Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


PESCADOR, UMA ESPÉCIE EM EXTINÇÃO”? A MINERAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO DA PESCA ARTESANAL DO LITORAL SUL DO ESPÍRITO SANTO (1972 A 2015)

Autores e infomación del artículo

Gustavo Rovetta Pereira *

Winifred Knox **

UFRGS, Brasil

E-mail: gustavorpcso@yahoo.com.br


Resumo: Estes escritos tem o objetivo de caracterizar o processo de desenvolvimento da pesca artesanal nas comunidades de Ubu e Parati, em Anchieta - ES, tendo em vista a interpretação da singularidade desta prática em relação ao ambiente que coaduna com a constituição de tipos humanos específicos. E também, de demonstrar as intervenções da instalação e operação da mineradora Samarco na costa de Anchieta e suas consequências, no ecossistema local, concomitantemente, na atividade pesqueira.
Palavras-chaves: populações tradicionais, neoextrativismo, etnoecologia, pescadores artesanais, grandes projetos de desenvolvimento.


Resumen: Estos escritos tienen el objetivo de caracterizar el proceso de desarrollo de la pesca artesanal en las comunidades de Ubu y Parati, en Anchieta - ES, con vistas a la interpretación de la singularidad de esta práctica en relación al ambiente que acompaña con la constitución de tipos humanos específicos . Y también, de demostrar las intervenciones de la instalación y operación de la minería Samarco en la costa de Anchieta y sus consecuencias, en el ecosistema local, concomitantemente, en la actividad pesquera.
Palabras- clave: poblaciones tradicionales, neoextractivismo, etnoecología, pescadores artesanales, grandes proyectos de desarrollo.
Abstract: These papers aim to characterize the process of development of artisanal fishing in the communities of Ubu and Parati, in Anchieta - ES, in order to interpret the singularity of this practice in relation to the environment that fits with the constitution of specific human types. And also, to demonstrate the interventions of the installation and operation of the Samarco mining company on the coast of Anchieta and its consequences, in the local ecosystem, concomitantly, in the fishing activity.

Keywords: traditional populations, neo-extractivism, ethnoecology, artisanal fishermen, large development projects.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Gustavo Rovetta Pereira y Winifred Knox (2020): “Pescador, uma espécie em extinção”? a mineração no desenvolvimento da pesca artesanal do litoral sul do Espírito Santo (1972 a 2015)”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/01/desenvolvimento-pesca-artesanal.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2001desenvolvimento-pesca-artesanal

1. Introdução
O objetivo deste artigo é abordar o desenvolvimento da cultura pesqueira nas comunidades de Ubú e Parati, no município de Anchieta, na região Sul do Espírito Santo. Enfatizando a vinculação da cultura pesqueira com os entes não humanos do ambiente local, ou seja, a costa, as praias, as espécies marinhas e os demais elementos da biota que fazem parte do cotidiano dessas populações.
Inadvertidamente, desde a década de 70, as populações de pescadores e pescadoras de Ubú e Parati têm que dividir a costa de Anchieta com Usinas de Beneficiamento de Minério de Ferro e um Porto Industrial de posse da mineradora Samarco. A presença destas construções empresariais ocasionou a transformação substancial do ambiente e da cultura da pesca artesanal na localidade em questão.
Em consequência, é percebida que a não separabilidade da cultura pesqueira de Ubú e Parati com as condições locais ambientais, resultou, após a instalação das empresas, na impossibilidade de separar o desenvolvimento da cultura da pesca artesanal da influência da operação da Samarco mineração na costa de Anchieta, devido ao grau de interferência das práticas da empresa no ecossistema local.
São expostos aqui aspectos de pesquisa [1] etnográfica realizada entre os anos de 2012 e 2013 nas referidas comunidades, principalmente nas praias próximas da sede do município de Anchieta (5 km e 4 km, respectivamente), localizado no sul do Espírito Santo, a 80 km da capital Vitória.
As comunidades em questão se encontram na macrorregião sul do estado do Espírito Santo, em uma latitude correspondente às regiões de exploração e transporte do minério extraído do estado de Minas Gerais. Anchieta contava com 23.902 habitantes no censo demográfico correspondente a época da pesquisa (2010). Ubu e Parati são bairros cuja principal atividade econômica tinha sido ao longo dos tempos a pesca artesanal. Mas, devido à implantação de mineradora, a região costeira vem sofrendo uma profunda transformação social, ambiental e econômica.
Interessa aqui mostrar, o desenvolvimento da cultura pesqueira, empregando o sentido da categoria “desenvolvimento” como liberdade e capacidade de realização de predisposições sociais e culturais de um grupo social específico, sob circunstâncias específicas (SEN, 2000). Neste caso, as populações pesqueiras de Ubú e Parati, sob influência da operação de um complexo industrial de beneficiamento e exportação de minério de ferro, vivenciam um estado de (des) envolvimento na relação com o ecossistema local. O que é diretamente proporcional, às possibilidades de desenvolvimento de seus modos de existência.
Deste modo, a pergunta que dá título ao texto "Pescador, uma espécie em extinção?", teve como inspiração o título de um outro texto, escrito pelo vice-presidente da Associação de Pescadores de Ubú e Parati em 2014, e explicita significativamente o caminho de dificuldades experimentados pelos pescadores, assim como mostra imperativos não naturais, aos quais os pescadores e pescadoras de Ubu e Parati atravessam cotidianamente, em vista, da ampliação das atividades industriais e da legislação e a fiscalização ambiental sobre a atividade pesqueira.

