PLANEAMENTO E GESTÃO TERRITORIAL

PLANEAMENTO E GESTÃO TERRITORIAL

Paulo Carvalho. Coordenação (CV)
Universidade de Coimbra

Volver al índice

CLASSIFICAÇÃO DE PATRIMÓNIO NATURAL: O EXEMPLO DOS PENEDOS DE GÓIS1 (CORDILHEIRA CENTRAL PORTUGUESA)

Luiz Alves

Bruna Cordeiro

Paulo Carvalho

Resumo
O património natural, enquanto recurso não renovável, encontra-se exposto a diversas situações de vulnerabilidade designadamente a que resulta da ação antrópica.
Uma das formas de proteger mas, também, de valorizar e reconhecer a singularidade, raridade ou representatividade do património natural de um determinado território é através da sua classificação que, em Portugal, decorre do Sistema Nacional de Áreas Classificadas.
No caso dos Penedos de Góis, a sua singularidade e importância são atestadas, entre outros, pela sua elevada importância nos domínios paleontológico, tectónico-estrutural, geomorfológico e paisagístico, o que justifica a sua classificação como Monumento Natural.

1. Conservação da natureza, biodiversidade e estatutos de proteção
As preocupações em matéria de conservação da natureza e biodiversidade emergem no contexto da discussão em torno do desenvolvimento e das suas diferentes visões ou perspetivas e assumiram, como estas, uma dimensão internacional, que é visível sobretudo a partir do início dos anos 70 (século XX), associada ao propósito de constituir redes e sistemas (na amplitude das escalas mundial, nacional e regional) para a partilha de informação/formação e conhecimentos em torno de questões que começavam a revelar um carácter global e interdependente.
O lançamento do Programa “O Homem e a Biosfera (UNESCO, 1971), que está na génese da Rede Mundial de Reservas da Biosfera, a realização da primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente (Estocolmo, 1972) ou a aprovação da Diretiva Aves (em 1979) pela então Comunidade Económica Europeia (que vai constituir um dos pilares da futura Rede Natura 2000), são alguns exemplos paradigmáticos do reconhecimento da necessidade de uma ação internacional concertada neste domínio, a que se juntam outros contributos nas décadas seguintes como, por exemplo, a Convenção sobre a Diversidade Biológica (no contexto da Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, que decorreu no Rio de Janeiro, em 1992), a Estratégia Pan-Europeia da Diversidade Biológica e Paisagística (preparada pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente, Conselho da Europa e Centro Europeu para a Conservação da Natureza, e adotada em 1996) ou a Estratégia da Comunidade Europeia em Matéria de Diversidade Biológica (1998).
Instituições como a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) ou o Conselho da Europa, entre outras entidades políticas, científicas e culturais, ajudaram a colocar em agenda a problemática da proteção da natureza e da relevância do património natural, e apontaram alguns caminhos comuns numa perspetiva de desenvolvimento sustentável que tem vindo a afirmar-se como imperativo da ação política em diferentes escalas de análise (Carvalho e Fernandes, 2002).
Para além de eventos e programas de ação, diversos documentos orientadores e normativos contribuíram para lançar, consolidar e difundir conceitos, critérios reguladores e boas práticas, assim como desempenharam um papel decisivo no esclarecimento e formação da opinião pública em matéria de proteção da natureza e promoção da biodiversidade.
Os estatutos de classificação materializam o reconhecimento internacional e/ou nacional do valor relevante de determinados bens e asseguram, no plano jurídico, a proteção adequada aos mesmos no sentido de que possam desempenhar as suas múltiplas funções segundo uma lógica de solidariedade intergeracional.
