PLANEAMENTO E GESTÃO TERRITORIAL

PLANEAMENTO E GESTÃO TERRITORIAL

Paulo Carvalho. Coordenação (CV)
Universidade de Coimbra

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PLANO ESTRATÉGICO “RIO PÓS-2016”
ANÁLISE SOBRE AS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO NO SETOR DOS TRANSPORTES DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (2009-2016)1

Edgar de Almeida Rios Ramos

Resumo
Partindo do arcabouço teórico da geografia urbana crítica contemporânea (Arantes, 2002; Vainer, 2002; Capel, 2006, 2007; Sanchez, 1999; Pires, 2010), ancorados pelas análises de Milton Santos, David Harvey, Roberto Lobato Corrêa, no que diz respeito aos movimentos da sociedade/espaço urbano nas últimas cinco décadas.
Este artigo tem como objetivos analisar os processos de transformação das políticas públicas em relação ao espaço urbano, nesta passagem dos planejamentos diretivos aos planos estratégicos no Rio de Janeiro, assim como analisar os documentos atuais de gestão do território da cidade, intitulados, Plano Estratégico “Rio Pós-2016”, dando ênfase às questões relacionadas aos transportes e projetos de mobilidade urbana. Por fim, este trabalho pretende posicionar-se através da ciência geográfica, dentro das disputas teóricas e práticas a respeito das decisões e políticas territoriais urbanas. Para além de uma aproximação permanente do conhecimento codificado/científico com a maior gama de atores sociais presentes na cidade.

1. Introdução
A cidade do Rio de Janeiro, representa atualmente uma das grandes vitrines globais no que diz respeito à captação de capitais variados a serem investidos no seu território, assim como nas questões de city marketing, o conceito de cidades-empresas ligadas a uma competição global de venda das “marcas” que se tornaram os próprios espaços urbanos destas cidades globais e/ou conectadas a diversas redes em diferentes escalas.
Um cenário de grandes investimentos nos confere uma série de possibilidades de análise das transformações que decorrem dos projetos elaborados na prática por este grande volume de capital. Em um contexto global de crise financeira nos países centrais (Norte Global) desde 2008, os investimentos vão se deslocando para “novos” mercados promissores, por diversos motivos, incluindo estes serem menos regulamentados tanto politicamente, quanto no que tange a economia e o próprio ambiente, sendo assim, lugares com uma instabilidade social mais elevada.
Estes mercados desde o fim da primeira década do século XXI vai explorar as grandes cidades dos países centrais emergentes, como por exemplo os países do BRICS. Não faltam exemplos para explorarmos esta dinâmica de fluxos de capitais, pessoas, investimentos para estas cidades, como eventos organizados em 2010 na África do Sul, 2014 no Brasil e 2018 na Rússia, temos na empresa FIFA e todos os fluxos que ela comanda e participa, um exemplo didático de como os investimentos se movem dentro do território global, de maneira seletiva e visando sempre sua reprodução, e devido a isso, nem sempre seus resultados para as populações locais, são satisfatórios.
Voltando para a escala que nos interessa, é neste contexto económico global que o Rio de Janeiro lançou suas candidaturas para receber eventos como os da FIFA, do COI e de outras entidades transnacionais. Uma série de políticas públicas (planos estratégicos) voltadas para o território da cidade, se apresentam como facilitadores destes movimentos de competição entre as cidades de “livre mercado”, ou seja, dinâmicas neoliberais. Por estas políticas estarem sempre nas mãos dos governantes e quase sempre em direção contrária dos interesses dos cidadãos, já que em suma, foram todas elaboradas a partir de técnicos e gestores, com uma preocupação quase inexistente em relação aos reais interesses dos moradores da cidade.
Este artigo tem como principal objetivo analisar os documentos atuais de gestão da cidade, intitulados Plano Estratégico “Rio Pós-2016”, elaborado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, sendo aqui analisado os dois volumes, o primeiro que se refere ao período entre 2009-2012 e outro que refere-se aos anos de 2013-2016, dando ênfase às questões relacionadas ao transporte e às obras de mobilidade urbana.

2. Suporte Teórico
A ciência geográfica se apresenta como um dos maiores campos científicos com potencial para pensarmos as cidades contemporâneas e sua multiplicidade de redes, de fixos, fluxos, ou seja, suas dinâmicas e estruturas cada vez mais complexas. Um dos principais trunfos da geografia é justamente sua abrangência interdisciplinar, sem que se perca seu objeto específico de estudo, que são os territórios, lugares, as paisagens, as redes, ou seja, o espaço geográfico.
Neste sentido, podemos percorrer dois caminhos geográficos, o primeiro enquanto profissionais necessários nos processos oficias/legais nos gabinetes das prefeituras, ministérios, secretarias, responsáveis pela elaboração/revisão de planos, políticas e demais documentos e ações referentes ao ordenamento do território (Tomé & Reis, 2001). E por outro lado, analisar a partir do nosso referencial teórico que também se mostra interdisciplinar e que nos permite decodificar de maneira crítica as dinâmicas de organização e (re)produção do espaço geográfico e neste caso, do espaço urbano (Carlos, 2008).
São estas análises críticas do espaço urbano próprias do arcabouço teórico da geografia que este artigo tem como objetivo principal, a partir do tema proposto. Tendo em vista também a oportunidade de saltar aos olhos ações, estratégias que vão de encontro ao nosso fazer geográfico.
Destarte é importante concebermos a cidade em uma sociedade tecnológica/informacional, enquanto lócus privilegiado de (re)produção do capital, sendo o espaço urbano o aglomerado de fixos e fluxos que permitem a circulação de produtos, mercadorias, homens, ideias em velocidades extremas, o que nos traz a noção de uma compressão espaço temporal cada vez mais real entre determinados espaços globais (Santos, 2012; Harvey, 2009). A partir desta dimensão da cidade contemporânea enquanto espaço central na lógica capitalista flexível, Milton Santos acrescenta: “Quanto mais territórios são cortados por estradas, tanto mais a produção e os homens se concentram em poucos lugares. A cidade é um grande meio de produção material e imaterial, lugar de consumo, nó de comunicação. Por isso, o entendimento do processo global de produção não se contenta com a mera economia política, nem se basta com a Economia Política da Urbanização, exigindo uma Economia Política da Cidade” (Santos, op. cit.,114).