2. As populações pesqueiras de Ubu e Parati.
Até o final do século XIX, somente algumas vilas no litoral do Espírito Santo eram povoadas pela "empresa" colonial (RIBEIRO, 1995), com os índios colonizados, os dois terços restantes do território no interior do estado eram ocupados majoritariamente por populações indígenas de caçadores e coletores, principalmente aqueles índios chamados Botocudos, ao norte do estado, e as populações Puris, ao sul. No litoral norte viveram também as populações Pataxós, os Tupis, que além de parte do litoral norte, também viviam no litoral da região central e sul (EHRENREICH, 2014).
Todavia, já haviam nessa época, populações mestiças, consumando a mestiçagem entre indígenas, portugueses e africanos, os quais viviam no litoral entre os aldeamentos coloniais e os aldeamentos indígenas, denominados como Maratimbas, os equivalentes ao tipo social Caiçara do litoral de São Paulo e Paraná (CELIN, 1984, MACIEL, 2016).
Essas populações viviam da pesca e de uma agricultura de autoconsumo, organizando sua rotina entre as duas atividades. Segundo Antônio Carlos Diegues (1986), a categoria social “Pescador Artesanal” contemporâneo, que se refere a populações que praticam quase que exclusivamente a pesca, como vetor de reprodução social, é um desdobramento contextual da categoria “Pescador Lavrador”, relativa a grupos sociais que alternavam no dia-a-dia entre o trabalho na pesca e na lavoura.
A transformação de “Pescador Lavrador” para “Pescador Artesanal”, ocorreu em várias partes da costa brasileira, a partir de meados do século XX e é oriunda da disputa pelos territórios contíguos aos locais de praias. Mas, devido ao adensamento populacional no litoral, a especulação imobiliária, o turismo, dentre outros processos sociais, que exerceram pressão sobre as terras de uso das populações pesqueiras, houve uma mudança nas práticas econômicas e sociais, fazendo com que muitas famílias vendessem suas terras ou fossem coibidos e expulsos por não terem a posse formal de suas terras de uso secular (DIEGUES, 1983).
As populações pesqueiras de Ubu e Parati, são ao mesmo tempo, descendentes de tupis, portugueses e africanos que compartilharam o território do litoral sul do Espírito Santo. Todavia, passaram a disputar, a partir da década de 50, os territórios da pesca e da lavoura com turistas, dentre outros indivíduos, sendo que algumas vezes, estes eram poderosos o suficiente para construir casas de veraneio, hotéis e restaurantes a beira-mar em suas áreas de vivência. Dessa forma, os pescadores foram reduzindo gradualmente suas lavouras ao ponto de, contemporaneamente, terem apenas a pesca artesanal como principal atividade.
O tipo de pesca caracterizada como artesanal, também diz respeito a uma atividade de caça e coleta, variável e criativamente realizada por diferentes populações ao longo do território do planeta. A pesca artesanal é caracterizada por não depreciar a diversidade dos ecossistemas locais, visto que o volume médio de sua produção, em comparação com a pesca industrial ou a pesca de traineiras, as quais se caracterizam por sua alta extratividade e, consequentemente, pelo seu alto impacto nos ciclos das espécies marinhas (DIEGUES, 1983).
Segundo os saberes memoriais relatados em entrevista, na pesca mais antiga realizada em Ubu e Parati se utilizava de fibras vegetais (tucum) e madeiras encontradas nas matas próximas as comunidades para fazerem suas linhas de pesca, remos e embarcações. A propulsão da navegação para distâncias além daquelas que o remo possibilitava, era somente através de velas de pano. Além disso, os pescadores se guiavam através da identificação de tipos específicos de ondulação e da triangulação com os morros no continente, fato relatado nas pescarias litorâneas de vários lugares do Brasil (DIEGUES 1983, KNOX, 2007).
Na época da pesquisa que dá origem a este texto, os tipos de pesca realizados eram: pesca de linha em barco a remo, pesca do polvo de linha em barco a remo, pesca de linha de fundo em barco a motor, pesca de espinhel em barco a motor, pesca de polvo no pote (armadilha) e pesca de rede de espera. Assim sendo, cada tipo de pesca mobilizava variavelmente práticas e saberes específicos, assim como, tinham uma relação com o estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção (MARX, 1978).
Os modos de se pescar atualmente empreendidos nas comunidades, são exemplos de transformações advindas do constante processo de transformação e recontextualização da pesca artesanal enquanto atividade produtiva e ofício social e cultural. Ou seja, a sua incorporação de elementos relativos a gama de relações socioambientais vivenciadas pelas populações pesqueiras, que é um traço significativo da atividade da pesca artesanal (DIEGUES, 1983; 1998, KNOX, 2007; 2014).

3. A constituição do tipo humano da pesca artesanal em sua relação com o ambiente.
Pode-se dizer que a pesca, operacionalizada através do saber-fazer, é uma atividade de subsistência, praticada – de acordo com a história dos tipos humanos(MAZZOYER, 2010) anteriormente à agricultura– , portanto, um exemplo de saber prático milenar, que acompanha a espécie Homo Sapiens Sapiens.
O saber-fazer manifestado na pesca é uma modalidade fruto da relação com a experimentação, por isso ele é desenvolvido ao longo de muitos anos. Neste sentido, é a experimentação, análise e observação que, juntas e simultaneamente deverão ser aplicadas para localizar os focos da captura (peixes, polvos e outros seres marinhos), para a navegação e para a compreensão dos ciclos do ambiente costeiro que influenciam os desdobramentos da atividade pesqueira e a própria captura.
Essa maneira específica de se produzir conhecimento, quando manifestado na pesca artesanal, pertence, segundo Diegues (1998), ao âmbito da maritimidade, conceito conexo às variadas relações e representações que alguns grupos humanos têm com o ambiente marinho.
Os saberes e fazeres da pesca artesanal são em grande parte análogos aos tipos de conhecimentos caracterizados por Lévi-Strauss (1970) como “ciências do concreto” ou “bricolage”. Formas de interação com o ambiente, fundamentalmente situacionais, ou seja, não passíveis de serem separados totalmente de seus autores, diferentemente dos conhecimentos puramente teóricos ou de um caráter procedimental que podem ser significativamente transferidos por meio da escrita para manuais, livros e teses acadêmicas.
Pierre Bourdieu também faz apontamentos sobre este tipo de saber, todavia, o caracterizando como “senso prático”. O autor faz contribuições ao entendimento sobre esse processo de geração de conhecimento e de interação com a realidade. Ao afirmar que mesmo sendo inerentes à situação onde são gerados, os processos que contribuem fundamentalmente para que os indivíduos gerem esse tipo de interação compreensiva com a realidade encontram-se em momentos anteriores à manifestação desse conhecimento (BOURDIEU, 2009).
Ao abordar a interpretação de Lévi-Strauss sobre a construção desse formato de conhecimento, Bourdieu a diferencia daquele, responsabilizando a origem do senso prático, não a uma essencialidade humana, metamorfoseada em cada tipo de conhecimento, como é encontrado nos apontamentos de Lévi-Strauss (cuja filosofia idealista possivelmente o influenciou em seu pensamento), mas sim ao que ele chama de “mediação social das condições de existência”.
Tim Ingold (1990), faz contribuições teóricas que no âmbito do entendimento de saberes característicos as populações caçadoras e coletoras são afins a perspectiva de Pierre Bourdieu sobre o “senso prático”. Contudo, o autor caracteriza que o processo de geração desses saberes ocorreriam por meio da socialidade, conceito que representa o fluxo triangular entre seres sensíveis, relações sociais e o ambiente, na constituição de práticas e modelos de percepção e conhecimento. Em vez de fazer coro a idéia Bourdieusiana de "Mediação social das condições de existência", influência do materialismo histórico.
Partindo do pressuposto de que o comportamento humano e a construção da pessoa, relativa a cada indivíduo, são oriundos de uma ampla gama de elementos endógenos aos seres, Ingold reconhece a enorme gama de possibilidade inerentes aos seres, mas que também são advindos das diferentes relações sociais e ambientais que perpassam os indivíduos ao longo de suas vidas.

"By sociality I refer to the generative properties of the relational field within each persons are situated. I want to make it absolutely clear that sociality is not a trait built into the human biogram or its cultural equivalent (INGOLD, 1990: 221).

Rather as I have argued elsewhere, sociality is the definitive quality of the relationships" (INGOLD, 1990: 221).

            Nesse sentido, o autor ressalta o ponto de vista relacional, ao qual nenhuma relação entre seres vivos ocorre sem a influência do ambiente. Não somente os humanos, mas todos os outros seres e o ambiente circundante são entidades abertas, não acabadas, o que faz com que suas constituições sejam manipuláveis ao longo de suas existências.
Isto está relacionado à forma como os humanos vivem, se relacionam e habitam o ambiente. Concomitantemente, nessa perspectiva é inaceitável que as diferentes relações que os humanos têm com o ambiente se resumam as diferentes representações produzidas pelas sociedades, culturas e indivíduos sobre a natureza (INGOLD, 2000).
É no âmbito da socialidade que se pode abordar a produção e a operação do saber-fazer. É entendida a produção, nesse contexto, como prática, ensino, aprendizagem em sua constante criação de formas de compreensão e interação com o ambiente.
Diferentemente de algumas perspectivas advindas do conhecimento cientifico, que segundo Ingold, entendem quaisquer experiências de conhecimento humano como embasadas na “razão universal”, como se o sistema perceptivo humano fosse acabado, desvinculado de uma influência das relações ambientais que se atrelam a seu desenvolvimento contínuo.
Para mais, a razão ocidental da modernidade relega a intuição, dentre outros conhecimentos mais voltados a sensibilidade, a um patamar inferior de conhecimento, pois esse atributo entraria em contradição com a racionalidade, com a intencionalidade e com o tipo de reflexão cartesiana e metódica que se estabeleceu hegemonicamente no ocidente.
Deste modo, a ideia de Ingold sobre uma intuição atrelada as formas de percepção e engajamento humano com a realidade coaduna com as reflexões de Gregory Bateson acerca da relação entre a produção de significado e o sistema perceptivo humano que é constituído na relação com o ambiente. As relações com o ambiente não só condicionam as práticas de produção e reprodução da vida em contextos locais de existência; elas antecedem também o processo perceptível humano.
Portanto, a forma pela qual nós temos acesso ao mundo no processo de senti-lo, quando o tornamos inteligível, é entendida como um processo altamente aberto a estímulos do ambiente, sem se converterem um determinante único, mas que exercem influência significativa sobre cada existência humana. Logo, na interpretação de Bateson, a variedade de capacidades cognoscitivas é pertinente a interações características entre indivíduos e suas existências em relação aos seus ambientes. Assim, tal relação precede e predispõe a produção de significado e de subjetividades, mas, não a determina (BATESON, 1970).
Nesta perspectiva, não haveria um processo de decodificação da realidade a partir da mente, mas, ao invés disso, um processo gradual de percepção e sensibilização de todo o corpo dos indivíduos em relação ao ambiente, a forma de ensino e aprendizado entre um professor e um aprendiz deve ser compreendida a partir de lógica semelhante. Destarte, ao invés do tutor ensinar teleologicamente o noviço a compreender o ambiente, ele orienta a trajetória do aluno em relação ao ambiente, no sentido do desenvolvimento de uma “perícia de atenção”, através da “educação da atenção”. Uma “educação da atenção” seria, para Ingold (2000), a relação entre tutor e aprendiz.
Nela, o tutor deixa pistas ao aluno a fim de que este possa fazer com que o ambiente se revele a ele. O autor utiliza-se da metáfora para explicar: pistas ou colas deixadas pelo tutor se converteriam em chaves de acesso ao ambiente e, assim, com o passar do tempo e o desenvolvimento do aprendizado sobre o ambiente, o indivíduo sensível irá gradativamente conservar mais chaves.
De outro modo, a forma de ensino e aprendizado concernente ao saber-fazer, ou à perícia da atenção, manifestada na pesca artesanal, também se fundamenta na oralidade à revelia da escrita. Mesmo não havendo transmissão de um conhecimento da parte de um tutor a um aprendiz, o conhecimento é muitas vezes socialmente armazenado a partir da comunicação oral entre os indivíduos de um grupo cultural, por meio de relações de pertencimento e do exercício de papéis sociais no processo de ensino e aprendizado (RAMALHO, 2006).
Por outro lado, o conhecimento é acumulado tanto nas relações sociais quanto nos indivíduos por meio da marca que a socialidade e os percursos técnicos deixam em suas corporalidades. Moldando os indivíduos ao longo dos percursos cotidianos em relação ao ambiente (SAUTCHUK, 2007).
A pesca, assim como a agricultura, é dependente dos ciclos e as diversas agências do ambiente para ser realizada. Portanto, suas possíveis cosmologias são fundamentadas – a partir da sujeição e do entendimento por parte dos sujeitos que praticam tal trabalho do tempo cíclico ao invés do tempo linear. (BOURDIEU, 1978; PRITCHARD, 2005; FRAXE, 2011). Dessa maneira, os pescadores e pescadoras compreendem os ciclos das espécies, dos ventos, das marés, as estações do ano e as fases da lua.
Nessas comunidades do município de Anchieta, os pescadores artesanais são indivíduos familiarizados com variados tipos de pescas e, concomitantemente, com variadas técnicas de pesca. Por isso, utilizar tipos distintos de instrumentos é algo natural nesse ambiente composto por variados tipos de engajamento, de limitações e de alternativas para se viver dentro de um contexto interativo. O pescador(a) artesanal dessas comunidades, para trabalhar exclusivamente com a pesca artesanal, precisa ter acesso a distintas possibilidades de captura de peixes e polvos.
Essa situação está atrelada a uma série de fatores relativos aos ciclos do ambiente dessa localidade, pois, cada mudança nas condições ambientais favorece algum tipo de pesca e inviabiliza outro. Entre os ciclos ambientais podemos citar os ciclos dos ventos, os quais se alteram em termos de direção e de intensidade, afetando, por exemplo, a pesca do polvo. Outrora, a pesca desse molusco era feita com uma armadilha inventada pelos próprios pescadores e chamada por eles de “pote” ou “caneco”. Agora, as atuais condições permitem apenas o uso da linha.
Outro elemento presente no contexto dessas comunidades está atrelado aos ciclos de abundância e escassez – quando algumas espécies aparecem e outras somem –, fato que implica muitas vezes a necessidade de mudança de instrumental de pesca e afeta o propósito da embarcação. Assim, com o desaparecimento de determinadas espécies das regiões mais costeiras, torna-se necessário usar um barco apto para pescar em regiões mais afastadas da costa, são alterados os instrumentos e todo o processo de captura; passa-se da linha de superfície para a linha de fundo e o espinhel.
Segundo os pescadores artesanais dessa região, o ambiente de Ubu e Parati por si só já impõe ao pescador a necessidade de alternância entre os tipos de pesca, o que faz com que os pescadores da região não exerçam ao longo de suas vidas somente um tipo de pesca.
A pesca com rede, a pesca com linha, a pesca com linha de fundo, a pesca com espinhel, a pesca de polvo por meio de linha e a pesca de polvo através de “pote” são algumas das praticadas e relatadas por esses profissionais. Isso garante que a estrutura de saberes e fazeres desenvolvidos por esses indivíduos seja flexível ao mesmo tempo em que aprimora as capacidades básicas transversais para a pesca oceânica, como a navegação, a resistência ao balanço da maré e a condição de safo. Tal condição para os pescadores artesanais é atrelada ao estado de disposição e de constante atenção e agilidade que a atividade da pesca artesanal requer.
Porém, os ciclos da pesca artesanal de Ubu e Parati não são constituídos somente das peculiaridades ambientais locais. Como parte do ambiente é composta por sistemas variavelmente abertos, passíveis de sofrerem interferências que acarretam mudanças na sua dinâmica, algumas destas afetam tão intensamente o meio, que provocam um processo de vulnerabilidade nos grupos sociais e no ambiente natural. Como é entendida a chegada da indústria de beneficiamento de minério e as consequências de sua operação na costa de Anchieta.

