Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


A POÉTICA ÁRABE NOS ZEJÉIS DE IBN QZMAN: O DIÁLOGO EVIDENTE LA POÉTICA ÁRABE EN LOS ZEJELES DE IBN QZMAN: EL DIÁLOGO EVIDENTE

Autores e infomación del artículo

Daniel Conte*

Poliana Soares **

Ernani Mügge***

Universidade Feevale, Brasil

danielconte@feevale.br

Resumo: O artigo aborda a trajetória da literatura árabe até sua fusão com a cultura dos povos da Península Ibérica, evidenciando as características da poética árabe, manifestadas pela oralidade, tradição e performance. Assinala, ainda, que a construção estética dos poemas-cantigas, denominados Zejéis, generosos em suas rimas e em suas composições rítmicas, é imprescindível para a compreensão das imagens simbólicas contidas na produção poética. O estudo detém-se sobre os Zejéis números dez e oitenta, de Ibn Qzman.
  
Palavras-Chave: Literatura árabe-andaluzina, Ibn Quzman, Tradição, Oralidade, Zéjel.

Resumen: El artículo aborda la trayectoria de la literatura árabe hasta su fusión con la cultura de los pueblos de la Península Ibérica, evidenciando los rasgos de la poética árabe, manifestados por la oralidad, tradición y performance. Señala, además, que la construcción estética de los poemas-cantigas, denominados Zejeles, generosos en sus rimas y en sus composiciones rítmicas, es imprescindible para la comprensión de las imágenes simbólicas contenidas en la producción poética. El estudio se detiene sobre los Zeleles números diez y ochenta, de Ibn Qzman.

Palabras clave: Literatura árabe-andaluz, Ibn Quzman, Tradición, Oralidad, Zéjel.

 


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Daniel Conte, Poliana Soares y Ernani Mügge (2017): “A poética árabe nos Zejéis de Ibn Qzman: o diálogo evidente la poética árabe en los Zejeles de Ibn Qzman: el diálogo evidente”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/03/poetica-arabe.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1703poetica-arabe


 

À GUISA DE INTRODUÇÃO

É a partir de questões aventadas por Luís Soler em sua obra As raízes árabes, na tradição poético-musical do sertão nordestino (1978) e de estudos dos escritores portugueses Theophilo Braga, Epopeias da Raça Moçárabe (1871) e J. P. de Oliveira Martins, A Teoria do Mosarabismo de Teófilo Braga (1953), que pudemos resgatar a imagem da literatura e do povo moçárabe. Braga aponta a qualidade e a nacionalidade da literatura e da poesia portuguesa através do resgate histórico das ações de domínio, invasão e colonização ocorridas no território ao largo da formação do que hoje compreende o território da nação portuguesa, trazendo ao cotejamento situações semelhantes ocorridas em outros países.
Faz-se importante ressaltar a ideia de Teófilo Braga, sobre a constituição da poesia moçárabe, uma vez que é a partir dela que esse movimento árabe-andaluzino começa a ganhar forma e força no século XVII. Diz ele que, com a leitura da poesia árabe

o que estava oculto aparece. A história não teria consciência desta iniquidade, nem saberia condenar a ruína dos Moçárabes, se a Poesia e o Direito desta raça que era fecunda não estivessem reclamando a sentença impassível das idades. Nada há de ficar sem ser vingado. Quem ainda tem boa fé, leia; quem tem vigor e ainda espera, levanta-se (BRAGA, 1871, p.VII).

À luz da afirmação de Braga, delineou-se este estudo, que alcança uma temática raramente abordada e oferece um vasto campo para descobertas significativas e enriquecedoras. Essas podem trazer à superfície aspectos renegados pela história e revelar novas formas de ver e compreender o legado árabe.
Os procedimentos metodológicos utilizados nesse estudo são de cunho bibliográfico e consistem na leitura, na síntese teórico-crítica das obras de hispanistas e arabistas, bem como os Zejéis dez e oitenta do poeta Ibn Qzman, de ascendência árabe-andaluzina, à luz do aporte bibliográfico.
Dessa forma, realizamos uma aproximação com o corpus analisado através da leitura das obras de Wilhelm Ahlwardt (1913), Adolfo Federico von Schack (1945), Francesco Gabrieli (1967), Albert Hourani (2006), Michel Sleiman (2000) e Alberto Mussa (2008), a fim de sistematizar uma leitura do imaginário em questão e da representatividade da oralidade nestes poemas-cantigas.
Para fechamento, relacionamos, na conclusão, as características da poética das obras de Qzman, analisando criticamente os significados instaurados, guiados à luz dos teóricos Octávio Paz (1982) e Paul Zumthor (1993; 1997) sobre poesia, poética e, também, conceitos sobre a oralidade como manifestação poética e perpetuação da tradição do popular.

 

  • A HISTÓRIA ÁRABE MEDIEVAL E A ORIGEM DA POESIA PRÉ-ISLÂMICA

É através da materialidade literária que povos e nações têm construído a noção de seu patrimônio histórico. Muito da história mundial foi e é registrada pela ficção, e é por meio dessa fissura que é possível voltar ao século V e reconstruir parte da trajetória cultural de um povo que habitou Meca e a Península Ibérica há milhares de anos.
Os fatos selecionados para compor esse retrospecto foram analisados, compreendidos e alocados dentro de uma perspectiva histórico-cultural, a fim de unir os caminhos paralelamente traçados pela História. Um desses caminhos guiou-se para a organização social e política, ou seja, para os meios de subsistência, expansão dos territórios e o desbravamento de mares e terra. Convergindo a esses ideais, uma segunda viela, despretensiosa, começou a ser assentada: a poesia.
A música, a dança e a narração de feitos bélicos despertaram, nas tribos árabes, o gosto pela palavra cantada, pela rima e pela sonoridade. Sem a consciência de que construíam um legado, não apenas para sua civilização, mas para o mundo, os errantes do deserto iniciaram o que muitos historiadores e arabistas consideram ser os primeiros indícios da literatura desse povo, a chamada literatura pré-islâmica, assim definida por Gabrieli (1967, p. 24):

la poesía anteislámica es la expresión, unilateral y estilizada, pero fiel en su unilateralidad, de la primitiva sociedad árabe antes que el Islam llegara para darle un nuevo rosto y una dinámica fe. Esa poesía refleja la pobre y ruda vida de tribus nómades, errabunda por los desiertos de Arabia septentrional y central.

De acordo com o estudo proposto, é relevante visualizar a história da Literatura Árabe desde o período pré-islâmico, anterior ao surgimento de Maomé, berço da produção poética deste povo e ponto de partida da investigação, até a chegada dos árabes na Península Ibérica. Gabrieli (1967, p. 24) sugere em seus estudos, que

se puede estudiar el Islam sin interesarse gran cosa en la antigua poesía árabe, salvo para buscar las huellas de aquel paganismo o polidemonismo primitivo con el cual luchó y, a veces, pactó Mahoma; mas no se puede hablar de historia, literatura, “ethos” de los árabes sin remontarse a esa primera y única fuente de su vida social y espiritual más antigua, desarrollada luego bajo un signo nuevo y distinto.

