Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


O PAPEL DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA EFETIVIDADE DAS LEIS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Autores e infomación del artículo

Maíra Soalheiro Grade

Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Brasil

maasoalheiro@hotmail.com

Resumo
O presente artigo se propõe a efetuar uma análise do fenômeno da violência de gênero a partir da reflexão e problematização das representações sociais, especialmente no que se refere às posições de sujeito atribuídas historicamente a homens e mulheres. Nesse cenário, a representação da condição do gênero feminino como inferior ao masculino é um fenômeno que ainda hoje se manifesta de maneira clara em nossa sociedade e a persistência de inúmeras manifestações de violência nos leva a refletir sobre o estado atual das políticas públicas de combate à violência de gênero. Busca-se, por meio do presente estudo, compreender o modo como a participação social nos processos de formulação e aplicação das políticas públicas de combate à violência de gênero pode ser um mecanismo para torná-las mais efetivas. Será utilizado na presente pesquisa o método bibliográfico, visto que pretende-se analisar e relacionar aportes teóricos e críticos referentes às questões de gênero e poder presentes em diferentes estudos, obras literárias e artigos com os estudos referentes à construção de normas jurídicas, especificamente utilizando-se de considerações da teoria do discurso e a teoria do agir comunicativo e da participação social. Nesse contexto, o objetivo do presente trabalho é analisar as vantagens da participação social e democrática na discussão e na implantação das políticas públicas de combate à violência de gênero, além de observar como as relações de poder que se manifestam na sociedade continuam se reproduzindo no interior dos próprios processos de participação. Para a consecução do objetivo acima citado, pretende-se utilizar aportes teóricos provenientes de Judith Butler, Michel Foucault, Jurgen Habermas, além de outros autores pertinentes à temática em estudo.

Palavras-chave: Gênero, Poder, Discurso, Violência, Participação social.

 

Resumen
El presente artículo se propone realizar un análisis del fenómeno de la violencia de género a partir de la reflexión y problematización de las representaciones sociales, especialmente en lo que se refiere a las posiciones de sujeto atribuidas históricamente a hombres y mujeres. En este escenario, la representación de la condición del género femenino como inferior al masculino es un fenómeno que aún hoy se manifiesta de manera clara en nuestra sociedad y la persistencia de innumerables manifestaciones de violencia nos lleva a reflexionar sobre el estado actual de las políticas públicas de combate a la violencia de género. Se busca, a través del presente estudio, comprender el modo como la participación social en los procesos de formulación y aplicación de las políticas públicas de combate a la violencia de género puede ser un mecanismo para hacerlas más efectivas. Se utilizará en la presente investigación el método bibliográfico, ya que se pretende analizar y relacionar aportes teóricos y críticos referentes a las cuestiones de género y poder presentes en diferentes estudios, obras literarias y artículos con los estudios referentes a la construcción de normas jurídicas, de las consideraciones de la teoría del discurso y la teoría del actuar comunicativo y de la participación social. En este contexto, el objetivo del presente trabajo es analizar las ventajas de la participación social y democrática en la discusión y en la implantación de las políticas públicas de combate a la violencia de género, además de observar cómo las relaciones de poder que se manifiestan en la sociedad continúan reproduciéndose en el interior de los propios procesos de participación. Para la consecución del objetivo citado, se pretende utilizar aportes teóricos provenientes de Judith Butler, Michel Foucault, Jurgen Habermas, además de otros autores pertinentes a la temática en estudio.

Palabras clave: Género, Poder, Discurso, Violencia, Participación social.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Maíra Soalheiro Grade (2017): “O papel da participação social na efetividade das leis e políticas públicas de combate à violência contra a mulher”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/04/combate-violencia-mulher.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1704combate-violencia-mulher


