DIMENSÕES E

DIMENSÕES E "REALIDADES": a Fronteira em seus diferentes matizes

Roberto Mauro da Silva Fernandes.
Organizador
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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FRONTEIRA SECA, FLUIDA E LISA O ÓPTICO E O HÁPTICO NAS IMPRESSÕES, DEVANEIOS E VIAGENS PELO FIM DO MUNDO

Anedmafer Mattos Fernandes (UFGD)1

 

Resumo: O ensaio aqui apresentado tem por finalidade explorar o trabalho de campo que realizamos na região de fronteira entre Brasil e Paraguai. Em nossa viagem passamos por Aral Moreira e Coronel Sapucaia no Brasil, além de Capitain Bado no Paraguai. Como o texto se fundamenta teoricamente em Gilles Deleuze, Felix Guattari, optamos por permitir que as suas ideias se infiltrem no texto ao invés de simplesmente usá-las como citação. A intenção aqui é experimentar.

Palavras-chaves: Fronteira Brasil/Paraguai; Espaço liso e estriado; Fronteira e o fim do mundo.

Abstract: The paper presented here aims to explore the fieldwork we conducted in the border region between Brazil and Paraguay. On our journey we passed Aral Moreira and Coronel Sapucaia in Brazil, and Paraguay Capitain Bado. As the text is theoretically based on Gilles Deleuze, Felix Guattari, we chose to allow their ideas to infiltrate into the text rather than simply use them as reference. The intent here is to experiment.

Keywords: Border of Brazil/Paraguay; smooth and striated space; Frontier and the end of the world

 

