Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


A DIVINA COMÉDIA: UMA REFLEXÃO SOBRE A LITERATURA COMO FONTE HISTÓRICA

Autores e infomación del artículo

Cristina Ennes da Silva*

Alexandro Buffon*

Universidade Feevale, Brasil

Email: crisennes@feevale.br


Resumo: As relações entre História e Literatura vêm de longo tempo, porém nas décadas recentes intensificou-se o debate existente entre os dois discursos. Refletimos, neste artigo, acerca desta proximidade, discutindo as relações entre ficção e realidade, o uso de uma obra literária como fonte histórica e o papel do historiador frente a ela. Neste sentido, busca-se na obra de Dante Alighieri, a Divina Comédia, a constituição da perspectiva interdisciplinar da literatura como fonte de pesquisa histórica considerando que a obra literária expressa, em alguma medida e alguns aspectos, o pensamento medieval ocidental.
Palavras-chave: Ficção, História, Literatura, Divina Comédia, Fonte de pesquisa

THE DIVINE COMEDY: A REFLECTION ON LITERATURE AS A HISTORICAL SOURCE
Abstract: The relations between History and Literature come from a long time, but in the recent decades intensified the debate between the two discourses. We discuss in this article about this proximity, discussing the relations between fiction and reality, the use of a literary work as historical source and the role of the historian in front of it. In this sense, the work of Dante Alighieri, the Divine Comedy, seeks the constitution of the interdisciplinary perspective of literature as a source of historical research considering that the literary work expresses, in some measure and some aspects, the western medieval thought.
Keywords: Fiction, History, Literature, Divine Comedy, Search Source.

La Divina Comedia: una reflexión sobre la literatura como fuente histórica

Resumen: Las relaciones entre Historia y Literatura vienen de largo tiempo, pero en las décadas recientes se ha intensificado el debate existente entre los dos discursos. En este artículo, reflexionamos sobre esta proximidad, discutiendo las relaciones entre ficción y realidad, el uso de una obra literaria como fuente histórica y el papel del historiador frente a ella. En este sentido, se busca en la obra de Dante Alighieri, la Divina Comedia, la constitución de la perspectiva interdisciplinaria de la literatura como fuente de investigación histórica considerando que la obra literaria expresa, en alguna medida y algunos aspectos, el pensamiento medieval occidental.
Palabras claves: Ficción, Historia, Literatura, Divina Comedia, Fuente de búsqueda

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Cristina Ennes da Silva y Alexandro Buffon (2019): “A divina comédia: uma reflexão sobre a literatura como fonte histórica”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (febrero 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/02/literatura-fonte-historica.html

//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1902literatura-fonte-historica

  1. INTRODUÇÃO

A contribuição da literatura para com o campo da História, é um debate que vem sendo feito há longo tempo por profissionais pertencentes às duas áreas. Duas formas de registrar o discurso do homem, dois campos do conhecimento que mantiveram relações próximas, o que gerou uma grande variedade de estudos, discutindo a possibilidade de uso em conjunto das mesmas, e permitindo que diferentes pontos de vista sejam explorados. Nesse sentido, refletimos neste estudo sobre aproximações possíveis, bem como a interação de saberes na busca de um entendimento interdisciplinar de uma presumível apropriação da literatura pela história
As transformações ocorridas no século XX nos estudos históricos, mudando os paradigmas tidos como certos, que interpretavam a realidade social apenas por um ponto de vista, foram decisivos para a aproximação das duas áreas vistas, até então, como campos opostos e sem possibilidade de interlocução. Segundo Paul Thompson,

Antes deste século, o enfoque da história era essencialmente político: uma documentação da luta pelo poder, onde pouca atenção mereceram as vidas das pessoas comuns, ou as realizações da economia ou da religião, a não ser em tempos de crise, como a reforma, a guerra civil inglesa, ou a revolução francesa. O tempo histórico dividia-se segundo reinados e dinastias. (1992, p.22)

