Contribuciones a las Ciencias Sociales
Octubre 2011

O PROCESSO DE RECONHECIMENTO E CERTIFICAÇÃO DE SABERES NÃO-FORMAIS NA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA BRASILEIRA



Ricardo Gauterio Cruz
ricardo_gcruz@hotmail.com
Rossane Vinhas Bigliardi


RESUMO

A Rede CERTIFIC, instituída pelo Ministério da Educação brasileiro no âmbito das instituições da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, assume como objetivo valorizar, avaliar e certificar os saberes não-formais, além de prever o encaminhamento para continuidade nos estudos, com vistas a contribuir para promoção da justiça social e construção da cidadania. Este estudo ocupa-se de estudar os limites e possibilidades dos processos avaliativos para reconhecimento desses saberes no campus Visconde da Graça do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense.

Palavras-Chave: Promoção de Justiça Social; Educação Profissional e Tecnológica; Avaliação Emancipatória; Reconhecimento de Saberes Não-Formais; Rede CERTIFIC.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Gauterio Cruz y Vinhas Bigliardi: O processo de reconhecimento e certificação de saberes não-formais na Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica Brasileira, en Contribuciones a las Ciencias Sociales, octubre 2011, www.eumed.net/rev/cccss/14/

INTRODUÇÃO

Historicamente o ensino profissionalizante surge como ensino para o trabalho, sendo instituído na nascente República brasileira como forma de qualificar mão-de-obra para os novos setores da economia nacional tais como os nascentes setores industrial e do agronegócio. Também constituía-se como uma alternativa de ascensão social dos ditos desvalidos da fortuna e, desta forma a embrionária educação profissionalizante brasileira surge, identificando, reconhecendo, agrupando e qualificando as práticas produtivas cotidianas, permitindo que estas práticas ou saberes laborais do cotidiano pudessem ser melhoradas e transmitidas aos jovens aprendizes. Com o passar dos anos chegam novas tecnologias, cada vez mais complexas e de forma mais rápida e a educação profissional estabelece-se como um dos eixos formativos da nova realidade brasileira.
Por longo período, a Educação Profissional e Tecnológica (EPT) sofreu muito com a estigmatização imposta por nossa sociedade ao compará-la desfavoravelmente com a educação superior. Ao ter como objetivo de formação a educação superior, a sociedade acabou por relegar à EPT o status de educação de segunda linha; enquanto a educação superior era reservada aos filhos das classes mais abastadas, a EPT – uma educação teleologicamente destinada ao trabalho – era a opção ofertada aos filhos dos operários.
A crescente valorização dos saberes profissionais e tecnológicos, entretanto, faz que com que tenhamos uma repaginação deste cenário. A EPT é vista, cada vez mais, como uma formação de excelência, destinada a suprir uma demanda crescente do mercado de trabalho com profissionais altamente qualificados, detentores de saberes técnicos/tecnológicos indispensáveis para a produção, e indiretamente, para o desenvolvimento do país.
Quem observa todas as mudanças que vem ocorrendo na Rede Federal de EPT e nas diretrizes da EPT no Brasil, percebe que as mudanças, embora profundas e velozes (pois devem acompanhar a velocidade das transformações tecnológicas), são fortemente embasadas e enraizadas na experiência adquirida em 100 anos de Rede Federal de EPT no Brasil.
Neste viés, surge o projeto de Certificação de Saberes, que consiste no reconhecimento dos saberes cotidianos dos trabalhadores; um projeto que visa observar, quantificar, complementar e reconhecer as práticas tecnológicas executadas por trabalhadores e artífices, possibilitando a estes não só o reconhecimento de suas habilidades e a possibilidade de complementá-las, como a oportunidade profissional e de incremento de qualidade de vida, por meio de uma política pública que, verdadeiramente, vem a promover a inclusão social e a cidadania.
Tais saberes cotidianos são aquelas práticas e conhecimentos construídos a partir da vivência do indivíduo em seu trabalho; são práticas desenvolvidas na vivência e pela experiência do trabalhador. Cabe ao Estado - e, é isto que a Certificação se propõem - resgatar tais saberes, complementá-los e disponibilizá-los a outros indivíduos. Esta é uma via de aprendizado de mão-dupla, que aproximará a Educação informal da Educação Formal, com ganhos para toda a sociedade.

