Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


DESMISTIFICANDO A LITERATURA INFANTIL: UM OLHAR REFLEXIVO SOBRE O MÁGICO DE OZ

Autores e infomación del artículo

Jefferson Jonathan dos Santos*

Josiele Kaminski Corso Ozelame**

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil

jejonathan@yahoo.com.br

Resumo: O Mágico de Oz, romance classificado como literatura infantil e publicado no fim do século XIX, sugere discussões a respeito de temas como política e preconceito, dentre outros. Objetivamos observar tais temas a partir de elementos que podem ser encontrados na obra. Primeiramente, trabalharemos com definições sugeridas por alguns autores a respeito de “literatura infantil”, tentando entender como elas se aplicam à obra estudada. No momento seguinte, analisaremos os personagens de O Mágico de Oz que contribuem para as reflexões a respeito dos temas, apresentados por fim. Concluímos que embora classificado como literatura infantil, o romance de L. Frank Baum pode ser lido em diferentes faixas etárias.
Palavras-chave: O Mágico de Oz, Literatura, Literatura infantil, Política, Sociedade.

DEMYSTIFYING CHILDREN’S LITERATURE: A REFLECTIVE LOOK ON THE WIZARD OF OZ

Abstract: The Wizard of Oz, a romance classified as children’s literature and published in the end of 19th century, suggests discussions about themes such as politics and prejudice, among others. We have the objective of observing such themes based on elements which can be found in the book. First, we will work with definitions suggested by some authors about “children’s literature”, trying to understand how they apply to the book in study. In the next step, we will analyze the characters of The Wizard of Oz that contribute to the reflections about the themes, presented at last. We conclude that, although classified as children’s literature, the romance by L. Frank Baum can be read in different age groups.
Keyword: The Wizard of Oz, Literature, Children’s literature, Politics, Society.



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Jefferson Jonathan dos Santos y Josiele Kaminski Corso Ozelame (2017): “Desmistificando a literatura infantil: um olhar reflexivo sobre o Mágico de Oz”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero-marzo 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/01/literatura.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1701literatura


INTRODUÇÃO

O Mágico de Oz, publicado por Lyman Frank Baum em 1900, é comumente tido como uma simples obra infantil. Com personagens de características bem definidas, no entanto unilaterais, o autor traz uma série de alegorias no intuito de apresentar o mundo real de Dorothy em contraste à colorida Oz, e discussões humanas e políticas veladas. A aura aparentemente superficial encobre uma grande quantidade de análises plausíveis que podem passar despercebidas por uma criança em sua leitura. O objetivo desse artigo é desmistificar o que se chama de “literatura infantil”, apresentando como O Mágico de Oz pode ser lido de maneira diversa quando por adultos que apresentam uma diferente visão de mundo, evidenciando a amplitude de possibilidades de leituras de acordo com seus diferentes leitores. A obra traz temas como o preconceito e a política, amparados por seus personagens representativos, cujo estudo é essencial para que possamos compreender a leitura sugerida dos temas.
Desse modo, o presente estudo está organizado da seguinte forma: primeiramente, estudaremos o conceito de literatura infantil, em paralelo à tentativa de desmistificá-lo como uma literatura “simples” ou “inferior”, evidenciando a profundidade e complexidade possível em seus livros através de um estudo de O Mágico de Oz, analisando os personagens da obra, e como eles se relacionam aos temas que serão estudados, como a intensa busca pelo autoconhecimento, o preconceito e a submissão política.

1. O MITO DA LITERATURA INFANTIL

Quando analisamos uma obra como O Mágico de Oz, publicado por L. Frank Baum em 1900, é comum associarmos a história ao estereótipo de “inocência” de uma obra infantil. No entanto, a literatura infantil não é necessariamente inocente em sua essência – segundo Cademartori (1986, p. 8), vários trabalhos “têm mostrado que a literatura para criança não é tão inócua assim, e que há algo de sério no reino encantado das histórias infantis”. Também Hunt (2011, p. 27) fala sobre as crenças a respeito da literatura infantil: de que “ela é simples, efêmera, acessível e destinada a um público definido como inexperiente e imaturo”. A aparente inocência e simplicidade das histórias adjetivadas como “infantis” servem justamente para isso: diferenciá-la das demais. Ao chamar uma história de infantil, pressupõe-se que há uma determinada linguagem ou tema que chama a atenção desse público específico.
No entanto, percebe-se que “hoje em dia, a crítica usa o adjetivo ‘adulto’ como marca de aprovação” (LEWIS, 2005, p. 743). Portanto, essa é a diferenciação comumente realizada entre adulto e infantil: como se a literatura infantil fosse inferior à adulta por ser lida por crianças. Mas ela não precisa, necessariamente, ser lida por crianças. “Inclino-me quase a afirmar como regra que uma história para crianças que só as crianças gostam é uma história ruim” (LEWIS, 2005, p. 743). Não há nada de errado em um adulto ainda se encantar pelo reino da fantasia repleto de anões, gigantes ou fadas, até porque elas escondem uma natureza nada inocente – os adultos realizarão uma leitura diferenciada de uma mesma história, analisando detalhes que passam despercebidos durante a leitura de uma criança.
Segundo Cademartori (1986), a literatura infantil é, muitas vezes, vista como “formadora”. Sendo trabalhada na escola, ela traz consigo a missão de desenvolver uma consciência crítica na criança, além de “suprir as grandes lacunas intelectuais de seu destinatário, pela presença, em alta proporção, nos textos infantis, de elementos formativos e informativos” (CADEMARTORI, 1986, p. 19).
Também é nesse momento que aparece a chamada “moral”, tão comum nesse tipo de história, mas tão amplamente desvalorizada, tanto por Lewis (2005) quanto por Baum (2013). Conforme lido na edição de 2013 de O Mágico de Oz, L. Frank Baum defendia que, se a moral agora fazia parte da educação escolar, ela não precisava estar nas histórias: “A educação moderna inclui a moral; por isso, a criança moderna procura apenas a diversão em suas histórias fantásticas, dispensando alegremente todos os incidentes desagradáveis” (BAUM, 2013, p. 11). Desse modo, ele classifica sua história como um “conto de fadas moderno”, onde os pesadelos são deixados para trás: as crianças modernas 1 buscavam diversão e não lições em suas histórias, e nem mesmo os estereótipos de fadas, princesas e anões. É por isso que sua história não traz nem fadas, nem princesas, nem anões, e ainda conta com protagonistas não classicamente atraentes, como o Espantalho.
Algumas discussões sobre a “moral” na literatura infantil coincidem exatamente com o que podemos apreender através da leitura de O Mágico de Oz que, diferente do discurso do autor contra a presença de moral nas histórias infantis, acaba por conter lições de moral:

Deixe que as imagens lhe contem qual é a moral delas, pois sua moral intrínseca nasce naturalmente das raízes espirituais que você conseguiu lançar no decurso de sua vida. […] Quem consegue escrever uma história para crianças sem moral nenhuma deve fazê-lo – desde que, é claro, esteja mesmo disposto a escrever para crianças. A única moral que vale alguma coisa é a que brota inevitavelmente de toda a estrutura de caráter do autor (LEWIS, 2005, p. 750).

O que é questionado não é a moral em si, mas sim a escrita de uma história inteira com o intuito de justificar uma moral. O processo natural de escrita deve ser o de contar uma história – e caso a moral apareça naturalmente na obra, ela pode e deve ser mantida. As crenças e ensinamentos de Baum estão tão intrínsecos à sua obra que podemos notar, facilmente, uma série de mensagens e, sim, lições de moral.
Não só pela presença de moral caracteriza-se a literatura infantil, como Hunt (2011, p. 96) tenta definir o termo de maneira mais direta: “livros lidos por; especialmente adequados para; ou especialmente satisfatórios para membros do grupo hoje definido como crianças”. No entanto, isso parece bastante vago, inclusive para ele, porque a literatura infantil é um gênero amplo, com um quê imediatista. Se as obras infantis são destinadas e lidas principalmente por crianças, elas mudam rapidamente bem como as crianças de uma geração a outra. Se adultos também leem “livros infantis”, e também podem aproveitá-los e realizar leituras diferentes, o que de fato é um “livro infantil”? Basicamente, segundo Hunt (2011), aquele que é tido na lista das editoras como infantil.
Outra tentativa de definir a literatura infantil, no entanto, é mais específica:

Os livros para criança geralmente são mais curtos; tendem a privilegiar um tratamento mais ativo que passivo, com diálogos e incidentes em lugar de descrição e introspecção; protagonistas crianças são a regra; as convenções são muito utilizadas; a história se desenvolve dentro de um nítido esquema moral que grande parte da ficção adulta ignora; os livros para criança tendem a ser mais otimistas que depressivos; a linguagem é voltada para a criança; os enredos são de uma classe distinta, a probabilidade geralmente é descartada; e pode-se ficar falando sem parar em magia, fantasia, simplicidade e aventura (MCDOWELL apud HUNT, 2011, p. 98-99).

Como podemos observar, há uma tendência a ligar a literatura infantil a uma linguagem mais acessível e simples, que pode ser facilmente entendida pelas crianças, mas isso não se estende, necessariamente, a sua temática. Através de protagonistas crianças, uma atmosfera otimista e um ambiente mais fantasioso, a “obra literária recorta o real, sintetiza-o e interpreta-o através do ponto de vista do narrador ou do poeta. Sendo assim, manifesta, através do fictício e da fantasia, um saber sobre o mundo” (CADEMARTORI, 1986, p. 22-23). Segundo Lewis (2005), um adulto acaba apreciando melhor um conto de fadas, porque também é capaz de extrair mais dele.
A leitura de O Mágico de Oz por uma criança e um adulto serão distintas, pois cada um fará a sua e a construção do sentido acontece de acordo com o conhecimento acumulado pela pessoa, focando em diferentes pontos. A divergência de interpretação dada por diferentes leitores a uma obra literária, segundo Calvino (2009), está relacionada às diferenças apresentadas pelos leitores em relação à própria interpretação de mundo, sua escala de valores morais e sociais, e a literatura apresenta a possibilidade de “[…] questionar a escala dos valores e o código dos significados estabelecidos” (CALVINO, 2009, p. 191). Portanto, pressupõe-se que a obra apresente essa abertura a interpretações.
A escrita que tenta entregar tudo pronto ao leitor, na qual o autor fez, por si só, todo o trabalho, é considerada problemática por Hunt (2011). Há escritas que “orientam” o entendimento do leitor, dentro dos limites previstos pelo escritor, mas não aceitam, consequentemente, as contribuições do leitor.

Ao tentar controlar o texto de várias maneiras, os escritores, por insinuação, exigem que os leitores leiam apenas dentro de limites implícitos e definidos, e os textos se tornam, nos termos do teórico Mikhail Bakhtin, ‘mais monológicos’ que ‘dialógicos’ ou ‘polifônicos’ (HUNT, 2011, p. 127).