Esta quebra da forma tradicional de se escrever a História, iniciou-se no século XX, pela Escola dos Annales, fundada em 1929 por Lucien Febvre e March Bloch, que veio a contrapor-se a historiografia da escola metódica, que relegava para o esquecimento o conjunto das complexidades humanas. Ao invés disso, voltava-se quase que exclusivamente para a narrativa dos acontecimentos, trazendo o que Peter Burke (1992) indica como sendo uma visão de cima, focada nos grandes personagens da História, relegando o restante das populações a meros espectadores. Ao dirigir seu interesse para “... as pessoas comuns” (BURKE, 1992. p.13) a Nova História começa então a se dedicar por sua vez, ao que é então chamado de a “... História vista de baixo”. (p.12). No mesmo sentido, observa-se uma ampliação do interesse histórico na atividade humana como um todo e um esgotamento dos modelos ditos como tradicionais que dão paulatiidnte, como apontado por Pesavento (2008) lugar a uma nova visão de cultura visto que,

Não se trata de fazer uma História do pensamento ou de uma História Intelectual, ou ainda mesmo pensar uma História da cultura nos velhos moldes, a estudar grandes correntes de ideias e seus nomes mais expressivos. Trata-se antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. (PESAVENTO, 2008, p.15)

Nasce ai, a valorização do homem comum, ao invés apenas das grandes personalidades, seu modo de sentir, de pensar e as maneiras de notar o mundo, que coletivamente eram elaboradas. Começou-se a ver o indivíduo de uma forma até então pouco explorada. Como postula Chartier (2002), esta nova forma de olhar para o homem e tudo que o cerca, apresenta possibilidades de estudos que haviam permanecidos escondidos, já que, como dito anteriormente, a História até então se destinava quase que exclusivamente a exploração do fator econômico e político.
Assim coma preocupação direcionada à “... toda abrangência da atividade humana...” (BURKE, 1992. p.16), a busca por novas interpretações a respeito do ser humano, fez com que o número de fontes a serem examinadas tenha aumentado consideravelmente, o que trouxe consigo alguns problemas.  A este respeito, Peter Burke (1992) afirma:

Só é razoável admitir que retratar o socialmente invisível (as mulheres trabalhadoras, por exemplo) ou ouvir o inarticulado, a maioria silenciosa dos mortos (entretanto necessários como parte da história total), é um empreendimento mais arriscado do que em geral é o caso na história tradicional. (p.26)

E dentre este novo conjunto de evidências que passam a fazer parte das pesquisas dos historiadores, a Literatura, considerada ficcional e antes vista como de pouca ou nenhuma utilidade para a análise dos fatos ocorridos, torna-se rica e produtiva fonte de pesquisa.
A Literatura, assim como a História, constrói representações sobre o mundo e, portanto deve ser estudada para que se entenda o contexto do momento em que foi produzida. Sendo assim, nessa interdisciplinaridade, se vê que toda produção cultural possui sua carga histórica, pois é construída em determinado período, trazendo consigo as características do mesmo, e, portanto como dito anteriormente, fonte inesgotável de recursos para o historiador.
Sendo então abundante fonte para pesquisa, a Literatura, deve ser estudada, segundo Barros (2010), sabendo-se de antemão que um trabalho artístico como uma obra literária, precisa muitas vezes modificar a realidade para poder torná-la mais atraente para o público. Assim deve-se sempre estar atento para o fato de que não existe obra que transfira a realidade para suas páginas. Como nos diz Sandra Pesavento (2003), a respeito da utilização em conjunto de ambas

Se o historiador estiver preocupado com datas, fatos, nomes de um acontecido, ou se buscar a confirmação dos acontecimentos do passado, a literatura não será a melhor fonte a ser usada... Mas, se o historiador estiver interessado em resgatar as sensibilidades de uma época, os valores, razões e sentimentos que moviam as sociabilidades e davam o clima de um momento dado no passado, ou em ver como os homens representavam a si próprios e ao mundo, a Literatura se toma uma fonte muito especial para o seu trabalho. (p.39)

Ambas podem ser classificadas como gênero literário. A História, inserida na temporalidade e a Literatura, que transforma a História em sua matéria prima, são ambos entendidos aqui como discursos, e sendo usados para retratar o mundo.