Introdução

A persistência dos inúmeros registros de casos de violência contra a mulher, que constitui um fenômeno observado em todo o mundo, possui como principal fator a desigualdade no exercício do poder social entre homens e mulheres.
A representação da condição do gênero feminino como inferior ao masculino é um fenômeno histórico que ainda hoje se manifesta de maneira clara em nossa sociedade.
O Estado, por meio de seus órgãos e agentes públicos, atento a essa realidade, tem desenvolvido políticas públicas de proteção dos direitos das mulheres e combate à violência. No entanto, o que se observa na prática é que tais instrumentos não vêm se mostrando capazes de diminuir os índices de violência, tampouco os feminicídios.
A persistência de tais manifestações de violência nos leva a refletir sobre o estado atual das políticas públicas de combate à violência de gênero, uma vez que a despeito da publicação de Leis e da criação de órgãos especializados para atendimento às mulheres em situação de violência, é necessário aprimorar a atuação do poder público para garantir a efetividade das ações de combate à violência contra a mulher.
Nesse cenário, o problema que orienta o presente artigo consiste em compreender o modo como a participação social nos processos de formulação e aplicação das políticas públicas de combate à violência de gênero pode ser um mecanismo para torná-las mais efetivas.
Diante do exposto, o presente artigo possui como objetivo analisar as vantagens da participação social e democrática na discussão e na implantação das políticas públicas de combate à violência de gênero, além de observar como as relações de poder que se manifestam na sociedade continuam se reproduzindo no interior dos próprios processos de participação.
Com o propósito de alcançar tal objetivo, na primeira parte do artigo faremos uma breve análise a respeito das teorias de gênero, que se propõem a confrontar as desigualdades entre homens e mulheres a partir da reflexão e problematização quanto às identidades e papéis sociais atribuídos (e não inerentes) a cada gênero.
Em um segundo momento, por meio de aportes da teoria Habermasiana, será estudado o caminho referente à construção de normas jurídicas, especificamente utilizando-se de considerações da teoria do discurso e a teoria do agir comunicativo.
Por fim, trataremos da discussão acerca de como o agir comunicativo e a participação social podem se constituir em instrumentos de apropriação do poder pela sociedade civil e sua possível influência no processo de diminuição da violência contra as mulheres.

 

Gênero, poder e violência

Inicialmente, para que seja possível uma análise do fenômeno da violência contra a mulher, é necessário compreender como as relações de poder se orientam em nossa sociedade segundo a perspectiva de gênero.
Cabe ressaltar, nesse ponto, que atualmente o conceito de gênero vem sendo discutido como categoria orientada pela identidade ou representação atribuída aos indivíduos desde o início da vida, e não necessariamente corresponderia a uma divisão binária da sociedade de acordo com o aparelho biológico que tais indivíduos possuem. Ademais, como observa Silva:
Embora aparentemente baseadas em argumentos biológicos, as tentativas de fixação da identidade que apelam para a natureza não são menos culturais. Basear a inferiorização das mulheres ou de certos grupos “raciais” ou étnicos nalguma suposta característica natural ou biológica não é simplesmente um erro “científico”, mas a demonstração da imposição de uma eloquente grade cultural sobre a natureza que, em si mesma, é – culturalmente falando – silenciosa. As chamadas interpretações biológicas são, antes de serem biológicas, interpretações, isto é, elas não são mais do que a imposição de uma matriz de significação sobre a matéria que, sem elas, não tem qualquer significado. (SILVA, 2014, p. 86).

Para Scott, o gênero não reside apenas na distinção sexual/biológica entre homens e mulheres, mas nas relações de poder que foram construídas histórica e socioculturalmente em virtude da pressuposta diferença entre os corpos. Para a autora, “[...] o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder. Seria melhor dizer: o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado". (SCOTT, 1995, p.88).
Nesse sentido, podemos observar que, no decorrer da história, sempre esteve presente a representação da condição do gênero feminino como inferior ao masculino.
Discursos e representações são construídos, produzidos e reproduzidos pela sociedade com determinados objetivos, conforme ressalta Hall:

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntia, naturalmente constituída [...] HALL, 2014, p. 109).

Em nossa sociedade, podemos observar que a construção e a manutenção dos discursos de inferioridade da mulher gerou como consequência a naturalização da ideia de dominação masculina, tanto nas relações afetivas quanto nas demais interações sociais, conforme observa Torres:
Essas representações sociais, engendradas pelas construções simbólicas, que colocam o homem como a norma e a mulher como o desvio, avançam para o campo político e passam a ser vistas e entendidas como a realidade objetivada. Em outras palavras, a idealização objetivada torna-se subjetiva por meio das instituições formadoras de consciência que fornecem o modo de viver à realidade, como se esta fosse constituída por uma unidade de sentido inquestionável. A sociedade estabelece os papéis e, com isso, elabora uma somatização cultural da dominação. (TORRES, 2011, p. 98).

