Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


APONTAMENTOS SOBRE A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

Autores e infomación del artículo

Luiz Carlos Goiabeira Rosa

Nathália da Mota Dias

Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

lgoiabeira@yahoo.com.br

RESUMO

O presente estudo tem por finalidade tecer considerações gerais sobre o adequado entendimento segundo o qual os direitos fundamentais possuem eficácia direta e imediata nas relações privadas. Através do método dedutivo, iniciar-se-á a discussão a partir da concepção de direitos humanos, especificando-se a derivação dos direitos fundamentais e a consequente irradiação de seus efeitos às relações entre o particular e o Estado e notadamente nas relações privadas, para em fecho comprovadamente constatar a perfeita adequação e efetivação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

PALAVAS-CHAVE: direitos fundamentais, relações privadas, eficácia horizontal.

RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo tejer consideraciones generales acerca de la correcta comprensión de que los derechos fundamentales tienen un efecto directo e inmediato en las relaciones privadas. A través de método deductivo, que comenzará a la discusión de la concepción de los derechos humanos, la especificación de la derivación de los derechos fundamentales y los efectos de irradiación posteriores en las relaciones entre el individuo y el Estado y, especialmente, en las relaciones privadas, a en el cierre la experiencia probada de cerca la adecuación perfecta y la eficacia de los derechos fundamentales en las relaciones entre los individuos.

PALABRAS-CLAVE: derechos fundamentales; relaciones privadas; efecto horizontal.



Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Luiz Carlos Goiabeira Rosa y Nathália da Mota Dias (2016): “Apontamentos sobre a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero-marzo 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/01/relaciones.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-01-relaciones


INTRODUÇÃO

            Os direitos fundamentais são desdobramentos da dignidade humana e se constituem num conjunto de prerrogativas, essenciais à promoção e manutenção de uma vida digna em sociedade. Desta forma, proteger e assegurar ao indivíduo o exercício de tais prerrogativas é tarefa primordial do Estado enquanto agente da sociedade.
            Não obstante, a Constituição não prevê expressamente quanto aos direitos fundamentais o tipo de relação jurídica em que incidirão, no sentido de se restringir a respectiva eficácia à relação entre o particular e o Estado. Desta forma, os direitos fundamentais incidiriam com a mesma eficácia e intensidade nas relações entre particulares?
A isso se presta o presente estudo: discorrer sobre o entendimento segundo o qual a proteção dos direitos fundamentais não é dever somente do Estado e nem se restringe às relações travadas entre este e o particular, posto que também nas relações privadas os particulares vinculam-se à proteção e garantia recíprocos dos direitos fundamentais. Tal análise revela-se de suma importância, tendo-se em vista que se a dignidade humana não comporta seletividade ou segregacionismos deve então ser estendida também às relações no âmbito privado.
Para tanto, através do método dedutivo iniciar-se-á a discussão a partir da concepção de direitos humanos, especificando-se a derivação dos direitos fundamentais e a consequente irradiação de seus efeitos às relações entre o particular e o Estado e notadamente nas relações privadas, para em fecho comprovadamente constatar a perfeita adequação e efetivação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

 

1. CONTEXTUALIZANDO OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

                                      
Os direitos humanos, cujo fundamento de validade consubstancia-se na forma pré-estatal e no caráter irrenunciável, provêm do direito natural e são inerentes à condição humana, razão pela qual têm uma conotação universal e sobrepositiva e o que permite afirmar sua transnacionalidade dado que sua aplicabilidade se dá além das fronteiras de um determinado país (DUQUE, 2014:52). A previsão normativa dos direitos humanos decorreu de rupturas históricas, destacando-se a Revolução Francesa a qual se fundou nos ideais de liberdade-igualdade-fraternidade e ocasionou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, acontecimento que representou um marco importante para a concretude dos direitos humanos.
A respeito da positivação dos direitos humanos, Dimoulis e Martins (2009:27) ensinam que:

[...] uma evolução muito rápida permitiu que no último quarto do século XVIII, fossem redigidas declarações de direitos fundamentais, tanto no “velho” como no “novo” mundo, e que fossem reconhecidas como fundamento da ordem estatal-constitucional, devendo ser respeitadas pelo legislador comum, pela administração pública e pelos tribunais.

Bem assim, os direitos humanos foram de certa forma condensados no metaprincípio da dignidade humana, previsto em todas as Constituições dos países democráticos. Com o deslocamento do patrimônio para o ser humano enquanto paradigma do ordenamento jurídico, a dignidade da pessoa humana torna-se um princípio dotado de imperativo ordenatório a ser observado tanto pelos demais membros da sociedade quanto pelo Estado, de forma a que todos respeitem as condições mínimas essenciais de vida digna do ser humano. Corolário lógico, por estar intimamente ligada à natureza humana a dignidade humana precede ao ordenamento jurídico e assim está acima de qualquer arbítrio humano ou estatal.
Posto de outra forma: a dignidade humana passa a ser entendida como o conjunto de situações, prerrogativas, garantias, recursos e proteções de que necessita o ser humano para viver de forma respeitável e respeitosa, isto é, viver de forma a ser considerado um igual entre os demais membros da sociedade e fazendo com que seus semelhantes respeitem suas necessidades subjetivas e objetivas para uma “boa vida” e vice-versa. Frise-se que tal respeito não se limita aos direitos previstos em lei, mas se estende à própria natureza humana: a dignidade humana implica no respeito ao ser humano em si considerado e não apenas aos direitos positivados, razão pela qual ainda que não tipificados crimes que iriam da injúria à tortura seriam claros desrespeitos à dignidade humana por afrontarem a integridade da natureza humana.
Barroso (2009:274-275) bem obtempera:

O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. [...] Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar. [...] O princípio da dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios que se pode considerar incorporado ao patrimônio da humanidade, sem prejuízo da persistência de violações cotidianas ao seu conteúdo. Dele se extrai o sentido mais nuclear dos direitos fundamentais, para tutela da liberdade, da igualdade e para a promoção da justiça.

Ato contínuo, a positivação do princípio da dignidade humana reflete o reconhecimento social e estatal do valor da pessoa humana dotada dos direitos invioláveis que lhes são inerentes (AMARAL, 2003, p. 249), o que autoriza afirmar que a pessoa humana tem primazia sobre o Estado na medida em que este é um meio para a consecução do fim consubstanciado na garantia e promoção daquela. Com efeito, ao se adotar o ser humano como referencial normativo passa-se a se compreender a dignidade humana como um arcabouço de direitos essenciais que assegurem a todo e qualquer ser humano viver de forma a atender às necessidades humanas e ao mesmo tempo respeitar e ser respeitado por seus semelhantes, dado que esse respeito mútuo da dignidade alheia decorre justamente do fato de que todas as pessoas pelo tão-só fato de serem humanas têm igual dignidade.
Sarlet (2010:60) conceitua dignidade da pessoa humana como:

[...] qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
                     
Em âmbito normativo, pode ser considerada como valor constitucional supremo e, por ser considerada como o ápice do ordenamento, é fundamento de todos os princípios constitucionais e irradia seus efeitos sobre todo o sistema jurídico. A dignidade da pessoa humana “ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando um sistema interno harmônico, e afasta, de pronto, a ideia de predomínio do individualismo atomista no direito”. (FACHIN, 2006:179).
Destarte, mesmo diante de um conceito vago e dependente de valoração a dignidade da pessoa humana pode ser considerada como um valor intrínseco à pessoa e que lhe garante o respeito como ser humano e condições existenciais mínimas. Além disso, apresenta relevância normativa visto que ao ter previsão constitucional:

[...] firma-se princípio enformador do sistema jurídico; ordem conformadora ao legislador; e pelo caráter deontológico por expressa força normativa, exigente, pois, de concreção (devido). Ademais, exprime a racionalidade forte aos direitos fundamentais em todas suas dimensões evolutivas justificando-os como ponto comum da condição humana de repulsa a qualquer arbítrio. (MARTINS E FERREIRA, 2011:265-307).