Em relação a esta economia política da cidade que se refere Milton Santos, traduzimos como a necessidade de entendermos as forças produtivas e suas maneiras de reprodução por meio de investimentos público e/ou privados. Primeiramente a aglomeração na cidade de todo o trabalho acumulado em infraestruturas pretéritas, assim como sua dinâmica de trabalho ativa, faz desses espaços urbanos verdadeiros indutores de meios coletivos de socialização da produtividade e esta socialização se apresenta de diversas formas, inclusive, como contraditória. Seguindo ainda o pensamento de Milton Santos sobre estas socializações urbanas de produção: “A socialização propiciada por uma rede diferenciada de firmas e agente à disposição dos processos produtivos complexos da cidade facilita o consumo até nas camadas mais pobres, possibilitando a inserção na economia urbana de um número crescente de pessoas” (Santos, op. cit., 116).
Ou seja, é a partir dos diferentes agentes, processos, em diferentes escalas dentro da cidade e entre estas, que vão se dar os processos avançados de reprodução capitalista, onde agentes como o Estado (em seus diferentes níveis de governança), as empresas, os capitais industriais, e outros, vão traçar suas linhas de ação e seus projetos. Em nossa sociedade capitalista, a socialização das forças produtivas de um meio urbano não se dão de forma harmoniosa, existindo total desequilíbrio nestas relações. A socialização capitalista é um conceito que vai embasar este desequilíbrio e elucidar seus principais agentes, diz Santos a este respeito: “A socialização capitalista é, pois, e sobretudo, um processo de transferência de recursos da população como um todo para algumas pessoas e firmas. Trata-se, como dito antes, de um processo seletivo, que atinge diferentemente os atores econômicos, o que faz do Estado um motor de desigualdades, já que, por esse meio, favorece concentrações e marginalizações” (Santos, op. cit., 118).
É neste sentido que vamos buscar compreender por meio das políticas públicas, planos estratégicos em vigor, e outros mecanismos de atuação, como se posiciona e se articula o Estado, que é de longe o ator com maior complexidade e escalas de atuação dentro do espaço urbano. Neste caso, trabalhando na escala do município, sem perder de vista as relações com as demais estâncias de poder público. Sobre a atuação do Estado na (re)produção do espaço urbano, nos escreve Roberto Lobato Corrêa: “Essa multiplicidade de papéis (do Estado) também se efetiva na escala da rede urbana. Tanto nessa escala como na do espaço intraurbano estabelecem-se relações com outros agentes sociais, como empresas industriais e de consultora, bancos, empreiteiras, universidades e proprietários de terra. Nessas relações entram em jogo mecanismos de negociação, cooptação e clientelismo, aos quais a corrupção não é estranha” (Corrêa, 2009: 46) – grifo nosso.
Caminhando em direção às estratégias contemporâneas de cidades globais, como o Rio de Janeiro. Buscamos conceituar as ideias de plano estratégico, aliados a conceitos como city marketing, em “modelos” de projetos e planos em cidades globais, como Barcelona ou em menores cidades como Bolonha e Florença (Arantes, 2002; Vainer, 2002; Capel, 2006, 2007; Sanchez, 1999; Pires, 2010).
A princípio, nos mais variados campos da ciência onde a cidade é pensada enquanto objeto a ser analisado e transformado, o colapso do paradigma da modernidade, que se sustentou por quase todo século XX, se torna evidente. Arquitetos, urbanistas, geógrafos, sociólogos, que pensam a cidade vão pautar em seus estudos contemporâneos uma série de novas abordagens que mostram os movimentos atuais de atuação destes profissionais em relação as questões dos espaços das cidades.
Partindo de uma análise a respeito do urbanismo desenvolvido pelos projetos urbanísticos das cidades dos séculos XX e XXI principalmente, analisando as diferentes gerações de planos urbanísticos, para este período, que foca basicamente nas gerações que transformaram as cidades na lógica moderno/funcional que visavam dinamizar a produtividade da cidade a partir da racionalização do espaço urbano, até a geração atual, chamada “terceira geração” que ao contrário da primeira, busca realçar dimensões como a cultura, visando uma nova dinamização e produtividade, pautados no modelo de “cidade-empreendimento”, numa lógica gestora do espaço urbano, baseado na imagem, na informação e nas redes.
A autora Otília Arantes nos esclarece a respeito da dita “terceira geração” urbanística: “Por terceira geração Venuti compreendia as iniciativas que na Itália se contrapunham ao urbanismo dos anos 1970, que, ainda em nome do Estado Social, estava resvalando, em seu ímpeto expansionista e meramente quantitativo, na simples especulação imobiliária de sempre. O novo planejamento – hieraquizador e intensivo –, sendo de oposição, se apresenta como transformador e “reformista”. Voltava-se assim, segundo o autor (Venuti) – ao menos na Itália –, a uma visão global da cidade à procura de uma melhor resposta à nova fase de capitalismo flexível e predominância do terciário” (Arantes, 2002: 18).
Neste momento, este discurso passa a ser dominante, e é esta visão que será encontrada em diversos autores que vão trabalhar a cidade enquanto marketing. Ainda utilizando a autora Otília Arantes, a respeito do surgimento do paradigma estratégico em detrimento do urbanismo moderno, onde este último já se encontrava desacreditado em relação à situação das cidades depois de 30 anos de crescimento no pós-guerra, refere que “O planejamento convencional, a utilização de planos e regulamentos para guiar o uso do solo pareciam cada vez mais desacreditados. Em vez disso o planejamento deixou de controlar o crescimento urbano e passou a encorajá-lo por todos os meios possíveis e imagináveis. Cidades, a nova mensagem soou em alto e bom som, eram máquinas de produzir riquezas; o primeiro e principal objetivo do planejamento devia ser o de azeitar a máquina. O planejador foi-se confundindo cada vez mais com o seu tradicional adversário, o empreendedor” (Arantes, 2002: 21).