As representações discursivas construídas em virtude do gênero transparecem nitidamente nas relações de poder instituídas na sociedade, e constituem um fator relevante para as manifestações de violência, conforme observa Mohanty. Porém, para a autora, o fenômeno da violência somente poderia ser combatido se analisado não apenas sob o ângulo da atribuição da posição de submissão às mulheres, conforme se extrai do trecho abaixo transcrito:

 

Women are defined consistently as the victims of male control - the "sexually oppressed." Although it is true that the potential of male violence against women circumscribes and elucidates their social position to a certain extent, defining women as archetypal victims freezes them into "objects-who-defend-themselves," men into "subjects-who-perpetrate-violence," and (every) society into powerless (read: women) and powerful (read: men) groups of people. Male violence must be theorized and interpreted within specific societies, both in order to understand it better, as well as in order to effectively organize to change it.1 (MOHANTY, 1984, p. 339).

 

Desta forma, considerando-se que as relações de poder ligadas ao gênero foram construídas discursiva e historicamente, e que as relações desiguais entre homens e mulheres são decorrentes de tal construção, é necessário destacar que a concepção de poder, para Foucault, está diretamente ligada à ideia das relações entre os indivíduos e nas relações destes mesmos indivíduos com o Estado e outras instituições. Na visão do autor, para que o poder se manifeste, são necessárias duas partes na relação – aquele que reprime/domina e aquele que é dominado/reprimido, conforme se nota do trecho abaixo transcrito:

[...] se o poder se exerce, o que é esse exercício? Em que consiste? Qual é sua mecânica? [...] o poder é essencialmente o que reprime. É o que reprime a natureza, os instintos, uma classe, indivíduos. [...] Então, a análise do poder não deve ser antes de mais nada, e essencialmente, a análise dos mecanismos de repressão? (FOUCAULT, 1999, p. 21-22).

 

Porém, apesar de afirmar que o poder é primordialmente uma relação de dominação, Foucault não o considera um fenômeno absoluto, que não comporta possibilidades de mudança. Ao contrário, para Foucault, por ser o poder algo que se exerce, pode haver mudanças nos indivíduos que o exercem. Para o autor, todos nós possuímos a liberdade de questionar as relações de poder existentes e de construir novas relações. O poder, para Foucault,

[...] não é algo que se partilhe entre aqueles que o têm e que o detêm exclusivamente, e aqueles que não têm e que são submetidos a ele. O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está localizado aqui ou ali, jamais está entre as mãos de alguns, jamais é apossado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles. (FOUCAULT, 1999, p. 35)

 

Partindo de tais conceitos, podemos observar que o poder se manifesta por meio dos discursos em nossas relações sociais e comporta mudanças dependendo do tempo histórico que vivemos e das interações que estabelecemos.
Feitas tais considerações a respeito das construções das relações de poder e sua relação com o gênero e de sua influência no fenômeno da violência contra a mulher, passaremos à análise da influência do agir comunicativo proposto por Habermas na construção de uma sociedade mais democrática e igualitária.

A construção das normas jurídicas e o agir comunicativo na teoria de Habermas

Iniciaremos a análise proposta no presente tópico por meio da compreensão da teoria Habermasiana no que se refere à construção de normas jurídicas, especificamente utilizando de duas teorias por ele desenvolvidas: a teoria do discurso e a teoria do agir comunicativo.
Para Habermas, o Estado, ao estabelecer o que ele denomina de “sistema de direitos”, se utiliza de uma compreensão da população do que é aceito naquele momento como justo e adequado em suas práticas sociais. Ou seja, as normas jurídicas são elaboradas utilizando-se dos discursos sociais, conforme se observa do trecho abaixo destacado:

Ao lerem o sistema de direitos pelo ângulo de sua situação, os civis apenas explicitam o sentido do empreendimento ao qual eles já se dedicaram, ao decidirem regulamentar legitimamente sua convivência através do direito. [...] Ninguém é capaz de lançar mão de um sistema de direitos no singular, sem apoiar-se em interpretações já elaboradas na história. “O” sistema dos direitos não existe em um estado de pureza transcendental. (HABERMAS, 1997, p. 166)

Habermas, portanto, defende a ideia de que a construção das normas jurídicas resulta da compreensão dos cidadãos acerca das práticas sociais e dos discursos decorrentes de tal compreensão. Para o autor,

A compreensão discursiva do sistema dos direitos conduz o olhar para dois lados: De um lado, a carga da legitimação da normatização jurídica das qualificações dos cidadãos desloca-se para os procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade, institucionalizados juridicamente. De outro lado, a juridificação da liberdade comunicativa significa também que o direito é levado a explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor. (HABERMAS, 1997, p. 168).

Ainda no que se refere à aplicação da teoria do discurso de Habermas à esfera política, Avritzer afirma que a legitimidade na política “estaria ligada a um processo de deliberação coletiva que contasse com a participação racional de todos os indivíduos possivelmente interessados ou afetados por decisões políticas”. (AVRITZER, 2000, p. 39).
Numa sociedade democrática, portanto, os cidadãos interagem entre si e com os seus governantes, contestam e debatem as decisões tomadas pelo Estado e tentam levar à esfera pública suas reivindicações.
Nesse sentido, a participação social e a ação comunicativa estão diretamente relacionadas à interpretação dos sujeitos acerca da construção de normas que consideram como justas, ou seja,

 

[...] a legitimidade de normas jurídicas mede-se pela racionalidade do processo democrático da legislação política. [...] As máximas de interpretação e princípios jurídicos, canonizados na metodologia, só serão atingidos satisfatoriamente por uma teoria do discurso, quando tivermos conseguido analisar melhor do que até hoje a rede de argumentações, negociações e comunicações políticas, na qual se realiza o processo de legislação (HABERMAS, 1997, p. 290-291).

 

A teoria da ação comunicativa, nesse contexto, é proposta por Habermas como um meio de enfrentar os problemas criados pela burocracia na esfera pública por meio da interação social. Pode-se dizer que tal teoria constitui-se na tentativa de que os processos de comunicação criem influências positivas na construção de processos emancipatórios na sociedade.
Por meio do agir comunicativo torna-se possível que os cidadãos apropriem-se do poder por meio da cidadania e da participação social. Para que isso seja possível, porém, Habermas afirma que precisa haver o que ele denomina de “consenso comunicativo”, que consistiria na tentativa de uma interpretação que considerasse todos os pontos de vista dos atores envolvidos, ou seja:

A definição de uma situação estabelece uma ordem [social]. Através dela participantes em um processo de comunicação atribuem os vários elementos de uma situação de ação a cada um dos três mundos [o objetivo, o social e o subjetivo] e, desse modo, incorporam a situação de ação atual no seu mundo da vida pré-interpretado. A definição da situação por uma outra parte que diverge da definição de um de nós, coloca um problema de tipo peculiar, pois, em um processo cooperativo de interpretação ninguém possui o monopólio da interpretação correta. (HABERMAS, 1984:1, p. 100).

 

O agir comunicativo, portanto, pode ser considerado como um meio para que a sociedade possa intervir na elaboração de políticas públicas adequadas às suas necessidades. Nesse sentido:

Na linha da teoria do discurso, o princípio da soberania do povo significa que todo o poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos criam para si mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente. (HABERMAS, 2003, p. 213).

A participação dos cidadãos por meio das práticas discursivas, com a compreensão de que por meio de sua interação podem ser criadas práticas mais democráticas que envolvam a esfera pública e os atores sociais, dessa forma, é o cerne da teoria do agir comunicativo.
No próximo tópico analisaremos de que forma o agir comunicativo e a participação social podem se constituir em instrumentos de apropriação do poder pela sociedade civil e sua possível influência no processo de diminuição da violência contra as mulheres.

