Coleção, apresentada no Guia de Livros para possível aquisição, informa ao leitor que o grande volume de conteúdos presentes na obra está pouco articulado com outros campos disciplinares, o que também constatamos em nossa análise. Essa restrição pressupõe que a articulação acaba ficando a cargo do professor, o que, na realidade, nem sempre acontece.
Apesar da questão da pouca articulação com outras disciplinas, o Guia informa que a obra é feliz ao contemplar questões atuais:

Os temas tratados demonstram preocupação em discutir problemas contemporâneos como saneamento básico, poluição ambiental, drogas, lixo urbano e temas que são de interesse dos alunos, como a sexualidade, gravidez na adolescência, legalização do aborto e opções sexuais (PNLD, 2016, p.28, grifos nossos).

Chama nossa atenção que, na resenha do Guia do Livro, a diversidade sexual tenha sido associada, equivocadamente, a uma questão de “opção”, quando se sabe já a algumas décadas que a orientação sexual não consiste em uma questão de escolha.
No item Abordagem pedagógica, a resenha esclarece ainda que “a obra explicita bem seus pressupostos teórico-metodológicos, ancorados nas questões problematizadoras, no uso de mapas conceituais para estruturar os temas dos capítulos e na proposição de atividades abertas que levam em consideração a participação do aluno” e que a organização dos conteúdos atende à perspectiva de eixos Temáticos e dos Temas Transversais tal como sugeridos pelos PCN. No entanto, a primeira leitura dos livros indica que as atividades deixam pouco espaço para que as ideias prévias e vivências dos alunos sejam exploradas. A resenha ressalta, ainda, que os aspectos gráficos são adequados, podendo-se encontrar nas imagens (fotos e desenhos) representações adequadas da diversidade étnica, social e cultural do povo brasileiro, ainda que se reconheça que o povo indígena aparece de forma pouco representativa.
Esses elementos informados na resenha do Guido do Livro Didático também foram por nós constatados quando fizemos a leitura exploratória do material. 
Analisando os livros, constatamos que a palavra gênero é trabalhada conceitualmente apenas uma vez, em um livro do 7º ano. O conceito de gênero, segundo o material, é referido como uma forma de classificação dos seres vivos, proposta por Carolus Linnaeus (1707-1778) na seguinte frase:

Lineu reuniu as espécies que tinham muitas semelhanças em um grupo maior, chamado gênero. Assim, por exemplo, a onça-pintada, o leão, o tigre e o leopardo pertencem ao mesmo gênero, o gênero Panthera (Ciências Naturais – Aprendendo com o cotidiano. 7º ano, 2012, p. 21).

Ao mesmo tempo em que não encontramos reflexões sobre relações de gênero, localizamos imagens utilizadas nas obras que contribuem para a reprodução de estereótipos originados de uma leitura restrita da constituição anatomofisiológica de mulheres e homens. A exemplo, citamos passagens dos livros do 7º e 9º ano, nas quais, para ilustrar conteúdos de Física, utiliza-se sempre a imagem de pessoas do sexo masculino realizando trabalhos braçais em associação à grandeza força. Em outro momento, no livro do 9º ano, uma imagem mostra duas garotas brigando e sendo interrompidas por uma senhora, que questiona “os modos” de uma das meninas, estabelecendo-se, assim, um entendimento do que sejam modos adequados para pessoas do sexo feminino. Essas situações podem ser entendidas como tradutoras de preconceitos velados, originários da crença em determinados estereótipos de masculinidade e de feminilidade.
Ao se trabalhar questões envolvendo relações sexuais e prazer sexual, não se observa, nos livros, qualquer preocupação em promover uma reflexão sobre antigos tabus acerca da temática. A reprodução sexuada aparece apenas como uma consequência natural do processo de desenvolvimento do ser humano, o que reforça o entendimento de que a única função do amadurecimento sexual é a reprodução.
Ainda a este respeito, merece destaque o tratamento desigual dado à questão do prazer sexual para homens e para mulheres. Ao descrever o processo de reprodução sexual masculina, o texto destaca a necessidade fisiológica que o homem tem de ser estimulado para que a ereção ocorra, o que  e, consequentemente, associa a ejaculação a prazer. Em contrapartida, quando aborda o processo da reprodução sexual feminina, omite qualquer menção a estimulação sexual e ao prazer, restando o entendimento de que, paras as mulheres, o intercurso sexual cumpre apenas função reprodutiva.
Um outro elemento que chama nossa atenção é a forma como a família é representada nos livros. Até este ponto da análise já tínhamos claro que o material tanto se sustenta em valores heteronormativos, quanto contribui para a reprodução da naturalização de desigualdades - construídas histórica e socialmente – a partir de uma leitura estreita das diferenças biológicas entre homens e mulheres.
Nos livros do 6º e do 8º ano, a representação de famílias consideradas pelo senso comum como tradicionais, implica no reconhecimento de apenas um tipo de configuração familiar: a família nuclear, constituída por dois progenitores de gêneros distintos e sua prole. Essa maneira única e padronizada de ilustrar o que seja uma família torna-se problemática na medida em que, ao omitir do campo de possibilidades famílias homoafetivas, extensas, mosaico, monoparentais, entre outras, reproduz a ideia de que o grupo familiar da criança só pode gozar do status de família se tiver aquela configuração idealizada. Em uma sociedade em que são muito elevados os números de famílias monoparentais chefiadas por mulheres e de famílias extensas, a ausência de outros modelos nas imagens escolhidas faz com que estas se apesentem descompassadas com a realidade social e em certa medida com as diretrizes dos PCN, que estabelecem que, no ensino de Ciências, cabe lembrar  que a diversidade “torna a experiência humana mais rica, quanto menos se estiver preso a estereótipos de comportamento e quanto mais houver tolerância com pessoas e grupos diferentes de si mesmo” (BRASIL, 1998, p. 78).
Em linhas gerais constatamos que a ênfase dos livros é no conteúdo e que, tal como informado na resenha do Guia do Livro Didático, além de mito extenso, este conteúdo se mostra pouco articulado com outros campos do conhecimento. A ausência de uma abordagem psicoanatomofisiológica do ser humano reflete nas limitações ao se discutir questões atinentes à sexualidade.
Em contrapartida, queremos destacar passagens em que, no livro do 7º ano, são criados espaços para que o professor desenvolva trabalhos que poderão ser muito ricos a este respeito.  Primeiro, quando, ao trabalhar as mudanças ocorridas no decorrer da adolescência, o texto faz suas as palavras do PCN e ressalta que “[...] o valor de uma pessoa não pode ser determinado por seu corpo ou sua aparência”; depois, quando enfatiza, em negrito, que “aceitar-se é fundamental para viver bem e em harmonia consigo e com os outros”; e, por fim, ao propor uma discussão em sala para se trabalhar relações de gênero a partir dos seguintes questioidntos:

O papel de homens e o de mulheres na família e na sociedade são os mesmos em todas as culturas e em todos os povos?
Algum dos sexos é favorecido na nossa sociedade ou em alguma outra que você conheça?