Este novo modo de fazer política urbana, voltado mais para as necessidades do capitalismo flexível, em rede, globalizado, vai reforçar as ideias do Milton Santos expostas anteriormente, onde cada vez mais são agravadas práticas como a seletivização das políticas referentes aos espaços urbanos, a privatização de espaços públicos, a competitividade entre os lugares: “Em nome da estabilidade, do equilíbrio da balança comercial e de pagamentos, do crescimento e da competitividade, o planejador é, cada dia, convidado a encontrar os meios e as formas de transformar o Espaço Urbano, de modo a permitir que as firmas mais poderosas possam melhor utilizá-lo em seu próprio proveito” (Santos, 2012: 130).
Esta apropriação privada da cidade, dos espaços urbanos, que Milton Santos chama de capital geral, vai ser o objetivo crucial do planejador estratégico, que vai pensar a cidade para as grandes firmas e demais atores que, aliadas aos organismos estatais de planificação, vão buscar fazer render ao máximo os lucros, a mais-valia dentro da cidade. Uma produção de riquezas que por outro lado, e também por se utilizar de algo que é ou deveria ser um bem comum enquanto algo privativo, gera também, um empobrecimento planejado, de áreas da cidade que não são dotadas deste capital geral, deixando assim uma infinidade de atores sem voz, sem possibilidades de usufruírem de toda capacidade tecnológica, inovadora, estratégica, da cidade. Neste sentido, o planejamento estratégico é sobretudo uma ideologia, ao invés de teorias e práticas a respeito da cidade, afinal, citando Milton Santos: “de teoria tem apenas a forma, não é baseada na realidade vivida, e o resultado de sua aplicação é o oposto de suas promessas. Sendo ideologia, porém, é responsável pela construção de novos espaços e pela reformulação do espaço urbano atual” (Santos, op. cit., 132).
Por trás desta nova ideologia estratégica, que busca desenvolver a cidade a partir de atores globais, hegemónicos que quase sempre não levam em consideração a vivência das populações que vivem nos espaços urbanos onde seus projetos vão transformar, que surge o “modelo Barcelona”, que na visão dos autores que trago, não passa de outra ideologia, afinal, este empresariamento das cidades não surge em Barcelona (Arantes, 2000; Capel, 2006, 2007; Pires, 2010).
Em seu artigo intitulado “De nuevo el modelo Barcelona y el debate sobre el urbanismo Barcelonés”, Horacio Capel traz o debate do seu livro “El Modelo Barcelona. Un examen crítico” a partir de algumas críticas como as de Oriol Bohigas, arquiteto que foi delegado de urbanismo do ayuntamento de Barcelona entre 1980 e 1984, que nos dizeres de Capel, além de darem um parecer positivo ao livro, apesar de tecer críticas construtivas em alguns pontos, mostram a importância dos geógrafos nos debates referentes ao urbanismo, ordenamento do território (Capel, 2006).
Se os autores divergem seus pensamentos em diversos pontos deste debate, em relação à imposição de um “modelo Barcelona” ambos concordam que este não existe, senão enquanto uma ideologia/metodologia que não surge em Barcelona, mas que ganha destaque publicitário e político. Capel escreve sobre a crítica de Bohigas: “Bohigas reconece, de todas maneras, que no debería hablarse del “modelo Barcelona”, y que se ha podido utilizar la expresíon “para conseguir facilmente prestígios publicitários o soporte político.” Lo que seguramente es certo, y es precisamente una de las cuestiones que se plantean en el libro.” (Capel, 2006: 2).
É necessário nos aprofundarmos nos contextos económico, político e social de Barcelona para que possamos analisar estes processos urbanísticos que sem dúvidas elevaram Barcelona a um grande nível em relação a infraestruturas urbanas e em busca de uma cidade equilibrada, mas por outro lado, contradições latentes fazem com que estes processos não seja um “modelo” e sim, um acúmulo de experiências utilizadas em outras cidades anteriormente, com algumas inovações locais. E há de se levar em consideração o posicionamento político dos governos nas alturas das políticas e planos.
Depois da democratização da Espanha, nas primeiras eleições para poder local, o que ocorreu por volta do final dos anos 1970 e durante a década de 1980, Barcelona atravessava um período de governos com uma preocupação social grande, que buscava medidas que eram diferentes dos projetos e políticas modernas que deram cabo a cidade de Barcelona desde o século XIX. Na altura, os bairros construídos em autoconstrução foram praticamente extintos.
Porém, com a guinada para os grandes eventos globais, principalmente os Jogos Olímpicos de 1992, fizeram desta reestruturação urbana voltada para o local e o social, numa disputa mercadológica, numa espécie de “contramodelo” se comparado as políticas e planos desenvolvidos até então. Desde 1986, data que foi anunciado os jogos na cidade, e durante toda a década de 1990, uma guinada “à direita” fez de Barcelona uma cidade que ao invés de se manter enquanto uma cidade coesa, foi em busca de investimentos e disputas globais, que favorecem atores globais, empresas, mercados globais, em detrimento dos citadinos que lá vivem, viveram e viverão suas vidas (Capel, 2007). Segundo este autor, “La canalización de amplias inversiones hacia la preparación de los Juegos supuso una transformación del modelo anterior de actuación a pequeña escala y de equipamiento de los barrios. Se pasó de las pequeñas actuaciones a los grandes proyectos, de la prioridad por los barrios y la calidad de vida de los vecinos a la competencia mundial. Ahora es toda la ciudad la que se equipa para competir en el mercado global” (Capel, 2007: 25).