A participação social local organizada como meio de ampliação da eficácia das políticas públicas de combate à violência contra a mulher

Como destacamos no primeiro tópico do presente artigo, as relações de poder desiguais referentes ao gênero constituem um processo construído histórica, discursiva e simbolicamente, profundamente enraizado em nossas estruturas sociais.
É nesse contexto que enfatizamos a importância de que os processos participativos se construam de maneira organizada para o desenvolvimento de políticas públicas mais efetivas de combate à violência contra a mulher, conforme ressalta Costa:

Claro é que os processos participativos são ferramentas poderosas na garantia de direitos. Para tanto, é necessário seguir a trilha da politização permanente da sociedade civil e, ao mesmo tempo, permitir soluções criativas de transformação da sociedade movidas pelos interesses coletivos, pela justiça social e pela cidadania. (COSTA, 2009, p. 1082).

Os processos de participação, se orientados pelo agir comunicativo e racional proposto por Habermas, levariam em conta o interesse da coletividade, inclusive dos grupos historicamente discriminados, como é o caso das mulheres, e não apenas os interesses pessoais dos indivíduos, como se pode observar do trecho abaixo transcrito:

 

[...] os direitos de comunicação e de participação têm que ser formulados numa linguagem que permite aos sujeitos autônomos do direito escolher se e como vão fazer uso deles. Compete aos destinatários decidir se eles, enquanto autores, vão empregar sua vontade livre, se vão passar por uma mudança de perspectivas que os faça sair do círculo dos próprios interesses e passar para o entendimento sobre normas capazes de receber o assentimento geral, se vão ou não fazer um uso público de sua liberdade comunicativa. (HABERMAS, 1997, p. 167).

Deste modo, a construção de espaços sociais de debate é vista como uma forma para que o sistema político se aproprie das reivindicações da sociedade, conforme destaca Avritzer, ao tratar da teoria democrática habermasiana:

Habermas nos oferece como solução ao problema da participação a existência de públicos não-institucionalizados capazes de se organizar no nível da sociedade e forçar a compatibilização entre esfera pública e sistema político. A compatibilização entre uma soberania popular procedimentalizada e os resultados de um debate discursivo no nível da esfera pública contribuiria para a racionalização do sistema político. (AVRITZER, 1996, p. 123). 

A desigualdade de gênero, porém, ainda hoje é responsável pelo pequeno espaço de representação que as mulheres possuem nos meios políticos e sociais.
O processo de reconhecimento da desigualdade de gênero e a iniciativa governamental de criação de instrumentos para enfrentar o problema no contexto do Brasil e de diferentes governos de países da América Latina remonta à década de 1980. Naquele momento histórico, a redemocratização e o surgimento de novas constituições que passaram a privilegiar a participação social e a busca pela igualdade foram alguns dos fatores responsáveis pelo início da inserção do combate à violência contra a mulher na agenda governamental.
A participação de grupos organizados, ou seja de atores não governamentais, foi outro elemento extremamente importante para o processo inicial de inserção de políticas públicas de equidade de gênero na agenda governamental brasileira, conforme destaca Farah:
Participaram da constituição dessa agenda movimentos sociais, constituídos desde os anos 70, em torno da luta pela democratização do regime e de reivindicações ligadas ao acesso a serviços públicos e à melhoria da qualidade de vida, especialmente nos centros urbanos. Já nesse primeiro momento, as mulheres e a problemática de gênero estiveram presentes. (FARAH, 2004, p. 50)

O debate democrático, como se pode observar, com a presença de grupos organizados e movimentos sociais, por meio do agir comunicativo, da cidadania e da participação social, foi um dos responsáveis por trazer à tona o problema da desigualdade de gênero e da necessidade do Estado de criar instrumentos de combate à violência contra a mulher. Avritzer, ao destacar a importância dos movimentos sociais na formação de processos democráticos, afirma que a abordagem habermasiana da democracia

[...] abre espaço para os movimentos sociais e a sociedade civil no interior de uma teoria da democratização. Ela nos permite distinguir, no interior dos processos de democratização, uma dimensão de organização dos movimentos sociais diferenciada do sistema político e relacionada com a democratização da sociedade. (AVRITZER, 1996, P. 144).