  1. HISTÓRIA E LITERATURA.

“Todo ser humano possui um passado. ” (1998, p.22), disse Eric Hobsbawm, ao postular que nada mais ligado a História do que o passado e que este exige um olhar próximo do sacro considerando que “o que é definido como passado é e deve ser claramente uma seleção particular da infinidade daquilo que é lembrado ou capaz de ser lembrado. ” (p.23). Impõe-se aqui, de súbito, uma das variáveis mais dinâmicas do estudo do passado cristalizada na subjetividade do estudo do passado
Cabe então aos historiadores, em seu oficio reconstruir o possível dos acontecimentos vividos, narrando o que ocorreu, recriando formas de pensar e viver o mundo, que não mais pertencem a nossa realidade. Porém há neste trabalho uma peculiar condição: tudo deve ter ocorrido de fato, para ser então reconstruído pela escrita. Assim cabe ao historiador, dar vida novamente a este passado longínquo, sempre segundo seus olhos e suas características próprias, pois segundo Thompson (1992) toda fonte analisada ira derivar da percepção humana e, portanto, será subjetiva. A respeito do ato de analisar um passado, de acordo com suas ideologias, Keith Jenkins (2007), argumenta “ ... que o mesmo objeto de investigação é passível de diferentes interpretações por diferentes discursos; e que, até no âmbito de cada um desses discursos, há interpretações que variam e diferem no espaço e no tempo. (p.27)
Assim, o historiador que a ser percebido como mensageiro da verdade, legitimando um passado, “... dimensão permanente da consciência humana” (HOBSBAWN, 1998, p.22), o qual se tem notícia e acesso através de seus escritos que, sendo uma construção pessoal podem ser entendidos como uma manifestação da perspectiva do historiador como narrador.
Porém, deve-se estar atento que História e passado, mesmo andando juntas, não podem ser confundidos. Como indicado por Jenkins, o passado é o objeto almejado para estudo pela História, porém “... passado e História são coisas diferentes. ” (2007, p.24). Existem independentes um do outro, podem ser repensados, interpretados e discutidos sobre vários ângulos, conforme quem o está analisando. Então, o passado seria o objeto de atenção dos historiadores, que por sua vez ao escreverem sobre ele fazem História, ou seja, a História compreendido como aquilo que é escrito sobre o passado, tornando-se assim o oficio dos historiadores.
Já a Literatura, uma arte calcada na palavra, faz uso da imaginação para recriar sentimentos e espaços, atribuindo novo significado a realidade, reelaborando-a conforme a escolha de seu autor. Ao contrário da História aqui não há uma necessidade de comprovação daquilo que foi ou é tido como o real, porém é necessária a obtenção de um sentido, tendo, portanto aqui uma distinção entre os compromissos de cada narrativa feita com a realidade.
Mas o que seria Literatura? Compagnon (1999) em sua obra O demônio da literatura, faz um apanhado do que seria Literatura explicando a extensão do termo, que pode ser identificado conforme seu argumento “No sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém ... Essa acepção corresponde a noção clássica de “belas-letras” as quais compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a ficção, mas também a história, a filosofia e a ciência, ....” (1999, p.31)
Já Antônio Candido também nos dá sua definição do que é literatura na obra Direito e Literatura, ao dizer “Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. ” (CANDIDO, 2004, p.174)
Compagnon (1999), traz a respeito do termo Literatura e de sua aplicação, curiosa informação. Segundo nos afirma, tem-se no senso comum a ideia de que só é Literatura as obras escritas pelos grandes autores, os grandes clássicos, e, portanto reconhecidos mundialmente. Porém ao fazer isso, estaremos cometendo um erro, pois os romances, os dramas, os poemas e todos os demais gêneros, que não foram por sua vez escritos por consagrados autores, estariam sendo relegados a outro nível.  Assim sendo “Dizer que um texto é literário subentende-se sempre que outro não o é” (p.33). Neste sentido, é em muitos casos aplicado de forma incorreta, pois “...emprega-se, frequentemente, o adjetivo literário, assim como o substantivo literatura, como se ele não levantasse problemas, como se acreditasse haver um consenso sobre o que é literário e o que não é.” (COMPAGNON, 1999, p.29)
A Literatura possui também uma finalidade social, pois através da leitura, formam-se cidadãos, já que na medida em que lendo pode-se compreender o significado do que está escrito e enfim pronunciar-se com a própria voz, pois ao ler, temos potencializada a possibilidade de reavaliar opiniões a partir das novas ideias que são encontradas nas leituras conclusas. Cada leitor possuía sua própria experiência que será colocada e entrará em vigor na hora das leituras que forem feitas, transformando o texto lido em uma nova narrativa.  O leitor então “...lê a sua própria situação...”, considerando que “... é livre, maior, independente; seu objetivo é menos compreender o livro do que compreender a si mesmo através do livro; aliás, ele não pode compreender um livro se não senão se compreende ele próprio graças a esse livro. ” (COMPAGNON, 1999, p.144)
Podemos falar também do nível humanizador que a literatura possui, visto que, a produção literatura dispõe as palavras existentes em um conjunto. “A organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro a se organizar; em seguida a organizar o mundo”. (CANDIDO, 2004, p.177)
O autor ao refletir sobre a recepção de uma obra literária indica que ela jamais é algo inofensivo, e preconiza que ela seria como uma aventura e por isso mesmo, muitas vezes temida “... nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. Daí a ambivalência da sociedade em face dele, suscitando por vezes condenações violentas quando ele vincula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever. ”  (COMPAGNON, 1999, p.176). Constituindo, portanto, como uma forma de descobrir o mundo. Sendo responsável pelo desenvolvimento do homem, a literatura, tendo regras de produção e guardando proximidade com o real ao criar um mundo, tem o poder de reconstruir o que passou, registrando o momento em que se vive e muitas vezes mostrar um futuro, através de uma tentativa de chegar ao verossímil.
Assim tendo como característica o fato de ser um registro das experiências sociais do ser humano, bem como seus anseios, suas visões a respeito do que o cerca e seu modo de agir, a Literatura tem possibilitado ao historiador assumi-la como fonte de pesquisa, já que ambas, respeitando suas características são portadoras da perspectiva de criação de realidades.