Com o intuito de uma melhor compreensão das informações apresentadas, organizou-se as datas referidas de acordo com o calendário cristão, portanto, de meados de 400 d. C., na região oriental que compreende, hoje, os países como Arábia Saudita e Síria, até Espanha e Portugal.
Nos séculos XVIII e XIX, muito se discutiu sobre a origem da poesia árabe do período pré-islâmico e sua influência na poética europeia. A intriga mais significativa estava relacionada a três fatores específicos: a) a carência em qualidade e quantidade de registros escritos da época, o que revela um scriptocentrismo das ciências humanas – “les convictions établies des sciences humaines, fondées sur un ‘scriptocentrisme’ irréfléchi, ne font que déformer et rendre incompréhensibles” (LEMAIRE, 1997, p. 21); b) a sua autenticidade; e c) a possibilidade de atribuir ao povo oriental grande parte dos créditos do desenvolvimento sociocultural da Europa medieval, já que durante oito séculos, aproximadamente, uma porção da Europa que conhecemos ficou sob o domínio de tribos árabes, o território Al-Andaluz, terra dos vândalos, em árabe.
Consoante Adolfo Federico von Schack, arabista e hispanista,

la cuestión planteada a menudo sobre si la poesía de la Europa Cristiana en la edad media ha recibido el influjo de la poesía arábiga, se decide aun sin que sea lícito negarlo, por afirmaciones generales y someras analogías, mientras que sólo el conocimiento de la misma poesía arábigo-occidental puede derramar luz sobre este punto oscuro (1945, p. 9).

 

Para se chegar ao estudo da poética árabe-ocidental, é necessário reconhecer que seu remanescente está nos poemas pré-islâmicos, “no sólo porque sirve de fundamento a todas las formas posteriores más artificiosas, sino porque ella misma permanece siempre inalterable al lado de los demás modos de poetizar” (SCHACK, 1945, p. 16) devido a sua subjetividade e sua personalização por parte dos poetas.
Ainda sobre a influência árabe na poesia ocidental dos países da região da Península Ibérica, Francesco Gabrieli (1967, p. 24) afirmou haver o interesse e a fascinação pela poesia pré-islâmica por parte dos ocidentais “por sus tan innegables como fragmentarios valores estéticos, por su interés lingüístico e histórico, y por el atractivo propio de todo documento del origen de un pueblo, de una civilización”, ratificando o interesse demonstrado por Schack, há um século.
No âmbito do interesse linguístico, a história da língua árabe reserva algumas peculiaridades. Gabrieli (1967, p. 17) observa que

toda esta literatura, desde la poesía anteislámica y el Corán hasta la contemporánea neoárabe, utiliza una lengua fundamentalmente única, singularmente conservadora, por lo cual no puede decirse que la gramática y el fondo lexical de una prosa o poesía actuales se alejen mucho de una prosa o poesía del período más antiguo, desde los orígenes.

Para um leitor pouco atento da história da literatura pré-islâmica, essa afirmação não causa impacto, a não ser que se leve em consideração que a língua falada não era registrada por escrito. Entretanto, não se sabe ao certo quando iniciou o processo de seu registro, mas pode-se dizer que levou séculos para ocorrer. Nas investigações, Gabrieli (1967, p. 19) apresenta teorias de que a escrita pertencia à língua culta das artes e dos conhecimentos e nunca foi uma língua viva, ao mesmo tempo em que houve estudiosos, como ele, que não entendem que essa segregação tenha se dado dessa forma, pois muitos estudos deixaram clara a dificuldade de se decifrar manuscritos do século VI devido à estranheza dos vocábulos.
O autor afirma que a tese extremista

no nos parece aceptable: aun reconociendo el carácter elaborado y artificial de algunos aspectos del árabe clásico, consideramos que el árabe de los más antiguos documentos prosísticos, como el fondo más antiguo de los “hadith” o dichos canónicos atribuidos al Profeta, [...], representa la lengua hablada  efectivamente en los primeros siglos de la hégira, [...]. Resulta obvio, y está confirmado por numerosos indicios de gramáticos, filólogos e historiadores [...] que esta lengua hablada del desierto y de los centros urbanos más puramente árabes pronto comenzó a alterarse, especialmente en las capas inferiores de la población (GABRIELI, 1967, p. 18).

 

Dessa alteração linguística, resultou o afastamento entre a língua escrita e a falada. Em relação a isso, é fundamental salientar que, durante séculos incertos, essa literatura foi disseminada pela oralidade, entre tribos e territórios, conforme escreveu Gabrieli (1967, p. 26):

todo este patrimonio poético, como reconocen los mismos árabes, pasó de generación en generación por vía oral, confiado a la memoria colectiva y en particular a la de rapsodas profesionales, hasta que en el segundo siglo de la hégira empezó a fijarse y coleccionarse sistemáticamente.

Albert Hourani (2006, p. 31) também defende que os poemas pré-islâmicos

eram compostos para recitação em público, seja pelo próprio poeta, seja por um rawi, ou declamador. Isso tinha algumas implicações: o sentido precisava ser transmitido num verso, uma unidade única de palavras cujo sentido fosse captado pelos ouvintes, e toda a apresentação era única e diferente das outras. Os poetas ou o rawi podiam improvisar, o que talvez tenha implicado na versão original de um poema.

Utilizando o método mnemônico para armazenar e disseminar esses poemas, a única certeza é de que eles conseguiram persistir ao tempo, mas não sabemos até que ponto são versos originais, erigindo a movência da tradição, conforme nos ensina Zumthor (1997). Por outro lado, há relatos desse período como sendo o início da escrita do alfabeto árabe atual, mas ele surge, ainda, influenciado pela língua romance, que circulava pelo mundo muito antes da era cristã, entre as mais diversas tribos e territórios, assumindo características próprias, mesclando-se com os dialetos locais e sendo constantemente modificada.
Schack observa que

 

las primeras expansiones poéticas de los árabes fueron versos aislados, que improvisaban bajo la impresión del momento. Todas las tradiciones y colecciones de poesías de tiempos preislámicos están llenas de breves manifestaciones rítmicas de un contenido enteramente personal, según esta o aquella ocasión lo requería (1945, p. 15-16).

 

Neste período, percebeu-se que as manifestações poéticas não passavam de anotações cotidianas, sem exibir um padrão estético. Por isso, algumas obras são compostas por versos curtos, temáticas telúricas, na maioria das vezes relacionadas à vida do poeta (SCHACK, 1945, p. 16). Contudo, isso não impedia que o ritmo árabe já estivesse presente, pois esses versos foram escritos para serem recitados, reforçando o caráter da oralidade e, por consequência, o performático. Essa observação vai diretamente ao encontro dos estudos de Zumthor, nos quais ele afirma que a oralidade é a responsável pela permanência da tradição cultural dos povos. Destacamos a importância da performance como ação indispensável para essa perpetuação, sendo assim definida:

a performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é  simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida.  Locutor, destinatário, e circunstâncias (...) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis. Na performance se redefinem os dois eixos da comunicação social: o que junta o locutor ao autor; e aquele em que se unem a situação e a tradição (ZUMTHOR, 1997, p. 33, grifo do autor).