Acerca do processo/metodologia de Barcelona que Bohiga analisa a partir do livro de Horacio Capel, vamos nos ater apenas ao primeiro ponto, que serve como base para exemplificar os objetivos dos planos estratégicos e suas contradições aparentes. A primeira ação do método que escreve Bohiga se trata da “accíon basada en el proyecto del espacio publico como lugar urbano y colectivo por excelencia.” Se por um lado Capel concorda com estas transformações que forneceram a Barcelona novos e remodelados espaços urbanos, de fato coletivos e de extrema importância para a vida urbana. Porém, ressalta nas sutis privatizações destes espaços públicos, ou a aparição de bairros fechados, onde o espaço público é inexistente, já que a apropriação do espaço é seletiva e controlada. Outros seis pontos são explorados do que Bohiga acredita ser as ações fundamentais do processo por qual atravessou (ou atravessa) Barcelona desde a redemocratização da política, consequentemente da cidade e do seu espaço urbano (Capel, 2006; 2007).
Como é sabido, esta ideologia do “modelo Barcelona” foi a exportada exacerbadamente para outras cidades, principalmente na América Latina, exemplos como Buenos Aires e o Rio de Janeiro, que é a cidade questão deste trabalho vão nos trazer elementos interessantes para expormos o quanto a ideologia da estratégia global no que diz respeito as políticas públicas urbanas vão afetar os espaços públicos destas cidades e principalmente, a vida de seus moradores. Infelizmente, não podemos, assim como fizeram os autores Espanhóis, traçar os diversos pontos positivos destas políticas, afinal, quando estas são importadas por cidades de países com urbanizações mais recentes, velozes e contraditórias como no caso do Brasil e Argentina, seus resultados são mais catastróficos do que exemplares.
Neste sentido, trazemos para este debate três autores que atuam diretamente no espaço urbano do Rio de Janeiro, Carlos Vainer, Hidenburgo Pires e Fernanda Sanchez, em trabalhos que analisam as políticas e planos estratégicos da cidade do Rio de Janeiro, em relação aos planos em que estes se basearam, seus interesses, consequências e possibilidades.
Assim como Otilia Arantes que assinalou as contradições no discurso dos planejadores estratégicos que buscavam dar à cidade uma gestão empresarial competitiva, o professor Carlos Vainer vai levantar o debate do incentivo dos planos estratégicos no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro. Escrevendo sobre produtividade e competitividade enquanto a nova questão urbana, Vainer nos esclarece: “O modelo vem sendo difundido no Brasil e na América Latina pela ação combinada de diferentes agências multilaterais (BIRD, Habitat) e de consultores internacionais, sobretudo catalães, cujo agressivo marketing aciona de maneira sistemática o sucesso de Barcelona” (Vainer, 2000: 75).
No discurso de autores como Jordi Borja, Manuel Castells, Manuel de Forn, citados por Carlos Vainer, aparece claramente a visão de espaço urbano e cidade que estes esperam transformar, planejar e desenvolver. Mas antes, o autor ainda faz menção a Harvard Business School, onde fora desenvolvido o planejamento empresarial, que viria a ser inspiração central para o planejamento estratégico, que deve ser um trunfo para os governantes locais, já que as cidades estariam submetidas às mesmas lógicas, condições e desafios de uma empresa (Vainer, 2000.). O autor então cita Borja e Castells em passagens que confirmam este pensamento empresarial para as cidades e seus governos. Para Borja, “as cidades se conscientizam da mundialização da economia e da comunicação” e, em conseqüência, “se produz crescente competição entre territórios e especialmente entre seus pontos nodais ou centros, isto é, as cidades” (Borja, 1995: 276). Em Castells é ainda mais clara a ênfase na caracterização da démarche estratégica como uma imposição do ambiente de concorrência, inclusive interurbana, incerto e instável: “A flexibilidade, globalização e complexidade da nova economia do mundo exigem o desenvolvimento do planejamento estratégico, apto a introduzir uma metodologia coerente e adaptativa face à multiplicidade de sentidos e sinais da nova estrutura de produção e administração” (Castells, 1990: 14 – grifo do autor)” (Vainer, 2000: 76).
Estes mesmos autores foram os consultores contratados pela prefeitura do Rio de Janeiro para estabelecerem as metas, objetivos, diagnósticos a respeito da posição do Rio de Janeiro nesta arena global de competição entre as cidades-empresa. O discurso de produtividade, de fluxos e conexões, de investimentos principalmente estrangeiros, simplesmente faz sumir toda a pobreza, a segregação urbana, a violência urbana, o abandono dos espaços públicos. Estes quando aparecem, surgem como entraves a venda da cidade, como problemas que não devem ser solucionados por serem responsáveis pelo caos social que vivemos, mas sim porque são peças que entravam os processos de compra e venda da cidade.
“A preocupação com a imagem atinge seu paroxismo entre os estrategistas carioca-catalães quando o diagnóstico aponta como um dos problemas a “forte visibilidade da população de rua” (Plano Estratégico do Rio de Janeiro: 50): a miséria estrategicamente redefinida como problema paisagístico (ou ambiental) […] Poder-se-ia explorar um pouco mais a maneira corno a transformação da cidade em mercadoria (de luxo) repercute no olhar lançado sobre a pobreza. A transfiguração da pobreza em ambiente foi explicitamente formulada pelos catalães, quando incluíram no que chamam de entorno social “o peso da pobreza”. Os pobres são entorno ou ambiente pela simples razão de que não se constituem, nem os autóctones, nem os virtuais imigrantes, em demanda solvável. Em todos os níveis, tanto do ponto de vista concreto (infra-estruturas, subsídios, favores fiscais, apoios institucionais e financeiros de todos os tipos) quanto do ponto de vista da imagem, não resta dúvida: a mercadoria-cidade tem um público consumidor muito específico e qualificado (Vainer, 2000: 82).
A professora Fernanda Sánchez, que publica diversos trabalhos a respeito dos processos de “city-marketing” que estão em curso pelas cidades por todo o mundo, vem trazer elementos que nos ajudam a fundamentar ainda mais esta valoração da cidade enquanto produto(s), imagem e gerenciamento empresarial por parte dos gestores públicos, estes por sua vez, ancorados, subordinados, aliados aos atores hegemónicos, através de parcerias publico-privado, que é basicamente a forma de investimento dos planos estratégicos. A autora elenca os processos da globalização e suas variadas consequências, como os impulsionadores desta nova fase de planos e políticas urbanas. Os intensos fluxos das redes globais, seus atores hegemónicos com grande fluidez pelos mercados, territórios, vão aumentando ainda mais as possibilidades de localização e desenvolvimento dos setores produtivos pelo mundo, sendo a cidade os principais nós dessas infinitas redes, são estas que vão disputar estas possibilidades de desenvolvimento. O que vai ocasionar o que alguns autores chamam de “guerra dos lugares” (Alessandri, 1996: 39; Santos, 1996: 197, apud. Sánchez, 1999).