A concepção de áreas protegidas e os modelos para a sua gestão fizeram o seu percurso. No primeiro caso, podemos afirmar que inicialmente assumiu preponderância o modelo conservacionista ligado aos parques nacionais da América do Norte (de que é exemplo Yellowstone, nos Estados Unidos, classificado em 1872), o qual defendia uma visão estreita (redutora) de conservação da natureza em estado selvagem em que a presença/ação do Homem estava muito condicionada, diferenciando-se do modelo Europeu Ocidental, que assume expressão desde os anos 20/30 do século XX, centrado em paisagens que apesar de uma longa e intensa presença do Homem mantinham características naturais ou seminaturais relevantes, e que nos exemplos mais felizes espelha uma relação harmoniosa entre os elementos antrópicos e físicos, para além de revelar preocupações económicas, sociais, culturais e científicas, e uma gestão mais integrada e participativa (das comunidades locais). Esta concepção, inicialmente através dos parques naturais, reflete o intuito de conciliar interesses de certa forma antagónicos e integrar valores naturais e culturais, isto é, já não inclui apenas os recursos naturais de relevância patrimonial (a vertente de conservação), considera também a salvaguarda e valorização dos modos de vida tradicionais, para além de indiciar uma maior abertura às atividades de lazer e turismo.
No caso de Portugal, a política de conservação da natureza e biodiversidade e os seus instrumentos de execução refletem em boa medida os compromissos internacionais que o nosso país tem assumido desde os anos 70 (século XX). Antes é possível assinalar algumas preocupações em relação às áreas protegidas, embora orientadas sobretudo para a criação de reservas de caça nas antigas colónias, tendo em vista regulamentar essa atividade e controlar as espécies cinegéticas, como é o caso dos Parques da Gorongosa2 (Moçambique) e do Iona3 (Angola), entre outros.
A partir de 1970, primeiro com a Lei nº. 9/70, que lançou os pilares de uma política pública neste domínio, tornando possível a proteção e “a defesa de áreas onde o meio natural deva ser reconstituído ou preservado contra a degradação provocada pelo homem”, por meio da criação de parques naturais e outros tipos de reservas, e permitiu ao país iniciar o acompanhamento da evolução internacional de proteção da natureza, através da classificação das áreas mais representativas do património natural (é de 1971 a criação do Parque Nacional da Peneda-Gerês, ao qual se seguiu a instituição de outras áreas protegidas), e sobretudo após o 25 de abril de 1974, em sucessivos governos, esta matéria é objecto de atenção especial, destacando-se a legislação aprovada em 1976 (o Decreto-Lei n.º 613/76 alargou o espetro da proteção com a inclusão de valores estéticos e culturais na classificação de áreas a proteger), 1978 (Decreto-lei n.º 4/78, com a publicação da estrutura orgânica das áreas protegidas), 1987 (Lei da Bases do Ambiente, Lei n.º 11/87, que consagra os conceitos de área protegida de âmbito regional e local, em que a gestão destas áreas passa a ser cometida às autarquias locais ou às associações de municípios; prevê a possibilidade de serem criadas áreas protegidas de interesse privado, designadas de “sítios de interesse biológico”; e remete para a criação de uma rede nacional de áreas protegidas), 1993 (com a concretização da referida rede, através da Lei n.º 19/93, e a criação do Instituto de Conservação da Natureza), e 2001 (ano de aprovação da Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 152/2001).
Esta última “formula 10 opções estratégicas para a política de conservação da natureza e da biodiversidade, de entre as quais avulta a opção n.º 2, relativa à constituição da Rede Fundamental de Conservação da Natureza (RFCN) e do Sistema Nacional de Áreas Classificadas (SNAC), integrando neste a Rede Nacional de Áreas Protegidas (…)” (Diário da República, 1.ª série, n.º 142, 2008: 4596-7).