  1. O USO DA HISTÓRIA PELA LITERATURA: REALIDADE OU FICÇÃO.

Ao analisar uma obra literária, deve-se ter cuidado e atenção a vários aspectos: a ortografia utilizada pelo autor, às múltiplas variáveis existentes que foram sendo realizadas ao longo dos anos e que podem alterar de forma consistente seu conteúdo, assim como aquilo que foi pretendido dizer. Deve-se também dar atenção à estrutura proposta no texto, a caracterização e o estilo com o qual a obra foi escrita, já que “(...) determinar os efeitos próprios aos diferentes modos de representação, de transmissão e de recepção dos textos é, portanto, uma condição necessária para evitar o anacronismo na compreensão das obras. ” (CHARTIER, 2002, p.206)
Uma obra, para Compagnon (1999), é variável segundo as épocas em que foi feita e as culturas que as produziram. Independentemente de sua abrangência e intencionalidade atende em primeiro lugar aos objetivos e interesses do próprio autor, que deposita nela suas crenças e acima de tudo sua cultura. A interpretação da mensagem pode resultar em diversos entendimentos e interpretações, muitas destas completamente diferentes da intenção original que por ventura, o autor tenha ao escrevê-la.
Leandro Karnal e Flavia Tatsh (2009), afirmam que um texto além das características próprias que possui, sofre inferências e interpretações dos agentes que o leram tornando-o assim, uma construção infinita. Neste sentido, a narrativa constitui-se daquilo que foi escrito pelo autor, assim como, da perspectiva do leitor enquanto receptor da mesma, Compagnon a corrobora a perspectiva ao afirmar que a “...literatura se realiza na leitura” (1999, p.149)
Ela, portanto, é importante forma de expressão de uma sociedade, que a utiliza para poder retratar seu cotidiano, seus costumes e a forma que o mundo é visto e interpretado pelos seus participantes. Antônio Celso Ferreira (2009) afirma assim, que uma obra literária nos revela múltiplas vozes e sendo uma obra de ficção, com o objetivo de entreter o leitor levando-o a uma viagem através de suas páginas, ao manifestar na narrativa sua visão do mundo, suas emoções e suas ideologias, está fortemente ligada ao real. “... toda ficção está sempre enraizada na sociedade, pois é em determinadas condições de espaço, tempo, cultura e relações sociais que o escritor cria seus mundos de sonho, utopias ou desejos, explorando ou inventando formas de linguagem. ” (p. 67).
Ainda fazendo uso dos argumentos de Ferreira (2009) a respeito de como os historiadores alteraram sua percepção a respeito dos textos literários, observamos que “... nas últimas décadas os textos literários passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados para o entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiências subjetivas de homens e mulheres no tempo. ” (FERREIRA, 2009, p. 61)
Ao ver uma obra literária como documento, vale ressaltar o que Roger Chartier (2002) nos diz a respeito das fontes usadas pelos historiadores. Segundo ele qualquer que seja o documento usado, literário ou não, o que se terá em mãos é uma representação1 do real, e ao ser produzido, reafirma o que anteriormente foi dito, de que se trata de algo construído, sendo pautado em regras de produção inerentes a cada momento em que foi criado, formando uma realidade baseada na intencionalidade de quem a criou. Desta forma, Sevcenko infere que, “A literatura, portanto, fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. ” (2003, p.30)
Ao historiador caberia a contextualização da narrativa, para que se possa elucidar o local em que foi produzida, bem como as características inerentes da obra, sua linguagem, a história do autor que pode depositar forte influência em sua escrita de suas experiências, a sociedade em que foi criada, já que o local de produção está inserido indiretamente no autor e nos conceitos colocados na escrita. Cabe então estar atento a estes detalhes para que possa ser feita uma análise criteriosa percebendo como o autor reúne estas questões para enfim criar sua obra.
Assim, sendo o documento analisado a luz da construção de um momento histórico que servirá de fundo a uma história ficcional, tendo em vista as características postas, pode-se verificar a intencionalidade do que foi escrito e ver afinal o quanto da cultura e do tempo está influenciando a obra. Nada é criado do vazio, o escritor ao fazer a representação do mundo real, faz um cruzamento de suas ideologias pessoais e coletivas. A missão do historiador seria então compreender o autor e entendê-lo dentro de um contexto especifico, tendo também que lidar com outra questão que gera muitos debates: O que se está analisando é realidade ou ficção?
Muito se questiona o fato de que uma obra literária ser uma ficção, uma invenção. Considerada por muito tempo, um objeto criado a partir da imaginação do escritor e que, portanto, não possuía em nenhum momento os requisitos para ser considerada uma fonte de estudo histórico, já que não demonstraria a realidade do que descrevia, a produção literária hoje é vista como tendo fortes características do tempo e da cultura de onde é produzida. A respeito desta dualidade realidade/ficção, Pesavento argumenta que