No entanto, outras obras apresentarão uma aparência mais receptiva, permitindo o trabalho do leitor de construir o sentido através de sugestões – ainda assim, deve haver algum grau de similaridade entre os significados retirados do texto por diferentes leitores, adultos ou crianças:

É óbvio que há limites para compartilhar o significado. Em termos estritos, o que o autor quis dizer é incognoscível, mesmo para ele. Mas temos de supor uma certa congruência entre o que você vê, o que eu vejo e o que uma criança-leitora vê; caso contrário toda a atividade de produzir livros […] se torna absurda. Deve haver um meio-termo de senso comum quanto ao significado. (HUNT, 2011, p. 137)

Assim, o leitor é uma instância significativa na construção de sentido do romance, que só é completo no ato da leitura, podendo, inclusive, superar as intenções do autor. O significado é, portanto, construído conjuntamente. Ao passo em que o escritor inicia o trabalho, ele não o finaliza por completo, não sendo o dono absoluto da obra literária, pois no “[…] ato de recriação da obra pela leitura, a proposta inicial se amplia e as intenções primitivas do autor são superadas” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 109). Muitas vezes, “somos […] inclinados, pelo menos hoje, a acreditar que o escritor pode reivindicar o sentido de sua obra e definir ele próprio esse sentido como legal” (BARTHES, 2011, p. 218), no entanto não é o autor quem fala, mas sim a própria linguagem da obra, e é apenas no leitor que se reúne toda a multiplicidade da qual a escritura é formada.
Desse modo, O Mágico de Oz contém mensagens e lições de moral que serão interpretadas diferentemente por diferentes leitores – separados não apenas por suas faixas etárias, mas também por suas experiências de mundo. Talvez não de maneira tão explícita, o romance ainda é, sim, um romance repleto de lições de moral, exatamente como Baum parecia refutar. Mesmo assim, é evidente que o autor foi revolucionário para a época, trazendo uma história com quatro protagonistas nos quais três não eram necessariamente atraentes, e uma criança (sem idade especificada) determinada, inteligente, e ativa.
Assim, O Mágico de Oz pode ser confundido com uma simples história infantil, mas a simplicidade de sua narrativa é puramente enganosa. A narrativa acompanha a história de Dorothy, uma garotinha moradora do cinzento Kansas, que tem sua vida toda mudada quando um ciclone leva sua casa para o mundo mágico de Oz. Após um primeiro impacto com a diferença entre seu mundo e o mundo de Oz, Dorothy conhece uma Bruxa Boa que lhe indica o caminho até o Mágico, o único que pode ajudar-lhe a retornar para casa – sua maior motivação durante toda a história. E assim começa sua jornada pela lendária Estrada dos Tijolos Amarelos.
No caminho, Dorothy (e seu cachorrinho Totó), encontra mais três companheiros para sua viagem até a Cidade das Esmeraldas: um Espantalho, um Homem de Lata e um Leão Covarde. Cada um deles une seus próprios desejos – um cérebro, um coração e coragem – ao desejo de Dorothy de retornar ao Kansas, e eles caminham até o Mágico para descobrirem que muito do que eles queriam sempre esteve com eles ou ao seu alcance, mas eles falham em perceber isso, e que muitas vezes a maior motivação do homem é a ganância e o medo. Os quatro aprendem a enxergar isso através de sua jornada.

2. OS PERSONAGENS DE O MÁGICO DE OZ

Os personagens fictícios são responsáveis por ditar o tom da obra literária, suas intenções e, consequentemente, sua trama. Não existe história sem personagens. E é justamente o surgimento de tal personagem que “[…] declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto” (ROSENFELD, 2002, p. 23). Assim, não é possível separar o enredo dos personagens que o compõem afinal, “[o] enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo” (CANDIDO, 2002, p. 53) e são elas que proporcionam a adesão intelectual e afetiva do leitor.
Afinal,

“[…] a grande obra de arte literária (ficcional) é o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar (exemplar também no sentido negativo)” (ROSENFELD, 2002, p. 45)

Como citado anteriormente, a protagonista de O Mágico de Oz é Dorothy, uma menina do Kansas perdida em um mundo que não é o seu, tentando voltar para casa – e seu caminho se cruza ao de outros três companheiros que irão com ela até o Maravilhoso Mágico de Oz para fazerem seus pedidos. Esses são os cinco personagens que recebem mais ênfase no romance, “[…] definidos e moldados mais por ações e reações do que por descrições elaboradas […]” (BAUM, 2013, p. 7), mas durante o percurso, Baum também apresenta quatro bruxas (duas boas e duas más) que interferem no destino de Dorothy de um jeito ou de outro.

2.1 Os quatro viajantes e o Mágico

Dorothy era uma criança notadamente alegre, com voz alta e risada estridente – órfã, morava no Kansas com a tia Em e o tio Henry, além de seu cachorro Totó. Assim que um ciclone carrega sua casa e ela se esconde em seu quarto (e deita-se na cama para se proteger), sua vida começa a mudar, e ela se vê tirada de sua zona de conforto para tornar-se heroína na Terra de Oz. “Dorothy era uma garotinha inocente e inofensiva, que um ciclone carregou por vários quilômetros para longe de casa; e nunca tinha matado uma mosca em toda sua vida” (BAUM, 2011, p. 19). A imagem de uma Dorothy inocente e pura é ressaltada pela clássica visão de que se tem dela, com o vestido listrado de branco e azul claro, cores leves e com uma conotação de pureza.
No entanto, Dorothy, uma personagem repleta de leveza, ainda é a representação da determinação dentro de O Mágico de Oz. A todo o momento é muito claro o que ela quer e o que busca, e assim que a Bruxa Boa do Norte a manda seguir a Estrada de Tijolos Amarelos e encontrar o Mágico, por ele ser o único que pode ajudá-la, ela inicia sua jornada sem hesitação. Com o surgimento de novos personagens, ela assume a posição de liderança, e é uma inovação na literatura a imagem da garota ativa, que sabe o que está fazendo, e não tem medo dos perigos para atingir seus objetivos. Por vezes, parece complicado acreditar que Dorothy é apenas uma criança, e admira-se a perspicácia do autor de nunca lhe conferir uma idade certa.
O primeiro companheiro que Dorothy encontra é o Espantalho:

Sua cabeça era um saco pequeno cheio de palha, com olhos, nariz e boca pintados nele para representar um rosto. Um velho chapéu pontudo azul, que pertencera a algum Munchkin, estava enfiado em sua cabeça, e o resto da figura era um terno azul, puído e desbotado, que também fora recheado de palha. Aos pés havia botas velhas com faixas azuis, assim como as que todos os homens usavam naquela região, e a figura estava erguida acima das fileiras de milho pelo poleiro preso em suas costas (BAUM, 2011, p. 31)