2. Modalidades de classificação de áreas protegidas
Concretizada através do Decreto-Lei nº. 142, de 24 de julho de 2008, a RFCN é composta pelas áreas nucleares de conservação da natureza e da biodiversidade integradas no SNAC e pelas áreas de Reserva Ecológica Nacional, de Reserva Agrícola Nacional e do domínio público hídrico enquanto áreas de continuidade que estabelecem ou salvaguardam a ligação e o intercâmbio genético de populações de espécies selvagens entre as diferentes áreas nucleares de conservação, contribuindo para uma adequada proteção dos recursos naturais e para a promoção da continuidade espacial, da coerência ecológica das áreas classificadas e da conectividade das componentes da biodiversidade em todo o território, bem como para uma adequada integração e desenvolvimento das atividades humanas.
Ainda em concretização da mesma opção estratégica, o referido diploma estrutura o SNAC, o qual é constituído pela Rede Nacional de Áreas Protegidas, pelas áreas classificadas que integram a Rede Natura 2000 e pelas demais áreas classificadas ao abrigo de compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português, assegurando a integração e a regulamentação harmoniosa dessas áreas já sujeitas a estatutos ambientais de proteção.
No que diz respeito às autoridades para a conservação da natureza e da biodiversidade, “Sem prejuízo das competências próprias de outras entidades públicas que concorrem para a conservação da natureza e da biodiversidade, designadamente da autoridade florestal nacional, cabe:
a) Ao Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I. P., exercer as funções de autoridade nacional para a conservação da natureza e da biodiversidade, abreviadamente designada por autoridade nacional, competindo-lhe promover a nível nacional a conservação da natureza e da biodiversidade e garantir, nos moldes previstos nos capítulos seguintes e na respetiva lei orgânica, a consecução dos objetivos do presente decreto-lei;
b) Às comissões de coordenação e desenvolvimento regional executar, avaliar e fiscalizar, ao nível regional, a política de conservação da natureza e da biodiversidade em articulação com a autoridade nacional;
c) Às associações de municípios e aos municípios gerir as áreas protegidas de âmbito regional ou local, respetivamente, e participar na gestão das áreas protegidas de âmbito nacional, designadamente por via da integração nos respetivos conselhos estratégicos” (Diário da República, 1.ª série, nº. 142, 2008: 4600).
Em relação à constituição da Rede Nacional de Áreas Protegidas, estabelecida pelo artigo 10º do citado Decreto-Lei nº. 142/2008, “devem ser classificadas como áreas protegidas as áreas terrestres e aquáticas interiores e as áreas marinhas em que a biodiversidade ou outras ocorrências naturais apresentem, pela sua raridade, valor científico, ecológico, social ou cénico, uma relevância especial que exija medidas específicas de conservação e gestão, em ordem a promover a gestão racional dos recursos naturais e a valorização do património natural e cultural, regulamentando as intervenções artificiais suscetíveis de as degradar. A classificação de áreas protegidas pode abranger o domínio público e o domínio privado do Estado, a zona económica exclusiva e, em geral, quaisquer bens imóveis” (Diário da República, 1.ª série, nº. 142, 2008: 4600-1).
As áreas protegidas podem ter âmbito nacional, regional ou local, consoante os interesses que procuram salvaguardar, e classificam-se nas seguintes tipologias:
a) Parque nacional (“área que contenha maioritariamente amostras representativas de regiões naturais características, de paisagens naturais e humanizadas, de elementos de biodiversidade e de geossítios, com valor científico, ecológico ou educativo”).
b) Parque natural (“área que contenha predominantemente ecossistemas naturais ou seminaturais, onde a preservação da biodiversidade a longo prazo possa depender da actividade humana, assegurando um fluxo sustentável de produtos naturais e de serviços”).
c) Reserva natural (“área que contenha características ecológicas, geológicas e fisiográficas, ou outro tipo de atributos com valor científico, ecológico ou educativo, e que não se encontre habitada de forma permanente ou significativa”).
d) Paisagem protegida (“área que contenha paisagens resultantes da interacção harmoniosa do ser humano e da natureza, e que evidenciem grande valor estético, ecológico ou cultural”).
e) Monumento natural (“ocorrência natural, contendo um ou mais aspectos, que pela sua singularidade, raridade ou representatividade em termos ecológicos, estéticos, científicos e culturais, exigem a sua conservação e manutenção da sua integridade”).
Ainda de acordo com o citado suporte normativo, as áreas protegidas de âmbito nacional podem adotar qualquer das tipologias referidas; as áreas protegidas de âmbito regional podem assumir qualquer das tipologias com exceção da tipologia parque nacional, devendo as mesmas serem acompanhadas da designação “regional” ou “local”, conforme o caso. Podem ainda ser classificadas áreas protegidas de estatuto privado, assumindo a designação de “áreas protegidas privadas”.
A gestão das áreas protegidas incumbe à autoridade nacional, às associações de municípios ou aos municípios, conforme se trate de áreas protegidas de âmbito nacional, regional ou local, respectivamente.
Quanto à classificação, a legislação refere duas situações, a saber: no caso das áreas protegidas de âmbito nacional a proposta parte da autoridade nacional ou de quaisquer entidades públicas ou privadas, designadamente autarquias locais e associações de defesa do ambiente; por sua vez, os municípios ou as associações de municípios podem classificar áreas protegidas de âmbito regional ou local, desde que os planos municipais de ordenamento do território aplicáveis na área em causa prevejam um regime de proteção compatível.
Com base na informação disponível no site do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (consultado a 17 de outubro de 2014), a RNAP em Portugal Continental integra mais de quatro dezenas de áreas protegidas (figura 1), repartidas do seguinte modo: 1 parque nacional (Peneda-Gerês); 13 parques naturais; 9 reservas naturais; 6 paisagens protegidas; 7 monumentos naturais; 4 paisagens protegidas locais; 2 reservas naturais locais; 1 paisagem protegida regional, e 1 área protegida privada.

3. Penedos de Góis – enquadramento geográfico e geomorfológico
Conforme assinala Lourenço (1996:35), no interior das Serras de Xisto do Centro de Portugal afloram quartzitos, em manchas alongadas e estreitas, orientadas NW-SE (numa direção ortogonal à orientação geral das formas de relevo das Serras de Xisto, de NE-SW), de idade ordovícica (cerca de 480 milhões de anos) “nomeadamente nos Penedos de Góis, num afloramento que se estende desde os Penedos de Fajão à Serra do Muradal e, ainda, noutras pequenas manchas”. Na mesma direção, e antes de alcançar a linha de fronteira, ergue-se a crista quartzítica de Penha Garcia e “(…) la haute muraille d´une double crête quartzitique, traversée par le Tage au fond d’une gorge imposante, dite «Portes de Ródão» (Ribeiro, 1949: 74).
Situados a oeste do concelho de Góis, os Penedos de Góis (figura 2), que atingem uma altitude máxima de 1043 metros, marcam a transição entre a Serra da Lousã e a(s) Serra(s) do Açor. Materializam o prolongamento mais meridional das cristas quartzíticas que se estendem desde o Buçaco (figura 3), por quase quarenta quilómetros, atravessando os rios Mondego e Ceira, com expressão em Cruz Alta (563 metros), Atalhada (357 metros), São Pedro Dias/Bidueiro (458 metros), Senhora da Candosa (249 metros), entre outros locais.
A sua imponência marca, de forma bastante vincada, a paisagem do concelho de Góis, bem como da região envolvente, quer pela rigidez da forma concedida pelo quartzito, quer pelo contraste fornecido pela “suavidade” do relevo xistoso envolvente, em que estão inseridos (figura 4).
As principais direções dos alinhamentos quartzíticos são de orientação hercínica. Porém, os acidentes transversais, de direção NNE-SSW, poderão ser mais antigos, tendo ressoado posteriormente por diversas vezes.
“Os efeitos desses rejogos conservam-se durante muito tempo nos quartzitos, devido à sua dureza, pelo que a interpretação das suas formas de pormenor pode ajudar a precisar as características gerais da movimentação dos principais blocos constituintes das Serras de Xisto, já que nestes materiais se torna mais difícil seguir as falhas” (Lourenço, 1996: 58).
As cristas quartzíticas são um ótimo “auxílio” para a compreensão de determinados elementos. De facto, “quando procedemos ao trabalho minucioso do levantamento da rede de fraturas e à identificação de falhas, quer no campo, quer através da interpretação estereoscópica de fotografias áreas, as cristas quartzíticas revelam-se sempre um ótimo auxiliar […]. Por vezes, constituíram mesmo um elemento fundamental para discernirmos, através da movimentação refletida pelas cristas, a importância relativa das principais falhas, uma vez que nos xistos essas manifestações se degradam com muito mais facilidade, pelo que raramente se conservam por longos períodos. […] Só as cristas quartzíticas permitem identificar com alguma segurança as características das movimentações sofridas. Efetivamente, os perfis longitudinais das cristas testemunham as deformações da superfície culminante da montanha, ela mesmo derivada do arrasamento eocénico” (Lourenço, 1996: 58).
Os rios e as ribeiras franqueiam as cristas quartzíticas denotando, quase sempre, uma adaptação generalizada às fraturas que atravessam aquelas formas. É o que se sucede nos Penedos de Góis (figura 5).
Seguindo a proposta de Lourenço (1996:145), os Penedos de Góis são delimitados, a Norte, pelo vale da ribeira da Ponte do Sótão, a qual explora a falha que soergue a crista. Sensivelmente a meio do afloramento são, ainda, franqueados pela ribeira da Pena, a qual, para o efeito, aproveita o acidente que levanta a Serra do Penedo (figuras 3 e 6).
Muitas vezes, as ribeiras, no início da sua existência, adaptam-se à dureza dos quartzitos, correndo a seu lado, não os atravessando, ajudando, deste modo, à melhor definição das cristas. Isto verifica-se, em particular, do lado nascente, provavelmente em função do aproveitamento de fraturas paralelas, sendo exemplo disso o rio Sótão nos Penedos de Góis (Lourenço, 1996).
“Os quartzitos são o obstáculo que as linhas de água têm de vencer com mais frequência, se bem que, nem sempre, proporcionem ruturas de declive significativas, posto que as linhas de água aproveitam, quase sempre, fraturas para franquearem essas rochas. É o que se verifica com o rio Ceira, na Senhora da Candosa (figura 7), e com a ribeira da Ponte do Sótão, no limite Norte dos Penedos de Góis. Aliás, esta ribeira não apresenta nenhum ressalto significativo aos atravessar os quartzitos, mas, como o próprio rio Sótão, possui uma importante rutura quando passa a seguir à falha que soergue a Serra da Lousã, na área dos Penedos de Góis, pelo que a origem desta rutura será de natureza tectónica.
A jusante desta rutura, pouco depois de deixar a falha, o rio Sótão apresenta uma outra rutura, situada pelos 300 metros de altitude, a qual deverá estar ligada a uma antiga fase de estabilidade da drenagem, provavelmente relacionada com a dificuldade do rio transpor o afloramento quartzítico da Senhora da Candosa.
Ainda num afloramento do rio Sótão, na ribeira da Pena, ocorre a rutura mais importante relacionada com quartzitos, a qual deixa alcandorada sobre o rio Sótão a pequena ribeira da Pena” (Lourenço, 1996:158).