A Organização da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil

A Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica (EPT) tem seu marco inicial, no Brasil, quando, por Decreto Presidencial, nos idos de 1909, foram criadas 19 Escolas de Aprendizes Artífices. Nas décadas que se seguiram, as escolas de educação profissional sofreram algumas alterações em sua denominação, passando a chamarem-se “Liceus Industriais” (1937), “Escolas Industriais e Técnicas” (1942), e finalmente, “Escolas Técnicas Federais” (1959).
Paralelamente, no âmbito agrícola, constitui-se uma rede de Escolas Agrotécnicas Federais – escolas fazendas, vinculadas ao Ministério da Agricultura – que em 1967 passaram para a responsabilidade do Ministério da Educação, assumindo a denominação de “Escolas Agrícolas”.
Em 1994 instituiu-se o Sistema Nacional de Educação Tecnológica, congregando instituições de formação profissional e tecnológica das mais variadas denominações – como Centros Federais de Educação Tecnológicas, Escolas Técnicas, Escolas Agrotécnicas, etc. Seguiram-se então dez anos de estagnação – ou, porque não dizer, de abandono da EPT por parte do governo federal – até que, em 2005, a EPT re-assume seu papel de destaque no cenário educacional, sendo objeto de um plano de expansão promovido pelo Governo Federal, através da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação.
A meta do plano de expansão é passar de 144 unidades de ensino (em 2005) para 366 em 2010, aumentando não apenas o número de unidades educacionais, como incrementando - de forma qualitativa - as unidades existentes, ampliando o número de vagas oferecidas e criando novos cursos que atendam à demanda social por formação de nível profissional e tecnológico.
No intuito de explorar ao máximo as potencialidades desta rede que está se formando, foi introduzida uma reforma na estrutura organizacional destas instituições, cujo aspecto mais marcante é a independência financeira e administrativa, com a desvinculação das escolas de EPT das instituições de ensino superior. Para tanto, através da lei 11.892/08, criaram-se os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (ou simplesmente, os Institutos Federais – IF’s, como vêm sendo chamados), modelo administrativo ao qual aderiu a quase totalidade das instituições públicas federais de EPT do país.
Os Institutos Federais surgem comprometidos com a promoção das condições necessárias ao desenvolvimento local e regional, no sentido de possibilitar ao seu público alvo, não apenas a titulação de Técnico ou Tecnólogo em determinada área, mas sim o desenvolvimento das habilidades profissionais que aquela determinada região necessita, ou seja, os IF’s surgem compromissados em oferecer, para a sociedade, indivíduos capazes de fazer frente às demandas por mão de obra qualificada, e ao mesmo tempo, oferecer para os indivíduos uma formação valorizada e necessária em seu contexto local e regional.
Como corrobora Silva, a existência dos IF’s está focada na “promoção da justiça social, da equidade, do desenvolvimento sustentável, com vistas à inclusão social, bem como a busca de soluções técnicas e geração de novas tecnologias” (2009, p.08). A autora identifica, ainda, que os IF’s “devem responder, de forma ágil e eficaz, às demandas crescentes por formação profissional, por difusão de conhecimentos científicos e de suporte aos arranjos produtivos locais” (2009, p.08).
Nesse sentido, reforçamos nossa posição de que o papel dos IF’s é atuar em duas frentes, mutuamente complementares: por um lado, promover a cidadania por meio da instrumentalização do indivíduo para o mercado de trabalho, e por outro, fomentar o desenvolvimento da sociedade por meio da formação de mão de obra capaz e qualificada para o trabalho.

Avaliação Emancipatória como Estratégia Formativa para Promoção da Cidadania e Busca de Construção de Condições para Justiça Social

A Educação, em nosso país, é caracterizada como altamente seletiva, visto que poucos alunos têm acesso aos ensinos profissional, tecnológico ou superior. Evidentemente, não bastaria permitir o acesso a todos – ou a grande parte dos cidadãos – mas sim, faz-se condicionante que a Educação oferecida realmente tenha a qualificação de reduzir os acentuados níveis de desigualdade de oportunidades entre os diversos grupos sociais.

Conforme contribui Costa:

a evolução do saber técnico/científico/filosófico precisa procurar proporcionar às pessoas, de uma maneira geral, uma visão da complexidade do mundo que lhes permita compreender e agir na sociedade em que vivem, capacitando-as para o exercício da autonomia, da solidariedade e da liberdade, como também preparando-as para lidar com as dependências e as incertezas do futuro (2002, p.149).

