Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


O SEQUESTRO DA SUBJETIVIDADE: MEDIAÇÕES ENTRE IDEOLOGIA, SUJEITO E GESTÃO DO TRABALHO

Autores e infomación del artículo

Carolina Spack Kemmelmeier*

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil

carolinakemelmeier@gmail.com

Resumo                                 

O presente texto tem como objetivo central analisar, em caráter exploratório a ideologia como categoria que articula materialidade e subjetividade no âmbito das relações de trabalho. Esse caminhar analítico se estrutura a partir de reflexões sobre o modo de produção pós-fordista como geratriz de teorias organizacionais de gestão do trabalho que refletem as contemporâneas tensões e contradições engededradas pela disputa entre capital e trabalho. As teorias e práticas gerenciais, nessa chave de leitura, integram o campo discursivo da ideologia capitalista. Questiona-se, por meio desse enfoque, a concepção de gestão – e de organização do trabalho - como neutralidade técnica, uma vez que essas se inserem em um sistema de poder construído historicamente. A análise dessa função ideológica da gestão do trabalho se desenvolve, por sua vez, fundamentalmente, por meio do conceito de sequestro da subjetividade e de seus desdobramentos sobre a constituição do sujeito.

Palavras-chave: Gestão do trabalho, Ideologia, Subjetividade, Pós-fordismo, Teorias Organizacionais.

 


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Carolina Spack Kemmelmeier (2017): “O sequestro da subjetividade: mediações entre ideologia, sujeito e gestão do trabalho”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/04/ideologia-sujeito-gestao.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1704ideologia-sujeito-gestao


INTRODUÇÃO
O presente texto tem como objetivo analisar, em caráter exploratório, as mediações entre ideologia, sujeito e gestão do trabalho. Esse objeto de estudo foi elemento integrante de pesquisa de doutorado concluída e defendida na área do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo a respeito da gestão do trabalho - e a forma jurídica poder empregatício - e suas interações com a saúde mental dos trabalhadores.
A partir de referencial teórico sobre a ideologia é possível compreendê-la como categoria que, entre outros aspectos, articula materialidade e subjetividade no campo das relações de trabalho a partir de um suposto discurso “técnico” de gestão do trabalho o qual influencia diretamente a forma jurídica poder empregatício e o regime jurídico sobre a saúde mental dos trabalhadores.
Esse caminhar analítico se estrutura a partir do recorte metodológico direcionado para a revisão de literatura a respeito do modo de produção pós-fordista, notadamente o toyotismo, como produtor de teorias e práticas organizacionais de gerenciamento do trabalho convenientes aos imperativos econômicos, políticos e ideológicos do capital em uma determinada correlação das tensões e contradições engededrada pelas lutas de classes.
As teorias e práticas gerenciais, nessa chave de leitura, integram o campo discursivo da ideologia capitalista. Nega-se, portanto, a concepção de gestão, e consequentemente do poder empregatício, como neutralidade técnica, uma vez que essa se insere como instrumental em um sistema de poder organizacional construído historicamente.
Diferentemente dos modos de produção anteriores, como o taylorismo e o fordismo, o pós-fordismo se caracteriza por mobilizar não apenas a ação física ou intelectual alienada, ou seja, não estrutura apenas as condições e a organização do trabalho, mas enreda em patamares desconhecidos previamente a subjetividade, os desejos e angústias dos trabalhadores a serviço da organização produtiva.
A análise dessa função ideológica desempenhada pela gestão do trabalho pós-fordista se dá, centralmente, por meio do conceito de sequestro da subjetividade e de sua articulação com categorias como a alienação e o estranhamento como constitutiva de indivíduos em sujeitos por meio da interpelação.
            Trata-se de pesquisa bibliográfica embasada fundamentalmente em autores que partilham do materialismo histórico como metodologia. A estrutura do artigo é composta de duas partes. A primeira voltada para a análise da ideologia como categoria constituída na materialidade das relações sociais em uma perspectiva histórica, e, consequentemente, como articuladora entre materialidade e subjetividade. A segunda foca o conceito de sequestro da subjetividade e suas contribuições para a compreensão das mediações entre materialidade do modo de produção, ideologia e subjetividade no contexto do pós-fordismo.