4. Proposta e fundamentação de classificação dos Penedos de Góis
Tendo em consideração os múltiplos fatores integrantes do território correspondente aos Penedos de Góis, e após uma análise, quer dos diversos elementos que compõem a área proposta para classificação, quer a partir de uma análise comparativa de vários processos de classificação de Património Natural em Portugal, com as várias tipologias de classificação possíveis, defende-se, para os Penedos de Góis, a sua classificação como “Monumento Natural”, de acordo com artigo 20.º do Decreto-Lei nº. 142, de 24 de julho de 2008.
Conforme referido anteriormente, entende-se por monumento natural “uma ocorrência natural contendo um ou mais aspetos que, pela sua singularidade, raridade ou representatividade em termos ecológicos, estéticos, científicos e culturais, exigem a sua conservação e a manutenção da sua integridade”.
De acordo com o citado diploma, “a classificação de um monumento natural visa a proteção dos valores naturais, nomeadamente ocorrências notáveis do património geológico, na integridade das suas características e nas zonas imediatamente circundantes, e a adoção de medidas compatíveis com os objetivos da sua classificação, designadamente: a) A limitação ou impedimento das formas de exploração ou ocupação suscetíveis de alterar as suas características; b) A criação de oportunidades para a investigação, educação e apreciação pública”.
Os Penedos de Góis apresentam singularidades que merecem ser objeto de estudos mais aprofundados, com a criação de uma equipa multidisciplinar, contemplando a preparação de um plano especial de conservação/valorização patrimonial. É inquestionável a importância atribuída aos Penedos de Góis, no contexto municipal e regional, pelas suas múltiplas dimensões naturais (designadamente as geológicas, geomorfológicas, biogeográficas e icnográficas). Também o seu conteúdo cénico, repleto de paisagens multiformes, com recantos e trilhos singulares, é relevante na lista de ponderação de motivos pelos quais os Penedos de Góis merecem ser protegidos e valorizados, mediante a atribuição de um estatuto de classificação, e nos quais se podem desenvolver múltiplas atividades lúdicas mas, essencialmente, pedagógicas e de aulas vivas, in situ, tirando partido máximo dos seus diversos conteúdos naturais e potencialidades de várias índoles.
Na sua página na internet, o LNEG (Laboratório Nacional de Energia e Geologia), apresenta uma série de fichas com as principais características de vários Geo-Sítios4 , correspondendo a um inventário de sítios com interesse geológico. Para o caso concreto dos Penedos de Góis a referida instituição recomenda, como medidas de proteção, a “Preservação do enquadramento paisagístico”, propondo a classificação como “Área de Paisagem Protegida”.
O Laboratório Nacional de Energia e Geologia considera os Penedos de Góis como um sítio de interesse regional, destacando o seu interesse e importância a vários níveis, salientando-se os interesses paleontológico, tectónico-estrutural, geomorfológico e paisagístico (figura 7).
Tendo como exemplo o aproveitamento dos recursos relacionados com a icnologia, as Cruziana foram a base para a criação de um paradigma de desenvolvimento socioeconómico, em vários locais em Portugal, assente no Lazer/Turismo de Natureza, com a criação do Geopark Naturtejo da Meseta Meridional sob os auspícios da UNESCO.
Dado que nos últimos anos se tem assistido a um grande incremento das atividades de proteção e divulgação do património geológico, alguns desses locais, através das suas autarquias em parceria com instituições de ensino superior, investiram em projetos de conservação e promoção da herança geológica, tendo já sido agraciados com o Prémio de Geoc­onservação (Penha Garcia em 2004, Valongo em 2005 e Arouca em 2008), ou estando inseridos na Rede Europeia de Geoparques: Penha Garcia no Geoparque Naturtejo da Meseta Meridional, desde 2006, e Canelas no Geoparque de Arouca, desde 2009.
Os Penedos de Góis são, também, uma unidade natural que importa conservar devido ao elenco florístico e comunidade faunística. Nas cotas mais elevadas desta crista quartzítica ocorre uma situação híbrida resultante do cruzamento da influência atlântica e continental que permitem a inesperada ocorrência de uma flora representativa dessas regiões climáticas. Aí encontramos, por exemplo, Quercus rotundifolia e Ilex aquifolium, mas também outras espécies legalmente protegidas, de ocorrência muito localizada, raras ou ameaçadas, como Circaetus gallicus, Monticola saxatilis.
Salientar ainda a ribeira da Pena, afluente do rio Sótão, um dos mais bem conservados cursos de água de média montanha no Centro de Portugal, onde as formações ripícolas possuem uma constituição e conservação excelentes.
No seguimento do que foi evidenciado, procuramos, de seguida, de forma sintética, agrupar os vários elementos que podem contribuir decisivamente para suportar a proposta de classificação, preservação e valorização dos Penedos de Góis como Monumento Natural, a saber:
‒ Potencial paleoecológico: A diversidade de icnofósseis nos Penedos de Góis permite inferir um conhecimento mais aprofundado dos ecossistemas marinhos bentónicos, característicos da plataforma continental, de há cerca de 490 milhões de anos. Os icnofósseis permitem determinar o modo de vida das comunidades bióticas e suas adaptações às variações ambientais, como sejam as modificações da composição do substrato face à espessura da coluna de água e à ação das frequentes tempestades que assolavam os fundos marinhos da margem NW do supercontinente Gondwana.
Nestas associações de icnofósseis é possível estudar a ecologia de organismos sem estruturas esqueléticas mineralizadas, o que lhes confere um baixo potencial de fossilização. Na condição citada encontram-se igualmente os órgãos da zona ventral, incluindo o aparelho locomotor das trilobites, cuja morfologia, modo de funcionamento e aplicações podem ser conhecidas a partir dos diversos icnofósseis atribuídos a este grupo de organismos.
‒Potencial pedagógico: A qualidade de exposição dos afloramentos e os excelentes exemplos de estruturas geológicas observáveis nos blocos que constituem a área, conferem a este circuito geológico um interesse singular na divulgação e sensibilização do grande público para as Geociências.
‒Potencial didático: A possibilidade de estabelecer um circuito geológico, de ampla acessibilidade aos pontos de maior interesse, apresenta grandes potencialidades em atividades letivas de campo, passíveis de serem ajustadas a qualquer grau de ensino. Os alunos poderão aprender os conceitos básicos de Geologia e da Paleontologia a partir, por exemplo, da observação das características morfológicas dos icnofósseis e da caracterização das rochas associadas, bem como da realização de moldes. Estas observações no campo estimularão não só um desenvolvimento a nível cognitivo, como também sensibilizarão o aluno para a defesa e preservação de um património natural que deverá ser considerado seu.
‒Potencial turístico: O circuito geológico encontrar-se-á disponível durante o ano inteiro, permitindo visitas de índole científico-cultural, as quais poderão incidir sobre o estudo dos icnofósseis, sua interpretação etológica e extrapolações para o conhecimento da evolução da vida nos primeiros estádios de radiação morfológica e comportamental. É possível ainda apreender conceitos ao nível das Ciências da Terra a partir de exemplos elucidativos e, por vezes, espetaculares e únicos a nível mundial. Poder-se-á relacionar as propriedades físicas das rochas quartzíticas com a sua utilização como material de construção das azenhas junto do rio e da sua integração, parcialmente, nas casas tradicionais das aldeias envolventes. O enquadramento dos Penedos de Góis no contexto das Aldeias do Xisto (Pena) também se encerra como uma oportunidade e uma mais-valia em termos de lazer e turismo (figura 8).
5. Notas finais
Os processos de classificação, materializados através de estatutos de proteção legal, pretendem favorecer a conservação e valorização de bens/sítios considerados de valor excecional do ponto de vista científico ou estético.
Na atualidade “(…) reconhece-se que, além do seu valor intrínseco, o património cultural e o património natural constituem importantes fatores de competitividade das regiões, capazes de potenciar um vasto conjunto de atividades compatíveis com os princípios do desenvolvimento sustentável, desde a gestão e manutenção das próprias áreas e locais protegidos, até à exploração de uma panóplia de produtos e serviços a eles associados, passando pelas atividades da sua salvaguarda” (Cóias, 2012: 3).
“A crescente sensibilização das sociedades modernas para as questões culturais e ambientais tem fomentado uma maior abertura e interesse, por parte das instituições governamentais e não-governamentais, para o desenvolvimento e estabelecimento de estratégias de intervenção no âmbito da preservação, reabilitação e conservação do património cultural e do património natural. No entanto, talvez pela importância social que têm assumido os movimentos ecologistas, muitos dos esforços desenvolvidos no âmbito do património natural, são maioritariamente canalizados peara a conservação dos elementos biológicos (fauna e flora) e só excecionalmente para os aspetos geomorfológicos ou geológicos” (Vieira e Cunha, 2004:1).
De facto, é neste quadro que se pode equacionar o caso dos Penedos de Góis. Pese embora lhes seja reconhecida importância elevada a vários níveis (paleontológico, tectónico-estrutural, geomorfológico e paisagístico), continua a ser um território pouco valorizado, com algum do seu património desprotegido e objecto de verdadeiros atentados (como sucede com a destruição de blocos onde se encontram Cruzianas).
O relatório apresentado no final do ano de 2012 sugeriu a sua classificação como Monumento Natural, alertando para a necessidade de prosseguir com alguns estudos de maior profundidade nas áreas da paleontologia, geomorfologia e biologia.
Apesar da convergência em torno da relevância deste sítio e das disponibilidades manifestadas pelos investigadores que participaram do evento alusivo a esta questão (Aigra Nova, dezembro de 2012), começa a ser tempo de implementar as tarefas que podem conduzir ao reconhecimento/classificação dos Penedos de Góis, ou dito de outra forma, são reconhecidas características mais do que suficientes para que seja dado início ao processo de classificação deste geomonumento, de elevado interesse regional, e com o qual o município de Góis muito terá a ganhar, na conservação, preservação e valorização deste recurso.

Referências bibliográficas
Almeida, C. et al. (2000) – Sistemas Aquíferos de Portugal Continental. Instituto da Água. Lisboa. Disponível em http://snirh.pt/snirh/download/aquiferos_PortugalCont/Ficha_O20.pdf [10-02-2012].
Alves, L. (Coordenação); Cordeiro, B. (2012) – Os Penedos de Góis ‒ Geomorfologia, Geologia e Paisagem: a importância de classificar o Património Natural. Lousitânea Liga de Amigos da Serra da Lousã. Góis.
Carvalho, P. e Fernandes, J. (2002) – “Paisagem e apropriação dos Territórios. Reflexão em torno de dois exemplos comparativos: a Serra da Lousã e o Parque Natural das Serras de Aire de Candeeiros”. In Caetano, L. (coord.): Territórios, Globalização e Trajetórias de Desenvolvimento. Centro de Estudos Geográficos, Coimbra, pp. 275-320.
Cóias, V. (2012) – Património Natural, Património Cultural: a construção tem limites. GECoRPA - Grémio do Património. Lisboa. Disponível em http://www.gecorpa.pt/Upload/Documentos/patrim_natural_ecossistemas.pdf [12-10-2014].
Cunha, L. (2008) – Contributo para o estudo hidrogeológico da Carta 19-D Coimbra – Lousã. Dissertação de Mestrado em Engenharia Geológica. Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro. Aveiro. Disponível em http://biblioteca.sinbad.ua.pt/teses/2009000987 [18-04-2012].
Cunha, P. et al. (2009) – “O Monumento Natural das Portas de Ródão”. Geonovas, nº. 22, pp. 3-13, Associação Portuguesa de Geólogos. Lisboa. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/15176/1/2009Cunha_etal-Geonovas22.pdf [02-02-2012].
Daveau, S; Ribeiro, O.; Birot, P. (1985) – Les bassins de Lousã et d’Arganil. Recherches géomorfologiques et sédimentologiques sur le massif ancien et sa couverture à l’est de Coimbra. Vol. I (Le Bassin Sédimentaire). Memórias do Centro de Estudos Geográficos, Lisboa.
Daveau, S; Ribeiro, O.; Birot, P. (1986) – Les bassins de Lousã et d’Arganil. Recherches géomorfologiques et sédimentologiques sur le massif ancien et sa couverture à l’est de Coimbra. Vol. II (L’Évolution du Relief). Memórias do Centro de Estudos Geográficos, Lisboa.
Daveau, S; Feio, M. (org.) (2004) – O Relevo de Portugal. Grandes Unidades Regionais. Associação Portuguesa de Geomorfólogos, Coimbra.
Delgado, J. F. Nery (1885) – Estudo sobre os Bilobites e Outros Fosseis das Quartzites da Base do Systema Silurico de Portugal. Typografhia da Academia Real das Sciencias. Lisboa.
Diário da república (2008) – Decreto-Lei n.º 142/2008 de 24 de Julho. Disponível em http://www.dre.pt/pdf1sdip/2008/07/14200/0459604611.PDF [12-10-2014].
Diário da república (2001). Resolução do Conselho de Ministros nº. 152/2001. Disponível em https://dre.pt/application/dir/pdfgratis/2001/10/236B00.pdf [12-10-2014].
Gouveia, J. (2005) – Proposta de Classificação das Portas de Ródão. Câmara Municipal de Nisa e Câmara Municipal de Vila Velha de Ródão. Disponível em http://www.altotejo.org/acafa/docsN2/Monumento_Natural_das_Portas_de_Rodao.pdf [22-02-2012].
Henriques, P. (2007) – Áreas Protegidas de Portugal Continental – estatutos de conservação. Disponível em http://portal.icnb.pt/NR/rdonlyres/115C846FC85F4F5787587DE8AA662E5A/0/%C3%81reasProtegidasestatutos_de_conservacao.pdf [22-02-2012].
Lourenço, L. (1996) – Serras de Xisto do Centro de Portugal. Contribuição para o seu conhecimento geomorfológico e geo-ecológico. Dissertação de Doutoramento em Geografia. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Coimbra.
Sousa, C. (2012) – Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Património Mundial. Disponível em whc.unesco.org/archive/opguide11-pt.doc [12-10-2014].
Pereira, A. Ramos et al. (2006) – Os Recursos Naturais em Portugal: Inventariação e Proposta de um Modelo Geográfico de Avaliação. Centro de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa. Disponível em http://www.apgeo.pt/files/docs/CD_X_Coloquio_Iberico_Geografia/pdfs/089.pdf [02-02-2012].
Rebelo, F. (1992) – “O Relevo de Portugal”. In. Enciclopédia Temática Portugal Moderno – Geografia. POMO – Edições Portugal Moderno, Ldª., Lisboa, pp. 13-28.
Ribeiro, O. (1949) – Le Portugal Central (Livret-guide de L’Exrcursion c). Union Géographique Internationale. Lisboa.
Vasio, M. (2014): O papel das áreas protegidas no desenvolvimento de áreas remotas e populações locais. Caso Parque Nacional do Iona. Pré-projeto de dissertação no âmbito do Doutoramento em Turismo, Lazer e Cultura (Universidade de Coimbra), 25 pp. (inédito).
Vieira, A.; Cunha, L. (2004) – “Património Geológico – Tentativa de Sistematização”. In Actas do III Seminário Latino-americano de Geografia Física, CD-Rom, GMF016, Puerto Vallarta. Disponível em http://georeferencias.no.sapo.pt/VieiraCunha-PatrimonioGeomorf.pdf [22-02-2012].

