Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


PAULO FREIRE: NOTAS FILOSÓFICO-PEDAGÓGICAS SOBRE O PARADIGMA DA PEDAGOGIA DIALÓGICA DO OPRIMIDO E A BARBÁRIE EM TEMPOS DE ÓDIO AO PENSAMENTO

Autores e infomación del artículo

José Alcimar De Oliveira*

Universidade Federal do Amazonas - UFAM, Brasil

E-mail: aldairufam@gmail.com


Resumo

Aos 50 anos da Pedagogia do oprimido, publicada em 1968, e em tempos de ascensão do obscurantismo e do ódio ao pensamento, no Brasil e mais além, manter vivo o legado de Paulo Freire é um ato de resistência filosófica, educativa e política.  É este o objetivo dessas notas filosófico-pedagógicas, porque diante da indigência do ódio de que tem sido objeto, em pleno século XXI, o educador maior desse país, nada nos cabe senão responder com as armas inteligentes da razão crítica às agressões do autoritarismo e do poder sem saber.

Palavras-chave: Paulo Freire; Pedagogia do oprimido; Educação, Barbárie

Abstract

At 50 years of the Pedagogy of the Oppressed, published in 1968, and in times of the rise of obscurantism and hatred of thought, in Brazil and beyond, keeping Paulo Freire's legacy alive is an act of philosophical, educational, and political resistance. This is the purpose of these philosophical-pedagogical notes, because in the face of the indigence of hatred which has been the object of the greatest educator of this country in the 21st century, we can do nothing but respond with the intelligent weapons of critical reason to the aggressions of authoritarianism and of power without knowing.

 
Keywords: Paulo Freire; Pedagogy of the oppressed; Education, Barbarism

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

José Alcimar De Oliveira (2019): “Paulo Freire: notas filosófico-pedagógicas sobre o paradigma da pedagogia dialógica do oprimido e a barbárie em tempos de ódio ao pensamento”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (diciembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/12/paradigma-pedagogia-dialogica.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1912paradigma-pedagogia-dialogica

INTRODUÇÃO: A NECESSIDADE DA VIGILÂNCIA, OS PERIGOS DO SONO DA RAZÃO, O OPRIMIDO COMO INDIVÍDUO SOCIAL E A VIDA COMO PROJETO
          Em sua obra poética e épica, Bertolt Brecht, cujo teatro combina filosofia, pedagogia e engajamento político, advertia com o necessário recurso do efeito de distanciamento epistemológico, sobre o perigo do otimismo ingênuo: o ventre que gestou a coisa imunda continua fértil. O contexto então de ódio ao pensamento e de perseguição aos intelectuais críticos era o da barbárie nazista de Hitler. O teatro brechtiano é antes de tudo um projeto, uma itinerância epistêmica. Operou por meio da mediação do distanciamento crítico a aproximação simbiótica entre vida e projeto. Por isso, dispensou o palco do espetáculo dramático em favor da realidade, da objetivação crítica das contradições e dos dilaceramentos do ser social. Representou sem cair nas malhas da representação.  
          No século de Kant, Francisco de Goya celebrizou numa gravura o que Brecht denunciara depois diante da barbárie nazista: o sono da razão produz monstros, afirmação que se converteu em lema do iluminismo espanhol. Goya gravurizou a realidade com os traços da arte emancipatória. Não mimetizou a vida. Enfrentou o obscurantismo com inventividade isenta de piedade e de concessão ao moralismo. No Brasil do século XXI os monstros do presente emergiram de um passado que se julgava sepultado. Emergiram desinibidos, resultado de uma combinação obscurantista e patológica entre estruturas pulsionais, fundamentalismo religioso, intolerância política, ódio à razão e ignorância programada.   
          Igualmente movido pela razão iluminista e a partir da região nordeste do Brasil, cujas   estruturas da ignorância, do obscurantismo e da miséria como projeto estão mais próximas do mundo medieval do que da modernidade que nunca abrigou aquelas vidas secas e intocadas pelos direitos sociais, o jovem tecido de utopia, Paulo Freire, desenhou o sonho coletivo da pedagogia do oprimido. O título foi antecipado pela prática. A prática não nasceu de um título, mas de uma aposta enraizada na ontologia do ser social: o indivíduo oprimido era mais que um indivíduo, era um indivíduo social. Antes de se fazer livro, a Pedagogia do oprimido se materializou no quefazer (práxis) do projeto educativo que Paulo Freire desenvolveu com os “esfarrapados do mundo e aos que nele se descobrem” no interior do Nordeste brasileiro. A esses esfarrapados ele dedica sua magna obra.
          Em sua Fundamentação da metafísica dos costumes Kant reconhece que tentar extrair dos costumes a instância da vida moral seria o pior serviço que se poderia prestar à moralidade. Guardadas as devidas medidas epistêmicas, seria igualmente um desserviço às teorias pedagógicas limitar ou reduzir a Pedagogia do oprimido a uma iniciativa empiricamente datada de alfabetização de adultos. A Pedagogia do oprimido não é um método, menos ainda uma técnica, mas um paradigma dialógico e anticartesiano do quefazer educativo.
          Para uma compreensão estreita do pensamento freireano a tendência é reduzir sua teoria dialógica do quefazer educativo a um conjunto tecnicista, feito de procedimentos formais, destinado a alfabetizar adultos. Programática ou não, a ignorância atual em relação ao estatuto paradigmático do pensamento educacional de Paulo Freire encontra largo abrigo institucional, inclusive no mundo acadêmico. O insubstituível Maurício Tragtenberg chamaria a isso de delinquência acadêmica, cujo corolário é o saber sem poder e o poder sem saber. Academias funcionais à lógica do empreendedorismo e cada vez mais imporosas às pedagogias, libertadora e libertária, de Freire e Tragtenberg.
          A relação entre Paulo Freire e a Educação guarda o mesmo estatuto ontológico que existe entre Sócrates e a Filosofia. Paulo Freire é, sem concessão a um juízo temerário, o mais socrático dos educadores brasileiros. Ele não pensou a educação na forma cartesiana da clássica dicotomia entre sujeito e objeto, pensamento e realidade, razão e experiência, educador e educando. Outra é sua medida, porque mediada pela dialogicidade ontológica. Porque ontológico e dialético, ontodialético para sintetizar, seu projeto dialógico da pedagogia do oprimido é presidido pelo devir da necessária pedagogia dialógica do oprimido. Ao pensar o universal desde o oprimido como classe social ele desconstrói a pretensão universalista do particularismo de classe da opressão burguesa. Por seu fundamento universal, somente a pedagogia dialógica do oprimido pode libertar o opressor das estruturas reificadas que o aprisionam e o fazem indigentes ontológicos. O opressor jamais poderá ser culto porque a opressão o impede de apropriar-se subjetivamente daquilo que Marx chamava de natureza genérica humana.  
          No devir ontodialético das notas que se seguem pretendo contribuir para afirmar o estatuto epistemológico do paradigma dialógico da Pedagogia do oprimido e explicitar a ruptura, bem antes de Habermas, entre Paulo Freire e o ainda prevalente paradigma cartesiano do sujeito. Trata-se aqui de contrapor, mediante um exercício de mediação epistêmica, o paradigma dialógico de Paulo Freire ao abrangente paradigma antidialógico, assentado num sujeito inflado e presidido pela racionalidade instrumental. Por sua natureza reificada e reificante, esse paradigma caminha no contracurso do paradigma freireano, que afirma no ser social sua incontornável e necessária vocação ontológica. 