Esse, por sua vez, é guiado durante toda a história por seu desejo de ter um Cérebro. O autor apresenta todo o processo de criação do Espantalho, que aconteceu dias antes da chegada de Dorothy, e como o fazendeiro que o fez para espantar os corvos desenhou-lhe os olhos, a boca, os ouvidos, mas esqueceu-se de rechear sua cabeça com alguma coisa além da palha. Desse modo, o Espantalho passa o caminho todo destrambelhado, pisando em buracos e tropeçando em pedras, sentindo-se burro demais pela ausência de um Cérebro, julgando-se inferior aos outros, e não completamente feliz por isso. Ironicamente ele usará palavras como “pensei” e formulará planos durante todo o percurso.
Mais tarde, Dorothy conhece o Homem de Lata. “Uma das grandes árvores fora cortada pela metade, e parado ao lado dela, com um machado levantado nas mãos, havia um homem feito inteiro de lata. Sua cabeça, braços e pernas eram encaixados em seu corpo, mas ele estava completamente parado” (BAUM, 2011, p. 42). Diferente do Espantalho, o Homem de Lata já viveu mais tempo, tem um cérebro, e sabe como é ter sido humano um dia – ele fora um lenhador apaixonado, mas através do feitiço da Bruxa Má do Leste, ele perdeu cada uma das partes de seu corpo sendo então substituídas por lata. O problema é que o ferreiro que o ajudou todas as vezes esqueceu-se de dar-lhe um coração.
Desse modo, o Homem de Lata, que “parecia ser uma criatura muito educada e muito grata” (BAUM, 2011, p. 43), não tinha um coração. Depois de um ano enferrujado no meio da floresta sem poder se mexer, também foi libertado por Dorothy e uniu-se a ela na caminhada rumo à Cidade das Esmeraldas, para pedir que o Mágico lhe desse um coração. O personagem serve como contraponto ao primeiro companheiro de Dorothy – o Espantalho defende que um cérebro é a coisa mais importante do mundo, enquanto o Homem de Lata defende que o coração o é. Ele acredita que um cérebro não é capaz de fazer ninguém feliz, mas estando ele anteriormente apaixonado, ele acredita que um coração sim.
Por fim, o último dos companheiros de Dorothy é o Leão – “[…] veio da floresta um rugido terrível, e logo em seguida um enorme leão saltou na estrada” (BAUM, 2011, p. 50). Embora ele apareça como um ser amedrontador, atacando o Espantalho (que não pode sentir dor), o Lenhador (que é feito de lata) e o Totó, ele é controlado por Dorothy, em mais um de seus momentos de decisão e coragem, e então o Leão se autodenomina Covarde. Como todos os animais na floresta esperam que ele seja corajoso, já que o Leão é visto como o Rei dos Animais, isso lhe causa uma incomensurável vergonha, e é por esse motivo que ele se une aos outros três para ir até o Mágico e pedir-lhe que ele lhe dê Coragem.
Cada um dos três companheiros de Dorothy sente-se infeliz com sua atual condição – “[…] enquanto eu souber que sou um covarde, ficarei infeliz” (BAUM, 2011, 53), mas enquanto eles continuarem acreditando nessas coisas, assim eles se sentirão. E eles depositam sua fé em algo maior, nesse caso representado pela figura do Maravilhoso Mágico de Oz. Há muita especulação ao longo da narrativa, antes que finalmente o conheçamos. As informações dizem que ele nunca sai da Sala do Trono, e não gosta de receber ninguém, nem mesmo aqueles que trabalham para ele, mas é tão poderoso que pode fazer qualquer coisa que lhe pedirem, ou tomar qualquer forma que queira.
No romance, Dorothy, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde realmente conhecerão o Mágico separadamente, e em cada uma das vezes ele assumirá uma forma diferente, além de exigir algo em troca de sua ajuda: a morte da Bruxa Má do Oeste. No entanto, depois que eles conseguem tal feito, conhecemos a verdadeira aparência do “Grande Mágico”: “Quando o biombo caiu, todos olharam para aquele lado e ficaram bastante intrigados: viram, parado no canto onde estava a tela, um homenzinho careca e de rosto enrugado, que parecia estar tão surpreso quanto eles” (BAUM, 2011, p. 132).
O Mágico é um ilusionista que foi parar em Oz, muitos anos antes, de maneira similar à Dorothy – seu balão foi levado por um ciclone até cair nesse mundo maravilhoso, onde ele foi visto com admiração, e ocasionalmente até com medo. Depois de manipular toda a população, o Mágico construiu sua fama com o passar dos anos, mas na realidade nunca teve nenhum poder mágico, incapacitado então de ajudar verdadeiramente os quatro viajantes. Mesmo assim, ele confere materialidade aos desejos do Espantalho, do Homem de Lata e do Leão Covarde, e arrependido de suas enganações e truques, tenta ajudar Dorothy levando-a para casa em um balão, mas isso acaba sendo apenas a sua partida e não a da menina.