Por fim, a contribuição de um dos trabalhos do geógrafo Hindenburgo Pires, que desenvolve diversas pesquisas em torno das questões urbanas contemporâneas para a cidade do Rio de Janeiro, que busca analisar as relações entre os planos estratégicos que foram desenvolvidos no Rio de Janeiro pós 1990, com o modelo catalão, de Barcelona. Neste caso, o autor traça uma periodização dos planos e políticas urbanas que deram cabo na cidade do Rio de Janeiro. Esta periodização proposta pelo autor é ancorada em pesquisas de outros autores como Ermínia Maricato, Flávio Villaça e Vera Resende, e pode ser resumida, de acordo com Pires: “é possível efetuar uma periodização da história do planejamento urbano no Brasil, subdividindo­a em três grandes fases: a primeira, de 1875 a 1930, caracterizada pelos planos de melhoramentos e embelezamento; a segunda, de 1930 a 1990, período representado por investimentos em obras de infra­estrutura, e também caracterizado pelo predomínio dos planos diretores e pelo discurso de planejamento; e a terceira, a partir de 1990 até os dias atuais, representada pelo surgimento dos planos ou planejamentos estratégicos em oposição aos diretores” (Pires, 2010).
Para nós, nesta pesquisa, nos interessa a última fase, que está em curso até o momento, posta em prática a partir dos 1990 do século passado, onde os conceitos de “city marketing”, “gestão empresarial da cidade”, “competitividade”, “gentrificação” saltam aos olhos, tanto dos atores hegemônicos que planejam a cidade estrategicamente para gerar a mais-valia, tanto para os atores subalternizados que lutam contra esta lógica empresarial de gestão do espaço urbano. Por fim, sobre estas políticas estratégicas contemporâneas do Rio de Janeiro que vamos nos debruçar a seguir, o professor Hindenburgo Pires sentencia: “A proposta de elaboração do Plano Estratégico transformou-se em um ideário discursivo hegemônico, que completará, em 2016, vinte e três anos de políticas e intervenções urbanas e unilaterais” (Pires, 2010: 10).

3. Estudo de Caso
Voltando para a escala que nos interessa, é neste contexto econômico global que o Rio de Janeiro lançou suas candidaturas para receber eventos como os da FIFA, do COI e de outras entidades globais/transnacionais. Uma série de políticas públicas (planos estratégicos) voltadas para o território da cidade, se apresentam como facilitadores destes movimentos de competição entre as cidades, impulsionadas pelo “livre mercado”, ou seja, dinâmicas neoliberais. Por estas políticas se encontrarem sempre nas mãos dos governantes e quase sempre em direção contrária aos interesses dos cidadãos, em suma, foram em sua totalidade elaboradas a partir de técnicos e gestores, com uma preocupação e intencionalidades que tornam quase inexistentes os reais interesses dos residentes da cidade.
Para entendermos melhor estas políticas territoriais contemporâneas é necessário revisitarmos algumas décadas atrás, os movimentos que se passavam na cidade do Rio de Janeiro. Basta que voltemos a década de 80 do século XX, tempos em que a redemocratização do país e as diversas lutas sociais, inclusive de reforma urbana, se mostravam ativas na disputa pelo que viria ser a Constituição Cidadã de 1988. A partir desta nova constituição, as grandes cidades e não só estas passaram a ser obrigadas a elaborar planos diretores e outros mecanismos de gestão dos territórios urbanos que se apoiassem de fato na construção coletiva da cidade, em busca da coesão social, a máxima da “gestão democrática da cidade”.
Na cidade do Rio de Janeiro, o processo foi mediado pela SMDU e ocorreram desde o final da década de 80 diversas reuniões com grupos específicos de movimentos populares como a FAMERJ e a FAFERJ, assim como o Instituto dos Arquitetos do Brasil. Diversos GTs foram elaborados e os debates se deram de forma bastante tensa durante o projeto. Já que a inexperiência em debate público e as gritantes contradições sociais eram as marcas deixadas pela recente ditadura militar no país.
Apesar de aprovado em 1992, o plano foi posto de lado pelos governos que o sucederam. Cesar Maia, prefeito a partir de 1993, tendo seu último ano de mandato em 2008 (intervalo com Luis Paulo Conde 1997-2000, companheiro de Cesar Maia), simplesmente negligenciou o plano, que havia tido como resultado dos GTs que a prioridade seria a habitação social na cidade, em contrapartida, a gestão da cidade foi feita através dos Planos Estratégicos. No início dos anos 2000, o Estatuto da Cidade 2 foi aprovado o que fez com que o PD-92 fosse obrigatoriamente revisado, porém, esta se deu a partir de verdadeiros embates políticos, sem qualquer possibilidade de uma revisão ampla e participativa, ou seja, um descaso com a política de ordenamento territorial em vigor. Assim como o atual prefeito, Eduardo Paes (2009-atual), também aliado de Cesar Maia, o método do Plano Estratégico ainda é utilizado, em detrimento do Plano Diretor, que visava dar a cidade do Rio, um poder de decisão democrático, com participação e cidadania (Nunes, 2010).
Outro autor que já fora anteriormente citado também tece críticas a esse movimento de engavetamento do Plano Diretor em detrimento da utilização do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, que foi elaborado a partir de um acordo com a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e a Federação das Indústrias (FIRJAN), e visava descartar os processos participativos, além de diversos outros pontos necessários em uma visão cidadã e comprometida de cidade, que foram consolidados com a implementação do Plano Diretor (Pires, 2010). Neste sentido, o autor completa: “A consolidação do PECRJ apressou o engavetamento e a não obediência das normas constitucionais da promulgadas pelo poder público federal, através da Constituição Brasileira de 1988. [...] Com a PECRJ, uma clivagem de forças ou ‘uma nova coalização de poder local’ assume o controle dos instrumentos de gestão pública e passa a administrar a cidade como uma grande empresa, gerenciada pelo consórcio mantenedor, composto por 46 empresas e associações empresariais. Este consórcio recebeu a consultoria de um grupo de arquitetos e planejadores catalães, vinculados a empresa Catalã TUBSA (Tecnologias Urbanas Barcelona S/A), e foi assessorado pelo Centro Iberoamericano de Desenvolvimento Estratégico Urbano (CIDEU), estas instituições ficaram encarregadas de desempenhar a Direção Executiva do Plano” (Pires, 2010: 8-9).
Este movimento realizado pelo PECRJ, culminou em diversos projetos que não saíram do papel e quando saíram não eram concretizados por completo, em relação a atração de eventos globais, apenas os Jogos Panamericanos 2007 foram realizados na cidade, sendo a candidatura as Olimpíadas de 2012 um fracasso, já que Londres ganhou o certame para sediar este evento.
Em 2009, com os anúncios de que a cidade do Rio de Janeiro sediaria eventos como a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, a prefeitura anuncia o PEPRJ (Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro), este Plano Estratégico mais recente, é o objeto de estudo central deste trabalho. São dois volumes até o momento, o primeiro que abarca o período entre 2009 – 2012 e o segundo que refere-se aos anos de 2013-2016. Para além destes, vale a análise dos documentos da FIRJAN, intitulados Rio Decisão, também em dois volumes, um para 2012 – 2014 e outro para 2014-2016, que correspondem as aspirações das Indústrias dentro do cenário econômico global que segue na Capital Fluminense.
Neste artigo, o foco se dará em torno das questões relacionadas ao cenário da mobilidade urbana e dos transportes públicos dentro destes documentos e das políticas públicas (projetos e metas) abarcadas por este Plano Estratégico. Em primeiro momento, a respeito do volume referente aos anos de 2009-2012 do Plano Estratégico, o professor Hindenburgo Pires faz uma análise das metas relacionadas a infraestrutura e transportes para os anos em questão.
A meta de “Reduzir o gasto médio diário dos usuários de transporte público em, pelo menos, 10% entre 2009 e 2012”, também não é nada extraordinária, quando comparamos os custos com transportes no Rio de Janeiro e os de Barcelona e Buenos Aires. A questão principal é saber quais os valores envolvidos nestas metas, porque certamente são bastante desproporcionais, já que os investimentos destinados aos Projetos: Porto e Bairro Maravilha, TransOeste e Túnel da Grota Funda, representam quase 85 por cento de todos os investimentos previsto no Plano Estratégico, os investimentos previstos para área social, estão próximos aos 9 por cento. Partindo dessas informações fornecidas pelo PEPRJ, às afirmações efetuadas por Carlos Vainer (2009: 4) não são proféticas ou pessimistas, são verídicas: “Sabemos desde já quem serão os ganhadores – as grandes empreiteiras, os grandes proprietários de terras da Barrada Tijuca, que terão seu patrimônio fundiário valorizado pelos investimentos bilionários. Enquanto isso, os perdedores também já são conhecidos, e permanecerão desprovidos de transporte naquelas áreas onde reside a imensa maioria da população de nossa cidade - Zona Norte, subúrbios, Baixada fluminense e Grande Niterói. O legado, já sabemos de antemão: uma vez mais a socialização dos custos e a privatização dos benefícios” (Pires, 2010: 11).
Dando continuidade a estes autores, vale acrescentar ao debate as metas e projetos apresentados no segundo volume do Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro, referente aos anos de 2013 – 2016. Neste documento, para o setor dos transportes, são anunciados os seguintes projetos: A continuidade do Bilhete Único Carioca (projeto de subsídios de passagens que permite aos usuários dos transportes públicos utilizar mais meios de transporte em determinado tempo por uma única tarifa), a modernização da frota de ônibus*, TransOeste*, TransCarioca*, TransOlímpica*, TransBrasil*, VLT do Centro*, Projeto de Transporte Aquaviário, Tráfego Inteligente, Plano de Mobilidade Sustentável e o Rio Boa Praça. 3Cabe incluir o projeto Rio Capital da Bicicleta, que está incluso nos projetos para o meio ambiente e sustentabilidade, mas estão diretamente ligados ao setor dos transportes.
Analisando as metas que estes projetos visam alcançar, estão algumas como:
“– Melhorar a mobilidade na cidade, expandindo e modernizando o sistema estrutural de transportes de alta capacidade a partir da implantação de corredores expressos no modal rodoviário.
– Racionalizar o sistema de transportes públicos através da reorganização e integração físico-tarifária deste sistema.
– Melhorar a fiscalização e a gestão dos sistemas de transporte público através do uso da tecnologia” (Prefeitura do Rio de Janeiro, 2013: 79).
Todas estas metas estão relacionadas diretamente com um único modal de transporte público, o rodoviário, que através da Fetranspor (Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro) comanda um monopólio que rege o sistema de transporte público da cidade, os outros modais como o ferroviário (trem/metro e mais recentemente o VLT que chega ao Centro), não são suficientes para atender a maior parte do território do Rio de Janeiro, que por sua vez também não é suficiente os ônibus existentes e por conta deste e de outros fatores, existem atualmente na cidade uma frota de transportes alternativos 4 entre vans, moto-taxis que vivem na linha tênue entre a regulação e a ilegalidade, muita das vezes reféns de poderes como o do tráfico de drogas e das milícias que atuam nos subúrbios da cidade.
Este cenário parece não ser solucionável a partir das metas e projetos que se desenvolvem atualmente na cidade do Rio de Janeiro, a partir das diretrizes do Plano Estratégico. Quase a totalidade dos projetos vão no sentido de alargar mais o modal rodoviário pela cidade, principalmente em direção a Barra da Tijuca, bairro que concentra o maior volume de investimentos e projetos tanto público quanto privado. Esta necessidade de direcionar e seletivizar os investimentos em direção a este bairro da cidade, vai de encontro à agudização dos problemas já existentes na cidade, ao invés de serem traçadas políticas e metas que visem a descentralização de investimentos e postos de trabalho, como também de um maior investimento nos demais modais, como por exemplo o Veículo Leve sobre Trilho, excelente opção para reduzir distâncias e dinamizar territórios no interior das cidades.
Outro projeto que explicita a contradição destas políticas e projetos, é o VLT do Centro, que representa uma inovação estratégica necessária e de grande capacidade/qualidade no que diz respeito a mobilidade e sustentabilidade dos territórios. Porém, sua espacialidade restrita ao centro do Rio de Janeiro, o projeto representa a seletividade dos investimentos, a gentrificação que expulsa as populações pobres das áreas centrais, a revalorização de parte da cidade para poucos, em detrimento de todos.
Para que este projeto fosse posto em prática, o grande viaduto da Perimetral, de mais de 1,5 quilômetros de extensão foi demolido, numa obra que renova o Rio de Janeiro para as cidades que ultrapassaram a modernidade, a era do concreto e dos automóveis e chegou a era dos transportes inteligentes, sustentáveis. Porém, ao mesmo tempo que um viaduto no Centro é derrubado em nome da “cidade do futuro”, em diversos pontos do subúrbio da cidade, seja na Zona Norte ou na Zona Oeste, vemos diversos viadutos sendo construídos, em processos que são criticados pela obra que a mesma prefeitura elabora no Centro da cidade! As figuras a seguir (figuras 1 e 2) mostram os processos de demolição de um lado do viaduto da Perimetral, no Centro e do outro de casas no bairro de Jardim Sulacap, subúrbio da Zona Oeste, que vão dar lugar a um contraditório viaduto.
Analisando o próprio discurso da Prefeitura do Rio de Janeiro, através do Projeto Porto Maravilha, no artigo intitulado “Por que substituir o elevado da Perimetral?”, diversos argumentos são levantados, diga-se de passagem, com toda razão, se por outro lado, não houvessem diversos viadutos sendo construídos na própria cidade do Rio de Janeiro. Para além do mais, está presente no discurso a recorrente necessidade de alicerçarmos nossas políticas e ações a partir de referenciais externos como as cidades do norte global, utilizando o conceito do sociólogo Boaventura de Sousa Santos.
“Hoje, estudos técnicos comprovam que a remoção da Perimetral é fundamental para melhorar o trânsito na região. E a decisão de substituir viadutos deste porte não é ideia exótica ou sem fundamentação. APesquisa Vida e Morte das Autovias Urbanas do Institute for Transportation & Development Policy (ITDP)apurou que 17 cidades dos Estados Unidos, da Europa e de países asiáticos já substituíram seus grandes viadutos. Viadutos causam depreciação social, econômica e cultural. As razões para a substituição de elevados em todo o mundo variam entre o alto custo para manter estruturas gigantescas e projetos de revitalização para recuperar áreas degradadas pela instalação desses viadutos.[...] Centrado nas pessoas e na sustentabilidade ambiental, privilegia o transporte público, a integração entre os meios de transporte, as ciclovias e as áreas de circulação, garantindo mais fluidez ao trânsito e o desenvolvimento da região. [...] A concepção de um novo sistema viário, que inclui 28 Km de vias para oVeículo Leve sobre Trilhos (VLT), 17 Km em ciclovias e ruas para passagem exclusiva de pedestres, segue lógica muito diferente da atual. O VLT ligará os principais modais de transporte (estações de ônibus, teleférico da Providência, trens, metrô, barcas e aeroporto), diminuindo o número de carros e ônibus no Centro” (Porto Maravilha, 2012).
Trazendo para o debate os documentos da FIRJAN, Rio Decisão 2012-2014 e 2014-2016, veremos que a semelhança entre os discursos é bastante notável, para além dos mesmos projetos serem pautados como verdadeiro legado para toda a população carioca.
“A implantação do sistema BRT e do sistema de VLT, juntamente com a construção da Linha 4 do Metrô, por exemplo, serão importantes para melhorar a mobilidade urbana da cidade do Rio de Janeiro, não apenas durante os Jogos, mas principalmente depois deles.[…] A realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos provoca mudanças culturais e estruturais, reforçando a condição de global player do Rio de Janeiro. […] O Rio de Janeiro avança, assim, rumo a um novo patamar de desenvolvimento e consolida as perspectivas de bons ne gócios no estado, que se manterão nos próximos anos” (FIRJAN, 2013: 9; 11).
Outro ponto que o documento Decisão Rio 2014-2016 nos permite levantar em nossa análise é a possibilidade de espacializarmos a partir da plataforma do Google Earth os investimentos em curso na cidade do Rio de Janeiro através da georeferenciação dos dados. Como mostra a figura a seguir.
Os eixos de ligação em azul claro, representam as obras de mobilidade do BRT, que são as novas avenidas, repletas de viadutos que cruzam diversos subúrbios da cidade, que ligam-se todas a Barra da Tijuca, que por sua vez, aparece como uma das poucas áreas da cidade a receber investimentos/projetos. Fica claro também o protagonismo da Zona Sul, apesar de ser esta a zona urbana mais consolidada e de melhor infraestrutura da cidade, o Centro da cidade aparece também como grande polarizador de investimentos, principalmente no eixo do projeto “Porto Maravilha” e para toda a extensão das zonas Norte e Oeste, os investimentos e projetos são rarefeitos, para além das rodovias que cruzam estas zonas visando ligá-las a Barra da Tijuca, apenas bairros como Deodoro apresentam alguma significativa presença de projetos/investimentos, neste caso por conta de modalidades Olímpicas que vão ser praticadas lá, porém, fica claro que a cidade como um todo não usufrui da mesma maneira esse grande volume de capital investido na cidade.
