DIMENSÕES E

DIMENSÕES E "REALIDADES": a Fronteira em seus diferentes matizes

Roberto Mauro da Silva Fernandes.
Organizador
(CV)
Universidade Federal da Grande Dourados

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APRESENTAÇÃO

O livro que ora apresentamos, intitulado Dimensões e “Realidades”: a FRONTEIRA em seus diferentes matizes, é a manifestação de um conjunto heterogêneo de ideias, pensamentos e percepções a respeito das institucionalidades, discursos, proposições filosóficas, sentimentos, relações de saber, poder e força que estruturam os processos de construção, desconstrução e reconstrução do que pode ser denominado como fronteira.
A nossa preocupação como organizador foi demonstrar as diferentes abordagens sobre o espaço fronteiriço. Embora seja impossível determiná-lo, pensamos nele como a manifestação de vidas sociais cujas relações são específicas. Neste livro-dispositivo o leitor perceberá as “marcas” e os apetrechos (perceptíveis e imperceptíveis) que condicionam os movimentos na e da fronteira e que entrelaçam-se com fenômenos de mundos habitados na margem.
Dessa forma, optamos por realizar, através dos autores que participam e dão vida a este dispositivo, uma intervenção trans e multidisciplinar acerca dos deslocamentos, frinchas e arraias que conjugam, descrevem, que possibilitam a percepção, instrumentalizam, dão sentido e também pespegam lacunas as superfícies e “fachadas” estabelecidas nas práticas, relações e interações fronteiriças.
Dito isso, as reflexões aqui contidas são sobre o Estado e suas orientações centrífugas e centrípetas, cujas forças aglutinam fronteira e limite (que não podem ser considerados sinônimos), mas, acima de tudo, os ensaios que compõem este livro, esgrimam, altercam e realizam prognoses sobre estado(s), isto é, sobre o indivíduo e sua existência, a respeito dos desaparecimentos/reaparecimentos das “balizas” e dos rompimentos dos dizeres. Portanto, as discussões capturam múltiplos recortes espaciais, mais especificamente, este dispositivo possibilita a apreensão de diferentes leituras sobre as disjunções e injunções conectivas próprias das dimensões e “realidades” da(s) fronteira(s).
Desse modo, o livro está estruturado em três partes e caracteriza-se, sobretudo, por uma abordagem pluriescalar. Os autores, cada um a sua maneira, tecem considerações sobre a(s) fronteira(s) a partir de referenciais teóricos sustentados por trabalhos de campo, levantamento de dados, revisão bibliográfica e entrevistas. Alguns trabalhos são resultado de dissertações, teses, pesquisas acadêmicas e outros foram, exclusivamente, elaborados para compor o tema tratado.
Na primeira parte, denominada “A FRONTEIRA MAIS AO SUL”, Adriana Dorfman e Arthur Borba Colen França analisam a relação entre a gestão estatal das fronteiras e as conexões locais que nelas existem. Apresentam diferentes escalas de elaboração e aplicação para os programas de securitização e, sobretudo, resaltam que os regimes regulatórios que geralmente não são considerados oficiais (ou “legais”) nas regiões fronteiriças devem ser observados como potencialidades que podem contribuir para o processo de construção e implementação de políticas fronteiriças de segurança humana.
Dito isso, asseveram os autores: “Diante da urgência de desenvolvimento econômico e social na fronteira, parece importante recuperar a amplitude do conceito de segurança humana como alternativa a ser construída com os fronteiriços”1 .
Nesse capítulo, os pesquisadores não abordam apenas as interações que comumente ocorrem entre os “jeitinhos”/“trampitas” e as institucionalidades que envolvem a gestão oficial na fronteira, especialmente na Gaúcha, mas chamam atenção para o fato de que tal particularidade da fronteira sul-rio-grandense é importante para a elaboração e consecução de políticas públicas fronteiriças eficientes que tenham como objetivo o desenvolvimento social e o empoderamento das minorias, o que contribuiria para mitigar as emanações e os efeitos advindos das estruturas de poder já consolidadas que orientam e impulsionam demandas que justificam intervenções na Faixa de Fronteira construídas mediante teses que reforçam retratações nas quais a fronteira e seus habitantes são cúmplices de atos criminosos “e, portanto, carentes de ações securitárias”2 .  
Em suma, Dorfman e França tecem considerações acerca do protagonismo de alguns elementos existentes na geografia da fronteira que são importantes para entendermos que as cidades-gêmeas, as regiões e zonas fronteiriças não são necessariamente os “lugares do crime”.
Na parte segunda, “NO OESTE DE MATO GROSSO DO SUL: reflexões que capturam a fronteira e Corumbá/MS”, as idiossincrasias do território são expostas pelos autores. As diferenciações socioespeciais e as práticas que constroem a vida fronteiriça (especificamente em Mato Grosso do Sul, na Zona de Fronteira, composta por Corumbá/MS, Ladário/MS (Brasil), Puerto Quijarro e Puerto Suarez (Bolívia)), são o foco das análises nesta seção.
Gustavo Villela Lima da Costa abre os debates, suas considerações são sobre alguns dos aspectos sociais da vida fronteiriça, produzidos a partir das relações coetâneas e anfêmeras protagonizadas por brasileiros e bolivianos na região de fronteira em que se localiza Corumbá/MS e Puerto Quijarro. Segundo o autor, nessas localidades existem condições específicas para que as ações circunscritas às atividades legais e ilegais entrelacem-se, tais circunstâncias são condicionadas pelos esquemas da fronteira. Dessarte, vocifera o pesquisador: “[...] a cidade de fronteira não é um lugar mais propício às atividades ilegais do que qualquer outra parte do território nacional, apenas os esquemas é que variam”3 .
De acordo com Gustavo Villela, existem discursos que negam os mencionados esquemas; e como existe uma concepção idealizada do Estado (que lhe dão ares fictícios) e sua moral é a do “bem”, infelizmente as regiões fronteiriças são estigmatizadas, são usualmente observadas como áreas de criminalidade, visão que somente corrobora para intensificar as premissas de que a fronteira é “terra sem lei” e que o Estado se faz ausente, o que não é verdade.
Neste sentido, também advoga: “Somente na cidade de Corumbá-MS [...] o Estado não apenas está presente, mas considerando o tamanho da cidade, com pouco mais de 100 mil habitantes, podemos considerar sua presença como ostensiva e abundante, sobretudo a partir de seus órgãos de vigilância e controle” 4.
Logo, com tais pressupostos, a imbricação do formal com o informal, do lícito como ilícito, da ação criminosa com a não criminosa tende a ser forçosamente ocultada num contexto territorial em que os entrelaçamentos estão explícitos no dia a dia, sendo fundamentais para construção da vida daquela Zona de Fronteira.
No capítulo elaborado por Giovanni França Oliveira encontramos uma interessante análise relativa às casas de família que funcionam como pontos de venda de drogas (popularmente conhecidas como Bocas) na cidade de Corumbá/MS, denominadas pelo autor de “Bocas Familiares”. 
Esta discussão traz a tona algumas das espacialidades metamorfoseadas da cidade, das suas “camuflagens” geográficas, sobretudo, representadas pelas mutações da casa de família, que segundo Giovanni é uma emanação da perspicácia do indivíduo fronteiriço para sobreviver e viver a fronteira, já que “A fronteira representa, portanto, um recurso econômico e social” 5.
Dessa forma, ressalta que a casa como ambiente metamorfoseado “[...] para uma pessoa mais desatenta, a boca é invisível, o que se vê é uma casa de família, com crianças brincando no quintal, a mãe lavando roupa e estendendo no varal, ou seja, tudo que denota uma rotina normal de uma casa de família”6 .  Para o autor o comércio de drogas em Corumbá/MS, a partir da mencionada modalidade, apresenta baixos índices de violência, especialmente porque aglutinadas ao funcionamento das bocas estão às relações de vizinhança e parentesco, a escolha pela invisibilidade dos “negócios” e critérios de negociação face a face que passam ao largo de disputas territoriais armadas, com agentes que fazem uso do “diferencial fronteiriço” como um recurso de ação.
Roberto Mauro da Silva Fernandes e Adáuto de Oliveira Souza, no quarto capítulo, apresentam o liame de um dos equipamentos que compõem a Rota Rodoviária Bioceânica com a Zona de Fronteira Brasil/Bolívia. O recorte territorial limita-se a Corumbá/MS e especificamente a área que abriga os bairros Popular Nova e Aeroporto (região perimetral, na qual se encontra a maior parte da extensão do equipamento rodoviário em análise).
Nesta reflexão as observações são a respeito do processo de integração entre Brasil e Bolívia, numa escala mais macro, mas, sobretudo, está circunscrita as interações espaciais desencadeadas em parte do perímetro urbano de Corumbá/MS com a conjuntura de instalação de um dos componentes do sistema de circulação pensado, e em pleno processo de materialização, para integrar a mencionada Rota.
O referido equipamento é o anel rodoviário (extensão da BR-262) que contribui (a priori) com a conexão bioceânica que está sendo implementada entre os Portos de Santos no Brasil e os chilenos de Arica e Iquique. Todavia, este fixo, agora “conectado” a Corumbá/MS, possui inadequações geométricas, comprometendo as operações de circulação, situa-se no interior da cidade (grande parte de sua extensão atravessa áreas residenciais), desta forma interage precariamente com os indivíduos que residem e vivem nas suas faixas adjacentes.
Embora a análise aborde aspectos infraestruturais de um equipamento rodoviário, os autores realizam, acima de tudo, uma reflexão acerca dos vínculos das gentes com a “estrada”. Aquelas, entusiasmadas com os discursos que aludem sobre “desenvolvimento” e o “progresso”, convivem com os “desentrosamentos” das gestões oficiais (federal, estadual e municipal) em meio ao território que vivenciam todos os dias. 
Em “O CHÃO, MARGINALIDADE E O FIM DO MUNDO”, a última parte deste livro, veremos o ultrapassamento dos “deslimites” internacionais, “escutaremos” as vozes de quem está na periferia, no entre-lugar, daqueles que gritam de outro lócus e sentiremos as múltiplas coexistências e afetividades da fronteira.
Thiago Rodrigues Carvalho e Jones Dari Goettert inspirados pela arquetipía que ilumina a literatura de Manoel de Barros, para sermos mais específicos, alentados por Bernardo (o Alter ego do poeta Manoel), de forma luculenta apresentam o Senhor K e o seu chão.

Relatam os autores que ao lerem Manoel de Barros descrever Bernardo e compor os signos de suas “desvirtudes” poéticas depararam-se com “[...] à imagem de uma pessoa desencontrada na fronteira, vivendo em um sítio próximo aos limites internacionais da fronteira Brasil (Aral Moreira) Paraguai [...]” 7.
Sim! Essa pessoa desencontrada é o “velhinho” da imagem. A partir das narrativas do Senhor K, os autores versam sobre as transitoriedades do espaço e nos fazem “[...] perceber que o significado de fronteira se estende há múltiplas possibilidades de negociação, sendo o Estado, apenas uma delas”8 .
Neste sentido, as desventuras do Senhor K, decorado pelo chão, leva-nos a uma Geografia do chão, a uma Geografia menor/própria, que poeticamente redimensiona valores capazes de revelarem realidades na fronteira que são “margicentrais”. Neste capítulo, a Geografia manoelesca dos autores apresenta-nos o chão construído pelo egrégio Senhor K. Seria o personagem um “deslocalizado”?
No capítulo seguinte, Cleber José de Oliveira arrazoa a respeito das vozes subalternas que abrem “espaços” para serem ouvidas, sobre os sons, reivindicações e pareceres daqueles que se encontram às margens. O autor traz uma discussão sobre o intelectual marginal, que “[...] é conscientemente crítico acerca do projeto de inclusão social do projeto modernista de nação, veiculado, sobretudo pelos intelectuais clássicos [...]”9 . Neste sentido, afirma:
O intelectual marginal caracteriza-se justamente pela descrença nesse projeto de nação e em outros semelhantes, pois perante a realidade que o cerca (exclusão social, discriminação, racismo e violência principalmente contra os moradores das periferias), desconfia abertamente numa integração social entre elite e favela, ou em qualquer utopia equivalente 10.

Para o autor, o intelectual marginal (representado em sua discussão pelo MC (o rapper)) é um dos porta-vozes da contemporaneidade (um intelectual contemporâneo), cujos poemas vão de encontro à cultura hegemônica e das suas imposições ideológicas.
Se no passado os intelectuais pertencentes às classes sociais altamente letradas escreveram sobre a periferia, mediando os discursos das comunidades marginalizadas e sobrevoando suas realidades, o intelectual MC “fala de dentro”, pois é um habitante das margens sociais, ele é o verdadeiro “representante” da periferia, é o excluído em pessoa versando sobre seus dilemas sociais e “tirando a sua própria foto”.
Em seu ensaio é possível perceber que o MC e o rap, como expressão crítica, ensejam subversões discursivas que destroem os limites impostos e que eliminam as barreiras fronteiriças da sociedade contemporânea, o intelectual marginal rompe as “marcas”. Portanto, como reside em uma região fronteiriça, no entre-lugar, como habita as margens da sociedade “[...] está apto a propor estratégias culturais de resistência frente ao fenômeno de aculturação, historicamente produzidas pelas elites, de suas comunidades” 11.
O último capítulo desta seção e do livro é de Anedmafer Mattos Fernandes. Nele, a Geografia proposta consiste numa “[...] viagem por lugares ermos e aparentemente desconexos, a fronteira entre Brasil e Paraguai”12 .
Anedmafer Mattos inicia suas prognoses sobre a fronteira da seguinte forma: “Esse texto deve ser visto como um álbum de fotos desta viagem [...] A conexão entre as imagens, ideias e o sentido desses fragmentos só pode ser feito por quem ‘vê’ as fotos. Eu apenas fotografo”13 .
Então: O que vemos na fronteira? Com que olhos devemos ver a fronteira? Essas são perguntas chaves para que o “fim do mundo” possa ser “desbravado”.
Sendo assim: a fronteira é o fim do mundo? Depende de como se analisa a sua realidade e do que se observa nela, do sentido que a carrega, dos seus fluxos e devires, como nos propõe o pesquisador.
O autor nos provoca a todo o momento, conduzindo-nos a uma esfera de dissociação psíquica cujo principal efeito é a criação de neurotransmissores poderosíssimos capazes de nos instigar, dotando-nos de poder, a iniciarmos uma sublevação contra o que parece ser óbvio no espaço-tempo.

Ao deparamo-nos com esta imagem (e com os dizeres) foi impossível não fazer uma analogia com a psicodelia dos filmes de Michelangelo Antonioni e o desejo de fuga que implicitamente podem ser “lidos” em suas produções. Pensamos dessa forma porque assim como o cineasta, o geógrafo que dá vida a esta discussão não quer apenas nos entorpecer com a qualidade visual de seus delineamentos, como uma flecha preta na garganta, ele destrói a arrogância daqueles que em vão tentam injungir demarcações e finitudes ao que é inflexível, sublime e inaudito.
Contudo, ainda cabem algumas perguntas: O que o autor está, com a imagem acima, tentando retratar? Seria o “limite” (invisível?) internacional da fronteira Brasil/Paraguai? Sinceramente, não saberíamos responder, mas de acordo com o guia desta catártica viagem:
A fronteira enquanto espaço liso, portanto, é mais bem compreendida a partir das impressões subjetivas que se constituem a partir de agenciamentos acústicos, táteis, olfativos, palatáveis, um espaço-tempo que é produto e produtor de afetos e sentidos, cortados por linhas de transversalidades, criando fluxos que dês/reterritorializam nossa percepção a partir de linhas de fuga14 .

Assim leitor, escolha uma linha de fuga para que você emancipe seus devires e perceba afetivamente a fronteira para além do corpóreo e do espaço linear. Vamos viajar para Aral Moreira e Coronel Sapucaia (Brasil) e Capitain Bado (Paraguai) e desbravar um espaço (fronteira) liso, quântico e fractalmente construído.
Em síntese, os capítulos que compõem o livro contemplam estudos importantes, inovadores e que instigam outras indagações, já que este dispositivo é um convite ao debate. A coletânea de discussões a seguir pretende atingir a comunidade geográfica, aos estudiosos das letras, economistas, historiadores, cientistas sociais, antropólogos e as demais áreas do pensar e saber, pois o objetivo de compreender a complexidade das questões fronteiriças deve realizado a partir de múltiplas variáveis. .
Por fim, queremos agradecer a todos os autores. Estes se envolveram totalmente no projeto, sem suas contribuições não seria possível debater as dimensões e “realidades” da fronteira.

Roberto Mauro da Silva Fernandes
(Organizador)

1 Cf. p.34 da presente edição.

2  Idem.

3 Cf. p.47 da presente edição.

4 Idem.

5 Cf. p.74 da presente edição.

6 Idem, p.75.

7 Cf. p.131 da presente edição.

8  Idem, p.135.

9 Cf. p.172 da presente edição.

10 Idem, p. 171-172.

11 Idem, p.173.

12 Cf. p.177 da presente edição.

13 Idem.

14 Idem.