2.2 As Bruxas de Oz

São quatro as Bruxas da Terra de Oz, cada uma ficando conhecida por sua conduta (boa ou má) e pelo local onde moram. Cada uma governa ou escraviza um povo, em diferentes países de Oz, localizados nas extremidades geográficas da Terra. Desse modo, teremos a Bruxa Boa do Norte, a Bruxa Má do Leste, a Bruxa Má do Oeste e, por fim, a Bruxa Boa do Sul. Notamos que não há pluralidade na descrição de suas personalidades, e elas não são caracterizadas a modo de aproximar-se da natureza humana: pelo contrário, são estereotipadas por serem “boas” ou “más”, sendo as boas lindas, e as más horríveis.
A primeira Bruxa apresentada em O Mágico de Oz é a Bruxa Boa do Norte, a primeira que Dorothy encontra na Terra dos Munchkins no momento de sua chegada em Oz. É ela quem lhe fala sobre o Mágico, que lhe explica que ela precisa seguir a Estrada de Tijolos Amarelos até a Cidade das Esmeraldas para encontrá-lo, e que lhe beija a testa para protegê-la dos perigos que ela pode encontrar pelo caminho. Também é através dela que Baum (2011) escolhe apresentar a Bruxa Má do Leste, que morre com a chegada de Dorothy àquela Terra, uma vez que a sua casa cai sobre a Bruxa.
Portanto, em O Mágico de Oz, em nenhum momento a Bruxa Má do Leste chega realmente a aparecer, e seu caminho não cruza o de Dorothy – com exceção dos sapatinhos prateados que ela usava na ocasião de sua morte, que a Bruxa Boa do Norte dá de presente à menina sem contar-lhe de seus atributos mágicos. No entanto, a personagem é de extrema importância na história do Homem de Lata – esse se apaixonou, no passado, por uma garota Munchkin muito bonita, que lhe prometeu casar-se com ele quando ele tivesse dinheiro para construir-lhe uma casa melhor, mas essa garota morava com uma velha preguiçosa, que não queria que ela se casasse com ninguém para que continuasse limpando e cozinhando para ela.

A velha foi à Bruxa Má do Leste e lhe prometeu duas ovelhas e uma vaca se ela conseguisse impedir o casamento. Assim, a Bruxa encantou meu machado, e quando eu estava cortando lenha, ansioso para construir uma casa nova e conseguir minha esposa, o machado escorregou e cortou minha perna esquerda (BAUM, 2011, p. 45)

E desse modo, o Lenhador perdeu todos os membros do corpo, substituindo-os por Lata. Mas as duas bruxas mais importantes na história são a Bruxa Má do Oeste e a Bruxa Boa do Sul. No entanto, cada uma aparece apenas em um capítulo, sendo brevemente citadas em outras ocasiões. Depois da morte da Bruxa Má do Leste, a do Oeste é a única que ainda representa perigo ao Grande Mágico, e também a única que ainda mantém um povo escravizado, então o Mágico, incapacitado de fazer isso ele mesmo, pede que Dorothy, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde a matem para ele.
“A Bruxa Má do Oeste só tinha um olho, mas esse era poderoso como um telescópio, e podia ver tudo” (BAUM, 2011, p. 104). Mesmo que ela seja chamada de “Bruxa Má” e de “tinhosa” o tempo todo, a vemos apenas durante um capítulo e não se percebe realmente nenhuma maldade dela. Muito mais se fala do terror em Oz do que realmente se vê algo concreto – desse modo, exatamente nesse detalhe, questionamentos já se fazem cabíveis: por que o Mágico queria tanto que ela morresse? É evidente que a vemos comandando exércitos de animais para atacar Dorothy e seus companheiros, ela não sangra, pois seu sangue já secou há anos, e morre com um balde de água, mas tudo com um motivo bem explicado: o desejo pelos sapatinhos prateados.
Por fim, a única Bruxa que recebe um nome em O Mágico de Oz é a Bruxa Boa do Sul, chamada de Glinda, e também a única a receber uma descrição mais detalhada de Baum: “Era linda e jovem de aparência. Seu cabelo era de um vermelho forte e caía em cachos sobre os ombros. Seu vestido era bem branco, ela tinha olhos azuis, e olhava com simpatia para a garotinha” (BAUM, 2011, p.183). Glinda representa o fim da jornada de Dorothy – depois que seus três companheiros já conseguiram o que queriam, só faltava ela ir para casa; a última jornada os leva todos até Glinda, quem mostra a Dorothy os poderes mágicos dos sapatinhos prateados, permitindo-lhe, assim, retornar ao Kansas. Amável e bela, essa é a imagem que o autor propõe a Glinda.

3. OS TEMAS DE O MÁGICO DE OZ

O Mágico de Oz é marcado por uma pluralidade de interpretações em uma história comumente tida como infantil. Usando os personagens e os acontecimentos do romance, o autor consegue criticar a política do ter acima do ser, falar sobre família e a capacidade de estar feliz apenas quando se está em casa, e discussões políticas que abrangem diferentes tipos de escravidão, um governo corrupto e um povo alienado. É importante ressaltarmos a discussão desses temas, afinal, a literatura é um “exercício de reflexão” e “responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo” (COMPAGNON, 2009, p. 26).

3.1 O lado humano de Oz

O romance é a história de uma garota tirada de seu mundo, tentando voltar para casa. Através de Dorothy, Baum exalta o lugar chamado de casa – no começo da história, quando a garota ainda está no Kansas, ele é descrito o tempo todo como cinza, monótono e sem-graça. Seria natural que uma garota tão jovem se encantasse com as cores e fantasias da Terra de Oz, mas em nenhum momento ela de fato questiona sua missão: retornar para casa. Desse modo, quando interrogada sobre seus motivos para querer tanto voltar ao Kansas, ela responde: “Não importa o quão sombrio e cinza seja sua casa, nós, pessoas de carne e osso, preferimos viver lá a viver em qualquer país, por mais lindo que seja. Não há lugar como o nosso lar” (BAUM, 2011, p. 36).
Assim começa a jornada de Dorothy, sua profunda determinação e crença que o Mágico poderá ajudá-la e mandá-la de volta ao Kansas. Trata-se da típica jornada épica que guia protagonistas em busca de um objetivo há anos – Dorothy não sabe que o tempo todo esteve com o poder de retornar à sua casa bem a seus pés, por isso não o fez. Mas o autor escolheu usar-se dos sapatinhos prateados para provar que ela podia voltar para casa quando pretendesse, mas que ao mesmo tempo ela precisava fazer aquela jornada, conhecer aquelas pessoas e o poder da amizade, e passar por esse processo de amadurecimento psicológico. Tudo o que ela viu e aprendeu estará para sempre com ela como parte fundamental de sua personalidade – foi a construção de Dorothy como sujeito.
Por outro lado, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde representam o desejo humano por ter alguma coisa – suas histórias baseiam-se na busca por um Cérebro, um Coração e Coragem, respectivamente, mas em nenhum momento eles se dão conta que eles já têm cada uma dessas coisas dentro deles, como parte de suas personalidades. Ao mesmo tempo em que o narrador (em terceira pessoa) insiste que o Espantalho não tem cérebro, sua vontade de tê-lo prova a cada instante o contrário – o mais inteligente do grupo, o único a pensar, criar planos e conseguir tirar todos de situações que os outros julgam complicadas demais. É comum, ao longo da narrativa, ouvir o Espantalho com sugestões como “O Homem de Lata pode nos construir uma jangada, assim passamos para o outro lado” (BAUM, 2011, p. 64)
O mesmo vale para o Leão, tão autoproclamado covarde, mas ele se dispõe a ficar para trás e lutar bravamente contra os Kalidahs até a morte, mesmo que eles sejam maiores que ele, assustadores e estejam em maior número – “O Leão, apesar de morrer de medo, encarou os Kalidahs, e soltou um rugido tão alto e terrível que Dorothy deu um grito e o Espantalho caiu de costas. Até as feras pararam e olharam, surpresas, para ele” (BAUM, 2011, p. 63). O Homem de Lata, que se julga tão insensível e cruel por não ter um coração dentro de seu peito, constantemente fica enferrujado, justamente por estar chorando por algo que ninguém mais está:

Uma hora, na verdade, o Homem de Lata pisou num besouro que rastejava pela estrada e matou o pobrezinho. Isso deixou o Homem de Lata muito infeliz, porque ele sempre tomava cuidado para não machucar nenhuma criatura viva; e enquanto caminhava, chorou várias lágrimas de tristeza e arrependimento. Essas lágrimas rolaram lentamente por seu rosto e dobradiças de sua mandíbula, e elas se enferrujaram (BAUM, 2011, p. 53)

Mesmo que cada um já seja, dentro deles, exatamente aquilo que quer ser, nenhum dos três se contenta com isso até poderem dizer, de fato, que “têm” um Cérebro, um Coração ou Coragem. O Mágico defende que o Espantalho não precisa de um cérebro porque

[…] está aprendendo algo novo a cada dia. Um bebê tem cérebro, mas não sabe muita coisa. Experiência é a única coisa que traz conhecimento, e quanto mais tempo ficar na terra, mas experiência vai ter. (BAUM, 2011, p. 136)

Também diz ao Leão que ele tem muita coragem, “[…] Só precisa ter mais confiança em si mesmo. Não há ser vivo que não tenha medo quando enfrenta o perigo. A verdadeira coragem é enfrentar o perigo quando se tem medo […]” (BAUM, 2011, p. 136-137), e ainda que o Homem de Lata tem muita sorte em não ter um coração, porque “[…] faz a maioria das pessoas infeliz” (BAUM, 2011, p. 137).
Os três companheiros de Dorothy, por fim, recebem do Mágico cada um de seus desejos, de maneira simbólica – um punhado de agulhas e alfinetes para preencher a cabeça do Espantalho, um lindo coração feito de seda e recheado de palha para o Homem de Lata, e uma mistura que o Mágico explica que, se estivesse dentro dele, seria Coragem para o Leão. E cada um deles muda drasticamente após receberem esses símbolos, tornam-se mais confiantes em si mesmos, e aceitam posições importantes de novos governantes na Terra de Oz. O Espantalho vira o governador da Cidade das Esmeraldas, o Homem de Lata governa os Winkies após a morte da Bruxa Má do Oeste, e o Leão vira Rei da Floresta.

3.2 O lado político de Oz

Através de uma análise política de O Mágico de Oz, é possível notar as nuances de totalitarismo nos governos representados por Baum – tanto das Bruxas Más, que escravizavam seus povos, como o próprio Mágico, que manipulava as pessoas da Cidade das Esmeraldas. O personagem do Mágico é caracterizado pela ganância e pelo desejo incontrolável por poder. Tirado de nosso mundo também através de um ciclone, mas em seu balão, o Mágico cai na Terra de Oz, onde as pessoas “[…] acharam que eu era um grande mágico. Claro que eu as deixei pensar assim, porque elas tinham medo de mim e prometeram fazer tudo o que eu desejasse” (BAUM, 2011, p. 135).
A maior representação do poder e alienação que o Mágico impõe sobre as pessoas que governa estão nos óculos que todos os visitantes da Cidade das Esmeraldas precisam usar – ninguém pode entrar lá sem eles, “porque, se não usarem os óculos, o brilho e a beleza da Cidade das Esmeraldas podem cegá-los” (BAUM, 2011, p. 86), mas convenientemente todas as lentes dos óculos são verdes, e ninguém pode tirá-los em momento nenhum:

Havia duas fitas douradas presas a eles que ela passou por trás da cabeça, sendo trancadas por uma chavinha que ficava no final da corrente usada pelo Guardião dos Portões no pescoço. Depois de colocar os óculos, Dorothy não podia tirá-los nem se quisesse, mas claro que ela não queria ficar cega pelo brilho da Cidade das Esmeraldas, então, não disse nada. (BAUM, 2011, p. 86-87)

Como o Mágico construiu uma fama e um respeito para ele, ninguém na Cidade Esmeralda parece questionar o fato de ter que usar aqueles óculos dia e noite, e desse modo o Mágico os controla, fazendo com que eles acreditem no que quer que ele queira. A mentira alienadora de que servem para não cegá-los, como se eles jamais pudessem tirar os óculos para seu próprio bem, quando na realidade a Cidade das Esmeraldas nem é verde, não mais do que o normal. Os moradores veem o mundo através de lentes – uma alegoria à maneira como governantes e poderosos criam essas lentes aos moldes de seus interesses próprios, distorcendo a visão da população de acordo com o que eles querem e acreditam.
Dorothy só repara ao deixar a Cidade das Esmeraldas que seu vestido novo e a fita de Totó não são, na verdade, verdes, mas brancos, mas não faz maiores questionamentos – apenas descobrindo a verdade quando o próprio Mágico lhes conta, “[…] coloquei óculos verdes nas pessoas, para que tudo o que vissem fosse verde” (BAUM, 2011, p. 135). A maneira distante de governar do Mágico, controlando seu povo a seus moldes, parece uma representação de um governo enganoso: ao mesmo tempo em que eles o admiram, eles também o temem e nunca podem se aproximar, como é exemplificado na seguinte passagem: “Assim, o soldado foi chamado e entrou na Sala do Trono, timidamente, porque, enquanto Oz estava vivo, ele nunca pôde ir além da porta” (BAUM, 2011, p. 153). Depois de sua verdadeira natureza exposta, e envergonhado de todos seus truques, o Mágico constrói um novo balão e decide voltar para sua casa no outro mundo, mas não consegue levar Dorothy com ele.
Outro tema recorrente em O Mágico de Oz é a escravidão – em nenhum momento ela chega realmente a ser o foco principal do autor, ou mesmo ganhar capítulos voltados inteiramente a ela, mas o narrador propõe discussões a serem aprofundadas por cada leitor. Os Macacos Alados vivem num sistema mais tradicional de escravidão real, enquanto os Munchkins e os Winkies são cidadãos de uma sociedade opressora, e, por fim, o Povo de Porcelana que são escravos da imagem e da beleza.
Os Macacos Alados são descritos como um povo que, há muito tempo, foi livre e vivia inconsequente e feliz na floresta, mas como punição de um ato condenável, eles foram confinados por Gayelette ao poder do Chapéu de Ouro – quem quer que fosse o detentor de tal chapéu teria o poder de chamar os Macacos Alados por três vezes, e eles teriam que conceder-lhe seus pedidos, quaisquer fossem eles. E os poderes do Chapéu de Ouro são usados pela Bruxa Má do Oeste, por Dorothy e por fim por Glinda, que promete então “[…] tendo usado os poderes do Chapéu de Ouro, vou dá-lo ao Rei dos Macacos, para que ele e seu bando fiquem livres para sempre” (BAUM, 2011, p. 185)
O processo de escravidão e libertação é usado mais de uma vez no romance. Os Munchkins eram governados pela Bruxa Má do Leste – “Ela manteve todos os Munchkins escravos por muitos anos, fazendo-os trabalhar para ela dia e noite” (BAUM, 2011, p. 19) –, mas como a chegada de Dorothy a Oz garante-lhe a morte e consequente libertação dos Munchkins, isso é pouco explorado. Do mesmo modo os Winkies eram escravizados pela Bruxa Má do Oeste, e também é Dorothy quem lhes concede liberdade após derretê-la com um simples balde de água – “Eles voltaram ao castelo, onde o primeiro ato de Dorothy foi reunir todos os Winkies e dizer que eles não eram mais escravos” (BAUM, 2011, p. 115)
E, com um trabalho completamente diferente, Baum descreve o País de Porcelana:

Havia leiteiras e pastoras, com corpinhos de cores vivas e pontos dourados em suas roupas; e princesas com as mais belas roupas prateadas, douradas e roxas; e pastores vestidos em calções na altura do joelho com listras rosas, amarelas e azuis, e sandálias douradas em seus pés; e príncipes com coroas cheias de jóias em suas cabeças, usando capas de pele e roupas de cetim; e palhaços engraçados em roupas de babados, com círculos vermelhos nas bochechas e chapéus pontudos. E mais estranho ainda: essas pessoas todas eram feitas de porcelana, até suas roupas, e eram tão pequenas que a mais alta delas não passava do joelho de Dorothy. (BAUM, 2011, p. 164)

O País de Porcelana é marcado pela ambiguidade – ao mesmo tempo em que eles podem ser o que quiserem (palhaços, príncipes), não podem sair daquele lugar; e mesmo sendo belíssimos, são extremamente frágeis. A própria natureza da porcelana, escolhida por Baum para representar esse lugar, sugere exatamente isso: uma infinidade de cores e formas muito bonitas, mas escravos dessa beleza, os habitantes daquele lugar precisam o tempo todo serem cuidadosos por sua fragilidade, passíveis de rachaduras a qualquer momento, que, por sua vez, já denegriria toda a imagem de uma peça de porcelana bonita. “Ele se quebrou tantas vezes que foi remendado em centenas de lugares e não é nada bonito” (BAUM, 2011, p. 166)
Parece, portanto, que o Povo de Porcelana está fadado à escravidão, seja ela como for. Dorothy acha uma das Princesas tão bonita que sugere levá-la ao Kansas para dá-la de presente à tia Em, colocando-a sobre a lareira, mas ela explica que isso a deixaria muito triste. No País de Porcelana, todos eles podem andar e falar, mas quando são levados para longe daquele lugar, eles têm as articulações endurecidas imediatamente, fixados para sempre em uma única forma, bonita – então eles precisam continuar na cidade, levando uma vida agradável e “feliz”, mas confinados incapacitados de deixar aquele lugar, e sempre repletos de cuidados para não se quebrarem.

4. A SIMBOLOGIA NAS DIFERENTES FORMAS TOMADAS PELO MÁGICO

Provavelmente a maneira mais eficaz de representar a grande simbologia através da qual o autor cria sua obra, seja com a primeira aparição do Mágico para cada um dos protagonistas – depois de chegarem à Cidade Esmeralda e exigirem um encontro com o Mágico, Dorothy, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Covarde descobrem que terão que esperar para vê-lo, sendo que cada um poderá vê-lo separadamente, e um a cada dia. Portanto, as visitas demoram quatro dias, período no qual o Mágico aparece de diferentes maneiras para cada um dos viajantes. Nota-se que sua forma não foi escolhida aleatoriamente, e elas possuem uma representação única para a história como um todo, com a visão que Baum e o leitor possuem do conto, mas não significam algo, necessariamente, para os quatro que estão em busca de seus desejos.
A primeira a visitá-lo é Dorothy: “No meio da cadeira havia uma enorme cabeça, sem um corpo para sustentá-la ou qualquer braço ou perna. Não havia cabelo na cabeça, mas ela tinha olhos, nariz e boca, e era muito maior do que a cabeça do maior dos gigantes” (BAUM, 2011, p. 93). Muito se falou sobre o Mágico de maneira controversa até então na obra, ora como um poderoso homem, ora como uma pessoa isolada que se recusava a receber qualquer um – e essa é a primeira imagem que se faz do Grande Mágico de Oz, como uma cabeça. A cabeça não necessariamente representa alguma coisa para Dorothy, mas antecipa o próximo visitante, que seria o Espantalho, cujo maior desejo era ter um Cérebro.
O Espantalho, por sua vez,