É necessário, porém, para que o processo de combate à desigualdade de gênero continue avançando, um incentivo permanente aos processos de democratização, uma vez que construção dos discursos de verdade em cada momento histórico decorre da interação social dos atores por meio da linguagem.
Desta forma, a mudança em direção à construção da emancipação feminina implica uma luta contra as estruturas de poder que pretendemos modificar, porém nas quais estamos constituídos e estruturados, conforme destaca Butler:

 

Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação. (BUTLER, 2003, p. 19).

O que se pretende destacar é que a desigualdade entre homens e mulheres é algo tão profundo, tão associado à nossa compreensão de mundo e às nossas estruturas de pensamento, que as diferenças no exercício do poder em virtude de gênero acabam se manifestando também no interior dos processos de participação social.
Ao contrário do que deveria acontecer na racionalidade comunicativa proposta por Habermas (1984), por meio do conceito por ele denominado de “situação ideal de fala”, na qual todos os participantes teriam oportunidades equivalentes de argumentação, em que a comunicação não seria influenciada por coações ou preconceitos, na prática a desigualdade de gênero que se manifesta nas relações sociais termina por acontecer também no interior dos processos comunicativos, conforme se verifica da passagem abaixo transcrita:

Os lugares de fala são estabelecidos pelos espaços políticos que os atores sociais ocupam, e quando os mesmos estão situados no mundo do sistema, esses sujeitos podem estar em um lugar desfavorável quando comparados àqueles que ocupam espaços de fala no mundo da vida. (ZWICK;SILVA;BRITO, 2014, p. 394).

Corroborando o entendimento de que as desigualdades se revelam também nos processos participativos, Milani afirma que:

[...] não há como pensar as experiências de participação social sem relacioná-las com as histórias políticas nacionais, a tradição cívica local, a cultura política e as estruturas de desigualdade socioeconômica de cada contexto. (MILANI, 2008, P. 561.)

 É necessário, portanto, que se desenvolva uma participação social que se inicia com compreensão, por parte de toda a sociedade, de que a igualdade de gênero precisa ser alcançada, para que o espaço político desfavorável ocupado pelas mulheres no mundo da vida não constitua um entrave para a concretização de um processo mais efetivo de combate à violência de gênero.
Somente por meio do aumento da presença da sociedade civil nos espaços de discussão será possível a apropriação das reivindicações sociais pela esfera pública e sua transformação em normas e políticas públicas efetivas, conforme ressalta Lima:

Construindo-se a ciência jurídica privilegiando-se espaços públicos de discussão legítima – ou, em outras palavras, estabelecendo-se um a priori da norma posta, possibilita-se que reivindicações do mundo-da-vida possam transformar-se em leis que afetam os sistemas sociais de modo que conduzam a sua racionalidade estratégica para que as ações por eles implementadas no mundo-da-vida, sejam vistas como válidas. (LIMA, 2008, p. 160).

A criação e o fortalecimento de mecanismos para que a participação social seja efetiva na discussão dos programas a serem desenvolvidos pelos governos é essencial para o desenvolvimento de um poder político democrático, tal como afirma Avritzer:
Trata-se de construir uma teoria capaz de incorporar um espaço reivindicado pelos atores sociais democratizantes em sua própria prática política. [...] A possibilidade de que o ponto de partida da prática democrática seja a própria sociedade e que o sistema político seja ancorado nas práticas participativas que deram origem à democracia, constitui o horizonte de uma utopia possível no final do século XX. (AVRITZER, 1996, p. 158).

 

O desenvolvimento de espaços participativos mais expressivos no que se refere à discussão das políticas públicas de combate à violência contra a mulher, diante do contexto apresentado, passa pelo fortalecimento dos espaços de discussão a nível local e pela inclusão dos diversos atores, inclusive das mulheres, nos processos decisórios, como aponta Milani:

O desafio contemporâneo dos governos locais está, assim, diante da necessidade de produzir marcos propícios para o intercâmbio e a geração de acordos e denominadores comuns entre os atores do espaço local. Isso implica promover redes de atores sobre problemas públicos, ou seja, redes de política pública local (MILANI, 2008, p. 574).