INTRODUÇÃO

Escrevo aqui como um viajante. Numa viagem por lugares ermos e aparentemente desconexos, a fronteira entre o fim de um mundo e o começo de outro; Brasil e Paraguai. Esse texto deve ser visto como um álbum de fotos desta viagem, apresentando imagens e pequenos relatos colhidos em Aral Moreira, Coronel Sapucaia (municípios do Estado do Mato Grosso do Sul, no Brasil), e Capitain Bado (no Paraguai). A conexão entre as imagens, ideias e o sentido desses fragmentos só pode ser feito por quem “vê” as fotos. Eu apenas fotografo. As imagens se embaralham aos relatos em movimento rizomático, enquanto afetam, possibilitam novos devires. A geografia que nos interessa aqui, não pressupõe o deslocamento de um corpo sobre uma superfície, um ‘espaço’. Antes de ser uma viagem por um universo físico-mecânico, nossa inspiração é o “universo quântico”, o “modelo fractal”. Gilles Deleuze e Felix Guattari nos ajudarão nesta viagem.
ÓPTICO/HÁPTICO
O que ver na fronteira? E com que olhos devemos ver a fronteira? Talvez não tenha o que se ver.  Pelo menos não da maneira que estamos acostumados. Na fronteira, a realidade não é um corpo sólido, mensurável, que se organiza sobre um espaço linear, fechado. A realidade na fronteira é um conjunto de fluxos e devires que operam sobre um espaço liso. Aqui, nesta viagem, todo o conhecimento é afetivo, indicando que os acontecimentos e não as essências é que são importantes, pois os elementos desse território são agenciados em função dos afetos.
Para Deleuze e Guattari, fronteira é o entre mundos, é coexistência e correspondência, um recorte que instala o limite através da consistência interna dos elementos que a compõe, marca a vizinhança e se abre ao exterior. Uma expedição pela fronteira passa por um olhar que procura articular uma disposição ao encontro com a exterioridade, apreender o mundo enquanto um campo de forças em eterno movimento. Na fronteira não possível uma mera contemplação do mundo, não é possível vislumbrar uma organização do conjunto geral das identidades e individualidades a partir de uma suposta essência abstrata. Não se trata de uma busca por uma verdade que se constitui pela representação ou um sentido, pois o sentido se dá nas relações e, portanto, no mundo e não na razão.
Se a fronteira é basicamente espaço aberto, liso, ela se contrapõe ao espaço estriado. Deleuze e Guattari nos dão a imagem do Xadrez e do Go para compreendermos os contrapontos entre o espaço liso e o espaço estriado. O Xadrez é a imagem do espaço estriado, enquanto jogo de Estado, as peças possuem identidades fixas, o peão, a rainha, o rei, etc. O tabuleiro de Xadrez pode ser comparado ao mapa, com limites, fronteiras, movimentos pré-determinados. No espaço estriado, o céu é a medida. E as qualidades visuais mensuráveis que derivam dele (DELEUZE & GUATTARI, 2008).  O Xadrez é o jogo da guerra, da batalha institucionalizada, com regras e códigos, o Go é uma guerra que em seu limite não há batalha. No Go, movimentamo-nos pelo espaço liso, distribuímo-nos por um espaço aberto aos devires.
Neste caso, o Goé o jogo que nos fornece a visão e a movimentação na fronteira, nos caminhos e dutos que surgem por entre o espaço marcado do tabuleiro/mapa, uma viagem pelo fim do mundo. Trata-se de distribuir-se num espaço aberto, ocupar o espaço, preservar a possibilidade de surgir em qualquer ponto: o movimento já não vai de um ponto a outro, mas torna-se perpétuo, sem alvo nem destino, sem partida nem chegada (DELEUZE & GUATTARI, 2008, p.14). Os pontos é que se subordinam ao trajeto e não ao contrário, como acontece no Xadrez:
Os peões do go, ao contrário, são grãos, pastilhas, simples unidades aritméticas, cuja única função é anônima, coletiva ou de terceira pessoa: "Ele" avança, pode ser um homem, uma mulher, uma pulga ou um elefante. Os peões do go são os elementos de um agencia-mento maquínico não subjetivado, sem propriedades intrínsecas, porém apenas de situação. Por isso as relações são muito diferentes nos dois casos. No seu meio de interioridade, as peças de xadrez entretêm relações biunívocas entre si e com as do adversário: suas funções são estruturais. Um peão do go, ao contrário, tem apenas um meio de exterioridade, ou relações extrínsecas com nebulosas, constelações, segundo as quais desempenha funções de inserção ou de situação, como margear, cercar, arrebentar.  (DELEUZE & GUATTARI, 2008 p.13).

O temor maior é que a nossa viagem seja confundida com um deslocamento do nada a lugar nenhum. O fato é que estamos querendo desbravar um espaço liso, “turbilhonar”, e entendemos com isso que, nessa viagem, o trajeto deverá ficar sempre em aberto para que possamos nos articular às próximas viagens, criando um rizoma na medida em que avançamos por outros lugares e outras paisagens. Observar a fronteira, portanto, não significa “acumular” conhecimento, mas qualificar as jornadas que virão com essas articulações em aberto, para que se permitam ser “acionadas” a cada momento em que a vida nos obrigar diante dos prováveis encontros e intercessores.
Tanto no liso como no estriado existem as paradas, os trajetos, mas no espaço liso é o trajeto que determina os pontos de parada. Na fronteira compreende-se a contingência e a incompletude. Na terra onde tudo está por ser feito a regra é o improviso do espadachim, a bricolagem do pensamento selvagem (DELEUZE & GUATTARI, 2008 P.197). É força de alisamento e estriamento, mas espaço intensivo antes de extensivo, improviso que força o alisamento do espaço.
Spatium intenso em vez de Extensio. Corpo sem órgãos, em vez de organismo de organização. Nele a percepção é feita de sintomas e avaliações mais do que de medidas e propriedades. Por isso, o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as forças e as qualidades tácteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo. Estalido do gelo e canto das areias (DELEUZE & GUATTARI, 2008, P.185).