A relação entre Educação e estratificação social merece ser discutida; principalmente a questão da “naturalização” dessa estratificação na/pela instituição educativa. Segundo Fernández Enguita (1989), as instituições educativas costumam exercer um importante papel na estabilidade das sociedades capitalistas industrializadas, uma vez que as relações sociais em seu interior preparam os indivíduos para aceitar e incorporar as relações do processo de trabalho, contribuindo para que os indivíduos interiorizem seu destino e suas oportunidades sociais como se fossem sua responsabilidade social.
Com o predomínio da lógica econômica como balizadora das relações sociais, é produzido um efeito profundamente negativo, pois, gradativamente, impõe-se como uma evidência, inclusive para os jovens e seus pais, a idéia de que se vai à instituição educativa para, mais tarde, ter uma profissão que possibilite a ascensão na escala social. Outro papel atribuído à escolarização é ligado à busca de que o aluno passe a adotar comportamentos legitimados pelo modelo capitalista como adequados e apropriados para a convivência social.
A instituição educativa, como lugar de saber e de cultura, desaparece aos poucos; por trás da instituição educativa como instrumento de controle social e de inserção profissional e ascensão financeira. Pertinente a essa temática é a compreensão de que todo programa pedagógico, todo currículo, toda metodologia pedagógica tem uma dimensão política. Por trás do que, às vezes, parece ser uma escolha técnica, operam valores éticos e políticos, uma determinada representação do ser humano, da sociedade, das relações que cada um deve manter com o mundo, com os outros, consigo mesmo.
A instituição educativa tem se mostrado como o principal mecanismo de legitimação meritocrática da sociedade, pois “através da avaliação, contribui para uma seleção objetiva dos mais capazes para o desempenho de funções mais relevantes” (VASCONCELLOS, 2002, p.141).
O entendimento sobre o significado da palavra avaliação, no contexto educacional, varia de acordo com a concepção de Educação que cada autor adota e leva em consideração ao elaborar sua conceituação.
Hoffmann afirma que a compreensão dicotômica entre educação e avaliação é uma impropriedade, afirmando ser

necessária a tomada de consciência e a reflexão a respeito desta compreensão equivocada de avaliação como julgamento de resultados porque ela veio se transformando numa perigosa prática educativa. A avaliação é essencial à educação. Inerente e indissociável enquanto concebida como problematização, questionamento, reflexão sobre a ação (1991, p. 16-17).

Segundo Turra et al (1989), a avaliação, em seu caráter formativo, constitui-se como parte indissociável do processo ensino-aprendizagem, e é conduzida no intuito de auxiliar os alunos para que alcancem seus objetivos, na medida em que propicia uma visão real das dificuldades do aluno e dos insucessos do professor ao conduzir do processo, contribuindo para a redução do sentimento de fracasso (tanto por parte do aluno, como do professor) e fomentando a auto-estima e auto-confiança dos alunos que, muitas vezes, às vêem abaladas por reprovações.
Focando, especialmente, este último aspecto, a avaliação precisa, também, pensar na pluralidade e na diversidade, pois uma resposta tida como errada, por exemplo, pode ser fruto de uma diferença cultural, de uma história de vida diferente, de valores e princípios diferentes, e isso faz com que se precise relativizar o certo e o errado.
Ao pensar a educação como prática libertadora, e essencialmente dialógica, precisa-se pensar esta dialogicidade não apenas nos encontros entre educador e educando (ou, como expõe Freire, entre educador-educando e educando-educador, no sentido que ambos assumem os dois papéis), mas deve-se conceber a dialogicidade como prática que se inicia antes das situações de interações pedagógicas, quando o educador se pergunta acerca do conteúdo que será dialogado.
Ao considerarmos a dinâmica social extremamente complexa e heterogênea, faz-se condição o respeito à diversidade cultural, social, étnica e biológica. É importante, além disso, ter a clareza da multidimensionalidade da realidade e do ato de conhecer.
Neste contexto, um grande desafio que se tem, em termos educacionais, e em termos de avaliação dentro do processo de certificação de saberes, reside na grande limitação dos envolvidos nas instituições educativas de reconhecer e contribuir para a continuidade dos estudos daqueles cidadãos que necessitam de políticas educacionais inclusivas e emancipatórias. Essa perspectiva transformadora dos padrões socioeducacionais de nosso país, encontra sustentação, no que concerne à temática discutida neste documento, à capacidade técnica e opção política de construírem-se fundamentos e dinâmicas pedagógico-operacionais que viabilizem o reconhecimento de saberes e o encaminhamento do cidadão para qualificação teórico-prática e crítico-emancipatória frente aos padrões socioambientais de nossa sociedade. Para que uma instituição educativa formal possa dar conta desses desafios, faz-se condicionante que todos os envolvidos compreendam e assumam como princípios orientadores das tomadas de decisões pedagógicas e administrativas, a concepção de educação inclusiva, emancipatória, crítica do modelo societal majoritário, orientada por princípios de dialogicidade, alteridade, cooperação, solidariedade e, não poderia ser diferente, éticos e socioambientais.
A partir do atendimento desses condicionantes fundamentais, ainda há muito desafio a enfrentar. Por nossos próprios percursos formativos enquanto educadores, egressos de processos educativos tradicionais, eminentemente fragmentários, disciplinares, amparados em quadros de sequência lógica, grades de horário, registro de freqüência e processos avaliativos marcadamente sentencivos e classificatórios, mesmo tendo clareza do papel social e legítima preocupação em implementar processos de reconhecimento de saberes não-formais, encontraremos dificuldades consideráveis para tal. Fomos nos constituindo educadores a partir dos pressupostos elencados e, para que possamos observar determinado domínio de técnica ou operação de máquina, por exemplo, anteriormente precisamos compreender processos educativo-científicos concernentes à construção de conhecimentos que sustentam aquela operação ou técnica específica.
Representam questões para enfrentamento de todos aqueles que estejam mobilizados pela discussão de reconhecimento de saberes não-formais, e sua conseqüente certificação, entender quais conhecimentos estão subjacentes àquela operação, que compreensões teóricas ainda são necessárias propiciar junto ao cidadão que tem estes conhecimentos oriundos da experiência avaliados, como a instituição certificadora procederá para averiguar que domínios são imprescindíveis para que se reconheça determinado saber e se certifique o cidadão, a partir da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho e Emprego brasileiro.
Tomemos como exemplo o artífice que trabalha com madeira: suas habilidades profissionais podem ter sido desenvolvidas durante toda sua vida, seus conhecimentos profissionais podem ter-lhe sido transferidos desde a infância, através do pai ou do tio também artífice, e, na maturidade, o artífice atingiu a expertise no trabalho com madeira, mas frente ao mercado de trabalho, a falta do título de técnico em marcenaria, ou carpintaria, ou mesmo a falta do certificado de conclusão do ensino médio, fazem com que este profissional esteja excluído da maior parte das oportunidades de emprego onde poderia desenvolver sua atividade profissional. Como daremos conta neste campo de conhecimento – e em todos os outros, paulatinamente – de avaliarmos e oferecermos, conforme identificada necessidade, cursos que, particularmente para o caso desse cidadão possam não somente certificar seu saber (já um grande desafio!) mas qualificá-lo para o mercado de trabalho e para sua inserção crítica na sociedade local e global?
A Rede CERTIFIC, no âmbito das escolas de Educação Profissional e Tecnológica, surge justamente com o objetivo de valorizar e certificar este tipo de saber, no sentido de possibilitar que o indivíduo possa comprovar formalmente certa habilidade profissional que tenha adquirido/desenvolvido longe das instituições de ensino.
Para tal, é necessário que retomemos o exposto anteriormente: se a avaliação for meramente classificatória, estará a serviço de um sistema opressor e excludente, que simplesmente coloca à margem das possibilidades de emprego e renda todo aquele que não teve acesso aos bancos escolares. Por outro lado, uma avaliação formativa trará como possibilidade a avaliação de saberes adquiridos fora da escola, no sentido de possibilitar a certificação – ou a complementação da formação para possibilitar futura certificação – de saberes não-formais.

4. Rede CERTIFIC: Política Pública de Promoção da Cidadania e justiça social

Com o advento da Portaria Interministerial 1.082 de 20 de novembro de 2009, por intermédio da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC/MEC) e da Secretaria de Políticas Públicas de Emprego (SPPE/MTE), institui-se a Rede CERTIFIC (Rede Nacional de Certificação Profissional e Formação Inicial e Continuada). A Rede CERTIFIC constitui-se, enquanto política pública, como iniciativa que busca a inclusão social através do acesso à Educação.
Através da Rede CERTIFIC espera-se implementar um programa, de nível nacional, com o objetivo de reconhecer saberes oriundos de experiências não-formais de aprendizado, possibilitando sua certificação. Desta forma, espera-se que o indivíduo tenha acesso, não somente ao título formal de Educação Profissional e Tecnológica em determinada área de conhecimento, mas que sua condição de empregabilidade seja qualitativamente incrementada, pois este indivíduo que, em uma condição anterior, quiçá apresentaria concluído o Ensino Médio, após passar pelo processo de certificação (e de complemento da formação, se for o caso) poderá apresentar ao mercado de trabalho o certificado que comprova sua expertise em determinada área do saber profissional e tecnológico.
Para efeito de definição, podemos assumir que a certificação consiste na validação socialmente legitimada daqueles saberes, conhecimentos e habilidades que o indivíduo desenvolveu, ao longo de sua vida, através de sua prática social – não exclusivamente – mas sobretudo, vinculada ao trabalho.
Importante salientar que a adesão dos Institutos Federais à rede CERTIFIC não é obrigatória, mesmo que, segundo a Lei 11.892/08, seja obrigação dos IF’s oferecerem esta certificação. Não há acréscimo de recursos orçamentários vinculados à adesão, mas poderá haver captação junto ao Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT.
É interessante destacar que a problemática da certificação de tais saberes, ocupa não apenas o campo nacional. Assim, no debate temático “As Relações entre a Educação Profissional, Educação Formal e Reconhecimento de Saberes Não-Formais” desenvolvido no Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica realizado no Brasil em novembro de 2009, o professor paraguaio Atílio Dentice D’Oliveira propôs a constituição do projeto Hemisfério, que consistiria na criação de uma política de certificação elaborada a partir de experiências dos países envolvidos. Salientou que a construção de um modelo de certificação deve acontecer a partir de um trabalho coletivo das instituições certificadoras destes países; já Nicole Rouillier, diretora geral do Cégep Marie-Victorin, de Quebec, no Canadá, defendeu uma metodologia já utilizada por 17 instituições no seu país, que prevê certificação e encaminhamento para formação complementar.
A formação e o reconhecimento de saberes acontecerão por meio de Programas CERTIFIC, que se constituem como ações de caráter institucional com o objetivo de promover acesso, permanência e progressão profissional; além da continuidade/complementação de estudos. Metodologicamente, esse processo se desenvolve, no mínimo, em quatro etapas: acolhimento do trabalhador, reconhecimento de saberes, formação e certificação.
O processo de avaliação se sustenta em memoriais descritivos acerca dos domínios científicos e tecnológicos, informando ao estudante sobre seu itinerário formativo; conduzindo-o para formação e/ou certificação. Assim, segundo Pereira (2009),

os passos para que o trabalhador seja certificado incluem um levantamento de sua trajetória no mundo do trabalho, um exame teórico com perguntas relacionadas à área de atuação, e a apresentação do trabalhador a uma situação prática o mais próximo possível das técnicas de trabalho que ele garante dominar.

No Brasil, as primeiras áreas a terem profissionais certificados através do programa CERTIFIC, serão as de construção civil, gastronomia, pesca, metal-mecânica e turismo. Há previsão da SETEC/MEC de que a rede CERTIFIC oferecerá reconhecimento e qualificação profissional para aproximadamente 30 milhões de trabalhadores brasileiros.
Em documento recente da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica-SETEC do Ministério da Educação-MEC, através da Diretoria de Formulação de Políticas de Educação Profissional e Tecnológica, o processo de avaliação dos saberes adquiridos no mundo da vida e do trabalho é indicado como ponto principal no processo de certificação profissional e formação inicial e continuada dos trabalhadores (MEC, 2010).
A partir daí, é importante destacar que um processo de avaliação que busque conhecer o acúmulo de saberes desta natureza, terá de ser, necessariamente, um processo de avaliação do tipo formativo, participativo, qualitativo, e não meramente classificatório, como é o sistema clássico e majoritariamente adotado na realidade brasileira. O próprio documento mencionado destaca que

a avaliação da aprendizagem vem se revelando um dos grandes desafios do desenvolvimento do processo pedagógico nos diversos níveis e modalidades de ensino, exigindo reflexões sobre a importância de se discutir a valorização de práticas avaliativas diversificadas, que acompanhem o aluno em seus progressos e dificuldades e forneçam indicadores para o aprimoramento do trabalho pedagógico, na perspectiva de inclusão e emancipação (MEC, 2010, p.06).

Somente um processo verdadeiramente qualitativo e centrado nas peculiaridades, não apenas dos saberes adquiridos no mundo do trabalho, como da bagagem constitutiva do sujeito, e capaz de fazer frente às demandas postas pela Rede CERTIFIC. As questões culturais, ético-religiosas e de classe acabam precisando permear o processo de avaliação/certificação, no sentido de que conhecimentos tradicionais não sejam relegados à subcategorias frente aos saberes científica e academicamente tidos como válidos.
Retomando nossa referência ao documento elaborado pela Diretoria de Formulação de Políticas de Educação Profissional e Tecnológica da SETEC/MEC, sigamos no destaque à centralidade do papel da avaliação como condicionante de êxito da proposta articulada pela Rede CERTIFIC. Assim,

Avaliar saberes significa pensar estratégias pedagógicas que permitam ao trabalhador construir através das dinâmicas avaliativas, uma oportunidade de re-significação e organização dos saberes construídos, estimulando a curiosidade referente aos fenômenos sociais, científicos e tecnológicos. A partir da Rede CERTIFIC pretende-se desenvolver uma cultura de Educação de Jovens e Adultos com alicerce nas experiências acumuladas ao longo da vida e em saberes já adquiridos, os quais serão fundamentais para a definição de estratégias de aprendizagem que conduzam à autonomia da construção de novos conhecimentos (MEC, 2010, p. 06).

Eis que se faz necessário, entretanto, destacar que um processo avaliativo de caráter qualitativo e formativo não é sinônimo de um processo menos rígido ou criterioso de avaliação, pelo contrário, em sendo um processo de avaliação focado na qualidade de saberes e nas reais habilidades e conhecimentos que o indivíduo acumulou durante sua vida –sobretudo, mas não apenas – profissional, será um processo de diagnóstico criterioso do nível de expertise do indivíduo em determinados saberes.
Neste sentido, jamais podemos perder de nosso horizonte que o objetivo do reconhecimento e certificação de saberes não é o de distribuir certificados para quem não os tem, mas de certificar os saberes advindos da vida e do trabalho do indivíduo, através de processo complementar de formação quando a situação assim exigir. O próprio MEC destaca, ao instituir tal política, que “a formação dará sustentabilidade à certificação, e a consecução dos objetivos da Rede CERTIFIC depende da intrínseca articulação destes dois componentes” (MEC, 2010, p. 19).
Por fim, é importante retomarmos o caráter de inclusão social e de promoção da cidadania contido na Rede CERTIFIC. Por meio do reconhecimento dos saberes oriundos do mundo do trabalho como saberes válidos, espera-se que este trabalhador que passou pelo processo de formação e certificação ganhe visibilidade no mundo do trabalho, e que o reconhecimento e a valorização de tais conhecimentos contribuam diretamente no desenvolvimento pessoal e profissional deste indivíduo. Mais do que isso, essa política pública de educação deve contribuir para que os índices de qualidade de vida da população brasileira sejam adequados aos preceitos de uma sociedade pautada por princípios de inclusão, democracia e justiça social.

5. A Certificação de Saberes Não-Formais no Campus Visconde da Graça do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense

Num país como o Brasil, cujos índices de escolaridade são muito baixos, é preciso que sejamos, ao mesmo tempo, receptivos a propostas inclusivas de educação do trabalhador; porém, justamente pelas condições de vulnerabilidade do trabalhador e da população em geral, faz-se condicionante que a tomada de decisão acerca do envolvimento de nossa instituição nas proposições da rede CERTIFIC, bem como em qualquer outra política pública de educação em que sejamos chamados a contribuir, se dê de forma crítica e responsável. Assim sendo, no coletivo envolvido nas discussões em nossa escola, temos nos ocupado de problematizar questões pertinentes ao nosso papel social enquanto instituição pública, incumbida de oferecer uma educação profissional e tecnológica de qualidade suficiente para promover mudanças significativas nas condições de vida da comunidade local e regional.
Empiricamente, o CAVG começou a trabalhar com certificação de competências – expressão marcadamente identificada com uma compreensão instrumental do saber - ainda no ano de 2004, quando, com recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia, deu-se início à implementação do Centro de Treinamento e Transferência de Tecnologia em Fruticultura de Clima Temperado e Agroindústria. Os primeiros treinamentos visaram não só a capacitar mão-de-obra básica para atuar nos setores de produção e processamento de frutas, como captar e sistematizar os conhecimentos empíricos dos cursantes; dando a estes saberes um caráter formativo e retransmitindo-os a todos os participantes.
Numa segunda fase, em um projeto-piloto desenvolvido junto à Prefeitura Municipal de Pelotas, em 2005, no qual alunos da Educação de Jovens e Adultos-EJA passaram a receber formação profissional com o intuito de requalificação e reinserção no mercado de trabalho. A metodologia então aplicada, em muito se assemelha à metodologia proposta pela rede CERTIFIC, uma vez que naquele projeto buscou-se identificar antigas atividades profissionais dos envolvidos e/ou aptidões trazidas de seus lares ou comunidades, e a partir disso, conduziu-se o processo de ensino e aprendizagem.
Este processo, embora em fase inicial e de forma bastante empírica, foi implementado no ano de 2004/2005, mas aproxima-se filosoficamente da política pública que ora o governo federal vem implementar através da rede CERTIFIC. Desta forma, desde aquela data, em maior ou menor escala, o CAVG vem implementando ações de reconhecimento de saberes em suas práticas pedagógicas cotidianas.
Conforme posição firmada por ocasião de apresentação de projeto de pesquisa na II Jornada Científica e Tecnológica do MERCOSUL, ocorrido na Venezuela em março de 2009, o estudo sobre o Resgate tecnológico de produtos regionais vinculados à agroindústria familiar fundamenta-se na valorização dos chamados saberes da terra, e tem por propósito

(...) resgatar da cultura tradicional as receitas e saberes que após receberem um toque tecnológico permitirão a estes pequenos produtores buscarem um espaço no mercado, agregando valor aos seus produtos e melhorando suas condições de vida.

Assim, em nossa instituição, diversos aspectos que delineiam a política da rede CERTIFIC mobilizam aqueles profissionais já envolvidos na discussão, como por exemplo, a grande relevância social que se nos apresenta a possibilidade de avaliar, qualificar e certificar as experiências adquiridas pelos trabalhadores em diferentes campos profissionais.
A motivação do Campus Visconde da Graça em se tornar um centro certificador de saberes não-formais na área da agroindústria – e, futuramente, na área de vestuário – tem levado a uma marcante aproximação com os fundamentos pressentes nessa política pública educacional. Dentro disso, o CAVG busca manter e reforçar sua aproximação com a comunidade de seu entorno, intervindo na realidade social. Especificamente, enquanto instituição certificadora de competência profissional se identifica como instituição educativa com grande capacidade de intervenção e aprimoramento das condições de geração de renda e qualificação das relações sociais.
Apoiados em Moraes e Neto (2005), pensamos que a construção de uma apolítica pública com fins de validar os saberes advindos da prática social dos sujeitos, tem de, necessariamente, buscar a superação das dicotomias entre educação/certificação escolar e formação/certificação profissional, promovendo as condições necessárias para o reconhecimento de tais saberes como legítimos, e fomentando tanto o desenvolvimento profissional dos indivíduos, como a continuidade de seus estudos. Não há, de fato, razão para colocarmos educação formal e certificação de saberes oriundos de espaços não-formais em pontos diametralmente opostos, pois ambas podem – e, em nosso entendimento, devem – contribuir para o desenvolvimento pessoal e profissional dos indivíduos.
Essa questão gira em torno da preocupação de nosso coletivo com o fato de que tal política pública se mantenha firmemente atrelada ao cumprimento de um papel político e social de emancipação da classe trabalhadora e de promoção da cidadania, garantindo assim o papel da educação enquanto instrumento qualificador das condições societais. Admitimos como imprescindível a vigilância contínua acerca desse fundamento, por entendermos o grande risco de que, no decorrer desse processo, venhamos a nos guiar por pressupostos demandados centralmente pelas necessidades de mercado.

6. Referências Bibliográficas

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