1. IDEOLOGIA, MATERIALIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS E SUBJETIVIDADE

            Adota-se como ponto de partida analítico a ideologia como constituída na materialidade das relações sociais em uma perspectiva histórica (luta de classes), e, consequentemente, como categoria que articula materialidade e subjetividade.
            Terry Eagleton (1997, p. 11), identifica o paradoxo entre a negação da ideologia pela epistemologia pós-moderna que refuta a utilidade desse conceito e a materialidade das relações sociais em que aquela se faz presente, exemplificativamente, no âmbito do fundamentalismo islâmico, no nacionalismo revolucionário, no neo-stalisnimo e no evangelismo cristão.
Especificamente sobre as interações entre ideologia e subjetividade, o autor contribui para o debate ao indicar que há uma aproximação entre a crítica ideológica e a psicanálise. Assim, o estudo da ideologia compreende os mecanismos pelos quais o sujeito tolera a sua própria infelicidade, ou seja, porque tolera a condição de oprimido. A resposta do autor não se satisfaz com a ideia da ignorância ou não percepção (falsa consciência), antes, reside em um caráter compensatório da ideologia, ou seja, “o opressor mais eficiente é aquele que persuade seus subalternos a amar, desejar e identificar-se com seu poder; e qualquer prática de emancipação política envolve portanto a mais difícil forma de libertação, o libertar-nos de nós mesmos”. Há, ainda, conforme o autor, um dinamismo e um equilíbrio tênue e precário nessa compensação construída historicamente. Isso porque, caso a dominação ideológica deixe de propiciar a suficiente gratificação a suas vítimas, abre-se o caminho para o rompimento e a rebelião frente a essa dominação (EAGLETON, 1997, p. 13).
Uma segunda categoria chave para o desenvolvimento da análise que se propõe nesse texto está no conceito de estranhamento e sua contribuição para a compreensão das mediações entre ideologia e subjetividade na relação de trabalho capitalista.
Marx, nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos, observa, na materialidade das relações de produção capitalista, a formação de uma sociabilidade – e de uma subjetividade – associadas à exteriorização do trabalho e à desefetivação do trabalhador. Em outras palavras, tem-se o produto do trabalho como um ser estranho do produtor [exteriorização], e também e principalmente, no ato de produção como ato fora de si, em que o trabalhador experimenta a perda do objeto e a perda de si mesmo [desefetivação] como integrantes da apropriação do objeto de trabalho pelo capitalista. O resto desse processo é o estranhamento do trabalhador (MARX, 2004, p. 80).
Os trechos seguintes analisam essa processualidade do estranhamento, a primeira quanto ao produto, a segunda quanto ao ato de produção.

Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho como [com] um objeto estranho estão todas estas consequências. Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador. Ele não é o que é o produto do seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto menor ele mesmo é. A exteriorização do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa, mas bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele, independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha. [grifo nosso] (MARX, 2004, p. 81).

Em que consiste a exteriorização do trabalho? Primeiro que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não se desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruina o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando]  no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza evidencia-se aqui [de forma tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste]. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho parace para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, ma de um outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. (...) assim também a atividade do trabalhador não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo [grifo nosso] (MARX, 2004, p. 83).

Esse estranhamento do trabalhador se expressa em uma alienação econômica, ou seja, “quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir”, mas também em um processo de desvalorização, deformação e impotência do trabalhador.
Pode-se compreender, a partir dessa chave de leitura, como a objetivação do produto do trabalho e do ato de produção engendram, na materialidade da relação de produção capitalista, uma subjetividade esvaziada e fragmentada da classe trabalhadora (MARX, 2004, p. 82).
Um outro elemento contido no estranhamento seria o estranhamento em relação a outro homem ou o estranhamento do ser genérico homem como aspecto fundamental dessa subjetividade que, nessa chave de leitura, é eminentemente intersubjetiva, construída socialmente e que integra “o domínio de quem não produz sobre a produção, sobre o produto”:
Todo auto-estranhamento do homem de si e da natureza aparece na relação que ele outorga a si e à natureza para com os outros homens diferenciados de si mesmo. (...) No mundo prático-efetivo o auto-estranhamento só pode aparecer através da relação prático-efetiva com outros homens. O meio pelo qual o estranhamento procede é [ele] mesmo um [meio] prático. Através do trabalho estranhado o homem engendra, portanto, não apenas sua relação com o objeto e o ato de produção enquanto homens que lhe são estranhos e inimigos; ele engendra também a relação na qual outros homens estão para a sua produção e o seu produto, e a relação na qual ele está para com estes outros homens. Assim como ele [engendra] a sua própria produção para a sua desefetivação, para o seu castigo, assim como [engendra] o seu próprio produto para a perda, um produto não pertencente a ele, ele engendra também o domínio de quem não produz sobre a produção, sobre o produto. Tal como estranha de si a sua própria atividade, ele apropria para o estranho a atividade não própria desde [grifo nosso] (MARX, 2004, p. 87).

Uma terceira contribuição se encontra em Althusser. Destaca-se, para tanto, como primeira ideia central, a de que a reprodução da força de trabalho requer não apenas uma reprodução de sua qualificação, no âmbito da materialidade, mas também a reprodução da submissão às regras da ordem estabelecida, ou seja, a reprodução da submissão à ideologia vigente e a reprodução da capacidade de articular corretamente a ideologia dominante, a fim de que se assegure “com palavras” o poder da classe dominante. Essa percepção, conforme Althusser, “equivale a reconhecer a presença efetiva de uma nova realidade: a ideologia” (ALTHUSSER, 1996, p. 108).
Como segundo ponto fundamental da contribuição, têm-se as teses que fundam a construção da teoria althusseriana da ideologia, quais sejam: a) a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência; b) a ideologia tem uma existência material. Nessa perspectiva, a tese central é de que a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos, ou seja, “a categoria do sujeito só é constitutiva de qualquer ideologia na medida em que toda ideologia tem a função (que a define) de constituir indivíduos concretos como sujeitos por meio da interpelação (ALTHUSSER, 1996, p. 126-134).
A partir desse referencial teórico é possível desenvolver a análise sobre mecanismos sutis presentes nas técnicas de produção e, principalmente, de gestão do trabalho no pós-fordismo, como integrantes do discurso ideológico e aptos para promover, com uma especificidade própria, a interpelação dos trabalhadores e, consequentemente, favorecer o estranhamento e a intensificação do trabalho em patamares acrescidos em comparação com os modos de produção anteriores.

2. SEQUESTRO DA SUBJETIVIDADE: O ESTRANHAMENTO E A IDEOLOGIA NO PÓS-FORDISMO
A categoria sequestro da subjetividade se apresenta como referencial para a compreensão de que materialidade das relações de produção capitalista engendra não apenas uma base técnica-econômica de controle social, mas que interage com a formação da própria subjetividade por meio da interpelação ideológica do sujeito.
E mais, ao considerar o problema sob a perspectiva da forma de sociabilidade e da materialidade do processo de produção capitalista – as quais se pautam por uma lógica expansionista e anárquica permeada pelas metarmofoses das lutas de classes – insere-se a compreensão de que o controle social sobre o trabalho se transforma historicamente conforme imperativos econômicos, políticos e ideológicos. Nesse contexto, modelos produtivos como o fordista, taylorista e pós-fordistas são produtores de teorias organizacionais de gerenciamento do trabalho convenientes à sua viabilização. (BATISTA, 2014, p. 20). Essas teorias organizacionais, por sua vez, englobam transformações nas condições de trabalho e de organização do trabalho, as quais, por sua vez, interagem com a própria subjetividade da classe trabalhadora.
Sobre a caracterização do toyotismo, como parte integrante do pós-fordismo, em uma perspectiva histórica do desenvolvimento das forças produtivas e de sua articulação com a ideologia, José Henrique de Faria e Francis K. Meneguetti observam que:
O toyotismo  não  pode  ser  considerado  um  modelo  japonês  de  gestão  e  de produção,   mas   um   modelo   capitalista   contemporâneo  Assim como o taylorismo-fordismo, o toyotismo é  uma nova forma de organização do processo de trabalho sob o comando do capital e, como tal, é decorrente  do  desenvolvimento  das  forças  produtivas.  Portanto, o  toyotismo  é,  ao mesmo tempo, uma resposta à crise de acumulação capitalista, uma condição atual de reprodução deste modo de produção, uma ideologia capitalista e seu novo discurso (FARIA; MENEGUETTI, 2007, p. 66).

O toyotismo -  como ideologia capitalista e como seu novo discurso -  tem como elemento fundamental no plano gerencial a consolidação nos processos de trabalho dos ideais de perfeição e da superação. A excelência como condição para sobrevivência à competitividade passa a ser referência para materiais, processos, métodos e também pessoas (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 237).
A racionalidade da administração científica do trabalho, compreendida como referencial teórico para a gestão do trabalho no âmbito do taylorismo e fordismo, tinha como foco central a consecução de objetivos previamente definidos. O gerencialismo toyotista, por sua vez, adota como mote central a superação constante do que foi planejado. Para tanto, vale-se de um engajamento intelectual e afetivo do trabalhador na lógica da eficácia produtiva que se constitui em um patamar inédito na história das relações capitalistas de produção à medida que se propõe a mobilizar integralmente o indivíduo a serviço da organização por meio do comprometimento total e de uma adesão passional (FARIA; MENEGUETTI, 2007, p. 62). Nessa perspectiva, o conceito de gestão, em que pese sua aparência de neutralidade técnica, constitui-se na materialidade como sistema de organização do poder construído historicamente.
Há uma contribuição significativa para a compreensão da gestão como elemento integrante da ideologia na “tradição francesa de análise organizacional e dos discursos sobre gestão”. Esta se caracteriza, devido à influência teórica do marxismo e da psicanálise, pela reflexão em uma perspectiva marcadamente crítica da gestão como parte integrante da tessitura de processos sociais, culturais, institucionais e psíquicos. Contrapõe-se, portanto, à leitura norte-americana pragmática e instrumental, correspondente à própria origem do gerencialismo como produto da tradição liberal e positivista que prevalece naquele cenário (BENDASSOLLI in GAULEJAC, 2014, p. 23).
Gaulejac, autor integrante da tradição francessa de analise organizacional, considera que a gestão é o discurso e a prática que atribui sentido ao capitalismo após a dissociação deste do trabalho sob a perspectiva da ética protestante, ou seja, seria seu novo legitimador. Pode-se estabelecer, portanto, sua relação com a intensificação da abstração e da desterritorialização do capital, com a substituição da ética do trabalho pela ética do resultado e a legitimação do capitalismo como um fim em si mesmo (GAULEJAC, 2014, p. 42).
Os ideais de perfeição e de excelência como superação sem limites produzem um discurso que legitima um sistema de produção marcado pela obsessão pela rentabilidade financeira e em que o desempenho da organização é medido pelo curto prazo, com prevalência de uma pressão constante, frente à hiperconcorrencialidade, para “fazer sempre mais, sempre melhor, sempre mais rapidamente, com os mesmos meios e até com menos efetivos” (GAULEJAC, 2014, p. 45).
Nesse contexto, pode-se falar na existência de uma ideologia gerencialista, a qual, conforme vivenciada no pós-fordismo:
 [...] mobiliza a psique sobre objetivos de produção. Ele põe em ação um conjunto de técnicas que captam os desejos e as angústias para pô-los a serviço da empresa. Ele transforma a energia libidinal em força de trabalho. Ele encerra os indivíduos em um sistema paradoxal que os leva a uma submissão livremente consentida (GAULEJAC, 2014, p. 41-42).

Para desenvolver essa abordagem das mediações entre ideologia gerencialista e subjetividade, adota-se como categoria a ser explorada a delimitação conceitual do sequestro da subjetividade proposta por Faria e Meneguetti (2007, p. 50). Justifica-se o foco nessa abordagem diante de sua formulação a partir de aportes teórico-metodológicos da Teoria Crítica e de suas contribuições para a compreensão dos métodos de produção e de gestão do trabalho espraiadas pelo terceiro espírito do capitalismo e da articulação destes com a ideologia.
Subjetividade, conforme Meriti de Souza (1999, p. 18), é terminologia que compreende “(...) as diferentes formas através das quais o sujeito pensa, sente, deseja e representa a si mesmo e ao mundo que o cerca”. Essa é constituída no espaço-tempo e no contexto sócio histórico em que o sujeito se insere já que inexiste uma subjetividade a priori e universal. Faria e Meneguetti (2007, p. 46-52), no mesmo sentido, destacam ainda que a subjetividade, como percepção do real em constante construção pelo sujeito, não é um processo puramente racional e é mediada pelo controle das organizações.
Ressalta-se que a concepção de subjetividade adotada em determinadas vertentes teóricas oculta, no plano do discurso, que aquela é sempre intersubjetiva, relacional e social . Tem-se assim uma premissa falsa quando a subjetividade é pautada exclusivamente por construções e percepções na esfera psíquica de um indivíduo em si e por si, “robsoncruseano”, único e isolado, uma vez que “não podemos conceber o indivíduo sem as teias de relações sociais nas quais ele está inserido”, ou seja, redes de relações sociais, as quais também se dão no mundo do trabalho, compreendido como conflitual e como demarcado por categorias como o estranhamento (ALVES, 2011, p. 14).
            A partir do desenvolvimento analítico de categorias como consciência, subjetividade fragmentada e poder condicionado, Faria e Meneguetti constroem a categoria do sequestro da subjetividade, qual seja:
O sequestro da subjetividade por parte da organização consiste no fato desta apropriar-se, planejadamente, através de programas na área de gestão de pessoas, e de forma sub-reptícia, furtiva, às ocultas, da concepção da realidade que integra o domínio das atividades psíquicas, emocionais e afetivas dos sujeitos individuais ou coletivos que a compõem (trabalhadores, empregados). Estas atividades formam a base da percepção e da representação que permite aos sujeitos interpretar o concreto pela via do pensamento e tomar atitudes (agir). O sequestro da percepção e da elaboração subjetiva priva os sujeitos de sua liberdade de se apropriar da realidade e de elaborar, organizar e sistematizar seu próprio saber, ficando à mercê dos saberes e valores produzidos e alimentados pela organização sequestradora [grifo nosso] (FARIA; MENEGUETTI, 2007, p. 50).

No pós-fordismo essa dialética subjetividade-organização, portanto, se apresenta com particular intensidade nas relações interpessoais voltadas para a produção. Esse engajamento intelectual e afetivo se instrumentaliza, entre outros mecanismos, pelo trabalho em equipe, em que há a criação artificial de um coletivo de trabalhadores.
O sequestro da subjetividade consiste, portanto, em processo no qual as pessoas percebem as prescrições de trabalho como sendo construção coletiva da qual participam (trabalho em equipe), sem reconhecer sua artificialidade diante da sua instrumentalização pela gestão. Tem-se, assim, a abertura de um engajamento psíquico, emocional e afetivo e de um consentimento que bloqueiam e dificultam as práticas de questionamento por parte dos trabalhadores das próprias relações de poder e de controle em que estão inseridos (FARIA; MENEGUETI, 2007, p. 67).
E mais, há um “contrato psicológico” constituído a partir da lógica dos bônus, premiações e recompensas por produtividade, que reforçam o desejo de reconhecimento, ou seja, de ser considerado como fundamental para os objetivos organizacionais (FARIA; MENEGUETTI, 2007, p. 53).
Esses mecanismos da gestão interagem com padrões da sociabilidade conformadores da subjetividade. Há uma articulação entre esses arranjos e uma construção de fetiches que legitimam a dominação social. Um exemplo de fetiche é o do indivíduo vitorioso que consegue realizar todas as aspirações. Como espelho desse fetiche tem-se a intensificação o fracasso como tabu.
Fracasso como tabu consiste em linha de análise desenvolvida por Richard Sennet no livro A Corrosão do Caráter. Nessa perspectiva, conforme Faria e Meneguetti há uma composição imaginária coletiva em que:
Fracasso   como  tabu  moderno  configura  os  valores  do  ‘não  é permitido  falhar,  não  é  permitido  ser  humano’.  Convém  ser  um indivíduo disciplinado e colaborativo, capaz de estar sempre disposto a compactuar com a política dominante. Este tem como perspectiva a recompensa alicerçada na promessa futura de que este indivíduo seja escolhido para fazer parte de um grupo de elite. A mobilidade para o grupo de elite, contudo, é restrita a poucos, sendo a maioria  excluída  das  particularidades  da  minoria.  Com  o  tempo,  o indivíduo  percebe  que  esta  ilusão  transforma-se  em  pesadelo,  em confronto  com  o  dilema  de  tentar  desmitificar  seu  potencial  e  de entender  os  motivos  que  não  o  levaram  a  realizar  todos  os  seus desejos,  esperanças  e  expectativas  iniciais.  O  indivíduo  é  levado  a concluir que sua não inclusão no grupo de elite deveu-se somente à sua incapacidade de corresponder ao que dele se esperava, ou seja, às suas falhas, ao seu fracasso (FARIA; MENEGUETTI, 2007, p.55).

Nesse contexto de criação  artificial de coletivos, de contratos de psicológicos e do fracasso como tabu , a organização, “torna-se objeto de identificação e de amor, fonte de prazer, sendo também aquela que alimenta e fixa sua angústia, pois ele [trabalhador] se torna dependente dela, no sentido total da palavra, não apenas para sua existência material, mas também para a integridade de sua própria identidade” (FARIA; MENEGUETTI, 2007, p. 56).
Essa espécie de mobilização da subjetividade favorece, em comparação com o taylorismo e fordismo, a intensificação do ritmo de trabalho e aceitação ou, até mesmo, a autonegação da experiência concreta de precarização das condições físicas e psíquicas laborais. Abre-se caminho, por meio do sequestro da subjetividade, para um estranhamento que vai além da submissão material do trabalhador à lógica de acumulação do capital, mas para que o trabalhador se sinta parte do capital, ou seja, que o sequestrado se identifique com o sequestrador” (FARIA; MENEGUETTI, 2007, p. 56).
O processo produtivo e a gestão na racionalidade do taylorismo-fordismo não propiciavam condições materiais para a mobilização da subjetividade em um patamar que afastasse os trabalhadores da percepção concisciente  das reais condições precárias vivenciadas no mundo do trabalho. A reestruturação produtiva toyotista, por sua vez, por meio da gestão como ideologia, possibilita um nível de manipulação da subjetividade e de estranhamento-engajamento do trabalhador que efetivamente amplia o embotamento da consicência a respeito das relações de poder e da deterioração das condições de trabalho (FARIA; MENEGUETTI, 2007, p. 18).
            O objetivo central da gestão como ideologia é a aceitação e interiorização dos valores da organização. Essas transformações, dessa forma, não se caracterizam como um aspecto excepcional ou particular de determinadas organizações, mas antes, cada vez mais, constituem uma característica do modo de produção capitalista em seu estágio atual (LINHART, 2009).
Desconstrói-se, assim, a leitura da reestruturação produtiva como uma proposta de organização do trabalho que necessariamente possibilitaria ao trabalhador colocar-se como sujeito livre e criativo nas relações de trabalho. Esse sistema reabilita, de fato, a subjetividade no ambiente laboral, mas apenas na medida em que essa possa ser mobilizada e subordinada – sequestrada -  à cultura gerencial da empresa (LINHART, 2011, p. 153).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
           
O conceito de sequestro da subjetividade apresentado contribui para estabelecer as mediações entre materialidade do modo de produção, ideologia e subjetividade no contexto do pós-fordismo ao desenvolver analise que permite identificar as especificades da gestão como discurso ideológico e suas implicações que embotam o reconhecimento do estranhamento e que interpela o indivíduo como sujeito a partir de uma mobilização até então desconhecida de seus afetos, temores e angustia.
Se os modos de produção anteriores relacionam-se a um estranhamento em que a externalidade do trabalho representa a negação do sujeito, como Marx aponta ao se referir à mortificação do corpo e ruína do espirito, ao sentimento de estar junto a si apenas quando fora do trabalho e, consequentemente, da fuga do trabalho; no pós-fordismo, tem-se por meio da gestão como ideologia o oposto da negação do sujeito, mas a mobilização da subjetividade por meio do afeto e do tabu do fracasso a qual possibilita a intensificação do trabalho, a identificação com a organização e o embotamento da consciência a respeito das reais condições conflitivas vivenciadas nas relações laborais.
            A análise proposta por Terry Eagleton a respeito da crítica ideológica e de sua aproximação com a psicanálise investe em uma conceituação da ideologia que supere a idéia de falsa consciência ao acrescentar que a dominação ideológica se estrutura sobretudo pela construção de um mecanismo compensatório, persuasivo para o dominado, que ama e se identifica com o poder constituído e o discurso que o legitima.
            Essa chave de leitura dialoga diretamente com a análise desenvolvida por Faria e Meneguetti a respeito do caráter persuasivo e manipulatório da subjetividade engedrado pela gestão toyotista por meio de mecanismos que propiciam o engajamento intelectual e afetivo por meio do trabalho em equipe e da criação artificial de um coletivo de trabalhadores afinados com as metas de superação propostas pela organização; das estratégias de bônus e premiações que mobilizam um “contrato psicológico” voltado para os objetivos narcísicos de reconhecimento; da intensificação do fetiche social do indivíduo vitorioso e, consequentemente, do fracasso como tabu moderno.
            Nessa perspectiva, a gestão pós-fordista supera os mecanismos de estranhamento construídos no fordismo e no taylorismo, já que sua atuação não se limita à alienação do trabalhador como dependência da organização para a reprodução da existência material. Além desse, engendra-se um estranhamento que atua sobre a própria construção da subjetividade do trabalhador. A interpelação do sujeito pela ideologia, conforme a proposta althusseriana, se dá agora em uma submissão mais sutil – e paradoxalmente mais contundente -, à medida em que, conforme sintetizam Faria e Meneguetti o “trabalhador se sinta parte do capital, ou seja, que o sequestrado se identifique com o sequestrador”.

REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. (1996) Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. In: ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.
ALVES, Giovanni. (2011) Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório - O novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem que trabalha. In: Revista Eletrônica da Rede de Estudos do Trabalho, Marília, ano IV, n. 8, s/n.
BATISTA, Erika. (2014) A dialética da reestruturação produtiva: a processualidade entre fordismo, taylorismo e toyotismo. In: Revista Aurora, v. 7, n. 2, jan.-jun. 2014, p 17-34.
EAGLETON, Terry. (1997) Ideologia. São Paulo: Boitempo.
FARIA, José Henrique de; MENEGHETTI, Francis Kanashiro. (2007) O sequestro da subjetividade. In: FARIA, José Henrique de (Org.), Análise crítica das teorias e práticas organizacionais. São Paulo: Atlas, p. 45-67.
FRANCO, Tânia; DRUCK, Graça; SELIGMANN-SILVA, Edith. (2010) As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. In: Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 35, n. 122, São Paulo, dez. 2010, p. 229-248.
GAULEJAC, Vincent de. (2007) Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ed. Ideias & Letras.
LINHART, Danièle. (2011) Entrevista: Danièle Linhart. In: Trab. educ. saúde  [online]. vol.9, n.1, p. 149-160.
LINHART, Daniéle. (2009) Modernisation et précarisation de la vie au travail. In: Papeles del Centro de Estudios sobre la Identidad Colectiva (CEIC), n. 49,. Disponível em: <www.identidadecolectiva.es/pdf/43.pdf>.
MARX, Karl. (2004) Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo.
SOUZA, Meriti. (1999) A experiência da lei e a lei da experiência: ensaios sobre práticas sociais e subjetividades no Brasil. São Paulo: Rio de Janeiro: FAPESPE; Revan.


* Conforme Faria e Meneguetti (2007, p. 48) sobre sociabilidade, subjetividade e ideologia: “O  papel  do  contexto  ambiental  da  sua  atuação  e  o  seu relacionamento  com  o  mesmo  enquanto  sujeito  social,  tem  espaço  fundamental  na formação  da  sua  subjetividade,  sendo  assim  importante  destacar  a  importância  de  um imaginário  coletivo,  dos  vínculos  grupais  que  o  sujeito  estabelece,  dos  processos  de produção a que o sujeito se submete e a ideologia que o influencia.


Recibido: 13/10/2017 Aceptado: 18/10/2017 Publicado: Octubre de 2017

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