 I - A DÍVIDA ONTOLÓGICA NÃO RECONHECIDA DE HABERMAS PARA COM PAULO FREIRE
Em 1981, 200 anos depois que veio a lume a Crítica da razão pura, de Immanuel Kant, o igualmente filósofo alemão Jürgen Habermas publica sua Teoria do agir comunicativo, obra que demarca uma inflexão decisiva no pensamento do mais importante herdeiro da Teoria Crítica.  Nessa obra consolida-se a ruptura de Habermas com o paradigma da consciência, cuja vigência no mundo ocidental remonta ao pensamento cartesiano do cogito, para ceder lugar ao paradigma da intersubjetividade.
O agir comunicativo habermasiano fundamenta-se numa lógica cognitiva não mais centrada no sujeito, mas na estrutura intersubjetiva. O que tem a ver e em que se diferencia essa estrutura intersubjetiva com a dialogicidade que, em sua Pedagogia do oprimido, Paulo Freire define como “essência da educação como prática de liberdade” (2018, p. 107)?  Vale mencionar que a Pedagogia do oprimido é de 1968, 13 anos antes de Habermas publicar sua magna obra. A teoria educativa da dialogicidade que atravessa as páginas da Pedagogia do oprimido, diferentemente do que propõe Habermas, arranca da compreensão do ser social da classe trabalhadora submetida à lógica férrea da exploração capitalista, enquanto o ser social da Teoria do agir comunicativo é o sujeito abstrato burguês, ilustrado, cuja forma de vida real pressupõe uma situação ideal de fala. Há uma distância quase intransponível entre o sujeito falante do mundo burguês, destinatário por excelência do agir comunicativo habermasiano, e o sujeito silenciado do mundo do trabalho, protagonista da pedagogia dialógica do oprimido.
Para minha surpresa e a esse propósito, e faço questão de mencionar nesse escrito, tomei conhecimento de uma entrevista recente em que Fernando Haddad (2019, p. 15) confirma a dívida ontológica nunca reconhecida – que serviu de título à primeira parte dessas notas – de Habermas para com Paulo Freire:
Olha, eu li a Pedagogia do oprimido na faculdade de direito. Vim a reler agora, depois de tanto pau que ele (Paulo Freire) levou. E fiquei surpreso com a grandeza do trabalho dele. É um homem que propunha a razão dialógica (grifo nosso) antes do Habermas, já nos anos 1960. O combate ao solipsismo na filosofia já estava todo no Paulo Freire. Eu até fiquei curioso para saber por que o Habermas não cita o Paulo Freire. Deveria.

          Que influência teve Paulo Freire na Teoria do agir comunicativo de Habermas?  Reconhecida, seguramente nenhuma. Haveria possibilidade de o pensamento de um autor do Brasil tropical encontrar audiência num autor da Alemanha temperada? Mas não é legítimo interrogar se a intersubjetividade temperada pode substituir, diluir ou congelar a categoria histórica de luta de classes enquanto categoria a um só tempo social, epistêmica, pedagógica e política que medeia a pedagogia dialógica do oprimido? Como conciliar a situação ideal de fala do mundo temperado, requerida por Habermas, com a situação de mutismo real do submundo tostado e lugar social de denúncia e de intervenção de Paulo Freire? É possível levar Habermas de Frankfurt a Angicos sem a mediação de Paulo Freire?
O que diferencia a Teoria do agir comunicativo da Pedagogia do oprimido? É possível uma resposta ontodialética a essa questão por fora da compreensão do ser humano como ser social? Guardadas as necessárias mediações – porque entre A e B é defensável pensar AB e BA – para mim não constitui nenhum despropósito a tese de que em Habermas o mundo é visto a partir da linguagem e em Paulo Freire a linguagem a partir do mundo, porque a leitura do mundo tem precedência lógica e ontológica sobre a leitura da palavra. Mesmo a palavra dita geradora tem sempre no mundo o fundamento ontológico de sua geração. Ao pensar com Marx, é necessário dizer que não existe natureza humana abstrata, mas tão somente a natureza humana socialmente condicionada e transformada pelo tempo e pelo espaço históricos. No homem, compreendido este como um conjunto de relações sociais, o primado ontológico é o do ser social sobre sua consciência.          
É a opção de classe em favor do oprimido que imprime a necessária diferença política e pedagógica entre a dialogicidade de Paulo Freire e a intersubjetividade de Habermas. Reconheço que ambos os paradigmas são anti-cartesianos. Mas o anti-cartesianismo de Habermas, ao contrário de Paulo Freire, ao fazer uma aposta no poder da razão comunicativa, termina por abstrair da intersubjetividade o conteúdo de classe. Abstraída da luta de classes, nenhuma razão, por mais comunicativa que seja, garante ao oprimido-classe romper os grilhões da exploração do opressor-classe, sempre ampliada e intensificada.
A pedagogia dialógica do oprimido não nasce da razão liberal, burguesa, mas da situação histórica de interdição à fala imposta pelas condições reais da opressão que pesa sobre a vida do oprimido e o impede de afirmar sua vocação ontológica, que outra não é senão a vocação de ser gente. É necessário reconhecer que, mais do que ao oprimido-indivíduo, é ao oprimido-classe que a classe opressora desumaniza e expropria as mediações epistêmicas e políticas sem as quais nenhuma luta contra a opressão é possível. Por baixo da razão comunicativa abstrata e liberal de Habermas corre a vida concreta dos esfarrapados do mundo que se agarram às armas históricas da pedagogia dialógica do oprimido, coletivamente pensada e organizada por Paulo Freire, como mediações de enfrentamento e superação da barbárie que lhes subtrai vida e dignidade.  
À diferença do paradigma freireano da pedagogia dialógica do oprimido, a intersubjetividade da Teoria do agir comunicativo habermasiano – que não reputo desnecessária ao fortalecimento do aparato crítico à dominante razão instrumental capitalista – é uma teoria (filosófica e comunicativa) insuficiente como mediação por eliminar o conteúdo de classe que separa radicalmente o opressor do oprimido. É possível haver situação ideal de fala entre essas razões quando a razão oprimida, além da expropriação objetiva-material, é expropriada da própria razão? Enquanto para Habermas a intersubjetividade parece circunscrita ao horizonte da cultura, conceito no qual tudo cabe, inclusive o que depõe contra o conceito, porque não há barbárie sem mediação cultural, para Paulo Freire a dialogicidade, ela mesma, ao partir do mundo real da vida, da opressão, não pode operar de forma libertadora senão também pela via contracultural.
José Comblin, teólogo belga duplamente exilado pelas ditaduras do Brasil e do Chile, uma das vozes mais consistentes da teologia latino-americana da libertação e autor do mais completo diagnóstico da ideologia da segurança nacional, aprendeu no Nordeste do Brasil, onde com os esfarrapados construiu a Teologia da Enxada, que o fato de a cultura ser percebida e sentida pelos oprimidos como uma forma de prisão (...) não é fato novo. Já nas origens do cristianismo, no próprio mundo helênico, os cristãos dos primeiros séculos perceberam a cultura greco-romana como uma força de escravidão. Converter-se ao cristianismo era sacudir o jugo de dominação da cultura grega (1996, p. 668).
(...) a cultura dos pobres torna-os passivos, temerosos, tímidos, medrosos: a sua cultura faz com que desconfiem de qualquer novidade, desconfiem mais ainda de si próprios e confiem em líderes que sabem falar, que sabem mandar. A sua cultura é feita para a submissão, a aceitação do autoritarismo, para o clientelismo (idem, ibidem, 1996, p. 666).
No texto do Manifesto comunista, de 1848, Engels e Marx (1998, p. 25) igualmente reconheciam que o temor do sujeito social burguês em relação à cultura que resultava do modo comunista de produção da vida material e espiritual era, de forma fraudulenta, associada à destruição da assim chamada cultura geral, pretensamente universal. Lutar contra a exploração convertia-se, desse modo, num atentado contra a cultura:  Todos os argumentos dirigidos contra o modo comunista de produção e de apropriação dos produtos materiais foram igualmente estendidos à produção e à apropriação dos produtos espirituais.