Dessa forma, nas obras que resistiram aos séculos de desenvolvimento, foram identificados dialetos árabes de extrema dificuldade de compreensão, apesar de sua grande semelhança com a língua semita. De acordo com Mussa (2008, s.p.), “infelizmente, não conhecemos nada da primitiva literatura árabe. O que nos restou do antigo alfabeto de 29 consoantes são documentos epigráficos: inscrições votivas, comemorativas, funerárias”, ou seja, a tecnologia da escrita não encarcerou a vida desse mundo consubstanciado na oralidade, em que “ces tradicions orales ne constituent pas um stade antérieur, primitif, le préambule encore fruste et imparfait de la littérature écrite, mais bien au contraire un monde, une culture” (LEMAIRE, 1987, p. 21).
Por outro lado, o teórico Schack (1945, p. 20) afirma que não é fácil descartar a hipótese do empobrecimento dos poemas pré-islâmicos, baseados na falta de uma mitologia própria, de uma tradição épica e da pouca imaginação para a criação, o que limitou as tribos nômades a descrever aquilo que as rodeava. No entanto, o que atrai nos poemas é justamente a capacidade apurada de descrever o que o exímio olhar do poeta errante é capaz de perceber:

El beduíno, cuyos ojos se han hecho más perspicaces con la contemplación de la naturaleza, ve todo cuanto le circunda desde mil diversos puntos de vista, y sabe dar novedad aun a los objetos con más frecuencia descriptos. El desierto, así en la temerosa oscuridad de la noche, como durante el encendido resplandor del mediodía, cuando los rayos del sol pintan, en las leves y vaporosas exhalaciones de la tierra, mágicas imágenes, ofrece al poeta a cada momento los más variados cuadros. Él ha observado cada uno de los movimientos de su fiel camello, que sin cansarse jamás, le lleva por inhospitalarias soledades, o ha oído cada relincho de su valeroso corcel como la voz de un amigo. La abrumadora calma de un tiempo ardoroso, no mitigada ni por una ligera ráfaga, el silbido del viento; las nubes, ora apiñándose, ora disipándose; la alternativa y los efectos de luz y de sombras, y el surco deslumbrador del relámpago en el cielo tenebroso; de todo esto, no sólo en general, sino en cada uno de sus momentos, y con su propio carácter y fisionomía, sabe apoderarse el poeta, y prestar duración con gráficas palabras a la instantánea y mudable faz de las cosas. Ni le falta imaginación instintiva para pintar los encantos de su amor y las excelencias de su espada o de su lanza reluciente. En sus breves narraciones, no obstante la índole lírica de toda la obra, acierta, con pocos rasgos atrevidos, a contar los sucesos y a presentarlos vivamente a la fantasía (SCHACK, 1945, p. 21).

Os registros mais concisos e estudados dessa época nada mais são do que poemas vencedores de recitais de guerreiros que narravam seus feitos bélicos na feira anual de Ocaz, denominados de Al-Mu‘allaqāt  (do árabe: pendurados), que consistem na reunião de sete desses poemas vitoriosos, elegíacos. Sua estrutura é conhecida no árabe como qaṣīda. A relevância desses poemas está na qualidade estética e por sua extensão em relação aos demais poemas da época. Para que se compreenda esse fenômeno, utilizamos as definições de Hourani (2006, p. 32-33) sobre as partes que, habitualmente, compunham a qaṣīda:

o poema tendia a começar com a evocação de um lugar onde o poeta esteve um dia, que podia ser também a evocação de um amor perdido, [...]. Depois disso, pode vir uma jornada em lombo de camelo, em que o poeta fala do camelo, do campo e da caça aos animais, e por implicação, da recuperação de sua força e confiança quando testado contra as forças do destino. O poema pode culminar num louvor à tribo do poeta [...]. Por trás do louvor e da jactância, porém, às vezes se percebe outro tom, o dos limites da força humana diante da natureza todo-poderosa.

Ahlwardt (1913, p. I, tradução nossa) considerou, para um de seu estudos, seis qaṣīdas, uma de cada autor: Ennabiga (Al-Nabigha 535-604); ‘Antara (525-606); Tharafa(?-568/69); Zuhair (Zuhayr 520-609); ‘Alqama (século VI) e Imruulqais (Imru al-Qais 526 - ?), e, assim, as descreveu:

eles são os primeiros documentos de língua árabe, e desde tempos imemoriais têm sido considerados a principal autoridade para a correta compreensão de seu vocabulário; eles são testemunhos de uma antiguidade histórica em torno dos quais a lenda teceu seus véus misteriosos; eles apresentam para nós as relações sociais de tempos antigos com a frescura mais vívida, e acorrenta-nos pela simplicidade e verdade do sentimento e da observação, nada menos do que pelo viril e autoconsciente - mesmo se rude - personagem que se manifesta neles, e que se expressa na força tendinosa da dicção.

 

Seu discurso é claro e conciso em relação à importância desses manuscritos. Eles se constituem em parâmetro para o deciframento de outros poemas, uma vez que a língua que ali está registrada destaca a relevância da pronúncia. Para alguns críticos, nenhum renomado autor árabe alcançou tamanha perfeição na criação de poemas após a Al-Mu‘allaqāt porque “esses mesmos poetas [citados anteriormente], desde que eles apareceram, foram considerados os poetas mais eminentes dos árabes; ofuscaram uma infinidade de poetas anteriores de renome e exerceram uma influência reguladora e permanente sobre a literatura dos séculos seguintes.” (AHLWARDT, 1913, p. II, tradução nossa).
Não bastasse elevar o nível estético e composicional da habilidade dos poetas, em função da originalidade e capacidade de abordar assuntos distintos dentro do mesmo poema, o orientalista também destaca a importância do vernáculo e explica como se consegue o significado das palavras:

a língua deles, movendo-se em um solo genuinamente nacional, é considerada absolutamente pura e livre de mistura externa, e a significação das palavras é para ser aprendida de seus versos. A extensão de suas composições pode ser considerada longa, em comparação com a dos seus contemporâneos, e isto, para além das suas outras vantagens, tem contribuído não pouco para sua apreciação elevada (AHLWARDT, 1913, p. II, tradução nossa).

O autor, ainda, não descarta a suspeita sobre a integridade dos versos. Ele observa que alguns não têm início, outros não têm fim, alguns não têm ambos ou têm dois ou mais inícios. A ordem dos versos, quando há mais de uma versão, é muito discrepante. Frequentemente, eles são atribuídos a diferentes autores, dos quais, o mais célebre é substituído pelo menos famoso; e o mais misterioso é que poemas escritos, nesse estilo, mas já datados da época de Maomé (610 d. C.), também foram atribuídos aos autores renomados de outra época (AHLWARDT, 1913).
O mesmo afirma Schack (1945), arriscando os motivos pelos quais os poemas pudessem estar desfalcados dessa forma. Conforme ele, eles poderiam ter sido transcritos para que se preservassem os originais, devido a sua extrema fragilidade. Outra hipótese é de que possam ter sido traduzidos ou adaptados para as línguas e normas gramaticais vigentes à época, visto que seus tradutores nem sempre eram dotados dos conhecimentos específicos para que essa tarefa fosse cumprida com sucesso. Assim, não há como afirmar que, entre um verso e outro, na ausência de algum vocábulo dos dialetos do árabe vulgar, do romance ou de outros que são desconhecidos, o tradutor não tenha alterado palavras, modificado o texto de acordo com os parâmetros sociopolítico-religiosos da época ou suprimido informações que julgou desnecessárias.
Não obstante, o que realmente importa neste processo é que, de alguma maneira, por alguma razão, mesmo que ainda desconhecidos, esses registros existam. Alterados ou não, está mais do que comprovada a existência da manifestação poética e oral do povo árabe. Apesar disso, a fascinação e o interesse por essas obras não diminuem e, na opinião de Wilhelm (1913), cada poema deve ser estudado de forma independente, em sua manifestação fenomenológica, analisado pelo mérito de sua materialidade, mesmo que os resultados sejam positivos ou negativos, pois constituem-se um ganho para a história da poesia árabe. Apesar da suspeita sobre sua autenticidade, os poemas pré-islâmicos pertencem a mais antiga, mais extensa, mais importante e também a mais complexa literatura árabe que temos para evidenciar.
Assim, com toda essa evolução vernacular, a poesia pré-islâmica passou a evoluir também em sua escrita, recebendo o mesmo cuidado na sua composição métrica, com o surgimento da qaṣīda. Como vimos, esse gênero é reconhecido pela sua extensão, que oscila entre 50 e 100 versos monorrimos. Gabrieli (1967, p. 30) a define da seguinte forma:

la antigua qaṣīda árabe es un artificioso conjunto poético, de estructura más bien rígida, donde lo que desde el punto de vista práctico puede denominarse “la finalidad propiamente dicha” del poema va precedida por un mosaico de versos introductorios, donde el poeta trata muy distintos temas, rozándoles apenas o deteniéndose largamente en ellos […].

 

Essa estrutura está intimamente ligada aos temas que nortearam a criação poética dos árabes do deserto. O autor ratifica que os valores artísticos dessa materialidade se manifestam apenas em fragmentos, nos e a partir dos quais uma força expressiva e pessoal aflora diante da monótona repetição dos temas tradicionais.

 

  • O SEGUNDO PERÍODO: PÓS-MAOMÉ E O CAMINHO POÉTICO ATÉ AL-ANDALUZ

A literatura árabe foi negligenciada durante séculos pelo Ocidente. Ligada à história e à política, a religião sempre se fez muito presente na história mundial e influenciou seu rumo, o que não foi diferente com o surgimento do Islã. O Corão foi, para os árabes, o fundamento de sua civilização. Todo muçulmano já se familiarizava com as suras desde a infância, memorizando-as. Elas eram admiradas e estudadas não apenas por se tratar da palavra de Deus, mas, também, pela qualidade de sua eloquência.
Assim,
El Corán, por consiguiente, no pudo menos que ejercer un grande influjo en la literatura, pero, se exageraría demasiado este influjo, si se creyese que la poesía arábiga se había transformado por él fundamentalmente. Mahoma no se presentaba ni se tenía por un poeta; sus capítulos o suras no están en verso, sino en una prosa mezclada con rimas, y no pudo servir de modelo a la poesía. Ésta, aunque se enriqueció con novas ideas e imágenes, permaneció lo mismo en cuanto al estilo, imitando el de los antiguos cantares, a menudo hasta en las extrañezas (SCHACK, 1945, p. 27).

Atribuir, desse modo, ao povo árabe, grande parte dos créditos do desenvolvimento sociocultural da Europa medieval, mais precisamente entre a atual Espanha e parte de Portugal, não é apenas uma questão de descobertas literárias e, sim, uma questão de dar voz e de deixar em evidência um povo que, na visão dominante cristã dos países europeus, era pagão. Em um mundo ocidentalizado, compreender essa manifestação cultural, ler essa literatura aprimora o entendimento global, mantém essa cultura viva e pulsante e nos afirma como sujeitos partícipes da história, colocando-nos no centro de campos simbólicos específicos.
Por tempos, ligou-se o início da literatura ao surgimento da religião islâmica e o advento do Corão. Todavia, já vimos que tal posicionamento não é uma verdade absoluta, pois, anteriormente, as tribos já criavam e entoavam seus versos, independente da escrita, como em toda cultura mítico-oral. Não é de se ignorar o fato de que o islamismo teve sua parcela de contribuição na constituição e sedimentação da cultura árabe. Consoante Gabrieli (1967, p.13),

este patrimonio poético de la Arabia pagana, [...], probablemente no habría llegado hasta nosotros sin el gran hecho histórico del Islam, que llevó a los árabes a primer plano en la historia del Asia Anterior y del Mediterráneo, haciendo de su idioma el vehículo de propagación de la nueva fe, el admirable instrumento de expresión de una nueva civilización.

O autor atribui, ao Islã, a propagação da língua árabe, que passou a ser o meio de expressão literária. Ademais, evidencia que o Islã conseguiu organizar a cultura árabe e unir uma diversidade étnica significativa sob o mesmo imaginário e as mesmas leis, gestando uma referência comum ao caos antecedente. A aceitação e interesses inter-étnicos resultaram no período mais fértil da produção escrita da literatura árabe pós- Alcorão. Nesse sentido, Gabrieli (1967, p. 15) destaca que

mientras en lo que se refiere a la edad omeya (siglos VII-VIII d.C.) puede hablarse todavía de una literatura árabe nacional “stricto sensu”, tal límite cae con la edad abasida (siglos VIII-XIII), que marca la culminación de la literatura árabe-islámica medieval, sobre amplia base internacional.

Tal período fértil para a literatura é mencionado nos estudos de Schack (1945), que ressalta um crescimento tanto intelectual quanto no comércio, na agricultura e nas atividades industriais, que se espalharam por todo o mundo, havendo, também, um considerável crescimento da população. Tanto o profeta quanto sua religião exerceram papéis fundamentais no avanço dessas civilizações.
Maomé conseguiu fazer sua fé e sua religião percorrerem um vasto território em poucas décadas. Os resultados desta expansão foram o aumento de tribos, que seguiam as suras do Islã, e, consequentemente, o aumento considerável do domínio territorial até a Península Ibérica, tomando maiores proporções após seu falecimento em 632 d. C.. Diante disso, próximo ao ano de 711, os muçulmanos invadem a Península Ibérica e iniciam um ciclo de sucessivos governos entre Emires, Califas e Taifas, respectivamente.
Agora, já em solo ibérico, após séculos de idas e vindas ao governo de Al-Andaluz,

los habitantes de la Península Ibérica presumían mucho de sus conocimientos filológicos, y hacían un estudio especial de todas las sutilezas de la lengua arábiga escrita; así es que sus poetas debían ser, antes de todo, hábiles y sutiles gramáticos, y el mérito de sus obras solía ponderarse, más que por el contenido de ellas, por la perfección del estilo y por el arte con que el autor sabía dominar la infinita riqueza del vocabulario arábigo (SCHACK, 1945, p. 74).

Nesse cenário, depois de muitos anos, a poesia árabe volta a destacar-se, porém longe do seu berço. No período pré-islâmico, não se valorizava a métrica, tampouco se registravam poemas; em seguida, as qaṣīdas destacaram-se por sua extensão e conteúdos. Agora, no século XI e XII, após a valorização do intelecto e da filosofia, esse estilo de poema passa a incorporar elementos da nova terra conquistada, e“inevitablemente tuvieron los poetas, al tratar estos nuevos asuntos, que adaptar imágenes desconocidas a sus antepasados, y el estado de la civilización, enteramente distinto, hubo también de imprimirse en sus versos. (SCHACK, 1945, p. 76).
Surge, dessa adaptação às novas características e necessidades da sociedade Al-andaluz, uma nova estética árabe, o zéjel, que vai vigorar nos próximos séculos e resistir a eles para contar sua trajetória.
Após a ocupação árabe nos territórios ibéricos, paulatinamente as culturas ocidental e oriental originam uma nova e importante fase do processo de miscigenação. Assim, a poesia clássica de Andaluzia e a poesia tradicional (pré-islâmica) dos poetas árabes perdem sua razão de existir: el poeta no sabe ya contar las vértebras del camello, ni describir los matojos de las dunas, ni las sangrientas lides, ni los festines bárbaros, ni La libertad cristalina e infinita de la miseria y el hombre. (GÓMEZ, 1942, p. 14)
Durante o período de domínio dos Califados até a queda da dinastia Omíada, ou seja, do século X até o século XI, a poesia árabe-andaluzina passou por constante evolução, devido à alteração do cenário em que o poeta de ascendência árabe se situa. Consequentemente, os temas telúricos, o excesso de descrição, de ornamentos e a riqueza de detalhes, que muito foram apreciados pelos beduínos e nômades do deserto pré-islâmico cedem espaço para manifestações poéticas diversas. Não apenas o cenário e a temática são alvos de mudança, mas também a estrutura dos poemas, que passa da qaṣīda para a muwaxxaha, e, finalmente, para o zéjel , uma forma já influenciada pela poesia ibérico-medieval.