A participação social e o fortalecimento dessas redes locais, desse modo, passa pela emancipação das mulheres. É fundamental que se amplie a cidadania feminina, por meio do questionamento dos discursos de dominação e da ressignificação das identidades, uma vez que o processo de reconhecimento como sujeito político, de acordo com Fleury, constitui a

construção de identidades individuais e de grupo que rompem as identidades subordinadas e alienadas por meio de um processo de singularização e construção de uma estratégia de transformação social e ruptura com as relações percebidas como de opressão. Trata-se do resgate da palavra, do discurso, do lugar do sujeito na teia de relações sociais e no mundo. Desse novo lugar o indivíduo, ou grupo, fala de si e do mundo desde a perspectiva de sua singularidade e estabelece relações e alianças que lhe permitem assegurar os recursos necessários para alcançar seus projetos. A ruptura se dá na própria constituição dos sujeitos porque ela põe em causa as estruturas da dominação. (FLEURY, 2009, p. 43). – sem grifos no original.

Por meio do agir comunicativo e do desenvolvimento de espaços participativos locais mais expressivos, torna-se possível despertar a ação política das mulheres como defensoras de seus direitos, caminho necessário para a superação dos discursos que construíram a mulher como vítima para criar mecanismos de proteção, que apesar de necessários, acabam perpetuando as relações de poder e mantendo a mulher como dominada.

Considerações finais

O presente artigo procurou problematizar as relações entre poder, gênero e discurso, e também como a desigualdade de gênero pode ser entendida como um processo histórico e discursivo de construção do poder, por meio da atribuição de características de submissão e inferioridade do gênero feminino ao masculino.
Tal realidade somente pode ser superada por meio da compreensão de que a equidade de gênero precisa ser um processo construído por meio da comunicação e da interação racional dos indivíduos.
A teoria da ação comunicativa, nesse contexto, por meio do diálogo e da troca de informações, pode ser capaz de conduzir à compreensão do processo e dos temas debatidos pelos diversos atores, propiciando a construção de políticas públicas mais efetivas de combate à desigualdade de gênero e da violência dela decorrente.
É necessária, portanto, a construção de um debate permanente entre a sociedade, por meio dos atores civis, os movimentos sociais e os organismos estatais, em que se demonstre a necessidade de constante aperfeiçoamento das políticas públicas de igualdade de gênero, a fim de que possam ser construídas ações e estratégias efetivas, que ao mesmo tempo em que reconheçam a persistência da desigualdade entre homens e mulheres, adotem instrumentos específicos de fortalecimento do gênero feminino.
A política pública, para produzir efeitos na sociedade, precisa ser apropriada pelos atores sociais. Para tanto, os processos decisórios devem ser construídos com a participação dos cidadãos, uma vez que a simples previsão de um crime em uma norma jurídica não se afigura capaz de impedir comportamentos que se fundam em uma construção histórica, simbólica tão presente em nossa sociedade, tão associada à nossa compreensão de mundo e às nossas estruturas de pensamento.
Diante de todo o exposto, podemos observar que um processo de afirmação da equidade de gênero e de sua apropriação de forma definitiva pela sociedade necessita da mobilização constante dos atores governamentais e não governamentais, a fim de que seja possível a superação dos processos discriminatórios decorrentes do patriarcalismo vigente na sociedade brasileira.

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1 As mulheres são definidas de forma consistente como vítimas do controle masculino – as “sexualmente oprimidas”. Embora seja verdadeiro que o potencial de violência masculina contra as mulheres define e elucida sua posição social em uma certa medida, definir as mulheres como vítimas típicas as imobiliza como “objetos que defendem a si mesmas”, homens em “sujeitos que perpetram a violência” e a sociedade em grupos de pessoas impotentes (mulheres) e poderosas (homens). A violência masculina precisa ser teorizada e interpretada dentro de sociedades específicas, tanto para que possa ser melhor  compreendida, como para que seja possível uma organização efetiva para mudança. Tradução nossa.
*Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2009) e Pós-Graduação Lato Sensu em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera- Uniderp (2011). Atualmente é analista judiciária junto ao Tribunal de Justiça do Paraná e aluna do curso de Mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento na UNILA - Universidade Federal da Integração Latino-Americana.


Recibido: 30/09/2017 Aceptado: 22/11/2017 Publicado: Noviembre de 2017

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