A professora Valéria Pero da UFRJ, em um artigo que busca relacionar a mobilidade urbana com a pobreza também no Rio de Janeiro, nos trás uma visão acerca destes projetos na área dos transportes. Cita o Bilhete Único Carioca enquanto um avanço no que diz respeito ao custo e consequentemente a própria mobilidade urbana, que é justamente as populações mais pobres e suburbanas que arcam com maiores despesas de transporte e tem maiores taxas de deslocação cotidiana, devido a morarem geralmente longe de seus postos de trabalho, estes por sua vez, centralizados em áreas específicas da cidade, Centro e Barra da Tijuca, além de bairros da Zona Sul (Pero et al., 2012).
Outros projetos que a autora cita são o BRS, que nada mais é do que um projeto de logística para faixas exclusivas de ônibus em bairros da Zona Sul e Centro em primeiro momento e depois alargado para a Zona Norte mais próxima, que possuem o trânsito saturado e com problemas diários. Os BRTs também são lembrados como “corredores expressos e articulados, formando um anel de alta performance.”.
“Segundo o portal da Fetranspor na internet, a grande mudança, porém, não é a alteração física na via, mas o olhar da autoridade governamental em relação ao transporte público. A priorização do ônibus, na disputa pelo espaço, entre os veículos, democratiza a cidade, privilegiando o coletivo em detrimento do individual. “A conta é muito simples: se um automóvel leva em média 1,5 pessoa e um ônibus, 35, e a proporção de média de ocupação do solo é de um ônibus para 2,5 carros, ao se abrir espaço para o coletivo nas ruas, promove-se justiça social” (Pero et al., 2012: 17).
Apesar da citação levar em consideração o discurso de quem lucra e sobrevive a partir do monopólio rodoviarista do sistema de transporte público da cidade do Rio de Janeiro, a autora parece concordar com os projetos e medidas que supostamente servem para melhorar a vida dos cariocas e residentes do Rio de Janeiro.
“A quantidade e grandiosidade dos projetos mostram uma inclinação por parte do poder público para solucionar as mazelas do sistema de transportes fluminense, ainda em processo de consolidação. Resta saber se a construção do legado será eficaz no objetivo de melhorar os obstáculos do cotidiano dos cariocas e residentes, antes, durante e após a realização dos eventos” (Pero et al., 2012: 17)
Ao recordarmos os estudos aqui citados do professor Carlos Vainer, Hindenburgo Pires, Ermínia Maricato, veremos que este suposto legado para além dos eventos globais, são parte do discurso hegemônico que permite inclusive que estes projetos e ações sejam postas em prática de maneira imperativa, verticalizada e quase sempre sem qualquer possibilidade de resistência local de possíveis e prováveis atingidos por tais políticas.

4. Conclusão
Faz-se necessário disputar a cidade, disputar os conceitos e projetos de cidade que se anunciam nos discursos e nas intencionalidades dos atores que projetam e (re)produzem a cidade, o espaço urbano. Se olharmos os protestos que se desencadearam por todo o Brasil a partir do mês de junho de 2013, veremos que de todos os problemas referentes a vida urbana no Rio de Janeiro e não só nele, a questão da mobilidade urbana e da apropriação da cidade pelos próprios cidadãos foram as questões que desencadearam todos os movimentos que por sua vez, fizeram saltar os olhos estas e as outras problemáticas enfrentadas no cotidiano da cidade.
O papel da geografia neste contexto de lutas sociais e de disputa conceitual e prática da cidade é sem dúvidas relevante e deveras importante. Para que a ciência encontre um caminho mais próximo da totalidade dos indivíduos que formam a cidade, em detrimento do caminho dos gabinetes, empresas, consultorias que selam e ratificam o modelo hegemônico que seletiviza, segrega o espaço urbano, o torna um balcão de negócios, faz dos investimentos públicos, dos espaços públicos, verdadeiras mais-valias para setores específicos da economia.
Se atualmente o paradigma do Planejamento Estratégico se apresenta enquanto o braço neoliberal das políticas públicas voltadas para o espaço urbano, é extremamente importante que se subverta o conceito de estratégia, para que este esteja em comunhão com os interesses do maior número de atores possíveis, sejam eles hegemônicos ou não, para que assim, a possibilidade de coesão social seja de fato uma “luz no fim do túnel”.
“A história recente do Planejamento no Brasil continua sendo marcada, como diria Ermínia Maricato, pelas “idéias fora do lugar”. É preciso instaurar um espaço para o debate democrático sobre as políticas urbanas, no qual haja efetivamente a participação ativa dos cidadãos. É preciso criar mecanismos que garantam o controle e a orientação dos investimentos públicos. É preciso garantir a efetivação de ações sociais e ambientais que garantam a melhoria da qualidade de vida da população. Torna-se crucial o detalhamento do Plano Estratégico, é preciso mais transparência na execução das metas e dos recursos que lhes serão destinados. Sem a participação da sociedade estaremos importando não apenas modelos, mas ilusões em vez de utopias sociais!” (Pires, 2010: 12).
Por fim, trago esta a última passagem do geógrafo Hindenburgo Pires, que por sua vez, é um dos intelectuais orgânicos mais presentes nas lutas sociais contemporâneas do Rio de Janeiro, atuando dentro de sua posição profissional, enquanto professor do departamento de Geografia da UERJ, mas sobretudo, enquanto cidadão brasileiro preocupado com as questões urbanas e sociais que assolam as cidades do país.

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Site Visitados
http://portomaravilha.com.br/web/sup/serObrMapaPer.aspx (Porto Maravilha, 2012) <acesso 17/05/2014>

1 Versão publicada em idioma português do Brasil.

2 Lei 10.257/2001 que refere-se aos temas relacionados as políticas urbanas no Brasil, visando atribuir um caráter mais participativo e cidadão as gestões territoriais, assim como ratificar a importância da função social da propriedade.

3 Todos os projetos marcados com “*” dizem respeito a projetos ligados diretamente aos Jogos Olímpicos Rio 2016.

4 De acordo com dados do PDTU 2003, a representatividade das vans e moto-taxis do transporte alternativo representam 16% do total de transportes coletivos da cidade, ficando atrás apenas dos ônibus que representam 74%, o metrô representa apenas 3%, mesma porcentagem dos trens, apenas 1% representa as barcas/catamarã e o bonde (atualmente inexistente) 0%.