A particularidade desse gênero, frente às demais formas líricas árabes, é seu aparente caráter anticlássico, porque é escrito num árabe vulgar – [...]. Na qualidade de poesia não-clássica, o zéjel  foi, na Idade Média, uma novidade das terras muçulmanas da Europa ocidental, a tradicionalmente conhecida como Andaluzia, ou, conforme chamada pelos árabes, al-Andaluz. (SLEIMAN, 2000, p. 19)

Ao mesmo tempo em que o popular surge como pertencendo ao povo, o zéjel  já traz consigo uma nova estrutura, que foge ao clássico. Já não há a pureza linguística da qaṣīda, e o bilinguismo da muwaxxaha dá os primeiros indícios para que o poeta Abu Bakr  Ibn ‘Abd al-Malik Ibn Quzmán al-Asgar, ou apenas, Ibn Quzman fizesse “da língua popular o veículo mais apropriado para exprimir, num único texto, o cortejamento amoroso, a ironia e o panegírico, não importando mais se o endereçado no zéjel  fosse homem da corte ou comerciante, aristocrata ou plebeu” (SLEIMAN, 2000, p. 20).
Embora haja uma permeabilidade estética e temática entre as estruturas/formas poéticas, cada uma delas traz as particularidades de seu sistema. Por mais que se tenham manuscritos e registros tratando de inferências subjetivas, ainda paira a hipótese de que a poesia árabe teve influência da métrica romana. O poeta zéjel esco Ibn Qzman revolucionou a poesia de sua época ao ir de encontro àquilo que os poetas clássicos seguiam rigorosamente nas produções literárias e eruditas, as quais circulavam entre as estratificações nobres dos palácios. Ele reformulou e alterou a estrutura dos textos, deixando para trás a uniformidade de estrofes e versos, tornando a métrica do zéjel livre.

 

  • O ZÉJEL  DE IBN QUZMAN E SUA CONTRIBUIÇÃO POÉTICA

Antes de nos atermos aos estudos de imagem e sentido, reforçamos alguns aspectos da questão estrutural do zéjel  de Ibn Qzman e os principais aspectos que o levam, seguramente, a ser a referência da poesia árabe-andaluzina. Como mencionado anteriormente, o Cancioneiro do poeta guarda seus zejeis e muitas informações sobre o autor e a obra propriamente dita. Tal acervo confere maior credibilidade à produção quando o próprio Ibn Qzman se utiliza da metalinguística e explica seus intentos ao escrever, com “tamanha perfeição em gênero, na linguagem, e em certos aspectos, na arte do verso” (SLEIMAN, 2000, p.70) essa “Maravilha do Tempo”. 
No prefácio dos manuscritos, lê-se nas palavras do próprio poeta, que suas alterações, ou melhor, simplificações da muwaxxaha para o zéjel

remetem ao refinamento, à medida que, [...] o próximo, familiar, fácil e claro de sua forma, torna-se distante, estranho, difícil e obscuro na locução. [Para isso,] o que Ibn Quzman fez decisivamente, [...] foi substituir a diversidade de línguas e níveis de linguagem na muwaxxaha por uma só expressão, híbrida mas sintética, o árabe dialetal. (SLEIMAN, 2000, p. 72).
           
Tal movimento audacioso gera o ritmo e a sonoridade dos zejéis árabe-andaluzinos. Essa substituição de vocábulos e de idioma permitiu que o gênero poético passasse a ser compreendido em todo o território ibérico, bem como ultrapassasse, novamente, os mares e terras desérticas, atingindo territórios africanos e retornando para o oriente. O próprio poeta legitima-se através dos seguintes versos:

O meu zéjel  ilustre
no Iraque escute.
Natural que ilustre:
Qaṣa’id, não são par
Perto deste vulgar.

Ibn Qzman revolucionou a poesia de sua época ao ir de encontro ao que os poetas clássicos seguiam rigorosamente nas produções literárias e eruditas, as quais circulavam entre as estratificações nobres dos palácios, reformulando e alterando a estrutura, deixando para trás a uniformidade de estrofes e versos para realmente tornar o zéjel  livre.
A estrutura clássica do zéjel , definida por Emílio García Gómez é formada por nove estrofes de extensão, divididas em prólogo, transição e elogio; nada, até então, muito diferente da qaṣīda.  Porém, Ibn Quzman modifica a estrutura: “a extensão desmedida dá lugar a uma descrição e uma narração ricas nos detalhes e episódios, cujos diálogos dramáticos, multiplicidade de vozes e pormenorização de detalhes lembram recursos empregados no teatro, gêneros estes até então estranhos à literatura árabe” (SLEIMAN, 2000, p. 80). Consoante aos temas, na obra do poeta foram identificados zejéis panegíricos, lírico-amorosos, de petição e arquiunitários. Cada um possui características próprias de estrutura, que foram desenvolvidas com clara finalidade pelo seu autor.
A característica do anticonvencionalismo era comum entre os poetas árabes. As obras de Ibn Quzman também apresentam esta característica, seja na introdução do Cancioneiro, seja através das suas personagens nos zejéis. Essa particularidade beira a sinceridade, percepção faltante aos demais poetas, constituindo-se, assim, em mais uma inovação na poesia árabe-andaluzina. A sinceridade é evidenciada quando o autor se denomina um bufão, que como um poeta-personagem, “declara ser um ser inofensivo”, assumindo o ofício de “desajustado social, cujo papel, na poesia, é divertir os normais através do riso que a sua narrativa desperta” (SLEIMAN, 2000, p. 93). A imagem alegórica do bufão desconcerta o real pela ironia do campo simbólico, que representa e traz, em si, a “verdade” popular pelos versos em língua vulgar.
Através desse artifício, o poeta-personagem recitava seus poemas para uma plateia que zombava de sua própria condição social, pois os elogios e os diminutivos contidos nos zejéis de Ibn Quzman, seguidamente, eram conduzidos com ar de ironia, mas, como seu locutor era um bobo, beberrão, cuja vida não condizia com suas pregações, a interpretação de seus poemas ficava a cargo do público que ria ou se perturbava. Sobre isso, Sleiman (2000, p. 85) comenta que o bufão “teria servido ao poeta para atacar indiretamente o poder representado pelos alfaquis defensores de uma versão bastante puritana da ortodoxia islâmica”.
Como o zéjel  herdou de seus predecessores o ritmo, a cantoria e o acompanhamento musical, alterar a linguagem do poema, de clássica para vulgar, só fez aproximá-la do povo e desconsertar os eruditos. Entretanto, a diversão acabou ganhando espaço nas cortes, afinal, os assuntos tratados e o dialeto no qual era recitado o poema só incidia sobre a população fora do palácio e sobre o bufão, personagem que experienciava a vulgaridade.  
Um dos principais obstáculos enfrentados durante os anos de estudo e pesquisas sobre o Cancioneiro foi sua tradução. E o que temos, atualmente, são versos que foram reescritos e alterados por copistas; todas as traduções disponíveis estão em língua espanhola e, inevitavelmente, cada tradutor dedicou-se a uma tradução diferente: transliterações para manter a semântica (Federico Corriente) ou que mantivessem o ritmo e a rima na língua da tradução (Emílio García Gómez), mesmo que se distanciassem do léxico, para tentar manter a métrica, a beleza da sonoridade que os poetas tanto prezavam.
Os erros e acertos de todos os pesquisadores foram essenciais para que se chegasse às informações que, hoje, temos. Conforme Sleiman (2000, p.112), a teoria de Corriente “atualizou o conteúdo semântico das palavras, mas não o seu arranjo dentro do poema”. Porém, o caminho que Gómez percorreu, aponta para a