A história, assim o define Agnes Heller, é a “substância da sociedade”. A força epistêmica da Pedagogia do oprimido de Paulo Freire reside precisamente nessa aposta ontológica explicitada por Heller: o homem, no caso o oprimido, como sujeito histórico de sua emancipação. Afinal, para pensar com Heller (1989, p. 2): 
A sociedade não dispõe de nenhuma substância além do homem, pois os homens são os portadores da objetividade social, cabendo-lhes exclusivamente a construção e transmissão de cada estrutura social. Mas essa substância não pode ser o indivíduo humano, já que esse – embora a individualidade seja a totalidade de suas relações sociais – não pode jamais conter a infinitude extensiva das relações sociais. Nem tampouco essa substância se identifica com o que Marx chamou de “essência humana”. Veremos que a “essência humana” é também ela histórica; a história é, entre outras coisas, história da explicitação da essência humana, mas sem identificar-se com esse processo. A substância não contém apenas o essencial, mas também a continuidade de toda a heterogênea estrutura social, a continuidade dos valores. Por conseguinte, a substância da sociedade só pode ser a própria história. 
Ao pensar a linguagem a partir do mundo, não de um mundo abstrato, mas do mundo social da opressão e do silêncio, Paulo Freire percebeu que a “incapacidade” do oprimido dizer o mundo derivava mais do mundo do que da linguagem. Se a linguagem demarca os limites do mundo, como preconiza Wittgenstein – muito próximo de Habermas e nunca frequentado por Paulo Freire –, a compreensão da linguagem permanece a meio caminho entre a metafísica e a dialética, mas sempre inclinada a se distanciar do aquém histórico e voltar-se ao além abstrato. A dialogicidade do ato educativo em Paulo Freire extrapola o mundo da linguagem porque nenhuma situação ideal de fala, como quer Habermas, reúne em si mesma a potência requerida pelo agir comunicativo.  A opressão que pesa sobre a vida e a alma do oprimido, inclusive sob a forma do mutismo, do silêncio, não tem sua origem na linguagem, mas nas relações sociais, materiais, subjetivo-objetivas da opressão real.
No mundo social, nenhuma relação cognitiva ocorre de forma mecânica ou metafísica. Entre o empirismo e o racionalismo há sempre uma natureza humana socialmente determinada. Mesmo ocultas, as mediações existem. Mesmo submetido ao que Karel Kosik denominava de mundo da pseudoconcreticidade, não há como pensar o mundo fora das determinações que o fazem como mundo subjetivo, mundo objetivo e mundo social, sem que seja possível abstraí-lo dessa tríplice determinação. Essa tríplice determinação pode igualmente ser pensada por meio do par natureza-cultura, mas nenhuma via de objetivação pode negar ou prescindir da centralidade da categoria trabalho.
Ao pensar a Pedagogia do oprimido, com o oprimido e a partir do mundo do oprimido, Paulo Freire não era movido apenas pela teleologia da objetivação lógica do mundo, mas antes pela dialogicidade que, mediante o trabalho, constituiu o homem como ser social. Linguagem para mim é mediação, habitação secundária do ser, para contrariar Heidegger. O trabalho, sim, é verdadeira morada ontológica do ser social. Por que, na Pedagogia do oprimido de Paulo Freire, a concreção materialmente definida do tijolo tem precedência ontológica sobre a sua representação imagética ou vocabular? Porque o tijolo, antes de ser palavra é relação de trabalho. Na pedagogia dialógica do oprimido o tijolo (síntese de múltiplas determinações) funciona como ponto de partida do reconhecimento do trabalho como princípio educativo. Não há, por mais que o sujeito social burguês insista em desqualificar e neutralizar a potência ontológica da pedagogia dialógica do oprimido, como desconhecer o tijolaço epistêmico com o qual Paulo Freire atingiu de forma certeira os fundamentos de toda pedagogia burguesa. Daí o ódio de classe contra esse nordestino tecido com a mais elevada fibra do Nordeste irredento. Mas bem o sabe a sabedoria do povo: não se joga pedra em mangueira que não dá fruto. 
Ao criticar a natureza mecânica e infantilizante das práticas de alfabetização de adultos, Paulo Freire (1980, p. 41) se propõe
(...) levar a termo uma alfabetização direta, ligada realmente à democratização da cultura e que servisse de introdução; ou, melhor dizendo, uma experiência suscetível de tornar compatíveis sua existência de trabalhador e o material que lhe era oferecido para a aprendizagem. Verdadeiramente, só uma paciência muito grande é capaz de suportar, depois das dificuldades de uma jornada de trabalho, as lições que citam a “asa”, “Pedro viu a asa”, “a asa é do pássaro”; ou as que falam de “Eva e as uvas” a homens que, com frequência, sabem pouquíssimo sobre Eva e jamais comeram uvas.
Somente seria possível um regime de complementação entre a teoria do agir comunicativo e a pedagogia dialógica do oprimido pela mediação da luta de classes, em Habermas diluída pela dialética mitigada e abstrata entre mundo da vida e mundo sistêmico. Não se trata de questão menor, de natureza estritamente lógica ou conceitual. Os nomes não são neutros e podem sim contribuir para o velamento das contradições reais. Pensador da primeira geração da Teoria Crítica, Horkheimer (2015, pp. 182 e 197), a propósito da discussão sobre o conceito de filosofia, admite que
As definições adquirem seus sentidos plenos no decorrer do processo histórico. Elas não podem ser usadas inteligentemente a não ser que aceitemos humildemente que suas penumbras não são facilmente penetráveis por atalhos linguísticos. Se, por medo de possíveis mal-entendidos, concordamos em eliminar os elementos históricos e passamos a oferecer sentenças supostamente atemporais como definições, negamos a nós mesmos a herança intelectual legada à filosofia desde o início do pensamento e da experiência.
A filosofia é o esforço consciente de costurar todo nosso conhecimento e compreensão em uma estrutura linguística na qual as coisas sejam chamadas por seus nomes corretos.

          Se de um lado Pedro Abelardo é visto, no plano da linguagem, como o mais dialético dos pensadores medievais, haja vista a saída filosófica que construiu diante da aporia posta pelas disputas entre nominalismo e realismo para a resolução da questão dos universais; de outro, no plano da proposição de uma pedagogia dialógica do oprimido, esse protagonismo dialético cabe, com a devida justiça epistêmica, ao pensador Paulo Freire.  Se para Pedro Abelardo o universal não poderia ser reduzido à instância do nome, como queria o nominalismo, nem alçado ao estatuto de substância verdadeiramente objetiva como pretendia o realismo metafísico, mas antes uma síntese dialética entre o particular e o universal, porque o nome, sem deixar de ser nome particular ligado ao mundo ou à ideação do mundo, também carrega em si o universal de propriedades comuns,  para Paulo Freire, o oprimido, igualmente carrega em si, como síntese concreta e no particular de sua condição oprimida,  a opressão universal do oprimido como classe. O oprimido tem nome, sim, mas além da identidade pessoal que o nome guarda, possui uma identidade de classe social oprimida impossível de ser objetivada nos limites da subjetividade do nome. O oprimido não se liberta sozinho nem a classe poderá libertá-lo sem que nele e por ele a condição de classe em si, mas ainda inconsciente como classe, faça o devir em direção à classe para si, consciente de seu poder social.
Lida a partir da ótica do oprimido como classe a teoria habermasiana do agir comunicativo, a despeito da crítica à natureza da prevalente razão instrumental, com sua reconhecida funcionalidade ao sistema de exploração do trabalho e à administração (colonização) do mundo da vida, crítica ademais não contraditória aos objetivos da pedagogia dialógica do oprimido, tem, não obstante, um intransponível ponto cego, que decorre de sua destinação abstrata a um sujeito igualmente abstrato. Segundo Feuerbach, pensador essencial ao projeto marxiano de objetivar e ampliar em bases históricas o conceito de alienação, quem fala, se dirige a pessoas, enquanto quem escreve dirige-se a espíritos. Paulo Freire parece divergir da afirmação do autor da Essência do cristianismo, porque a força dialógica da escrita de sua Pedagogia do oprimido longe está de se dirigir a espíritos ou a sujeitos abstratos. O oprimido como pessoa e como classe, o que não ocorre em Habermas, é ao mesmo tempo protagonista e destinatário da pedagogia dialógica de Paulo Freire. 
II - O ESTADO OLIGÁRQUICO BRASILEIRO E A REGRESSIVA POLÍTICA DE ÓDIO ORGANIZADA CONTRA PAULO FREIRE E SUA PEDAGOGIA DIALÓGICA DO OPRIMIDO 

          Não há caminho para a pedagogia dialógica do oprimido fora do método da luta de classes. Se querem, como preconiza o obscurantismo desses tempos de ódio ao pensamento, de aversão à teoria, de eclipse da razão, conferir obsolescência ao conceito de luta de classes ou tornar anacrônica a Pedagogia do oprimido de Paulo Freire, basta, nos limites liberais da democracia social, conferir efetividade substantiva ao Estado Democrático de Direito, formalmente assegurado na Constituição de 1988. Mas como pensar plausível essa efetividade mediana, de uma democracia liberal, se de forma contra-constitucional o Estado realmente existente é o Estado Oligárquico de Privilégios. Quanto a mim, que aprendi com o Mouro de Trier que “o executivo do Estado não é mais do que um comitê para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa” (Marx, 1998, p. 7), descreio até mesmo dessa concessão medianamente liberal e democrática. Por sua natureza burguesa, de classe, o Estado será sempre incompatível com a democracia e com o direito dos oprimidos. Por sua orientação classista, desde os “esfarrapados do mundo”, seria inevitável que a pedagogia dialógica do oprimido de Paulo Freire não se confrontasse com a secular opressão das oligarquias nordestinas. Seguindo a argumentação de Jacques Rancière (2014, pp. 91-92) em seu O ódio à democracia, devemos considerar
(...) as coisas em ordem. O que queremos dizer exatamente quando dizemos que vivemos em democracias? Estritamente entendida, a democracia não é uma forma de Estado. Ela está sempre aquém e além dessas formas. Aquém, como fundamento igualitário necessário e necessariamente esquecido do Estado oligárquico. Além, como atividade pública que contraria a tendência de todo Estado de monopolizar e despolitizar a esfera comum. Todo Estado é oligárquico (grifo nosso).

          O Estado oligárquico brasileiro é a ponte obscura e regressiva que liga 1964 a 2019 na política oficial de ódio e ostracismo organizada contra a pessoa e a pedagogia dialógica do oprimido de Paulo Freire. O grande temor das oligarquias nordestinas, do coronelismo, do latifúndio secular, se organizou nas frentes de ódio político e repressivo para destruir o projeto popular da educação como prática de liberdade pessoal e coletiva que Paulo Freire começou a semear no Brasil a partir das cercas feitas de ignorância e opressão em que vivia prisioneiro o povo brasileiro. A ditadura empresarial-militar, de 1964, sob patrocínio e guarda dos Estados Unidos, destruiu desde as raízes as sementes de esperança do povo brasileiro tornar-se capaz de fazer a leitura crítica e autônoma do mundo e da palavra. As elites não poderiam admitir que os oprimidos, eles mesmos, tomassem para si o protagonismo epistemológico, político e educativo como sujeitos da própria emancipação. Hoje, nesse 2019, 55 anos depois de 1964, o ódio oligárquico contra Paulo Freire e seu projeto de uma pedagogia dialógica do oprimido – nunca de fato assumida como política educacional do Estado brasileiro – renasce mais obscurantista do que nos anos de 1960.      
Não leitor de Wittgenstein, e frequentador da ontologia marxiana do ser social, Paulo Freire de forma não diretiva responde ao autor do Tractatus – para quem os limites da linguagem definem os limites do mundo –que na relação entre mundo e linguagem cabe ao mundo, em instância última, definir os limites da linguagem. Se a linguagem oprime, não é exclusivamente nela que se gera a opressão, mas no mundo, nas relações sociais que interditam o oprimido em sua capacidade de objetivar o mundo da opressão. Não se desoprime a linguagem sem desoprimir o mundo. Não se cura a linguagem sem curar o mundo.  Por que tanta receptividade a Habermas e sua intersubjetividade e tanto ódio à dialogicidade de Paulo Freire se entre ambos, ainda que por procedimentos distintos, mas não antagônicos, há mais possibilidade de diálogo do que de silêncio? Numa República Federativa que constitucionalmente se estatui como Estado Democrático de Direito como garantir às classes oprimidas o acesso à comunidade ideal de fala sem que se supere a opressão da vida material e espiritual?
Como intelectual coletivo e convicto de sua opção de classe, Paulo Freire, leitor e parceiro de Marx, tinha consciência do preço político e pessoal a pagar ao pensar como classe o oprimido e nele estabelecer a centralidade ontológico-social-pedagógica de sua pedagogia dialógica do oprimido. A consciência dos opressores é presidida pelo ódio de classe. Paulo Freire registra em sua Pedagogia do oprimido o mal-estar que o conceito de classe e, consequentemente, de luta de classes provoca entre a classe dos opressores (2018, pp. 191-192):
Este é outro conceito que aos opressores faz mal, ainda que, a si mesmos, se considerem como classe, não opressora, obviamente, mas “produtora”.
Não podendo negar, mesmo que o tentem, a existência das classes sociais, em relação dialética umas com as outras, em seus conflitos, falam da necessidade de compreensão, de harmonia, entre os que compram e os que são obrigados a vender o seu trabalho.
Harmonia, no fundo, impossível pelo antagonismo indisfarçável, que há entre uma classe e outra.
Pregam a harmonia de classes como se estas fossem aglomerados fortuitos de indivíduos que olhassem, curiosos, uma vitrina numa tarde de domingo.
A harmonia viável e constatada só pode ser a dos opressores entre si. Estes, mesmo divergentes e, até em certas ocasiões, em luta por interesses de grupos, se unificam, imediatamente, ante uma ameaça à classe.
Da mesma maneira, harmonia do outro polo só é possível entre seus membros na busca de sua libertação. Só em casos excepcionais, não só é possível, mas até necessária, a harmonia de ambos para, passada a emergência que os uniu, voltarem à contradição que os delimita e que jamais desapareceu na emergência desta união. 
Além da impossível harmonia de classes, outro ardil político do opressor que a pedagogia dialógica do oprimido toma como objeto de reflexão crítica consiste em disseminar por meio do cooptação a divisão entre os oprimidos. Esse processo divisionista liga-se ao que, no texto inacabado dos Manuscritos de Paris, Marx atribuía ao dinheiro como operador universal da divisão. Segundo Paulo Freire (2018, p. 194-195),
A necessidade de dividir para facilitar a manutenção do estado opressor se manifesta em todas as ações da classe dominadora. Sua interferência nos sindicatos, favorecendo certos “representantes” da classe dominada que, no fundo, são seus representantes, e não de seus companheiros; a “promoção” de indivíduos que, revelando certo poder de liderança, podiam significar ameaça e que, “promovidos”, se tornam “amaciados”; a distribuição de benesses para uns e de dureza para outros, tudo são formas de dividir para manter a “ordem” que lhes interessa.
Formas de ação que incidem, direta ou indiretamente, sobre um dos pontos débeis dos oprimidos: a sua insegurança vital que, por sua vez, já é fruto da realidade opressora em que se constituem.
Inseguros na sua dualidade de seres “hospedeiros” do opressor, de um lado, rechaçando-o; do outro, atraídos por ele, em certo momento da confrontação entre ambos, é fácil àquele poder obter resultados positivos de sua ação divisória.
Leitor e amigo de Albert Memmi (e quem ainda lê Albert Memmi?), autor de uma obra indispensável para se compreender a estrutura da consciência do colonizado, O retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador, prefaciado por Jean-Paul Sartre, Paulo Freire sabia da necessidade de elaboração de uma psicanálise da relação opressor-oprimido tal como ocorrera a Memmi para compreender a relação colonizador-colonizado: Segundo relata o tunisiano Memmi (2007, pp. 21-22):  
Este livro foi recebido com tanta preocupação e raiva quanto     entusiasmo.
Todos concordavam em caracterizá-lo como uma arma, uma ferramenta de combate contra a colonização; o que ele se tornou, é verdade.
(...) sou incondicionalmente contra todas as opressões; vejo na opressão o flagelo maior da condição humana, que desvia e vicia as melhores forças do homem; oprimido e opressor, aliás, pois, como também veremos, “se a colonização destrói o colonizado, ela apodrece o colonizador”.
Em vez de ainda se ler este livro como um objeto de escândalo, desejo, ao contrário, que se examine calmamente por que as conclusões que se impuseram a mim continuam a ser espontaneamente reencontradas por tantos homens, em situações similares.
Ao hospedar-se na consciência do oprimido o opressor coloniza, parasita e lhe impõe uma identidade feita de heteronomia cognitiva próxima ao que Adorno denominava de semiformação – ou meia educação, conforme Durmeval Trigueiro. Mas diferentemente de Adorno, vale ressaltar que Paulo Freire e Durmeval Trigueiro conferiam a esse processo de inclusão rebaixada que caracteriza a semiformação – o “cultivo de si mesmo sem si mesmo”, conforme Adorno (2010, p. 33) – a necessária origem de classe do oprimido. O ponto de partida da psicanálise social da relação opressor-oprimido implica – por meio da dialogicidade da pedagogia do oprimido – trabalhar mediações teóricas e práticas com as quais o oprimido como pessoa e como classe possa apropriar-se subjetivamente de si e do mundo. Não existe opressão generosa nem generosidade possível na relação opressor-oprimido. A opressão se alimenta da necrofilia. Não há salvação para o opressor sem que o oprimido seja o protagonista da luta contra opressão. Como é possível, segundo Paulo Freire, aos opressores, de forma messiânica, aparecerem aos oprimidos “como salvadores dos homens a quem desumanizam”? Conforme bem nota Paulo Freire (2018, pp. 196-197),
No fundo, porém, o messianismo contido na sua ação não pode esconder o seu intento. O que eles querem é salvar-se a si mesmos. E salvar sua riqueza, seu poder, seu estilo de vida, com que esmagam os demais.
O seu equívoco está em que ninguém se salva sozinho nem como indivíduo, nem como classe opressora, mas com os oprimidos, pois estar contra eles é o próprio da opressão.
Numa psicanálise da ação opressora talvez se pudesse descobrir, no que chamamos, no primeiro capítulo, de falsa generosidade do opressor, uma das dimensões de seu sentimento de culpa. Com esta generosidade falsa, além de estar pretendendo a manutenção de uma ordem injusta e necrófila, estará querendo “comprar” a sua paz. Acontece que paz não se compra, se vive no ato realmente solidário, amoroso, e este não pode ser assumido, encarnado, na opressão.
Desta maneira, para dividir, os necrófilos se nomeiam a si mesmos biófilos e aos biófilos de necrófilos. A história, contudo, se encarrega sempre de refazer estas “nomeações”.
No Brasil em ritmo de barbárie e de regressão social desses tempos de obscurantismo, Paulo Freire tornou-se vítima de ódio socialmente organizado promovido por segmentos de várias esferas do poder, do econômico ao religioso e, mais grave, de setores da política educativa oficial; ódio que atinge tanto a pessoa e a dignidade do autor da Pedagogia do oprimido quanto a pedagogia dialógica do oprimido de sua autoria. Se é possível identificar ódio em Paulo Freire, será o ódio a todas as formas de opressão, ódio ontológico à desumanidade promovida pelo sociometabolismo do sistema do capital. Leitor de Lukács, Paulo Freire certamente estaria de acordo com as palavras que o pensador da ontologia do ser social imprimiu no Prefácio de 1967 à História e consciência de classe (2003, p. 5):
Nunca incorri no erro de me deixar impressionar pelo mundo capitalista, o que diversas vezes pude observar em muitos operários e intelectuais pequeno-burgueses. O ódio cheio de desprezo que sentia desde os tempos de infância pela vida no capitalismo preservou-me disso.