A chegada do desenvolvimento na Mata Atlântica do litoral ao sul do Espírito Santo.
A história da colonização da Mata Atlântica é uma narrativa protagonizada pela separação entre populações nativas, suas práticas e a biodiversidade dos ecossistemas vinculados ao bioma (DEAN, 1996), incluindo suas praias como é o caso das vilas de Ubu e Parati pertencentes ao município de Anchieta na região sul do estado do Espírito Santo.
Foi assim durante os quase três primeiros séculos de colonização do território de Anchieta, onde existia a Aldeia de Iriritiba, um dos mais significativos aldeamentos jesuíticos da costa brasileira em quantidade de habitantes, organização e produção agrícola, feito sobre as bases do modo de vida Tupi (MATTOS, 2009).
Os tupis eram bem-adaptados aos ciclos naturais locais. Onde já praticavam agricultura alternadamente a caça e a coleta. Isto posto, os jesuítas e os colonizadores portugueses usaram de seus conhecimentos para estabelecerem os primeiros aldeamentos coloniais, posteriormente transformadas formalmente em vilas (RIBEIRO, 1995, DEAN, 1996).
Antes da expulsão dos jesuítas na metade do século XVIII, nos dois primeiros séculos de colonização, as populações tupis já haviam diminuído em 95 % sua população no Brasil (DEAN, 1996). Todavia, no caso do Espírito Santo, os padres haviam conseguido junto a coroa portuguesa à delimitação de uma área para a reprodução social dos remanescentes da etnia que compreendia de Meaipe, distrito na costa de Guarapari, município vizinho a Anchieta, até Iriri, balneário localizado próximo a fronteira com o município de Piúma (MATTOS, 2009).
Inconvenientemente, com a saída dos religiosos da colônia, a administração pairou nas mãos das elites lusitanas e luso-brasileiras, que a revelia da decisão da coroa, começou a distribuir as terras da costa de Anchieta a seus compadres, aliados e parentes (MATTOS, 2009).
Além disso, a partir de 1850 se estabeleceu a nova Lei de Terras, no Brasil, proibindo a concessão de propriedades, mas, somente a compra do estado ou de outros proprietários, fato que aumentou a pressão sobre o território indígena, pois, agora a terra era valorada a partir da moeda corrente a época. Ao mesmo tempo que a segurança jurídica das populações nativas em relação as suas terras de uso era nula, devido ao racismo do estado luso-brasileiro e o seu desejo da não perpetuação do povo indígena no território (LOSADA, 2002).
Deste modo, mais de 100 anos depois, quando começou a ser instalada a mineradora Samarco, em área contígua as vilas de Ubu e Parati, na costa de Anchieta, os povos mais próximos as etnias nativas Tupi da costa do Espírito Santo eram as populações que alternavam a pesca, a lavoura e a coleta de mariscos nas praias e encostas do litoral sul do Espírito Santo. A própria área onde foi instalada a Usina de Beneficiamento de Minério de Ferro e o Porto Industrial da empresa, era antes uma grande fazenda de proprietário não pescador e não indígena.
Desde o fim do ciclo do ouro, no fim do século XVIII, após a superação da função de barreira verde dada pela coroa portuguesa ao Espírito Santo, no sentido da proteção do acesso de possíveis saqueadores ao ouro de Minas Gerais, as elites políticas do estado, tentam postar a região entre as economias mais relevantes do país, como são os demais estados do sudeste (CELIN, 1984).
Sendo assim, na segunda metade do Séc XIX, o governo da província do Espírito Santo, ignorou o povoamento indígena do interior, considerando essa região como concernente a um vazio demográfico e o grande contingente de negros em processo de iminente abolição no estado, que poderiam ter acesso às terras, para incentivarem a migração de imigrantes italianos para 2/3 do território de Mata Atlântica, no sentido de ocuparem o interior do estado através da cafeicultura (CELIN, 1984).
Nesta época, as populações maratimbas, pescadoras do litoral eram considerados preguiçosos e sem ambição suficiente para contribuírem com o crescimento econômico da província (CELIN, 1984).
Após aproximadamente cem anos da cafeicultura ocupando o papel de esteio da economia capixaba, os páreas da vez, na concepção das elites e os governantes, não eram mais somente os indígenas, os maratimbas e os negros, mas, também os agricultores migrantes, que foram, devido a estrutura fundiária e suas formas de manejo agrícola, responsabilizados pela “estagnação técnica” dos cafezais. Logo, o governo do estado passou atrair grandes contingentes de verba federal para financiar a erradicação dos cafezais, desocupando 45% das áreas plantadas com café, desocupando 20% da mão de obra agrícola a época (SOUZA, 1990).
A erradicação dos cafezais, simultaneamente ao investimento na infraestrutura como estradas e energia elétrica, fazia parte da mesma estratégia capitaneada sucessivamente pelos governadores Carlos Lindenberg, Cristiano Dias Lopes e Arthur Gerhardt. Baseada na atração de Grandes Projetos, tornando o Espírito Santo um estado em urbanização e consolidado no mercado através das Industrias de commodities (SOUZA, 1990, OLIVEIRA, 2008).
Em vista disso, entre as décadas de 60 e 70, foram instalados no estado, o Complexo Siderúrgico de Tubarão e o Porto Industrial de Tubarão na capital Vitória, a Indústria de Celulose – Aracruz Celulose S/A e o Porto de Barra do Riacho, em Aracruz e Barra do Riacho no norte do estado e a Usina Siderúrgica de Beneficiamento de Minério e o Porto de Ubu da Samarco em Anchieta (OLIVEIRA, 2008).
Os pescadores e pescadoras mais antigos de Ubu e Parati, ouvidos durante o trabalho etnográfico que fundamenta este artigo, afirmaram só terem ficado sabendo da construção do complexo industrial de Ubu, quando as obras já haviam começado, partir de 1972. Dessa forma, é percebido que não houve consulta nem audiência com os moradores da localidade para a implantação do empreendimento.
A empresa foi inaugurada em 1977 e ao longo do tempo foi expandindo suas atividades. Em 1997, inaugurou a 2ª usina de beneficiamento de minério de ferro, e em 2008 foi a vez da terceira usina e o mineroduto, que expandiram a produção da empresa em 54%. Já em 2014, a Samarco inaugurou a 4ª Usina de Beneficiamento de minério de ferro. No total a capacidade de produção da empresa giraria em torno de 30, 5 milhões de toneladas de minério ao ano.
A expansão significativa das atividades da empresa na segunda metade da primeira década dos anos 2000 está ligado ao aumento do preço das commodities no mercado internacional, mas fundamentalmente ao contexto político do Espírito Santo, onde o governo do estado passa a encampar uma continuidade da política econômica da época da ditadura militar no estado, inclusive com participação de atores eminentes do planejamento econômica das décadas de 60 e 70.
Este processo ocorre por meio da fundação da organização empresarial de nome "ES em Ação", por grande parte da elite empresarial do estado, ligados a Federação de Indústrias do Espírito Santo (Findes), incluindo ex-governadores, as principais corporações midiáticas do estado, empresas do ramo da educação superior e as empresas ligadas a indústria de commodities em atuação no Espírito Santo (RAINHA, 2012, CORREA, 2013).
Deste modo, o grupo "ES em Ação" apoiou a eleição do candidato Paulo Hartung ao cargo de governador, que após a vitória no pleito formula, junta a ong empresarial, o planejamento econômico e de desenvolvimento territorial para o Espírito Santo. O documento é consolidado como plano “ES – 2025”.
O plano “ES – 2025” propunha mais de 90 projetos interligados, entre iniciativas que se focavam em infraestrutura urbana e de rodovias, a implantação de empreendimentos industriais (principalmente portos) e expansão de indústrias que já operavam no estado. No caso do território de Anchieta, os projetos eram: projeto nº 59 UTG SUL da Petrobras, projeto de nº 61 – Implantação de um pólo siderúrgico em Anchieta e o projeto nº 70 – Desenvolvimento do porto de Ubú e a construção da 4ª Usina Siderúrgica de Ubú (CORREA, 2013, PEREIRA, 2014).
Entretanto, com os desdobramentos a longo prazo da crise econômica de 2008, alguns desses empreendimentos não se concretizaram, como foi o caso do Complexo Siderúrgico de Ubú (Usina CSU), que seria uma usina espelho da CSA, existente na Bahia de Sepetiba, no estado do Rio de Janeiro.
Ao longo dos 43 anos de operação da mineradora Samarco no território concernente as vilas de Ubu e Parati, as populações pesqueiras foram descobrindo as consequências negativas da atividade industrial na localidade, assim como, descobrem e compreendem as dinâmicas dos ciclos ambientais das espécies, dos ventos e das marés. Pois, a postura da empresa nunca foi de divulgação das suas operações perante a comunidade, mesmo que os desdobramentos de suas atividades fosse afetar diretamente os modos de vida das populações pesqueiras da localidade.
Deste modo, os pescador(a)s foram compreendendo que o afastamento gradual das espécies de peixes e moluscos da região costeira de Ubu e Parati, era devido ao trânsito intenso de navios, a poluição luminosa e sonora das atividades do Porto Industrial de Ubu. Processo que ocasionou a necessidade de deslocamento dos barcos para regiões cada vez mais distantes da costa. Todavia, aqueles pescador(a)s sem barco a motor são impossibilitados de realizarem esse objetivo, tornando a pesca cada vez mais difícil de ser realizada como meio de vida.
Para mais, existiam as periódicas dragagens, que consistiam na retirada de areia do fundo do mar nas proximidades do Porto de Ubu no sentido de manter o trânsito de navios sem que estes encalhassem. Em um primeiro momento, os pescadores começaram a perceber que as redes de espera e as linhas de pesca vinham manchadas de algum efluente estranho ao cotidiano da pesca. E após uma investigação e a conversa com alguns funcionários da Samarco, acabaram por descobrir que a substância que manchava os aparatos de pesca, era oriundo do processo de dragagem que fazia vir a superfície os efluentes industriais depositados no fundo do oceano.
A partir do momento em que os pescadores começaram a responsabilizar a empresa pelos danos ao ambiente marinho devido àquela atividade e reivindicar atitudes de proteção por parte dos órgãos fiscalizadores contra as seguidas dragagens, houve uma mudança no processo de dragagem: ele passou a ser realizado de agosto a outubro em vez de ocorrer nos meses de janeiro, fevereiro e março. Na nova época adotada após as reclamações e pressões dos pescadores o mar já é mexido pelos ventos e correntes marinhas e, devido a esse estado, a coloração da água é barrenta, fazendo com que os efeitos da dragagem sejam disfarçados aos olhos dos leigos. Mas, os pescadores continuam a perceber seus efeitos devido à ausência de espécies comuns a essa época, como o peixe xicharro; à coloração dos instrumentos de pesca, manchados; aos detritos e às rochas soltas no fundo do mar
Os pescadores afirmam que, quando há dragagem, os efluentes dessa própria indústria são remexidos e, consequentemente, afastam os peixes, matam o sururu das pedras e alteram a cadeia alimentar dos peixes, contribuindo para o ciclo de escassez.
Entretanto, pode-se dizer que existem “ciclos entrecruzados” entre pesca, indústria e seres vivos marinhos. Um pescador de Parati que presenciou de perto a atividade de dragagem contou que durante o processo notou diversos seres marinhos mortos, como tartarugas e peixes. Alguns dos pescadores afirmaram ainda que esses animais eram tratados pelos agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), os quais, por sua vez, responsabilizaram os anzóis e as redes dos pescadores artesanais da localidade.
As famílias de pescadores também passaram a perceber modificações na paisagem no sentido de verem cada vez menos entes que antes faziam parte de seus cotidianos, por exemplo leões marinhos, golfinhos, baleias, dentre outras espécies marinhas que sempre apareciam nas praias tanto de Ubu, quanto de sua vizinha Parati que ao longo da operação da mineradora na região deixaram de transitar pela localidade.
A lagoa de Mãe-Bá, local tradicionalmente ligado a socialidade das famílias de Ubu e Parati, teve sua ligação com o mar impedida pelo asfalto, além de ser poluída por efluentes industriais, deixando gradualmente de ser utilizada.
Além disso, a lida da Samarco com o minério vindo de Mariana, município de Minas Gerais, através de um mineroduto de aproximadamente 390 km gerava a difusão massiva e constante de particulados de minério de ferro no ar. Isto, devido ao fato do minério após a sua chegada ser armazenado nos pátios industriais da empresa e exposto ao vento.
Antes da interrupção das atividades da Samarco no final de 2015, após o rompimento da barragem no município de Mariana, era imensamente perceptível a forma como a vegetação, as casas, os veículos, assim como, as areias das praias do entorno, até quase Meaipe, no município vizinho de Guarapari, eram manchados pelo “pó preto” oriundo das atividades da empresa.
Entre 2008 e 2010 foi realizada pela EMESCAM (Escola Superior de Ciências da Santa Casa da Misericórdia de Vitória) a pesquisa: “Impacto socioambiental e na saúde dos trabalhadores causados pela indústria de Pelotização Samarco e aqueles que serão provocados pela exploração de Hidrocarbonetos no município de Anchieta” que constatou algumas evidências sobre as consequências da exposição por décadas aos particulados de minério pela população das comunidades do entorno da empresa, incluindo as populações de pescador(a)s:

“A saúde da população de Anchieta, e especialmente dos pescadores de Ubu e Parati (balneários à beira-mar), vem sofrendo danos há várias décadas, com a contaminação ambiental, proveniente do funcionamento das usinas de pelotização, agravada não apenas pela expansão da indústria, mas também na proporção em que a empresa e suas terceirizadas exploram os recursos da natureza sem economia, usando produtos químicos tóxicos, de forma não controlada socialmente. Nas entrevistas, há a indicação de muitos trabalhadores com doenças crônicas alérgicas (gripes recorrentes, bronquite e asma), além daquelas provenientes do esforço enfrentado pela pesca artesanal, o que pode ser constatado também em óbitos, conforme levantamento realizado no cartório de registro de documentos.
Há um elevado índice de morte por câncer e doenças no aparelho respiratório, que incidem especialmente sobre os mais velhos, pois há mais tempo encontram-se expostos à poluição ambiental, iniciada na década de 1970.” (RAMOS, p.5, 2013).

            Com o passar dos anos de interação entre a mineradora e as populações pesqueiras, muitos pescadores afirmaram terem percebido a intensificação da fiscalização ambiental e da capitânia dos portos em relação a atividade da pesca, ao mesmo tempo, que não notaram a mesma postura de vigilância em relação a intensidade das consequências da operação da empresa nos ecossistemas marinhos e costeiros. Em vista desse fato, muitos moradores que vivem da pesca artesanal, acreditam firmemente que existe um processo de perseguição da parte do estado em relação a pesca artesanal, pois, as famílias pescadoras se perpetuam no desenvolvimento da atividade mesmo sob condições limitantes, inclusive se articulando politicamente.