A ficção não seria ... o avesso do real, mas uma outra forma de captá-la, onde os limites da criação e fantasia são mais amplos do que aqueles permitidos ao historiador .... Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação que ela comporta ... o que nela se resgata é a reapresentação do mundo que comporta a forma narrativa. (1995, p. 117)

Várias são as obras produzidas na literatura mundial que elucidam e caracterizam o período em que foram escritas, ou a época em que se desenvolve sua trama. Tendo autor reconhecido, título e data de sua escrita ela possibilita ao historiador, elucidar as características do período constantes na obra. Situando-a em seu momento histórico, pode-se analisar a sociedade que fazia parte do momento em que o documento foi produzido bem como sua relação com as demais estruturas daquele período. Entre as inúmeras possibilidades para exemplificar da conexão entre História e Literatura, nossa escolha recai sobre um marco da literatura medieval italiana: A Divina Comédia de Dante Alighieri. Escrita no século XIV, a obra traz uma perfeita síntese do pensamento do homem medieval, mostrando na perfeição do paraíso e nas torturas do inferno o quanto o homem depende de Deus para sua salvação, remetendo a contextualidade do período em que a obra foi escrita.
Ao analisar a obra buscando uma visão do pensamento da época, nota-se uma descrição de como o homem do medievo encarava aspectos específicos da vida de então, que era dominada pelos os dogmas impostos pelo cristianismo ocidental. Sendo uma detalhada visão do mundo do além, “... tal como ele era concebido na época em que Dante escreveu a obra. ” (FRANCO JUNIOR, 2006, p.27) a obra traz uma representação do modo que a vida pós-morte era entendida no período. Ao mostrar que o homem pagaria por seus pecados em vida após a morte, pode-se remeter claramente ao contexto em que a obra é inserida: a Idade Média, período em que a Igreja Católica ditava o modo de viver e pensar.
Wertheim (2001) afirma, a respeito de como a obra mostra a forma de ver o mundo do além no período, dando como exemplo a viagem empreendida por Dante e o poeta Virgílio, em sua narrativa, nos afirma que “A viagem que fazem não é apenas através do espaço físico (como na ficção cientifica), mas também através do espaço espiritual, tal como concebido pela teologia cristã da época. ” (p.33).
Além disso, foi de extrema importância para a compreensão do modo como se via no período a astronomia, já que a obra é de extrema importância para a compreensão da astronomia do período. Ainda segundo Wertheim a obra “... é uma elucidação épica do cosmo medieval. ” (2001, p.33)
O poeta, na concepção de Sterzi (2010), seria revolucionário demais para sua época, traz em sua narrativa valores da cristandade que acreditava estarem sendo perdidos, teve o poder de, com elementos da cultura vigente, construir uma obra que sintetizou o período medieval, trazendo descrições e comentários que informam sobre as atividades e pensamentos do homem de então.
Dante, assim, pode ser visto como um dos expoentes mais significativos do processo de representação do mundo do além medieval, e portanto fonte expoente de pesquisas sobre o período.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma obra literária pode e deve ser usada como fonte histórica, porém para que isso seja feito deve-se estar consciente dos estudos realizados anteriormente sobre o assunto em foco.  Ambas apresentam-se não como realidades opostas, sem vínculos, mas sim devem-se ser pensadas em conjunto. Toda criação artística, seja ela de que área pertencer, é uma criação de seu tempo e do lugar onde foi gerada, correspondendo assim a uma atuação do homem em contato com seu mundo.