[…] viu sentado num trono esmeralda uma linda dama. Estava num vestido transparente de seda verde e usava sobre os cachos verdes uma coroa de esmeraldas. Cresciam asas de seus ombros, de uma cor linda e tão leves que flutuavam com o menor sopro de ar. (BAUM, 2011, p. 95)

Dessa vez, o Mágico faz menção ao terceiro visitante, que será o Homem de Lata. A forma de dama assumida por ele ressalta o passado do visitante e sua história, mas como ele aparece assim para o Espantalho, reforça seu poder e sua capacidade de ajudar e entender os problemas de cada um, uma vez que ele, certamente, contará ao Homem de Lata como o Mágico lhe apareceu.
Assim, para o Homem de Lata, que esperava uma linda dama,

Oz tomara a forma de uma criatura terrível. Era quase tão grande quanto um elefante, e o trono verde mal parecia aguentar seu peso. A Fera tinha uma cabeça como a de um rinoceronte, só que com cinco olhos. Havia cinco braços longos saindo de seu corpo, e também cinco pernas finas e compridas. Um pelo longo e enrolado cobria cada parte de seu corpo; não se podia imaginar um monstro mais medonho. (BAUM, 2011, p. 97)

A forma de fera assustadora tomada pelo Mágico antecipa a visita do Leão no dia seguinte. O Leão Covarde, que fez todo seu caminho para implorar por coragem, se vê ouvindo histórias de um Mágico que pode aparecer na forma de um animal assustador, e se prepara para essa ou qualquer outra das formas que o Mágico assumira, mas se depara com outra coisa: “[…] diante do trono havia uma bola de fogo, tão quente e brilhante que ele mal podia aguentar olhar” (BAUM, 2011, p. 98), e desse modo o Leão se vê completamente incapaz de qualquer ação – assustar ou enfrentar a bola de fogo parece sem sentido. A bola de fogo representa o calor necessário aos balões para que o ar dentro dele se mantenha quente, e ele, portanto, no ar: ou seja, a maneira como Dorothy, a primeira visitante, poderia retornar para casa, o que ela buscou durante toda a narrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Mágico de Oz trabalha com poucos personagens principais, narrados com escassas características pontuais em relação às suas personalidades (que contribuíam para a sua história e função dentro da obra) e pouca preocupação na criação de nomes próprios. O intuito do autor parece ser o de discutir temas como a materialidade, por exemplo, com a necessidade do Leão, o Espantalho e o Homem de Lata de terem algo que lhes prove que eles realmente têm Coragem, Cérebro ou Coração, afinal eles estão preocupados – especialmente o Leão, nesse caso – em serem aceitos pelos demais. O Leão afirma que não pode ser considerado o Rei da Floresta se ele não tem coragem.
Assim, a obra trata de temas diversos ao mesmo tempo em que quebra com o paradigma da literatura infantil da época, livrando-se dos horrores comuns das histórias clássicas, sem ser uma narrativa simples. Durante todos os anos desde a publicação, o romance conseguiu seu status de clássico, como uma história que faz parte do imaginário público, e um grande marco na literatura americana. A leitura e vocabulário fáceis garantem uma acessibilidade grande, mas os significados não estão entregues prontos pelo autor, e exigem o trabalho de interpretação do leitor. Há muito que se apreender, e muito a se discutir a partir da história, repleta de elementos críticos e ensinamentos importantes.
Embora haja o rótulo de “literatura infantil” ao falarmos de O Mágico de Oz, entendemos que esse termo é bastante limitado, e não necessariamente expressa a profundidade possível de ser lida na obra, afinal leitores de qualquer faixa etária podem se aventurar em sua leitura, que provavelmente assumirá facetas e entendimentos diversos dependendo não apenas da faixa etária de seu leitor, mas também de sua experiência de vida. Portanto, embora apresente características da chamada literatura infantil, O Mágico de Oz permite novas leituras que normalmente não são realizadas na infância, como toda a discussão que envolve política e a cultura do ter acima do ser, por exemplo.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. In: Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 2011.

BAUM, Lyman Frank. O Mágico de Oz; tradução de Santiago Nazarian. São Paulo: Barba Negra: Leya, 2011.

BAUM, Lyman Frank. O Mágico de Oz; tradução de Sérgio Flaksman. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. (Coleção Primeiros Passos)

CALVINO, Italo. Para quem se escreve? (A prateleira hipotética). In: Assunto encerrado – discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: __________. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002.

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac e Naify, 2011.

LEWIS, Clive S. “Três maneiras de escrever para crianças” Ensaio. In: _____________. As Crônicas de Nárnia. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. A criação do texto literário. In: Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, A. et al. a personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2002.

* Graduado em Letras Português/Inglês e Suas Respectivas Literaturas pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE Campus Foz do Iguaçu. Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Sociedade, Cultura e Fronteiras pela mesma instituição.

** Doutorado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Sociedade, Cultura e Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE Campus Foz do Iguaçu.

1 Baum (2013) chama de crianças modernas aquelas que leriam o seu livro no momento de sua publicação: por volta de 1900. Crianças que já tinham aulas de moral na escola, e não a buscavam novamente nas histórias.


Recibido: 08/11/2016 Aceptado: 13/02/2017 Publicado: Febrero de 2017

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