Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


SABER INDÍGENA DAS ARTESÃS TRADICIONAIS SATERÉ-MAWÉ, UM ESTUDO DE CASO NA CIDADE DE PARINTINS – AM

Autores e infomación del artículo

Mayara Viana de Lima *

Sandra Helena da Silva **

Mirian de Araújo Mafra Castro ***

Universidade Federal do Amazonas

mayaravianadelima@gmail.com

Resumo

O objetivo deste estudo é identificar as questões de gênero manifestadas no cotidiano de vida de indígenas artesãs Sateré-Mawé e as estratégias dessas mulheres para a valorização da cultura e saber indígena re-produzidos por meio do artesanato. A metodologia empregada foi de caráter qualitativo, embasada em pesquisa de campo, tendo como informantes três anciãs produtoras de artesanato, da etnia Sateré-Mawé, essas, contribuíram com suas experiências produtivas e de vida. A análise dos dados apontam para o fato das mulheres artesãs serem produtoras do artesanato, reproduzirem por meio de seu fazer a sua cultura e a arte tradicional indígena -  Sateré-Mawé.
                                   
Palavras-Chave: Etnia Sateré-Mawé - Mulheres Indígenas - Cultura
Resumen
El objetivo de este estudio es identificar las cuestiones de género manifestadas en el cotidiano de vida de indígenas artesanas Sateré-Mawé y las estrategias de esas mujeres para la valorización de la cultura y el saber indígena re-producidos por medio de la artesanía. La metodología empleada fue de carácter cualitativo, basada en investigación de campo, teniendo como informantes a tres ancianas productoras de artesanía, de la etnia Sateré-Mawé, éstas, contribuyeron con sus experiencias productivas y de vida. El análisis de los datos apunta al hecho de que las mujeres artesanas son productoras de la artesanía, reproducen por medio de su hacer su cultura y el arte tradicional indígena - Sateré-Mawé.
Palabras clave: Etnia Sateré-Mawé - Mujeres Indígenas - Cultura
Abstract

The objective of this study is to identify the gender issues manifested in the daily life of indigenous artisans Sateré-Mawé and the strategies of these women for the valorization of indigenous culture and knowledge re-produced through crafts. The methodology employed was qualitative, based on field research, and three elderly women producers of handicrafts, Sateré-Mawé, contributed to their productive and life experiences. The analysis of the data points to the fact that women artisans are producers of handicrafts, reproduce through their culture and indigenous traditional art - Sateré-Mawé.

Keywords: Sateré-Mawé Ethnicity - Indigenous Women - Culture


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Mayara Viana de Lima, Sandra Helena da Silva y Mirian de Araújo Mafra Castro (2017): “Saber indígena das artesãs tradicionais Sateré-Mawé, um estudo de caso na Cidade de Parintins – AM”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/03/saber-indigena-parintins.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1703saber-indigena-parintins


  1. INTRODUÇÃO

Ao se discutir “gênero” e “etnia” é necessário compreender que além destes se expressarem nas relações sociais como constructos históricos que operam na realidade, também se manifestam nas relações de poder, visto tratar de uma análise das diferenças e das relações de controle e domínio de um ser sobre o outro.
Nessa direção, este trabalho tem por objetivo identificar como as questões de gênero são manifestadas no contexto de vida de mulheres indígenas artesãs da etnia Sateré-Mawé e as estratégias dessas mulheres para a valorização da cultura e saber indígena por meio do artesanato.
Algumas inquietações levaram a realização de tal trabalho, mas foi preponderante o interesse em compreender como se manifestam as questões de gênero e etnia das mulheres indígenas artesãs Sateré-Mawé e quais as perspectivas de valorização dos saberes por meio das atividades artesanais desenvolvidas por elas?
Nessa direção, este trabalho está dividido em tópicos teóricos e analíticos, nos primeiros tem-se: Gênero e cultura; A Cultura indígena Sateré-Mawé. Nos tópicos de análise dos dados desvela-se sobre: Mulheres indígenas: quem são e quais as atividades das artesãs Sateré-Mawé; As questões de gênero e etnia das pesquisadas; e por fim o Artesanato: estratégias para a valorização da cultura indígena

  1. GÊNERO E CULTURA

A palavra gênero surge por volta dos anos de 1970, momento de efervescência política, de questionamentos e de luta por uma nova ordem social. Uma ordem de valorização da diversidade humana e do estabelecimento de uma sociedade justa e igualitária para todos povos, mas em especial uma sociedade livre de preconceitos e discriminação contra as mulheres.
Movimentos sociais e ambientalistas saem as ruas para reivindicar os seus direitos, entre eles destaca-se os movimentos de mulheres denominados de Movimentos Feministas. Questionando a ordem social imposta, as diferenças sociais entre homens e mulheres, iniciam a elaboração de uma nova episteme para a compreensão do processo sócio histórico de construção e reconstrução das desigualdades de gênero.

[...] As identidades dos homens e mulheres e o papel social que desempenham dependem, entre outros aspectos, da forma como a sociedade se organiza para produzir e reproduzir sua própria existência, do jeito como as relações de poder são exercidas, da cultura que se institui e do que está sociedade pensa sobre si mesma, podendo variar de uma sociedade para outra. A forma de representação das diferenças entre homens e mulheres são, portanto, socialmente construídas, não sendo naturais e podem ser mudadas porque são construídas e reconstruídas na prática social. (PALUDO; DARON, 2001, p. 9).

Nas falas de Scott (1990) o gênero é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos e seu uso rejeita explicações biológicas deterministas propagadoras de diversas formas de subordinação das mulheres:

[...] O gênero torna-se antes uma maneira de indicar construções sociais – a criação inteiramente social de ideias sobre os papeis adequados aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. [...] (SCOTT, 1990, p. 07).

O debate em torno das relações de gênero traz em cena a urgente necessidade de se desconstruir e desnaturalizar as diferenças entre homens e mulheres, diferenças essas que ao longo da história foram de forma equivocada naturalizadas como biológicas e não como resultado de um processo social interpelado por interesses econômicos, políticos e culturais em uma lógica patriarcal.
Silva e Schneider (2003) enfatizam como a noção de gênero está relacionada à cultura, na medida em que “[...] é formadora e formada por ela, ou seja, é a forma como a sociedade lida com as diferenças entre os sexos [...]” (p. 188). Nesse sentido, o conceito de gênero sendo uma elaboração cultural sobre os sexos, questiona o que é dado como natural e biológico e busca demonstrar como o papel da mulher na sociedade pode ser alterado com benefícios para todos.
Com base nesse alicerce teórico, este trabalho busca entender como a cultura se relaciona à questão de gênero. Dessa forma, discute-se, especificamente, a questão de gênero no âmbito da etnia Sateré-Mawé, mas primeiramente é relevante entender objetivamente alguns aspectos da cultura indígena dos Sateré-Mawé.

    1. A CULTURA INDÍGENA SATERÉ-MAWÉ

Sateré-Mawé é um povo bilíngue e passados mais de 300 anos de contato com a evangelização cristã e a sociedade envolvente conseguiu manter sua língua materna. Ainda hoje vivem, em sua maioria, nas aldeias comunidades sob suas próprias lideranças. O povo Sateré-Mawé em seu processo de adaptação e re-organização social, político e econômico estabeleceu um sincretismo civil e religioso com elementos da cultura envolvente (LORENZ, 1992; UGGÉ, 1991; TEXEIRA, 2005).
Os registros históricos de cronistas e expedicionários como Alfred Metraux (1927) levaram Uggé (1991, p. 18) a supor que o povo Sateré-Mawé possui características semelhantes aos Tupinambás. A origem dos Sateré-Mawé na região do baixo Amazonas pode estar relacionada à migração ocorrida em 1530 de índios Tupinambá, ocasionada pela violência sofrida por parte dos portugueses. Os Tupinambás vieram de Pernambuco e percorreram 50 anos até chegar ao território entre o rio Madeira, Tapajós e proximidades.
“São chamados regionalmente ‘Mawés’, no entanto se autodenominam Sateré-Mawé. O primeiro nome ‘Sateré’ significa lagarta de fogo, o segundo nome ‘Mawé’ quer dizer papagaio inteligente e curioso” (LORENZ,1992. p. 11). A importância de se denominar Sateré surge da identificação e valorização de um clã considerado mais importante dentre os componentes dessa sociedade.
A população correspondente a 8.500 pessoas, sendo entre estes a maioria habitante da Terra Indígena Andirá-Marau, situada entre os Estados do Amazonas e Pará, nas regiões do Médio Rio Amazonas, especificamente às margens dos rios Andirá, município de Barreirinha; nos rios Marau, Urupadi e Manjuru, município de Maués e, no rio Waikurapá, município de Parintins e, uma pequena área no Koatá-Laranjal junto com povo Munduruku (TEIXEIRA, 2005, p. 146).
Segundo o Diagnóstico Sócio-Participativo são 998 Sateré-Mawé habitantes na cidade e destes 521 vivem na sede do município de Parintins, moram em sua maioria em casas próprias em diferentes áreas da cidade, outros cerca de 30 pessoas moram na Casa de Trânsito Indígena. As principais causas dessa mobilidade estão associadas à visita a parentes, constituição de famílias, problemas internos nas comunidades, períodos de festas tradicionais, busca por escolas e oportunidades de emprego (SILVA; FRANCESCHINI; CARNEIRO, 2009, p. 01).

  1. ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

A pesquisa é de tipo qualitativo possibilitando a compreensão dos fenômenos estudados em seus contextos e não apenas à sua expressividade numérica. O delineamento da pesquisa foi de acordo com o “estudo de caso” considerando a unidade social estudada como um todo, reunindo o maior número de informações detalhadas, por meio de diferentes técnicas de pesquisa, objetivando apreender a totalidade de uma situação e descrever a complexidade de um caso concreto.
Para a coleta de dados foi utilizado como referência a pesquisa bibliográfica tendo como categorias de análise: Gênero, Cultura Sateré-Mawé e Mulheres indígenas. A pesquisa de campo foi realizada pela equipe de trabalho da Incubadora de Empreendimentos Amazonas Indígena Criativa, cujo projeto tem como foco a assessoria a empreendedores indígenas nas localidades. Foram entrevistadas três mulheres anciãs artesãs expositoras de seus produtos durante o Festival de Folclórico de Parintins, no ano de 2016.
Para a análise de dados utilizou-se da correlação do aporte teórico com os dados de campo, sendo estes obtidos tanto pelas entrevistas como pelo uso de registros fotográficos e diário de campo.

  1.  MULHERES INDÍGENAS: QUEM SÃO E QUAIS AS ATIVIDADES DAS ARTESÃS SATERÉ-MAWÉ

Na cidade de Parintins, durante o Festival Folclórico de Parintins, dos Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso, os indígenas artesãos autorizados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e pela Prefeitura Municipal de Parintins, se localizam estrategicamente na área central da Praça Eduardo Ribeiro, Bairro Centro, para a venda de seus artesanatos.
Entre os indígenas artesãos, o que chamou atenção foi a presença de anciãs artesãs responsáveis por todo processo da arte tradicional indígena, incluindo desde a produção até a comercialização de seus produtos. Verificou-se um número de 03 artesãs anciãs, sendo o total delas entrevistadas pela equipe de pesquisa, conforme o quadro 01.

No Brasil, o índice de mulheres indígenas com idade entre 54 a 79 anos é de 14% do total da população autodeclarada indígena, segundo o Censo de 2010. Na Região Norte o indicador corresponde a 9,5% do total no de grupo de mulheres e o mesmo percentual entre os homens (IBGE, 2016).
Entre os indígenas ser ancião representa um status de sabedoria, maturidade para aconselhar os mais jovens em suas escolhas e, dessa forma, contribuir com o conhecimento adquirido ao longo da vida. Segundo estudos em relação à vivência dos mais velhos em uma comunidade indígena, entende-se o conceito de ancião indígena a partir de Marques et. al. (2015, p. 424):

Ancião indicou ser detentor de responsabilidade e maturidade para a tomada de decisões, independentemente da idade cronológica; a pessoa anciã (amadurecida) tem um papel auxiliar nas decisões organizacionais e políticas, na proteção e implementação dos direitos e deveres da comunidade. A pessoa mais velha assume uma função e um papel muito mais relacionado à transmissão da tradição.

As mulheres pesquisadas são consideradas anciãs, na percepção desta pesquisa, por suas trajetórias de vida apresentarem os elementos adjacentes àquela de seu aprendizado e hoje ensinamento, compartilhando com os parentes as histórias aprendidas com seus pais e avós sobre a cultura e a importância da valorização de seu povo.
A visão econômica sobre a produção dos artesanais é fator relevante na vida das anciãs, no aspecto relativo a sustentabilidade indígena identifica-se a associação entre os elementos culturais, sociais e econômicos. Ao realizar o artesanato estas mulheres reproduzem a cultura material e imaterial aprendida e repassada a suas gerações de filhos e netos.
O artesanato produzido pelas anciãs participantes desta pesquisa segue etapas tradicionais, seus instrumentos de trabalho costumam ser adaptados por elas mesmas, como agulhas presas a um cabo de madeira para furar as sementes. Entre as três, apenas uma dispõe de um recurso industrial, uma furadeira utilizada para acelerar o processo de perfuração das sementes. As senhoras A.V. (78 anos) e L.M. (54 anos) moram na cidade de Parintins e para ter acesso as matérias-primas de seus artesanatos costumam encomendar de “parentes” moradores nas áreas indígenas.
No que se refere ao uso de sementes para o artesanato, pesquisas relacionadas à produção artesanal dos Sateré-Mawé indicam o fato de haver uma separação de sementes diferentes para confecção de colares de uso próprio indígena e sementes para a confecção de colares exclusivos à comercialização realizada pelos indígenas. Entre estas pesquisas está a de Mauro (2016), a autora destaca que: 

O artesanato produzido e vendido pelos Sateré-Mawé com quem tive contato consiste principalmente em artigos feitos com sementes, particularmente colares, pulseiras e anéis, que, apresentando elementos presentes também nos artefatos de uso pessoal, não são, no entanto, os mesmos. Os colares de uso próprio são, em geral, feitos com sementes pretas, com chumburana, murumuru, maniva-do-mato e, principalmente, a pucá (MAURO, 2016, p. 100).
                                                                                                                                     

Um ponto que se complementa nas pesquisas de Mauro (2016) e identificado nos trabalhos artesanais confeccionados pelas anciãs pesquisadas é o uso de sementes diversas, e também a semente preta – chumburana - usada principalmente nas peças de uso próprio indígena, para produzir artesanatos também com fins de comercialização, sendo esse um aspecto de destaque na difusão da cultura indígena, proporcionando um maior significado simbólico à peça.

    1. AS QUESTÕES DE GÊNERO E ETNIA DAS PESQUISADAS

As mulheres anciãs estão envolvidas em todas etapas de seu processo produtivo, até mesmo na comercialização de sua arte. Elas relatam o fato de, no passado, ter tido um coordenador de Terra Indígena intermediador das vendas, mas este se mudou para Manaus e, desde então, realizam as vendas de seus artesanatos em suas próprias casas, e esporadicamente em feiras ou festas regionais, como no Festival Folclórico de Parintins dos Bois-Bumbás (Figura 01), momento em que expõem seus produtos confeccionados para este momento. Além de configurar uma prática econômica de comércio, a venda do artesanato na Praça Eduardo Ribeiro representa também um momento de socialização com os “parentes” expositores de seus produtos naquele espaço. A senhora F.V. (78 anos), relatou já ter deixado de vender artesanatos a clientes que foram em sua casa comprar a fim de não faltar produtos para vender no Festival.

Além de um espaço de socialização, entendemos a venda dos artesanatos pelas mulheres no espaço da praça como uma estratégia de empoderamento das artesãs Sateré-Mawé e de seu povo, pois:

[...] as mulheres, ao adentrarem o espaço público, modificando as relações de gênero cristalizadas culturalmente, não buscam assumir o lugar dos homens, mas o reconhecimento e valorização perante seus parentes e comunidade. De uma forma geral, este espaço não tem sido fácil para as mulheres indígenas, pois, apesar de unirem suas vozes ao movimento indígena nacional, trazem as plenárias indígenas discussões novas, como as relacionadas as questões de gênero e a luta por direito no plano da cidadania (BARROSO, 2011, p. 49).

Essa questão da divisão social do trabalho que constrói uma separação da esfera pública, eminentemente, masculina, e da esfera privada, em geral, feminina, deve ser compreendida como uma construção cultural. Isso é reforçado por Lévi-Strauss (1980, p. 28), segundo o qual, “tal como as formas de família, a divisão do trabalho é mais consequência de considerações sociais e culturais que de considerações naturais. [...]”. Isso é notável a partir de seus estudos antropológicos de sociedades diversas, nas quais as funções destinadas aos homens e mulheres variam de acordo com a cultura de cada povo.
Nessa direção, Durham (1981, p. 19) vêm acrescentar que “[...] reconhecer a existência de aspectos gerais da divisão sexual do trabalho e a generalidade da dominância masculina não implica aceitar que a submissão da mulher seja um fenômeno natural ou universal [...]”. Assim, percebemos como a “inferioridade” feminina é uma questão impregnada no contexto de nossa sociedade que vê, a partir de padrões sociais e culturais, o homem como o ser provedor, representante do espaço público.
Para Barroso (2011, p. 51) as desigualdades de gênero vão se transformando de acordo com o movimento nas próprias culturas e no maior ou menor contato com a sociedade envolvente. Essas transformações interferem nos papéis atribuídos tradicionalmente entre homens e mulheres, como também em muitos aspectos da organização social indígena, entre elas a do universo indígena Sateré-Mawé.
Discutir gênero e etnia engloba o entendimento do patriarcado de maneira a compreendê-lo não apenas segundo os binários, macho-fêmea, mas pelas diversas e complexas estratificações ocorridas na sociedade (MURARO; BOFF, 2010) por gênero, raça, classe, e, mais especificamente, pelas dominações, preconceitos e/ou discriminações que ocorrem devido a não aceitação das diversidades dos povos que vivem, em especial, na Amazônia.
Nessa perspectiva, entende-se o fato de a cultura estar diretamente relacionada às questões de gênero, isso porque as dominações, sejam de qual tipo for, surgem e se manifestam em cada cultura de formas diferenciadas. A cultura da etnia Sateré-Mawé é carregada de lutas por uma sociedade mais justa e livre em todas as dimensões da vida, tanto para seu povo que vive nas aldeias como nos espaços citadinos. É uma luta pela garantia da manifestação da diversidade humana.

    1. ARTESANATO: ESTRATÉGIAS PARA A VALORIZAÇÃO DA CULTURA INDÍGENA

A confecção de artesanatos indígenas (colares, brincos, pulseiras, entre outros) destaca-se entre as atividades de trabalho das mulheres indígenas Sateré-Mawé (BARROSO, 2011, p. 45). De acordo com os discursos proferidos pelas anciãs, entre as dificuldades encontradas para a produção da arte indígena estão: o acesso à matéria-prima (logística), a necessidade de adquirir ferramentas e saber usa-las com agilidade; e o conhecimento necessário para organizar os recursos financeiros. Quanto a organização de suas atividades produtivas relatam:

Sateré não sabe. Só na cabeça. Minhas filhas me ajuda, dão preço, diz quanto que eu podia vender, colar, me ajudam, porque eu mesma não sei, só mesmo eu vou conferindo quando eu vou comprar dos meus parentes que trazem. Só mesmo da minha cabeça. Eu não vou anotar não, só mesmo na minha cabeça, mas tem dia que as meninas me ajudam: ‘mamãe é tanto que a senhora vai poder vender, se não, não vai ter lucro!’ (Sra. F.V., 78 anos, PIN/AM).

Tem Sateré que sabe fazer assim [Administrar seus recursos], mas eu não. Nem anoto. Só quando, trabalhando com venda, eu fiz conta só na minha cabeça (Sra. A.M, 68 anos, PIN/AM).

Somadas a essas dificuldades existem ainda os elevados preços das matérias primas para a produção artesanal e a concorrência com as lojas revendedoras de produtos de artesanato indígena e não indígena localizadas nas cidades:

Para produzir é que custa a gente fazer, a gente vai em frente, a gente vai fazendo, tudo que é dificuldade que a gente vai encontrando. O material é caro, é duas voltas [De linha] é dois reais que nossos parentes vendem, mas é o jeito a gente comprar porque a gente vai trabalhar a gente que vai vender. Se for botar dificuldade a gente não compra nada não (Sra. F.V., 78 anos, PIN/AM).

Eu acho que é valioso a cultura do Sateré, o branco já tem loja de artesanato, o mesmo nosso, só que eles compram também dos Hixkaryanos, [estes] trabalham mais com pena, tudo com pena, nós não. Esses de caroço, de pombinho eles querem muito, o meu acabaram esses, agora vou fazer mais. (Sra. F.V., 78 anos, PIN/AM).

Mesmo com todos os entraves encontrados em sua organização produtiva, as artesãs continuam mantendo a sua arte tradicional indígena, representada por meio de seus artesanais, pois para elas “é valiosa a cultura do Sateré”. Nesse sentido, a realização dos artesanais, conforme os dísticos de F.V. (78 anos) mencionados acima, envolve a valorização da própria cultura, efetivando a sustentabilidade do seu próprio produtor e da cultura de seu povo. Ballivián (2012, p. 11) corrobora:

Historicamente o artesanato faz parte integrante da cultura indígena, sendo uma expressão material de sua visão de mundo, do modo de ser e de se relacionar com elementos do meio. É tradicionalmente uma atividade de caráter familiar que realiza todas as etapas da produção, desde o preparo da matéria-prima até o acabamento final, em que se destaca a habilidade do trabalho manual e do saber tradicional, passado de geração em geração: de pais para filhos, de avó para neta, etc.

Nesse sentido, fica visível como o artesanato manifesta-se enquanto um componente cultural transmitido por meio do etnoconhecimento. O artesanato é uma representação da cultura indígena, da identidade de um povo, além disso, tem um valor econômico, promovendo trabalho e renda para os artesãos.

Depois que aprendi, aí já passa [ensina] para os parentes, neta, e aí vai, irmãos. Eles gostam de aprender porque dá dinheiro, né (Sra. A.M., 68 anos, PIN/AM).

Eu sei que o artesanato dá dinheiro também. A gente não para de fazer até chegar outro ano [Venda anual no Festival Folclórico de Parintins] porque a gente sabe que a gente vai vender e ganhar um dinheirinho. [...] Eu gosto de fazer, eu estou fazendo, de noite, eu faço de dia, nas horas vagas, eu apronto uma comida, faço o almoço, depois já vou pegando meu artesanato (Sra. F.V., 78 anos, PIN/AM).

Apesar da autorização pelos órgãos competentes para as atividades de comercialização artesanal na área central da Praça Eduardo Ribeiro, ainda é precária a realização dessa atividade pelos indígenas. Segundo a pesquisa, são eles próprios os responsáveis por todas as despesas relativas à comercialização como transporte dos artesanatos, mesas, cadeiras, lonas para proteção chuva/sol, gastos com alimentação, água.
Na cidade é expressivo o viés cultural indígena no palco do Festival Folclórico dos Bois-Bumbás, porém os reais sujeitos “no palco da vida” estão distanciados do protagonismo em relação à valorização de suas atividades empreendedoras de intrínseco valor cultural.

Desde o tempo que nosso avô ensinou a gente, a gente nunca se esqueceu, é praticar, ensinar nossos netos, nossas netas para um dia quando a gente não estiver mais vai ficar para eles, porque essa cultura é nossa, dos Saterés. Hoje em dia nossa cultura indígena, vocês estão vendo que por aqui todos esses brancos estão vendendo o mesmo, igual nossa cultura, nosso colar, bolsinha, veio de Santarém, brinco tudo igual nossa já, é nossa cultura [...] (Sra. F.V., 78 anos, PIN/AM).

A valorização da cultura é questão essencial para os artesãos indígenas, vivenciadores atualmente de um sem-número de dificuldades em seu cotidiano de vida e realização de atividades de trabalho. O papel das mulheres artesãs contribui para a continuidade das atividades artesanais, mas falta ainda muito a se fazer para melhoria das condições de vida e trabalho dos povos indígenas.

  1. NOTAS FINAIS

Nesse trabalho foram identificadas as manifestações das questões de gênero e etnia das mulheres indígenas artesãs Sateré-Mawé e as estratégias dessas mulheres para a valorização da cultura e saber indígena por meio de sua arte tradicional.
Entendemos como o exemplo dessas mulheres representa o fato da cultura, assim como a divisão sexual do trabalho não serem rígidas e imutáveis. As transformações nesse sentido são complexas e precisam cada vez mais ser estudadas para um melhor entendimento das relações na sociedade, entre elas as questões indígenas.
Percebemos, por fim, como as mulheres artesãs são produtoras do artesanato, de suas culturas, de sua autonomia enquanto ser e fazer Sateré-Mawé nos diferentes espaços e tempos, interagindo com a sociedade envolvente ao praticar a economia, reconstruindo e repassando os etnoconhecimentos às gerações de seu povo. Ensinando-lhes estratégias de adaptação frente uma realidade adversa e dicotômica, que ora inclui ora exclui, e nessa dinâmica é preciso saber compreender a cultura de seu povo para manter-se vivo.

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DURHAM, R. Eunice. Família e Reprodução Humana. São Paulo: Ática. 1981

LORENZ, Sônia da Silva. Sateré-Mawé: os filhos do guaraná. São Paulo: Centro de Trabalho Indigenista, 1992.

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MAURO, Ana Luisa Sertã Almada. Seguindo sementes: circuitos e trajetos do artesanato sateré-mawé entre a cidade e aldeia/ Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Antropologia. Área de concentração: Antropologia Social. São Paulo, 2016. 212 f.

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* Mayara Viana de Lima - Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia. Bacharela em Serviço Social. Pesquisadora na Incubadora Amazonas Indígena Criativa. Rua Alberto Mendes, 2182, Palmares, cidade de Parintins, Amazonas. Universidade Federal do Amazonas. e- mail: mayaravianadelima@gmail.com. Fomento: Fundação Rio Solimões

** Sandra Helena da Silva - Doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia. Bacharela em Serviço Social. Coordenadora na Incubadora Amazonas Indígena Criativa. Rua Alberto Mendes, 2182, Palmares, cidade de Parintins, Amazonas Universidade Federal do Amazonas. e-mail: sandrahsf@gmail.com. Fomento: Fundação Rio Solimões

*** Mirian de Araújo Mafra Castro - Mestranda em Sociedade e Cultura na Amazônia. Bacharela em Serviço Social. Técnica Administrativa na Incubadora Amazonas Indígena Criativa. Rua Alberto Mendes, 2182, Palmares, cidade de Parintins, Amazonas Universidade Federal do Amazonas. e-mail: mirianaraujo2233@gmail.com. Fomento: Fundação Rio Solimões


Recibido: 24/05/2017 Aceptado: 11/08/2017 Publicado: Agosto de 2017

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