A literatura tem apresentado, principalmente a partir do século XIX, romances em que a história, é aproveitada e transformada em matéria prima para o que o autor pretende contar. Ao transformar uma realidade qualquer em um universo e transformá-lo em parte de sua estrutura, a literatura apropria-se da temática histórica e baseando-se e situações criveis, a literatura torna a ficção uma fora de conhecimento.
Há necessidade de certa ordem para que isso seja posto, pois se deve conhecer a exatidão dos fatos que virão a serem narrados. Portanto torna-se primordial a organização dos documentos que servirão de base para o que o autor queira contar, para que assim os fatos apropriados possam desenrolar-se de forma continua e construindo através deles, uma imagem que chegará ao leitor. Imagem esta, organizada e absolutamente crível e contendo significados para que a leia.
E é neste aspecto que a Literatura ganha à forma para o estudo da História. A presença de fatos e acontecimentos diários, bem como a representação dos desejos e necessidades de quem escreveu ou contou essas histórias, contribui para a análise da vida no período em que foram criadas e no contexto em que estavam inseridas.
A História constituiu farto material para que a Literatura crie suas narrativas. A partir de romances podemos entender como funcionava o pensamento de determinada época, identificando ideologias e preconceitos existentes. Podemos então, citar diversos exemplos de como a literatura se apropriou de fatos históricos para criar mundos e vidas que ao longo dos séculos acompanharam o imaginário dos leitores.

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PESAVENTO, Sandra Jatahy. (2008): “História & História Cultural. ” Autêntica, Belo Horizonte/MG.
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STERZI, Eduardo. (2010): “Porque ler Dante. ” Globo: São Paulo.
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WERTHEIM, Margaret. (2001): “Uma História do espaço: de Dante à internet. ” Jorge Zahar, Rio de Janeiro/RJ.

*Cristina Ennes da Silva, possui graduação em História (1994) e Mestrado em História pela Universidade do Vale do Rio do Sinos - UNISINOS (1997); Doutora em História das Sociedades Ibéricas e Americanas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS (2007). É professora titular do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale e do curso de graduação de História na mesma instituição. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Cultura e Memória da Comunidade. Tem experiência e desenvolve pesquisa na área da História e na área interdisciplinar. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7837979692837308 - crisennes@feevale.br ou crisennes@gmail.com Rua - ERS-239, 2755 Bairro Vila Nova, Novo Hamburgo - RS. Brasil. CEP: 93525-075 – Telefone: 51 35868800 – Ramal 8969
** Alexandro Buffon, possui graduação em História pela Universidade Feevale (2014). Mestre em Processos e Manifestações Culturais – Bolsista Integral na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – Universidade Feevale. Tem experiência na área atuando, principalmente, com os seguintes temas: Idade Média, Dante Alighieri, Imaginário, Morte. Atualmente é Bolsista do Programa de Aprimoramento Científico da Universidade Feevale (Novo Hamburgo). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1036113531947385 - sandrobuffon@feevale.br Rua - ERS-239, 2755 Bairro Vila Nova, Novo Hamburgo - RS. Brasil. CEP: 93525-075 – Telefone: 51 35868800
1 Chartier (2002) postula que não há prática que não seja resultado das representações sociais, as quais os indivíduos e os grupos dão ao mundo que os cerca, sentido. Assim, deve-se dar atenção aos processos que sustentam estas construções.

Recibido: 26/10/2018 Aceptado: 19/02/2019 Publicado: Febrero de 2019

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