A (ecologia) política da Associação de pescadores artesanais de Ubu e Parati.
No sentido de darem continuidade a cultura da pesca artesanal em Ubú e Parati, parte dos pescadores perceberam que somente a indignação não resolveria a disputa pelo território da pesca com as atividades do porto industrial e as usinas de beneficiamento de minério de ferro da Samarco. Sendo assim, essas pessoas foram gradualmente se articulando com outros atores e coletivos vinculados a luta pelo cerceamento das atividades de alto impacto nos ecossistemas da costa de Anchieta.
Por outro lado, ao presenciarem por 40 anos o apoio do estado as atividades da empresa, assim como, a expansão dos processos produtivos da mineração e a intensificação de suas consequências, as famílias pescadoras também se articularam no sentido do requerimento perante a empresa e o poder público, a reparação e a compensação pelos danos causados ao modo de vida da pesca artesanal.
Em outras palavras, devido ao fato dos pescador(a)s não se sentirem representados pela Secretaria de Pesca, a Secretaria de Meio Ambiente e a Colônia de Pescadores de Anchieta, em relação as reivindicações contra as atividades de degradação do território pesqueiro pela Samarco.
Nesta perspectiva, foi fundada a Associação de Pescadores Artesanais de Ubú e Parati, que passou representar formalmente o interesse dos pescador(a)s associados, operacionalizando diferentes pautas, desde a denúncia das consequências das atividades de dragagem da empresa junto aos órgãos de fiscalização ambiental, pesquisadores de universidades do Espírito Santo e de outros estados.
Um dos frutos mais significativos da articulação dessas populações em Parati e Ubu foram a denúncia formal acerca da dragagem periódica no Porto Industrial de Ubu e a participação na escrita do livro: Desenvolvimento local, saúde e meio ambiente: o impacto dos grandes projetos em Anchieta/ES na região metropolitana da Grande Vitória e em Macaé/RJ (2009). Nesta obra há um capítulo escrito pelo presidente da Associação de Pescadores de Ubu e Parati, contando a trajetória de articulação do coletivo, em vista dos direitos das comunidades.
Pauta que apresentada como fundamental, é o projeto de Renda Básica Universal para os pescadores artesanais, atingidos pela atuação das atividades do porto industrial de Ubu, da Samarco. O projeto se tratava de um valor a ser pago de maneira fixa aos pescador(a)s artesanais, formalmente registrados na Associação de Pescadores Artesanais de Ubu e Parati, em vista dos danos cotidianos causados pela Samarco, dentre eles a redução da produção através da pesca devido ao afastamento e a redução gradual dos cardumes, antes fartos nas costas de Anchieta.
De um modo geral, o desafio no qual as famílias que vivem da pesca artesanal de Ubu e Parati, vem enfrentando desde a década de 70 é compreender a intensidade e os tipos de impactos causados pela Samarco em seus territórios de vida e trabalho. Além disso, de se organizarem e se fazerem representadas politicamente em relação a apropriação dos ecossistemas da pesca pela empresa, que é uma multinacional multimilionária. Tarefa hercúlea, para quem também tem de se ocupar a décadas no entendimento das dinâmicas dos ciclos do ambiente para sua reprodução social.

Considerações finais
Este artigo elaborou uma breve genealogia da pesca artesanal nas comunidades de Ubu e Parati em Anchieta no Sul do Espírito Santo principalmente em relação a atuação da Samarco S/A em território contíguo as comunidades que protagonizam a atividade da pesca. Além da mineradora em questão, também atuava na localidade a Petrobrás, através da Usina de Tratamento de Gás Sul (UTG- Sul) na Praia do Além, ao lado de Ubú e através de uma Plataforma de Petróleo, na área de pesca das comunidades, a aproximadamente 100km da costa de Anchieta. Entretanto, a perspectiva do texto estava embasada na relação com a mineradora pelo seu grau de relevância e impacto no modo de vida da pesca artesanal na região.
A pesca artesanal não é uma atividade ou profissão como qualquer outra, longe disso, ela é inerente a condição humana no litoral e um dos motivos da perpetuação da espécie no planeta e provavelmente de outras espécies marinhas e costeiras. Pois é sabido que as espécies e os ambientes se configuram mutuamente através de seus modos de vida.
Dessa perspectiva, existem modos reprodução da vida em relação ao ambiente, mais afins ou não a biodiversidade. As regiões com maiores concentrações de fauna e flora do mundo, não são regiões isoladas dos seres humanos, mas, manejadas por comunidades de caçadores, coletores e agricultores, significativamente, mais distantes da obsessão pelo acumulo econômico e por bens de consumo (DIEGUES, 2000a; 2000b, DESCOLA, 2000, TOLEDO, 2009; 2015).
Ademais, devido à interação peculiar dessas sociedades humanas, com as praias, o balanço do barco, os ventos, os cardumes, os instrumentos de pesca, dentre outros entes, temos na figura dos pescadores e pescadoras tipos humanos característicos, para além do sentido subjetivo da diversidade humana, mas no âmbito material no que tangem às suas formas de percepção (BATESON, 1970) e engajamento no ambiente (INGOLD, 2000), que consequentemente, permeiam suas corporalidades (SAUTCHUK, 2007), os transformando em exemplos peculiares da diversidade da espécie humana no planeta.
Atualmente, devido ao rompimento da Barragem de Fundão em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015, aquilo que era visto como improvável aconteceu, a Samarco Mineração S/A, interrompeu suas atividades no litoral de Anchieta. De novembro do ano de 2015 ao término deste artigo, se passaram apenas três anos completos do acontecido, porém é bem possível que já hajam consequências positivas nos ecossistemas e portanto no desenvolvimento da atividade pesqueira em Ubu e Parati.

Agradecimentos: à Fapes, pelo financiamento de bolsa de mestrado; ao PPGCS/UFES e seus professores; à minha orientadora e coautora deste texto.

Referências bibliográficas
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*Bacharel e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo e Doutorando em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
** Graduada em Serviço Social e Mestre em Sociologia e Antropologia, ambas pela UFRJ e doutorado em Ciências Sociais pela UFRN. É professora da UFRN.


Publicado: 28/01/2020

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