dimensão mais específica do Cancioneiro, a de sua música textual: o ritmo métrico. Os significados que este autor [atribuiu] [...] às expressões do texto foram formulados sobre a base estética do som; nesse caso, a lógica sensorial antecedeu a lógica da razão, do sentido, já que o texto em mira, além de poético, tinha algo de musical, porque zéjel esco, regido pela pulsação do ritmo (SLEIMAN, 2000, p. 112)

Depois de várias revisões, é possível que falemos em uma língua específica do povo árabe-andaluz. Baseado nas diversas traduções e estudos realizados até o presente, Sleiman selecionou e traduziu para o português os zejéis números 1, 10 e 80, ao quais serão analisados nesse capítulo. Sua seleção deve-se à possibilidade de aproximação com o conteúdo semântico e imagético, visto que as traduções foram realizadas a partir dos fac-símiles do Cancioneiro, cotejadas e complementadas a partir das traduções espanholas existentes. Por meio desse processo de tradução, é possível nos aproximarmos da materialidade poética e ter uma visão mais abrangente sobre a relação das rimas com os símbolos.
Essas conjunturas nos influenciam a contrapor o maior número de estudos realizados para garantir a veracidade das informações, mas também nos faz trilhar pelos mais diversificados caminhos da literatura, fortalecendo o alicerce teórico para futuras (e novas) construções. Aprofundando a compreensão sobre o som e o ritmo que os zejéis de Ibn Quzman apresentam, James T. Monroe (apud SLEIMAN, 2000) registra, em seus estudos, em 1985, que a forma do poema e seu conteúdo semântico formam uma unidade indissociável:

A base desta estrutura é, sem dúvida, o discurso empreendido pelo narrador: a burla interpretada, capaz de inverter os referenciais internos da composição, revela-se nas palavras e nos feitos do bufão, que se revezam ao longo do poema. Então os significados que se possam construir na leitura do texto original se dão no nível do texto antes que no da língua, isto é, na totalidade da mensagem mais do que nos seus segmentos; estes ficam na dependência daquela (SLEIMAN, 2000, p. 113-4).

Essa constatação é que fundamenta o êxito do poeta, pois, mesmo que seus assuntos sejam pouco originais ou atrativos, sua capacidade e habilidade de combinar os versos com o som e o sentido é digna de aclamação e reconhecimento, já que não houve, em todo Oriente ou Andaluzia, alguém que se aproximasse da técnica de Quzman.
Michel Sleiman (2000) tentou unir a primeira tradução, que analisava as questões semânticas, com a segunda, que tratava da métrica, e arriscou-se a compor, em traduções para a língua Portuguesa, a rima e a paronomásia, que, segundo ele, era o que ainda faltava analisar. Os zejéis utilizados nesse estudo são provenientes desse trabalho de tradução, no qual foram analisados os zejéis n.1; n.10 e n. 80 – dos 149 existentes – e numerados no Cancioneiro, como já mencionado.
A escolha desses zejéis deve-se à sua temática e estrutura. Uma análise individual permite afirmar que o número 1 é o que tem traduções mais completas até o momento, o que justifica a tradução, também, para a língua Portuguesa. Os números 10 e 80 são os mais traduzidos: o primeiro em função do uso do diminutivo e, o segundo, pela ironia e crítica subentendidas. 
Para nosso estudo, é relevante apresentar a estrutura com rimas, os exemplos de temáticas abordadas e as possíveis interpretações irônicas ou burlescas que Ibn Quzman teria cantado ou, ainda, escrito.
O zéjel n.1 foi classificado como um panegírico, ou seja, um louvor a alguém, no caso, para o Alamim Waxki.

PANEGÍRICO-REQUEBRO DO ALAMIM WAXKI

  • Amo e temo: o amor enreda e mata.

E posso? Te amar, Waxki, me mata.

1. Amei. E acertaram no boato.
    -“Teu caso me deixa estupefato.
    Desde agora, aviso, eu te maltrato.”
    Topo o trato: Humilha! Me maltrata!

2. Consultei alguns em quem confio.
    Contei: - “Por Fulano estou cativo”
    -“Caíste na rede? Pula, amigo!”
    Um louva bem; do outro os bens – oblata.

3. Definhei de fé e desespero.
    Fiquei feito escombro, velho e feio.
    Mal me sento em casa e já tonteio
    e a parede vira uma almofada.

4. Deus te doou em dobro a beleza.
    Junto ao mal te pôs delicadeza:
   a boca doce é do doce presa –
   tanto almíscar que dele se empapa.

5. Loiro, bom, gentil, postura altiva;
    mãos de nobre, príncipe e de escriba
    e os dedos, biscoito – a massa em tiras
    faz com que o doceiro estupefaça.

6. Ordena a cidade: elege e manda!
    E o que ouço correr de banda a banda:
    “Senhor dos senhores: faz, desmanda!”
    é o teu natural – Não te retrata?

7. Digo encanto novo e encanto antigo.
    Do feno, estes homens; sou do trigo.
    Eu sou eu. E quem faz par comigo?
    [O Zéjel  “Quzman” comigo empata!]

8. Azar de quem frauda ou de quem burla.
    Ninguém terá prisão como a sua.
    Mal alisa a roupa, apruma a nuca,
    o alamim lhe gruda uma chibata.

9. Se eu morrer, o verbo me lamenta:
    Cavalos relincham, não inventam.
    Volto e esfuma, num só verso-emenda,
    Quem me tira a prenda. E manda: - “Mata!”.

O zejél, aos olhos desatentos do leitor, parece um poema de amor. No entanto, com o avanço das estrofes, ele se revela um panegírico ao alamim, “um agente do governo encarregado de fiscalizar o comércio fraudulento do mercado central (estrofe 8)” (SLEIMAN, 2000, p. 119). Podemos, também, notar a sua estrutura em estrofes e as sequências das rimas, provocando um ritmo constante, na leitura ou na própria recitação.
O jogo de amor e morte, envolvido nesses versos, é complexo, e é necessário remetermo-nos aos costumes e hábitos da época do poeta, a fim de depreender o que, de fato, ele recitava. Nas estrofes iniciais (0, 1, 2 e 3), o poeta invoca seu amado, Waxki, e inicia uma relação de dependência quando diz que “topa o trato” de humilhação e sofrimento.  Ao que tudo indica, a relação que compreende esse zéjel  é a relação do próprio poeta com o seu mecenas.
Nas estrofes 4, 5 e 6, o sujeito lírico louva o seu amado e o coloca na posição de senhor dos senhores. Esse status de superioridade é alcançado apenas pelo alamim, que, segundo a análise de Sleiman (2000, p. 119), é “a autoridade que exerce o louvado [e] vem da lei e da religião: [...] está a serviço de um governo regido pelos severos alfaquis. Então, quem aplica a humilhação, o castigo e o maltrato não é outro senão o poder.” Esse zejél, enfim, é o elogio do poeta na busca de um mecenas, para fugir do alamim e encantar àquele que pudesse garantir o seu sustento e ouvir sua cantoria.
Neste zéjel  podemos perceber, mesmo em tradução, que a construção de imagens que edifica seu sentido é rica na linguagem polissêmica. Toda a extensão do poema nos permite observar que o poeta fala de amor, de alamim e até de cavalos; no entanto, sua louvação ou petição direciona-se a outros propósitos, que, geralmente, correspondem aos próprios interesses do poeta.
O próximo zéjel , o n.10, mais uma vez confunde-se com um poema de amor e com um panegírico, ademais de ser polissemicamente permeado.   

LIMINHA, A ESCRAVA QUE VIROU ESTRELA
0. Te amo agora és Estrelim!
    Não Limim!

1. E há quem mais ame a tal ponto?
    Se amo, é por ti que ando morto.
    Se eu pudesse punha um ponto e
    não rimava a cançãozim.

2. Adoidado! Alocado!
    Tan tristino! Tan Penado!
    Vês o dia que alongado?
    Dele provo só um pouquim.

3. Disse: - “Juro por Deus Grande!
    Tem alguém que ainda aguente?
    Se eu falei Mesquita ontem
    por que esperas no Moim?”

4. És o encanto em toda festa,
    linda e, antes disso, esperta.
    Falta um pé? Quanta moeda
    vira jóia ao teu pezim!

5. Quem te ama se apaixona.
    Reúnes a Babilônia.
    Maravilhas vêm à tona
    só com uma palavrim.

6. Como maçazim os peitos,
    as bochechas, dois confeitos,
    dentes pérolas, perfeitos,
    e de açúcar a boquim.

7. Se dissesses algum dia
    “Sem jejum! Vamos à vida!”,
     nesse dia até a Mesquita
    se trancava com cordim.

8. Doce mais que o alfenim,
    eu escravo, tu raim.
    Em quem diz “não é assim”
    um  cascudo e um tapim.

9. Até quando assim me tratas,
    me desdenhas me escapas?
    Em casa largada às traças,
    Faça Deus, de ti e de mim,
   um feixim!

O que deve ser destacado na construção desse poema é o uso do diminutivo, que, quando aparece no poema lírico, “apresenta uma conotação depreciativa, funcionando, geralmente, para sugerir o avesso ao louvor” (ABU-HAIDAR apud SLEIMAN, 2000, p. 124).
Assim, ao utilizar tanto o árabe vulgar quanto o diminutivo, Ibn Quzman vai de encontro aos poetas clássicos. Esse recurso pode muito bem levar o poema a ser considerado como burla ou demonstrar a ironia. Por outro lado, pode ser afetivo e meigo.  O tom burlesco está contido nos pequenos detalhes, da mesma forma que o zéjel  n.1, e parece estar provocando os gêneros anteriores.
Acredita-se que o diminutivo pudesse ser muito utilizado na língua romance, motivo pelo qual despontava em outras modalidades de poemas em séculos anteriores e, talvez, avivasse a plateia, provocando risos, enquanto que para os que se autodenominavam nobres e cultos, passava a ser algo de pouco valor, vulgar e ridículo. 
Utilizando esse recurso, mais uma vez, Ibn Quzman demonstra estar mais próximo do povo e das ruas do que da riqueza e dos eruditos, o que não o faz desconhecedor desses hábitos e convenções. Pelo contrário, prova que ele conhecia muito bem os dois lados da moeda, e quiçá tenha vindo da nobreza para o clero.
Nesse sentido, o desenrolar do poema dá-se de alguém que era uma lima, fruta comum, e transforma-se em uma estrela, adorada por muitos e de belas feições. A louvação, o elogio e a própria transfiguração que há no poema permitem que o leitor especule que se trata de uma projeção do próprio sujeito poeta, pois

Ele também foi destronado: tirado da corte, sua estrela já não brilha, a não ser por um esforço tenaz. O zéjel eiro, [...] errante, munido da palavra gigante e encantadora, ao mesmo tempo declamada, cantada e dançada, deve percorrer as cortes e as salas dos ricos e poderosos. (SLEIMAN, 2000, p. 123)
           
O zéjel  n.80 é considerado, por vários pesquisadores, uma petição. Contudo, ele não deixa de reverenciar os amores e os louvores. Salta aos olhos do leitor atento, neste poema, a necessidade de identificar as várias vozes presentes; quem é o amado; quem é o amante; o que está sendo louvado e/ou pedido.

CARTA AO TRIGO NOVO
0. Trigo novo, sou eu teu amado,
    Prazer em viver, só se a teu lado.

1. Considera a volta ao teu amigo.
    Afasta o ingrato do caminho.
    Feliz quem comeu do teu amido:
    está contigo e sabe o teu agrado.

2. Minha casa conta como tua.
    Aqui, ao meu lado, é minha e tua.
    Faz dias te aguardo – é sol, é lua...
    Vem, se tardas mais, Deus cobra o tardo.

3. Dias bons... enfolhas todo o chão,
    E cresces no alto mais que Adão,
    na ponta espiga, palha e grãos.
    - Lindo o porte que ergues sobre teu talo!

4. Se me vens por este meu recado,
   vem na mula, como os bens, montado:
   te recebo igual e de bom grado
   e a ninguém te dou, nem emprestado.

5. Por um tempo eu clamo: por teu tempo.
    Me aponta o lugar do teu contento.
    Que o tio alfaqui não chegue a tempo:
    Só descanso, trigo, se te trago.

Segundo Sleiman (2000, p. 125), esse zéjel  é considerado “como uma reivindicação do poeta, dirigida aos seus familiares, exigindo a sua provisão anual de trigo, ou uma petição deste cereal feita a algum magnata não expresso.”
Os três zejéis são apenas uma pequena amostra transliterada para a nossa língua, todavia, o tradutor tentou se manter fiel a alguns aspectos e acredita ter intermediado a tradução, visto que apenas os originais são passíveis de nos remeter a tamanha perfeição de versos, rimas e estrutura. Apenas em língua árabe é possível sensibilizar nossos ouvidos a ponto de produzirmos as imagens e sentidos que essas obras nos trazem, contudo, a tradução consegue aproximar significados palpáveis.
O que se quer explicitar com esses poemas e suas traduções é que são uma materialidade resultante de uma larga caminhada da literatura pré-islâmica e árabe-andaluzina, a qual está em um plano de excelência, que exige dos estudiosos e dos leitores a abstração do que se conhece por poemas em nosso continente ocidental.
Os zejéis são munidos de tamanha perfeição em sua construção e conteúdo que nos obrigam a utilizar de todos os sentidos para compreendê-los e degustá-los. Eles vão além do campo da razão, permeando a imaginação. Por isso, é necessário ler, reler, traduzir, comparar e recomeçar. A cada leitura é possível descobrir um novo elemento, um novo sentido, uma imagem diferente. As múltiplas vozes que compõem a maioria dos zejéis do Cancioneiro, inevitavelmente, reconstituem, em nosso imaginário, um cenário, criam personagens, remetem-nos a um local e a um tempo específicos. Para compreender a cronologia de cada zéjel , também é imprescindível conhecer a vida do poeta e o que acontecia na história naquele período. Entre elogios, petições e louvores, as entrelinhas desses textos guardam pequenas nuances da história, contam-nos como era a sociedade, revelam de que viviam os poetas, criticam as formas de governo, fazem o povo rir e se divertir, mantém a cultura popular viva, e, destemidamente, enfrentam imposições sobre a língua e o conhecimento. Podemos dizer que Ibn Quzman, em seus zejéis populares, cantou as ruas, cantou sua vida, esculpiu a identidade poética do povo árabe-andaluzino e inovou a história.

À GUISA DA CONCLUSÃO

A proposta deste artigo foi clarificar o caminho percorrido pela poética árabe. A voz é antecessora da escrita, mas a inexistência de registros audíveis, das civilizações passadas, a fez cair no esquecimento e na desvalorização por muito tempo, pois “não possuímos nenhum manuscrito poético autografo antes do fim do século XIV; isso significa que, de todos os nossos textos, sem exceção até aquela data, o que percebemos pela leitura é a reprodução, não a produção” (ZUMTHOR, 1993, p. 148).
Pode ter parecido incoerente trabalhar com a oralidade através dos seus registros escritos; logo, também devemos considerar a relação existente entre o período que foi criado e o período do registro, já que a escrita tardou a despontar. Logo, essa literatura oral perdurou durante séculos de boca para o ouvido até alguém, mas não seu criador, registrá-la ao seu gosto e à sua maneira. Aliás, ao continuar de boca em boca e de ouvido em ouvido, as obras poéticas continuaram em uma recriação contínua e movente. 
Porém, o que levamos em consideração é que esse processo de transmissão simbolizou muito mais do que apenas palavras de senso comum, ele possibilitou a organização e a socialização de povos por todo o vasto mundo. Assim, a voz tornou-se capaz de criar aquilo que diz e a ela concebeu-se autoridade.
Pensado nessa voz dentro de uma comunidade, verificou-se que “toda a comunicação, como obra da voz, palavra assim proferida por quem detém o direito ou se lhe atribui, estabelece um ato de autoridade: ato único, nunca reiterável identicamente” (ZUMTHOR, 1997, p. 33). É nessa subjetividade e na possibilidade de mudanças que habita a mais fascinante característica da voz: a performance, cujo mesmo autor definiu como um conjunto de movimentos através do qual se transmite a mensagem poética, aqui e agora, e esta é recebida e percebida.
Dessa maneira, o registro escrito de uma produção oral de nada serve ao papel, ela existe para ser recitada, cantada e resignificada. Nesse caso, os objetivos aqui não foram de conceituar o que é ou não poesia oral, mas de estabelecer as ligações de seus atributos da movência e da tradição com a produção de símbolos e imagens poéticas, que, por sua vez, constroem-se pela memória popular coletiva.
De literatura oral passamos para a voz e chegamos à poesia que “é conhecimento, salvação, poder e abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; [...] a poesia revela este mundo e cria outro” (PAZ, 1982, p. 15). Portanto, não podemos confundir poesia com poema, pois pode-se ter um poema com poesia, mas não, necessariamente, tudo que tem poesia está relacionado aos poemas.
A poesia pode ser encarada como um estado de espírito e pode estar em qualquer lugar; ela é resultado da ação interior dos sentimentos que surgem através do acionamento de nossas memórias ligadas às referenciações que fazemos ao ouvir ou ler um poema. Logo, “o poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem” (PAZ, 1982, p. 17).
Nos poemas de Ibn Quzman, esse encontro ocorre quando o ouvinte recebe as palavras em seus ouvidos, é através do ritmo entoado em conjunto com as palavras e através dos signos proferidos, que, inconscientemente, o sujeito extrai e apropria-se dos significados gerados pelas imagens.
Ao mencionarmos uma memória popular coletiva, referimo-nos ao que a voz carrega em seu discurso, por todos esses séculos, como o reflexo, o registro histórico de povos que não encontraram outro meio de disseminar uma cultura em uma sociedade, entretanto,

o distanciamento dos tempos, essa tão longa ausência, força-nos a perseguir o que sabemos não poder atingir; [...]. Ninguém duvida de que a voz medieval [...] resistiu a deixar-se capturar em nossas metáforas, inspiradas por uma obsessão por um discurso pronunciado, linear e homofônico: para este, tanto o tempo quanto o espaço constituem um recipiente neutro, onde se depositam os sons como uma mercadoria. Mas é outra voz [...] que se recusa a pensar uno, que se recusa a reduzir o ato vocal ao produto de uma cadeia causal unívoca (ZUMTHOR, 1993, p. 21).

Assim, esta caminhada foi para provar essa diversidade poética da voz, na qual a palavra é sua maior manifestação, através dela as imagens transcendem seus significados denotativos para, em conjunto do ritmo, realizar a semantização do caos de sensações dessa experiência, presente nos poemas árabe-andaluzinos, pois em uma leitura superficial podem ser meros poemas com rimas, mas, ao se recitar e perceber suas imagens, toda a alegoria do poema modifica-se e gera múltiplos significados, sempre diferentes a cada performance.
Os poetas árabes e árabes-andaluzinos utilizaram o ritmo como parte indissociável de seus poemas, pois, mesmo que suas temáticas sejam telúricas, panegíricas e sociais, o compasso da recitação, aliado ao jogo de significação e ao léxico selecionado, permitem que o leitor-ouvinte apreenda significações que não estão explicitas no texto, e que tentamos explicar por meio das palavras, modestamente, uma vez que, conforme Paz (1982, p. 133, grifos do autor), “o sentido da imagem [...] é a própria imagem: não se pode dizer em ouras palavras. A imagem explica-se a si mesma. [...] sentido e imagem são a mesma coisa”, e reiteramos que para atingir sua essência é necessário os experimentar.
Este estudo buscou identificar uma poética oral constituída nos primórdios da civilização árabe- que veio, através da memória popular, atravessando séculos e terras por meio da tradição e do movimento de ressignificação através do tempo e do espaço. Ratificando que foi através da voz, como meio de transporte e de armazenamento de culturas, com os moçárabes, espanhóis, portugueses, negros e escravos que essa arte chegou até as terras distantes e que nelas ainda perdura.

 

Referências bibliográaficas
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a 'literatura' medieval. São Paulo, SP: Companhia de Letras, 1993.
______. Introdução à poesia oral. São Paulo: Editora Hucitec Ltda, 1997.

* Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, professor permanente e pesquisador da Universidade Feevale, atuando no PPG em Processos e Manifestações Culturais e no Mestrado Profissional em Letras. danielconte@feevale.br

** Mestranda em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale. Bolsista CAPES. polianas@feevale.br

*** Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana. Professor permanente e pesquisador da Universidade Feevale, atuando no PPG em Processos e Manifestações Culturais e no Mestrado Profissional em Letras. ernanimugge@feevale.br


Recibido: 04/09/2017 Aceptado: 08/09/2017 Publicado: Septiembre de 2017

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