Entendemos, entretanto, que, tão significativo quanto esses momentos de destaque textual ao problema da assimetria nas relações entre homens e mulheres, sejam as lacunas criadas pelas imagens escolhidas. Finalizamos, assim, com uma situação presente no último volume da coleção, quando são apresentadas fotografias de vários cientistas que deixaram grandes contribuições para a humanidade. No rol de imagens fotográficas não há uma única mulher, ainda que, como é sabido, até o ano de 2015 um total de 18 mulheres tinham sido laureadas com o prêmio Nobel nas áreas de Física, Química e Medicina – nenhuma delas lembrada na coleção de Livros Didáticos de Ciências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados até o momento trabalhados permitem concluir que o livro didático de Ciências não promove uma reflexão sobre as diferentes formas de se manifestar a sexualidade, ainda que os Parâmetros Curriculares Nacionais partam do entendimento de que o ensino de Ciências Naturais deva contribuir para “o entendimento da saúde como um valor pessoal e social e para a compreensão da sexualidade humana sem preconceitos” (BRASIL, 1998, p. 22).
A igualdade de direitos entre homens e mulheres está presente no texto, contudo, isso acontece ao mesmo tempo em que as imagens escolhidas para ilustrar a obra reforçam estereótipos que depõem contra fundamentos de uma educação na diversidade.
Finalizando, observamos, ainda, que os textos dos livros analisados não apresentaram posicioidnto considerado discriminatório. Contudo, considerando a opção por uma abordagem aligeirada de questões muito complexas, somada ao fato de que as imagens escolhidas reforçam o tempo todo determinados estereótipos, os livros acabam contribuindo para a manutenção de status quo que pouco dialogam com os sentidos de educar na diversidade para a cidadania de todos e todas.

REFERÊNCIAS

ALTMANN, H. (2005) Verdades e pedagogias na educação sexual em uma escola. Tese (Doutorado em Educação). Departamento de Educação- PUC-Rio, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.bdae.org.br:8080/bitstream/123456789/1827/1/tese.pdf. Acesso em 10 fev. 2018.
BARDIN, L. (1995). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.
BRASIL (1998). Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Ciências Naturais/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ciencias.pdf. Acesso em 10 fev. 2016.
CAMPOS, C. J. (2004). Método de análise de conteúdo: ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, 57(5), 611-614.Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reben/v57n5/a19v57n5.pdf. Acesso em 10 de jul. 2017.
CANTO, E. L. (2012). Ciências Naturais: aprendendo com o cotidiano, São Paulo: Moderna.
CASAGRANDE, L.S.; CARVALHO, M.G. (2009). Um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero. In: Construindo a Igualdade na Diversidade: Gênero e Sexualidade na Escola. Curitiba: UTFPR.
LOURO. G. L. (2004). Uma política pós-identidária para a educação. In: Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica.
LOURO, G. L (2008). Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. ProPosições, vol.19, n.2 (56), p.17-23. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pp/v19n2/a03v19n2.pdf . Acesso em: 10 de fev. 2018.
MATEUS, I.O. (2018). Concepções de gênero e diversidade sexual no livro didático de Ciências.  Relatório final de Iniciação Científica. (Graduando em Medicina) - Universidade de Uberaba, CNPq.
MATEUS, I. O.; MÁRQUES, F. T. (2018). Qual diversidade? Gênero e diversidade sexual nos Parâmetros curriculares nacionais. Revista Querubim, ano 14, n. 35, vol. 2, 2018. Disponível em: http://spa.sites.uff.br/wp-content/uploads/sites/428/2018/08/zzquerubim_35_v_2.pdf. Acesso em 12 de out 2018.

*Acadêmico de Medicina na Universidade de Uberaba, bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Membro do Grupo de Estudos da Educação na Diversidade para a Cidadania – GEEDiCi.
** Antropóloga, doutora em Sociologia pela UNESP, com pós-doutorado em Estudos Culturais pela UFRJ. Professora do curso de Medicina da Universidade de Uberaba e membro do corpo permanente do Programa de Pós-graduação em Educação da mesma instituição.
1 Trata-se da pesquisa “A produção social da identidade e da diferença no livro didático: uma contribuição aos estudos da Educação na diversidade para a cidadania”, coordenado pela Profa. Dra. Fernanda Telles Márques e desenvolvida entre 2016-2019 (APQ-02080-16 FAPEMIG).
2 Com ênfase cambiando entre as dimensões biológica, socioeconômica, sociocultural, afetiva, jurídica, política.


Publicado: 10/02/2020

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