III – PAULO FREIRE E A PEDAGOGIA DIALÓGICA DO OPRIMIDO COMO ATO DE CONHECIMENTO, EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO E PRÁXIS LIBERTADORA

          Dentre as notas essenciais do pensamento pedagógico de Paulo Freire, cujo fio condutor é sua pedagogia dialógica do oprimido, está a sua concepção de educação como teoria do conhecimento. Desde o basilar processo de alfabetização de adultos, impedidos do acesso às letras em razão de sua condição social de classe oprimida e que marca o lugar social de origem de sua intervenção como intelectual orgânico das classes subalternas, a pedagogia freireana se constitui e se afirma com o estatuto de uma teoria do conhecimento: teoria crítica fundada no princípio ontológico e lógico da precedência da leitura do mundo sobre a leitura da palavra. Sobre esse processo, que adquiriu cidadania pedagógica e epistêmica sob o termo “conscientização”, Paulo Freire num título com igual nominação, esclarece (1980, p. 25):
Acredita-se geralmente que sou autor deste estranho vocábulo “conscientização” por ser este o conceito central de minhas ideias sobre a educação. Na realidade, foi criado por uma equipe de professores do INSTITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS BRASILEIROS por volta de 1964. Pode-se citar entre eles o filósofo Álvaro (Vieira) Pinto e o professor Guerreiro. Ao ouvir pela primeira vez a palavra conscientização, percebi imediatamente a profundidade de seu significado, porque estou absolutamente convencido de que a educação, como prática de liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade (grifo nosso).
Formado em Direito, mas antes de tudo pensador dialético, Paulo Freire desde suas primeiras intervenções no campo educativo, notadamente no processo de alfabetização de adultos, percebeu a impossibilidade de separar educação de conscientização, educação de emancipação, educação de prática de liberdade. Pagou um preço elevado por ter plantado com as sementes da práxis no Nordeste tostado e agredido pela combinação entre ignorância como projeto e opressão como forma de vida aquilo que Immanuel Kant, em seu texto programático do iluminismo – Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento (Aufklaerung), de 1783 – havia proposto, a partir de sua temperada e tranquila Königsberg: a saída do homem da condição de menoridade por meio do esclarecimento. A maioridade, portanto, implicava a garantia universal da humanidade ao uso público da razão.
Paulo Freire foi além de Kant, porque conferiu um conteúdo de classe à menoridade que, de forma abstrata, o autor da Crítica da razão pura associava à covardia ou à falta de decisão e coragem do indivíduo de fazer uso da razão. Em 1964, quase 200 anos depois do texto kantiano, Paulo Freire é expulso do Brasil por ter feito a ponte entre Königsberg e Angicos pela mediação do esclarecimento. Qual foi o crime de Paulo Freire? Dizer às classes oprimidas do Brasil, a partir da experiência pioneira de alfabetização iniciada com os oprimidos de Angicos, no Nordeste, que o direito ao uso público da razão preconizado por Kant só mereceria estatuto de universalidade se alcançasse o oprimido-pessoa e o oprimido-classe sob pena de tal exclusão configurar, como o próprio Kant afirmava, um crime de lesa-humanidade. Afinal, avançar no conhecimento como Aufklaerung é, para Kant (1985, pp. 108,110), uma determinação original da natureza humana:
Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar no caminho do esclarecimento [“Aufklaerung”]. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço.   
Ao pensar a educação como ato de conhecimento, Paulo Freire confere ao quefazer educativo um estatuto epistemológico ao qual, de forma crítica, deve submeter-se a teoria e a prática do que ele denomina de pedagogia bancária. O mecanismo da pedagogia bancária opera pela supressão da dialogicidade, constitutivo ontológico de toda educação como prática de liberdade. A dialogicidade da pedagogia do oprimido, além de pensar o ato educativo como um quefazer entre sujeitos, pensa os sujeitos desse ato como sujeitos sociais. Se na pedagogia bancária o professor é o sujeito cartesiano inflado pela suposta posse do saber e o aluno o objeto empírico-receptivo desse saber não dialetizado, na pedagogia dialógica do oprimido o saber é pensado sob o critério da práxis em que se situam e se definem os sujeitos dessa relação. A prática pensada reside, como assinala Paulo Freire (1978, p. 65), na prática pedagógica de pensar o que se pensa, o que se fala e o que se faz: A prática de pensar a prática é a melhor maneira de aprender a pensar certo. O pensamento que ilumina a prática é por ela iluminado, tal como a prática que ilumina o pensamento é por ele iluminado (1978, p. 65).
O aprendizado da leitura e da escrita, como um ato criador, envolve aqui, necessariamente, a compreensão crítica da realidade. O conhecimento do conhecimento anterior a que os alfabetizandos chegam ao analisar a sua prática concreta, abre-lhes a possibilidade de um novo conhecimento. Conhecimento novo, que indo mais além dos limites do anterior, desvela a razão de ser dos fatos, desmistificando assim as falsas interpretações dos mesmos. Agora, nenhuma separação entre pensamento-linguagem e realidade; daí que a leitura de um texto demande a “leitura” do contexto social a que se refere (idem, ibidem, p. 70).
Para a pedagogia dialógica do oprimido, fundada na práxis de sujeitos históricos, numa sociedade de classes e socialmente condicionados pela história e pela geografia, é impossível pensar o quefazer educativo como um quefazer neutro. A propósito, Paulo Freire (1978, p. 70) lembra que
Os defensores da neutralidade da alfabetização não mentem quando dizem que a clarificação da realidade simultaneamente com a alfabetização é um ato político. Falseiam, porém quando negam o mesmo caráter político à ocultação que fazem da realidade.
No prefácio à Pedagogia do oprimido – Aprender a dizer sua palavra –, escrito em 1967, no Chile, Ernani Maria Fiori sustenta que em Paulo Freire o método se define como “um método de cultura popular: conscientiza e politiza. Não absorve o político no pedagógico, mas também não põe inimizade entre educação e política” (2018, p. 29). Animal político, como definia Aristóteles, em Paulo Freire não pode o homem, menos ainda o oprimido, prescindir da dimensão política da educação. A pedagogia dialógica do oprimido aposta que
Ao povo cabe dizer a palavra de comando do processo histórico-cultural. Se a direção racional de tal processo já é política, então conscientizar é politizar. E a cultura popular se traduz por política popular; não há cultura do povo sem política do povo (idem, ibidem, p. 29).
O caráter emancipatório da pedagogia dialógica do conhecimento resulta e se fundamenta na relação lógica e ontológica entre educação como teoria do conhecimento e educação como prática de liberdade. Com Marx, Paulo Freire aprendeu a lição epistemológica exposta lá na Crítica da filosofia do direito de Hegel (2005, pp. 151-152):
É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material (grifo nosso) quando penetra nas massas.
As revoluções precisam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só se realiza num povo na medida em que é a realização das suas necessidades.
Não basta que o pensamento procure realizar-se; a realidade deve igualmente compelir ao pensamento.
Na pedagogia dialógica do oprimido a verdade da palavra não resulta de uma operação intelectual, ou da adequação, como quer a teoria clássica da verdade, entre o conceito e a realidade. A palavra se faz verdadeira na e pela práxis. Ação e reflexão é a baliza ontológica e social da verdade da palavra. Segundo Paulo Freire (2018, p. 107),
Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimensões: ação e reflexão, de tal forma solidárias, em uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra. Não há palavra verdadeira que não seja práxis (grifo nosso). Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo. 
Abstraída da práxis histórica emancipatória, que lhe confere, portanto, força ontológica, a palavra converte-se em verbalismo. É a práxis histórica emancipatória o critério e o fundamento da palavra como mediação do ato educativo. Se o verbalismo esvazia a palavra, o voluntarismo a torna ociosa. Na antepenúltima nota de rodapé da Pedagogia do oprimido Paulo Freire relata um episódio que dá a medida de sua preocupação ontológica acerca da verdade da palavra (2018, p. 243):
Certa vez, em conversa com o autor, um médico, dr. Orlando Aguirre, diretor da Faculdade de Medicina de uma universidade cubana, disse: “A revolução implica três ‘P’ – Palavra, Povo e Pólvora. A explosão da Pólvora, continuou, aclara a visualização que tem o povo de sua situação concreta, em busca, na ação, de sua libertação”.
Pareceu-nos interessante observar, durante a conversação, como este médico revolucionário insistia na palavra, no sentido em que a tomamos neste ensaio (a Pedagogia do oprimido). Isto é, palavra como ação e reflexão – palavra como práxis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS DISCERNIMENTOS DA PRÁXIS
Numa sociedade de classes como a brasileira, em que a desigualdade social assume sua face mais degradada, a ponto de quase interditar a compreensão da luta de classes como fato sociológico, somente uma pedagogia radical como a pensada e vivida por Paulo Freire pode recuperar o estatuto ontológico do quefazer educativo. E o que significa ser radical? A resposta radical a essa questão não pode prescindir da contribuição do mais radical dos pensadores da ontologia social, Karl Marx (2005, p. 151), ao reconhecer que “ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem”.
A pedagogia dialógica do oprimido não é apenas uma teoria do quefazer educativo, menos ainda uma teoria da opressão, mais do que isso: é uma PRÁXIS, em que o ontológico e o lógico se dialetizam a partir do oprimido como pessoa e como classe social rumo a uma forma de vida social em que as diferenças – tão cara aos pós-modernos – continuarão a existir, mas nunca sob a degradante barbárie da desigualdade social. Somente nessa nova forma de vida social é possível ao indivíduo social afirmar sua vocação ontológica. Paulo Freire chamaria a isso de genfificação, o contrário da reificação inerente ao sociometabolismo do sistema do capital.
O autor deste artigo teve oportunidade de conhecer pessoalmente Paulo Freire em 1981, quando pela primeira vez esteve em Manaus. À época, era estudante de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas. Muito tempo depois, já professor dessa Universidade, encontrou em seu desorganizado arquivo as anotações que fizera da conferência que Paulo Freire, numa tarde tipicamente manaura, quente, mas sobretudo marcada pela militância e esperança dos anos 1980, no completamente lotado Auditório Dr. Zerbine, da antiga Faculdade de Ciências da Saúde. Dessas anotações, hoje perdidas, como igualmente perdido (por empréstimo ou subtração) o exemplar autografado pelo autor, edição capa dura, da Pedagogia do oprimido, restou na memória uma lição que resiste como um princípio – e princípios nunca envelhecem – do quefazer educativo ali afirmado por Paulo Freire: é sempre necessário  começar por compreender a compreensão do outro. Paulo Freire, presente! Nenhum direito a menos. Nenhum passo para trás. Só a luta muda a vida.

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WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução, Apresentação e Ensaio Introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo, SP: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.
*Professor do Departamento de Filosofia e do Mestrado Profissional em Filosofia do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e Jaguaribe


Publicado: 06/12/2019

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