1 Este texto tem como ponto de partida o relatório apresentado ao Município de Góis, com o título: “Os Penedos de Góis – Geomorfologia, Geologia e Paisagem: a importância de classificar o Património Natural”, na sequência dos estágios realizados por Luiz Alves e Bruna Cordeiro, que apresentou uma proposta fundamentada de classificação dos Penedos de Góis como Monumento Natural, em dezembro de 2012, e integra contributos posteriores que permitiram fixar a presente narrativa.

2 Conforme informação disponível no site oficial deste Parque (www.gorongosa.org), a “Gorongosa foi inicialmente criada como uma reserva de caça com 1.000 Km² pela Companhia de Moçambique, uma empresa privada que geriu a zona centro de Moçambique por concessão do Governo Português”. Em 1935, a Reserva da Gorongosa foi alargada para 3200 Km². Em 1960, “o governo decretou a Gorongosa Parque Nacional e ao mesmo tempo adicionou-lhe mais 2.100 km2, aumentando o seu tamanho para 5.300 Km²”. Na atualidade inclui 4067 Km² e mais 3.300 Km² de “zona tampão”.

3 VASIO (2014: 6), no seu pré-projeto de Doutoramento em Turismo, Lazer e Cultura, refere que “A criação de áreas protegidas em Angola foi mencionada pela primeira vez, num “Regulamento” colonial em 1936. A primeira área protegida, o Parque Nacional de Caça do Iona (Parque Nacional do Iona), foi estabelecida em 1937. Em Angola, a maioria das áreas protegidas foram estabelecidas em regiões remotas, de valor económico limitado na altura. O sistema de áreas protegidas na altura não foi concebido para corresponder às necessidades duma representação equilibrada da biodiversidade excecionalmente rica do país, nem foi concebido para proteger os principais processos do ecossistema, ou para desempenhar um papel na minimização dos impactos das alterações climáticas”.
O Parque Nacional do Iona situa-se no sudoeste de Angola, no Município do Tombwa, na Província do Namibe, e cobre uma área de 15.150 Km².

4 O projeto Geo-Sítios - Inventário dos Sítios com Interesse Geológico, foi iniciado em maio de 2003, no âmbito das atividades e competências do Instituto Geológico e Mineiro, financiado pelo Programa Operacional Sociedade da Informação (POSI).
O objetivo deste projeto consistia na criação de uma base de dados dos sítios com interesse geológico do território nacional, tornada acessível pela Internet através das páginas institucionais. O que agora se apresenta e que constitui apenas uma primeira fase corresponde a cerca de uma centena de Geo-Sítios, ou geótopos, limitados ao território continental português.