Deleuze e Guattari nos falam de um tipo de navegação anterior à determinação das longitudes, latitudes e outras concepções métricas do espaço. Existe toda uma navegação nômade empírica e complexa que faz intervir ventos, ruídos, cores, sons.
Segundo os autores, só posteriormente é que surge a navegação direcional, pré-astronômica, e já astronômica, que se organiza a partir de uma geometria operatória, baseada nas coordenadas e nas representações. 
É claro que a representação do mundo é o fundamento da vida em sociedade, mas essa mesma representação pode esterilizar a vivência na medida em que despreza o devir, nos levando ao niilismo. Ou seja, a linguagem cria uma realidade diante do inaudito, realidade esta em que o homem possa suportar a vida, mas já não há vida se esta se submete à lógica da linguagem e da representação. O espaço liso é direcional, e não dimensional ou métrico. O espaço liso é ocupado por acontecimentos ou hecceidades, muito mais do que por estruturas formadas, percebidas e representáveis.
Viajar de modo liso é todo um devir, e ainda um devir difícil, incerto. Não se trata de voltar a navegação pré-astronômica, nem aos antigos nômades. É hoje, e nos sentidos os mais diversos, que prossegue o afrontamento entre o liso e estriado, as passagens, alternâncias, e superposições (p.190).

É por isso que aqui a fronteira dever ser “vista” a partir das matérias de expressão que emergem para tornar visível o invisível, qualificando nossa vivência, fazendo com que esse repertório de impressões se tornem perceptos.
A fronteira enquanto espaço liso, portanto, é mais bem compreendida a partir das impressões subjetivas que se constituem a partir de agenciamentos acústicos, táteis, olfativos, palatáveis, um espaço-tempo que é produto e produtor de afetos e sentidos, cortados por linhas de transversalidades, criando fluxos que dês/reterritorializam nossa percepção a partir de linhas de fuga.
O espaço liso, háptico e de visão aproximada, tem como característica fundamental, a variação continua de suas orientações referências, as mudanças bruscas de direção e sentido:
O Liso nos parece ao mesmo tempo o objeto por excelência de uma visão aproximada e o elemento de um espaço háptico (que pode ser visual, auditivo, tanto quanto tátil). Ao contrário, o Estriado remeteria a uma visão mais distante, e a um espaço mais óptico – mesmo que o olho, por sua vez, não seja o único órgão a possuir essa capacidade. (DELEUZE & GUATTARI, 2008, p.203).

É importante considerar que os dois espaços só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso é constantemente codificado em um espaço estriado e o espaço estriado é constantemente descodificado em espaço liso sob o efeito das experimentações e dos territórios abandonados.

E é o Oeste da América, rizomático, com seus índios, seu limite sempre em fuga, suas fronteiras movediças e deslocadas que expressam essa dimensão lisa do espaço, como algo a ser transposto, rechaçado, ultrapassado. Pois as fronteiras são a vitória da contingência, arrancando a história da necessidade de linearidade, estabelecendo o devir como força de combate.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As fronteiras são construções, processos sociais, histórica e simbolicamente produzidos. Devem ser entendidas muito mais como abertura do que como um dado localizável no espaço. São locais de mutação e subversão onde imperam os princípios da relatividade diante da multiplicidade.     
Na fronteira há o recíproco no lugar do hegemônico e o reversível no lugar do destino. Isso porque o destino dos homens não pode pensado a partir de um fora que sirva de espelho para o lado de dentro, mas a partir de uma emancipação dos devires em relação ao mundo da representação. Na fronteira, no limite do mundo de significados em que vivemos, percebe-se claramente, o devir é geográfico. De outra maneira, podemos concluir que, no limite, só conta a fronteira constantemente móvel (DELEUZE & GUATTARI, 2008, p.34).

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARRI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Tradução: Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Editora 34, Vol. 5, 2008.

1 Docente do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Campo Grande, e Doutorando pelo programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados.