Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


CIÊNCIA E CONHECIMENTO TRADICIONAL: A (RE)APROXIMAÇÃO ENTRE SABERES

Autores e infomación del artículo

Juliano Strachulski*

Universidade Estadual de Ponta Grossa/UEPG

julianomundogeo@gmail.com

Resumo

Este texto teve como objetivo mostrar como a ciência se afastou do conhecimento tradicional, bem como inferir quanto a possibilidade de aproximação destas duas formas de cognição. Antes do século XVII conhecimento científico, saber tradicional e demais formas de cognição estavam intimamente atrelados. No século XVII, a ciência acaba provocando uma ruptura com o campo das emoções, sentidos, experiências, ou seja, com os conhecimentos tradicionais. Por outro lado, atualmente a ciência moderna busca uma aproximação com o conhecimento tradicional, compreendendo-se que ambos são racionais e objetivos, mas sem nenhum descartar a subjetividade, pois faz parte tanto do indivíduo comum como do cientista. Portanto, compreende-se que o conhecimento científico precisa ser peninsular, estar conectado ao conhecimento tradicional para proporcionar tanto a compreensão do mundo, como manter a sua organização.

Palavras chave: Conhecimento científico; conhecimento tradicional; ruptura; aproximação.

LA CIENCIA Y EL CONOCIMIENTO TRADICIONAL: LA (RE)APROXIMACIÓN ENTRE SABERES

Resumen

Este texto pretende mostrar cómo la ciencia se alejó de los conocimientos tradicionales, así como inferir acerca de la posibilidad de acercarse a estas dos formas de cognición. Antes del siglo XVII conocimiento científico, los conocimientos tradicionales y otras formas de cognición estaban estrechamente vinculados. En el siglo XVII, la ciencia termina causando una ruptura con el campo de las emociones, los sentidos, experiencias, es decir, el conocimiento tradicional. Por otro lado, en la actualidad la ciencia moderna busca un acercamiento con los conocimientos tradicionales, entendiendo que ambos son racionales y objetivos, pero no descartan la subjetividad, ya que es parte tanto del individuo común como del científico. Por lo tanto, se entiende que el conocimiento científico debe ser peninsular, estar conectado a los conocimientos tradicionales para proporcionar tanto la comprensión del mundo, cómo mantener su organización.

Palabras clave: Conocimiento científico; conocimiento tradicional; ruptura; aproximación.

SCIENCE AND TRADITIONAL KNOWLEDGE: THE (RE)APPROXIMATION BETWEEN KNOWLEDGES

Abstract

This text aims to show how science moved away from traditional knowledge, as well as infer about possibility to approximate these two forms of cognition. Before the seventeenth century, scientific knowledge, traditional knowledge and other forms of cognition were closely linked. In the seventeenth century, science ends up causing a break with the field of emotions, senses, experiences, i.e, with traditional knowledge. On the other hand, today modern science seeks an approximation with traditional knowledge, understanding that both are rational and objective, but with no discard subjectivity, as part both of the individual as the scientist. Therefore, it is understandable that scientific knowledge needs to be peninsular, be connected to traditional knowledge to provide both the understanding of the world, how to maintain your organization.

Keywords: Scientific knowledge; Traditional knowledge; break; approach.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Juliano Strachulski (2017): “Ciência e conhecimento tradicional: a (re)aproximação entre saberes”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/03/ciencia-saberes.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1703ciencia-saberes


INTRODUÇÃO

            A compreensão da realidade e produção de conhecimento pode ser efetuada por vários vieses, dentre eles destacam-se o conhecimento científico e o conhecimento tradicional. O primeiro é pautado na verificação, “capacidade de ser refutada ou testada” (POPPER, 1972, p. 5), racionalidade, discutibilidade, capacidade de sistematização e presença de um método e instrumentos do conhecer. O segundo que é transmitido de geração a geração de forma oral, é um conhecimento prático sustentado pelo relacionamento com as crenças e os valores.
            O conhecimento científico apresenta-se tanto como empírico, racional, tendo sua importância no fato de abordar os fenômenos da realidade de forma sistemática, metodologicamente testada, permitindo análise e síntese de informações. Por outro lado, o conhecimento tradicional adquirido cotidianamente, nos servindo da experiência do outro, de modo a aprender e também ensinar algo, acaba sendo responsável por promover a interação humana e social de modo dinâmico.
            A discussão acerca de conhecimento popular e científico desenrola-se por um longo período e frequentemente eles se encontram, se tangenciam, na tentativa de explicação da realidade, sendo que ambos se completam. Assim, compreende-se que o conhecimento tradicional é a estrutura para se alcançar o conhecimento científico, pois o primeiro “[...] é base fundamental do conhecer e já existia muito antes de o ser humano imaginar a possibilidade da existência da ciência” (FACHIN, 2003, p. 10). O conhecimento tradicional, assim, estaria orbitando o campo magnético da ciência, fazendo parte do processo de produção do conhecimento, mais atrelado as vivências, ao dia-a-dia, enquanto o conhecimento científico se encarregaria da discussão de tais saberes.
            Marconi e Lakatos (2003) compreendem que há uma descontinuidade entre tais formas de saber, em vários aspectos como o método, porém também entendem que há uma certa continuidade em relação a outros, principalmente no que se refere ao bom-senso. Nestes termos, tanto conhecimento científico como o bom-senso procuram ser racionais e objetivos, mas sem nenhum descartar a subjetividade, pois faz parte tanto do indivíduo comum como do cientista. Portanto, “são críticos e aspiram à coerência (racionalidade) e procuram adaptar-se aos fatos em vez de permitir-se especulações sem controle (objetividade)" (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 76).
            Por fim, destaca-se que este texto teve como objetivo mostrar como a ciência se afastou dos saberes tradicionais num primeiro momento, mas também, num segundo momento, inferir quanto a possibilidade de aproximação destas duas formas de cognição, apontando algumas situações que mostram como podem estar próximas estas duas formas de compreensão do mundo.

DA RUPTURA A APROXIMAÇÃO ENTRE CONHECIMENTO CIENTÍFICO E CONHECIMENTO TRADICIONAL

            Ao longo do tempo e ao largo da geografia, a humanidade vem desenvolvendo conhecimentos em relação ao mundo que o cerca e em relação a si mesma. Num primeiro momento, o que se desenvolve é uma forma natural de compreensão da realidade, entendida como conhecimento tradicional, ou seja,  um “conhecimento prático, empírico, que ao longo  dos  séculos  tem  possibilitado,  enquanto  meios  naturais diretos, que as pessoas sobrevivam, criem, interpretem, produzam e trabalhem” (BORDA , 1984, p. 48).
            Antes do século XVII conhecimento científico, saber tradicional e demais formas de cognição estavam intimamente atrelados. A partir de estudos de vários cientistas como Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Isaac Newton, dentre outros, ocorre uma separação da ciência com as outras formas de saber. Assim, no século XVII, nasce a ciência moderna, obra de uma ruptura com o campo das emoções, sentidos, experiências (SANTOS, 2008). A ciência moderna “começava a deixar os cálculos esotéricos dos seus cultores para se transformar no fermento de uma transformação técnica e social sem precedentes na história da humanidade” (SANTOS, 2008, p. 17).
            Tal assertiva implicava na ciência enquanto processo quantificativo, pautado na compreensão da realidade através da separação e divisão dos elementos em estudo, culminando num reducionismo. Se dedicava ao estudo dos fenômenos naturais e buscava desenvolver métodos de estudo de abrangência totalizante e de dominação da natureza (SANTOS, 2008).
            O desenvolvimento de leis que possibilitassem o controle da natureza começam a ganhar cada vez mais importância, pois passaram a ser combinadas com metodologias para compreender e explicar fenômenos sociais. Desta forma, pode-se dizer que os métodos científicos tornaram-se mais holísticos e totalitários. Pois, “Sendo um modelo  global,  a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem  pelos  seus  princípios  epistemológicos  e pelas suas regras metodológicas” (SANTOS, 2008, p. 17).
            Para Karl Popper  (1972) há duas escolas que falam acerca da origem do conhecimento científico, sendo elas a britânica, para a qual a origem que fundamenta o conhecimento está na observação (Empirismo de Bacon), enquanto que a escola européia continental pregava que sua origem estaria na intuição intelectual das ideias (Racionalismo de Descartes), que são claras e distintas. Então, o conhecimento científico se consolida como uma verdade absoluta. Sua arrogância o coloca num patamar quase que divino, supostamente tirando a humanidade das ‘trevas’ e trazendo para a ‘luz’. Segundo Morin (1997, p. 12),

A ciência clássica se apóia nos três pilares da certeza, que são a ordem, a separabilidade e a lógica. [...] A ordem do Universo, tal como entendida por Descartes e Newton, era o produto da perfeição divina. [...] A segunda idéia-chave era a separabilidade. Conhecer é separar. [...] Terceiro pilar: a lógica, a indução. Com base em um número importante e variado de observações, podia-se tirar delas leis gerais.

Marconi e Lakatos (2003, p. 78) inferem que o conhecimento tradicional “não permite a formulação de hipóteses sobre a existência de fenômenos situados além das percepções objetivas”. Doutra maneira, o conhecimento científico seria “sistemático, já que se trata de um saber ordenado logicamente, formando um sistema de idéias (teoria) e não conhecimentos dispersos e desconexos” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 80).
            O novo modelo global de conhecimento impõe uma racionalidade científica totalitária, negando as demais formas de cognição, desprezando povos, culturas e fazeres intrínsecos a estes saberes, não afeitos as suas bases epistemológicas e metodológicas, o caráter racional (SANTOS, 2008a).

Assim, a ciência pode ser caracterizada como uma forma de conhecimento objetivo, racional, sistemático, geral, verificável e falível. O conhecimento científico é objetivo porque descreve a realidade independentemente dos caprichos do pesquisador” (GIL, 2008, p. 2).

A compreensão da racionalidade passaria por uma sistematização coerente dos enunciados fundamentados e passíveis de serem testados e comprovados ou não, podendo isto ocorrer mediante o uso de teorias, pois contam com uma cientificidade que reside na “capacidade de ser refutada ou testada” (POPPER, 1972, p. 5), que constituem o núcleo da ciência, do que pelo conhecimento popular, que é entendido como “acumulação de partes ou “peças” de informação frouxamente vinculadas” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 76).
Buscava-se a superação dos limites da vivência cotidiana através da impessoalidade. O conhecimento tradicional era tratado como uma acumulação de conhecimentos pouco articulados e pouco significativos para as bases científicas, pois não poderiam se comprovados nem testados.
Sendo um conhecimento objetivo, factual e rigoroso não admitia a interferência dos valores humanos, pregando a separação entre o pesquisador e o sujeito, bem como a distinção entre ser humano e a natureza. Assim,

Nas ciências, a separação entre o observador e sua observação, ou seja, entre nós, humanos, que consideramos os fenômenos, e  estes (os objetos de conhecimento), tinha valor de certeza absoluta. O conhecimento científico, objetivo, implicava a eliminação do indivíduo e da subjetividade. Se existisse um sujeito, ele causaria perturbação – seria um ruído (MORIN, 1997, p. 13).

Nesta perspectiva, “A natureza é tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismo cujos elementos se podem desmontar e  depois relacionar sob  a forma  de leis” (SANTOS, 2008, p. 25). O conhecimento científico, antes de mais nada, legitimava a dominação humana sobre a natureza, reduzindo-a a meras leis e teorias. Para Santos (2008, p. 53) “conhecimento mínimo que fecha as portas a muitos outros saberes sobre o mundo, o conhecimento científico moderno é um conhecimento desencantado e triste que transforma  a natureza num autómato”.
Entendia-se o conhecimento científico como algo além do conhecimento de fenômenos, tentando formular hipóteses acerca de suas causas e efeitos. A ciência possuía proposições verdadeiras e absolutas, num sistema considerado como seguro, possuindo um conjunto de ideias ordenado por leis que permitiriam compreender a relação entre seres, eventos e acontecimentos. A natureza, nesta perspectiva, era compreendida como uma espécie de experimento de laboratório, que poderia ser manipulada pelo cientista.
Para Santos (2008, p. 27-28) “O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objecto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir”. Portanto, a interpretação de realidades vividas, subjetividades humanas e outros temas não quantificáveis não fariam parte de uma prática científica, reduzindo e simplificando uma análise acerca da realidade social, promovendo um distanciamento entre o saber tradicional e o conhecimento científico.
Por sua vez, Castro (2000) destaca a existência de uma perspectiva dominante assente no conhecimento técnico-científico e na viabilidade financeira fundamentada por preceitos e condutas particulares, reforçando preconceitos e ignorando o saber tradicional, espacial e temporalmente instituído. Tal perspectiva acaba influenciando as pessoas sobre a baixa importância dos saberes e práticas tradicionais para a ciência e sociedade em geral. Segundo Shiva (2003, p. 21) “Primeiro fazem o saber local desaparecer simplesmente não o vendo, negando sua existência. Isso é muito fácil para o olhar distante do sistema dominante da globalização.”
            Segundo Santos (1988, p. 24) “a ciência moderna desconfia sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata. Tais evidências, que estão na base do conhecimento vulgar, são ilusórias”. Desta forma, compreende-se que o conhecimento científico se tornou excludente, tendo em vista que sua dogmatização e elitização já não mais permitem chegar as pessoas mais “humildes”, acarretando em preconceitos as culturas e conhecimentos tradicionais, que possuem nas suas experiências diretas a base de sua estrutura social e organização de seus saberes. Não obstante, Chassot (2003, p. 207), refere-se ao saber popular como sendo aquele que “detém, socialmente, o menor prestígio, isto é, o que resiste a menos códigos”. Segundo Shiva (2003, p. 25),

Além de tornar o saber local invisível ao declarar que não existe ou não é legítimo, o sistema dominante também faz as alternativas desaparecerem apagando ou destruindo a realidade que elas tentam representar. [...] O saber local resvala pelas rachaduras da fragmentação. É eclipsado com o mundo ao qual está ligado. Desse modo, o saber científico dominante cria uma monocultura mental ao fazer desaparecer o espaço das alternativas locais, de forma muito semelhante à das monoculturas de variedades de plantas importadas, que leva à substituição e destruição da diversidade local [...].

            Esta estratégia de dominação, de uma monocultura mental, em grande parte é movida pelo capital econômico, a favor da ciência, estimulando-se o crescimento econômico em detrimento das relações interpessoais, inibindo o alastramento do capital social inerente ao saber tradicional. São os pressupostos científicos atuando em prol da ciência hegemônica. Assim,

“o poder também é introduzido na perspectiva que vê o sistema dominante não como uma tradição local globalizada, mas como uma tradição universal, considerado superior aos sistemas locais. Contudo, o sistema dominante também é produto de uma cultura particular” (SHIVA, 2003, p. 22).

            Neste sentido, o conhecimento científico aos poucos acaba sufocando a si próprio com tanta rigidez e que justamente por isso terá que se abrir para o diálogo de saberes, resgatando pressupostos ditos não-científicos de antes de sua origem e que para outras formas de cognição nunca caíram no ostracismo. “A ciência não é o único caminho de acesso ao conhecimento e à verdade” (MARCONI e LAKATOS, 2003, p. 76), além de que “o conhecimento científico nos oferece apenas ‘uma janela limitada para o universo’” (CAPRA, 1996, p. 150).

Há tantas realidades – todas diferentes, mas igualmente legítimas – quantos  domínios de coerências operacionais  explicativas,  quantos modos de  reformular a experiência, quantos domínios cognitivos pudermos trazer à mão (MATURANA, 2001, p.38).

Assim, subentende-se que tanto as percepções da realidade pelo conhecimento científico como pelo saber tradicional são válidas, cada qual com sua particularidade, pois as situações ou fenômenos não são analisados nem compostos apenas por fatores materiais e objetivos, mas também de eventos que fogem ao olhar científico, de modo a existirem várias versões de uma mesma realidade ou várias realidades perceptíveis, sendo todas legítimas. Pois, como afirma Santos (2008, p. 8) “A realidade da vida não está presente somente nas materialidades e no pensamento  racional e objetivado. A imaginação e os sentimentos são também componentes desta mesma realidade”.
            A ciência entendida como forma de cognição superior as demais, como se não fosse elemento constituinte da sociedade, já não pode ser mais concebível, pois, “[...] todo conhecimento científico é socialmente construído” (SANTOS, 2008, p. 9), portanto “inseparável de seu contexto histórico e social” (MORIN, 2005, p. 8). O conhecimento científico não é simplesmente algo externo ao mundo das subjetividades, pois está ligado a uma determinada sociedade e momento sociocultural ao qual foram criados, influenciando-os e por estes sendo influenciado. Destarte,

“A ciência não só contém postulados e themata não-científico, mas que estes são necessários para a constituição do próprio saber científico, isto é, que é preciso a não-cientificidade para produzir a cientificidade, do mesmo modo que, sem cessar, produzimos vida com a não-vida” (MORIN, 2005, p. 59).

            Isto posto, deve-se ressaltar que o cientista pesquisador também sofre influências externas a ciência, pois é um ser social e não um “ser ciência”, não vive seu cotidiano cientificamente, ele possui características culturais, sentimentos, é influenciado por fenômenos do cotidiano, está inserido em uma determinada classe social, vive numa determinada localidade e é dotado de subjetividade, como qualquer outro ator social. Segundo Santos (2008, p. 36) “[...] o cientista social não pode libertar-se, no acto de observação, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista”.
            Não obstante, Feyerabend (1977, p. 447) compreende que “[...] a ciência aproxima-se do mito, muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor”. Fica clara a ideia de que não se deve adotar, em qualquer explicação que seja, um pensamento e uma interpretação totalitários acerca da realidade. Isto posto, evidencia-se que a reflexão sobre as  similaridades entre o mito e a ciência revela que ambos buscam criar uma explicação dos fenômenos, possibilitando com isso a elaboração de teorias que se adotadas sem uma postura crítica e reflxiva podem se constituir em um axioma.
            Para Maturana (2001) o conhecimento científico pode ser considerado um domínio cognitivo que possibilita proposições e explicações assentes em experiências de vida cotidianas. Portanto, as explicações científicas decorrem de práticas cotidianas, não assentes em pressupostos científicos. Assim, pode-se tratar também os saberes tradicionais como proposições explicativas do real, considerando-se uma forma de cognição legítima, assim como a ciência.
            Ambas as formas de cognição são válidas, e na maioria das vezes possuem significados similares para suas explicações, contudo, cada qual em seu contexto particular de aceitação. Portanto, “[...] a maneira pela qual nós seres  humanos validamos de fato nossas ações na vida cotidiana, dentro de qualquer domínio operacional, envolve as mesmas coerências operacionais que o critério de validação das explicações científicas” (MATURANA,  2001,  p. 139).
            Ao se afirmar que os saberes tradicionais podem ser refutados, significa recusar explicações de experiências de vida e acontecimentos simplesmente por agirem operacionalmente de forma diferente. Contudo, deve-se destacar que as duas formas de conhecimento representam o mesmo valor enquanto esfera cognitiva, pois da mesma forma permitem interpretações da realidade, cada qual em seu campo de ação. Nestes termos, “Todos os domínios cognitivos são domínios de ações adequadas de um observador em seu domínio de experiências” (MATURANA, 2001, p.145).

Para que haja uma aproximação e um diálogo entre a inteligência do homem e a realidade ou a natureza do mundo, são precisos sacrifícios enormes [...] a objetividade científica não exclui a mente humana, o sujeito individual, a cultura, a sociedade: ela os mobiliza [...] se fundamenta na mobilização ininterrupta da mente humana, de seus poderes construtivos, de fermentos socioculturais e de fermentos históricos (MORIN, 2005, p. 58).

            As explicações científicas geram um considerável conjunto de informações sobre o mundo real e seus fenômenos, ou seja, as experiências diretas com o mundo que os cerca, possibilitando ao ser humano interferir cada vez mais na natureza e no conhecimento tradicional. Contudo, o real é muito mais complexo do que suas representações e as explicações em geral “[...] não substituem, e não se espera que substituam, as experiências que elas explicam [...]” (MATURANA,  2001,  p.136), pois, a explicação é apenas uma forma de aproximação a realidade não a constituindo de fato. Desta forma,        

“Se o ser humano é único nos processos mentais e extremamente diverso nos seus produtos, devemos nos aproximar da realidade sócio-cultural do outro com  nossos processos mentais comuns para entender seu produto sócio-cultural, sempre diverso do nosso” (D'OLNE CAMPOS, 2002, p. 48).

            Percebe-se claramente que a objetividade, elemento central da ciência e sua rigidez teórico-metodológica não dão conta de compreender a complexidade das subjetividades inclusas nas relações interpessoais e destas com a natureza, sendo necessário buscar estratégias que permitam colocar em pé de igualdade o conhecimento científico e o conhecimento tradicional, ou seja, que possam proporcionar diálogo (Figura 1).

 

            A busca pelo diálogo entre os saberes científico e vernacular que possuem certas diferenças quanto a compreensão da realidade é difícil, devido a capacidade de improviso do saber local que é cíclico, totalizante e a rigidez dos métodos científicos, cujos conhecimentos são compartimentados, especializados. Entretanto, é possível aliar entre si elementos científicos com o saber local, na tentativa da revalorização deste, tendo em vista que “Jogo, palco, texto ou biografia, o mundo é comunicação e por isso a lógica existencial da ciência pós-modema é promover a ‘situação comunicativa’ [...]” (SANTOS, 2008, p. 73). Reforçando a possibilidade de diálogo, Santos (2006, p. 91) afirma que,

O terreno de entendimento comum entre a ciência contemporânea e o conhecimento tradicional existe porque ambos estabelecem um diálogo com a natureza. Por exemplo, o grande filósofo da tecnologia, o francês Gilbert Simondon, diz: “qual é a diferença entre o tecnólogo, o especialista em tecnologia contemporânea, e o pajé? Nenhuma”. O pajé é aquele que faz uma viagem, estabelece um tipo de diálogo com a natureza e traz desse diálogo uma resposta para a comunidade, uma solução para um problema que a comunidade não conseguia resolver. E o que faz a tecnologia senão um diálogo humano com a natureza para tentar resolver um problema? É a mesma coisa, em patamares diferentes, de maneiras diferentes.

            Corroborando ao acima exposto, Marconi e Lakatos (2003) destacam que um mesmo elemento, processo ou fenômeno - um vegetal, um mineral, relações hierárquicas entre chefes e empregados - pode ser alvo de observação tanto para o cientista como para um membro da população sem aportes científicos. O que acarretaria numa compreensão científica por um lado e o saber tradicional por outro seria a observação, a forma com que cada qual vê e interpreta a realidade.
            Lévi-Strauss em O pensamento selvagem (2008) também aponta para o fato de haverem similaridades entre conhecimento cientifico e tradicional, sendo que ambos estariam afeitos as mesmas operações lógicas, além de demonstrarem a mesma pretensão pelo saber, ressaltando a relação com a natureza e sua compreensão. Por sua vez, Morin (2005, p. 43) destaca que o conhecimento científico é uma via de mão dupla, pois possui seu fundamento na objetividade e organização mental das idéias e “implanta também o diálogo com o mundo dos fenômenos”. Portanto,
           
Valorizar o saber popular não significa perda de qualidade, estagnação ou a volta ao passado, mas saber incorporar à evolução do conhecimento informações ricas de experiências de vida que são tão valiosas quanto as descobertas acadêmicas. Nosso grande desafio consiste em promover um pensamento mais sistêmico, complexo, aberto, capaz de conectar natureza e cultura; erudito, acadêmico e popular; presente e passado. Somente com uma reforma do pensamento e com ações que coloquem em prática essa conexão será possível estabelecer relações mais fecundas, capazes de responder aos desafios atuais (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 24).

            Portanto, não se trata de pensar a ciência como uma maneira autoritária de fundamentação de saberes não científicos, mas sim de um veículo de reconhecimento da importância destes saberes para aqueles que os detêm e a possibilidade de utilizá-los em favor de uma ciência menos injusta, menos objetivista e simplista, dando-se os méritos a quem é de direito. Isso acarreta na necessidade da reconstrução de uma outra racionalidade, diferente daquela que ajudou a constituir e dar forma ao mundo, pautada na modernidade do conhecimento, e, que levou a uma crise ambiental.
            Portanto, é necessário a criação de uma nova racionalidade, um novo saber, capaz de proporcionar uma reapropriação do mundo, pautado em valores que superem a dicotomia conhecimento tradicional/conhecimento científico e humanidade/natureza, propiciada pelo diálogo de saberes. Este, por sua vez, pode ocorrer por vários vieses, como confrontação, antagonismo, encontro, intercruzamento, complementação ou mais comumente como uma hibridação de saberes (LEFF, 2001; LATOUR, 1994).
            Assim, se vê a necessidade de comparação do conhecimento científico com outras formas de saber para “rebalancear aquilo que foi desequilibrado na primeira modernidade, a relação entre ciência e prática social” (SANTOS, 2004, p. 75). Pois na atualidade há um “desejo quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas com o conhecimento do conhecimento das coisas, isto é, com o conhecimento de nós próprios” (SANTOS, 1988, p. 57), ou seja, complementar o conhecimento científico com elementos do conhecimento tradicional. Para tanto, cabe aos pesquisadores buscarem soluções teórico-metodológicas que permitam aproximações com o conhecimento tradicional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Os conhecimentos tradicionais culturalmente arraigados e o conhecimento científico impregnado na mente da maioria das pessoas em esfera global não são apenas opostos que se atraem, mas vizinhos que conversam a mesma língua, por meio de códigos diferentes. Apesar da ruptura que se sucedeu por parte do conhecimento científico com as demais formas de cognição no século XVII, posteriormente acaba havendo a necessidade da ciência em se aproximar dos conhecimentos tradicionais, das subjetividades, pois o mundo não é somente objetivo, lógico e racional.
            Portanto, a discussão acerca das semelhanças e diferenças destas duas formas de saber, mostra, justamente, que não estão tão distantes assim a ponto de a ciência renegar por completo o conhecimento popular, pois como vimos ele é a base, o fundamento inicial que possibilitou a existência da ciência.
Nestes termos, fica evidente que o conhecimento científico precisa ser peninsular, ou seja, estar conectado a outras formas de conhecimento, no caso ao tradicional, pois deles depende. O conhecimento científico é tido como forma única e soberana de conhecimento por elementos que já foram citados, mas nada mais é do que, apenas, outra forma de conhecimento e que está conectada as demais por elementos como subjetividade, intencionalidade, ideologia, dentre outros.
Se assim for, o conhecimento tradicional não está tão distante do conhecimento científico, pois possui subjetividade, intencionalidade, ideologia, compartilhados com este. Tais elementos aparecem partilhados numa espécie de contato entre imãs, no qual o conhecimento científico hora atrai hora repele alguns desses elementos, de acordo com sua necessidade e para o lado que sua “neutralidade” aponta.
Percebe-se claramente que há na maioria das vezes uma inferiorização ao conhecimento tradicional, porém, também há uma aproximação deste com o científico que é inegável, pois, se o conhecimento do senso comum não tivesse importância ou não estivesse organizado, seria praticamente impossível a vida em sociedade. Este a organiza diariamente e apesar de ser menosprezado por boa parte da ciência moderna, ele mostra-se operacional e funcional, pois assemelhasse ao científico, possuindo, como visto, uma racionalidade e objetividade, que se confirma com a observação da realidade. Assim, não se deve esquecer que ele é a base da organização do mundo e, portanto, aquilo que dá vida a ciência.

REFERÊNCIAS

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* Doutorando em Geografia; Mestre em Geografia “Gestão do Território” e Bacharel em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa/UEPG.

Recibido: 08/05/2017 Aceptado: 09/08/2017 Publicado: Agosto de 2017

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