Princípio fundamental e estruturante do ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que traça diretrizes básicas para ordem constitucional, a dignidade da pessoa humana pode ser considerada como fonte inspiradora dos direitos fundamentais e implica a previsão, a reedição e a atualização desses direitos: é instrumento hermenêutico utilizado na identificação de direitos fundamentais previstos em outras partes do texto constitucional que não no artigo 5º, em outras fontes normativas, e também na constatação de eventuais direitos fundamentais implícitos:

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos). (SARLET, 2010:97).

A seu turno os direitos fundamentais são princípios decorrentes da dignidade humana e constitucionalmente positivados, representando assim premissas, fundamentos de validade do exercício de prerrogativas necessárias a uma vida digna. Consubstanciam-se num complexo de direitos constitucionalmente positivados e essenciais à vida em sociedade, considerados fundamentais em razão de serem imprescindíveis à satisfação das necessidades humanas e sem os quais o homem descaracteriza-se enquanto pessoa não conseguindo destarte relacionar-se social e juridicamente com o Estado e com seus semelhantes.
Conforme bem obtempera Miranda (2000:10), os direitos fundamentais podem “ser entendidos prima facie como direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos de pessoa, como os direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível actual de dignidade”, em face do que se pode afirmar que têm por finalidade básica assegurar o respeito à dignidade humana por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (MORAES, 2005:21).
Posto de outra forma, os direitos fundamentais podem ser definidos como:

[...] direitos humanos positivados, isto é, concretados e protegidos especialmente por normas do nível mais elevado. A positivação tem tal transcendência que modifica o caráter dos direitos humanos pré-positivos, posto que permite a transformação de critérios morais em autênticos direitos subjetivos dotados de maior proteção que os direitos subjetivos não fundamentais. (ROBLES, 2005:7).

Ainda tratando de um conceito para o que seriam os direitos fundamentais, Silva (2009, p. 163-164) ensina que eles seriam:

[...] no direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que o ordenamento jurídico concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive.

A esse respeito, Alexandrino (2011:24) explicita as características essenciais dos direitos fundamentais:

1. “Fundamentais, porque, definindo relações qualificadas do homem e do Estado, esses direitos desenham respostas a necessidades fundamentais e constantes do ser humano, relativas às esferas da existência, da autonomia e do poder; 2. Universais, ainda que se apresentem, por vezes, atribuídos a categorias particulares de pessoas, são direitos de todas as pessoas; 3. Permanentes, na medida em que se extinguindo pela morte do respectivo titular ou por uma decisão de valor constituinte que suprima o direito; 4. Pessoais, porque estão estritamente ligados à pessoa, à sua vida e personalidade; 5. Não-patrimoniais, em virtude de serem direitos insusceptíveis de avaliação pecuniária, razão pela qual são ainda intransmissíveis e inexpropriáveis; 6. Indisponíveis, na medida em que o seu carácter inalienável do direito vincula não só o Estado como o próprio titular.

Ressalta-se ainda a positivação enquanto traço característico dos direitos fundamentais, o qual entre outros os distinguem dos direitos humanos em geral: enquanto estes seriam válidos para todos os povos e em todos os tempos e seriam invioláveis por sobressaírem-se da própria natureza humana, aqueles seriam jurídico-institucionalmente garantidos e limitados e objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta (CANOTILHO, 2000:393).
A relação entre as diversas categorias de direitos fundamentais e a dignidade do indivíduo tem uma intensidade variável conforme maior ou menor a importância desses direitos para a vida humana. Tratando dessa relação, Duque (2014:162) ensina que “quanto maior for o significado concreto de um direito fundamental para a realização da dignidade humana, maior será o peso que lhe deve ser conferido”.
Conforme se viu a respeito dos direitos fundamentais, são direitos de um número extenso, de enorme variabilidade e variedade do conteúdo, de vários contornos, originários de diversas interfaces de proteção e de promoção da pessoa. Destarte e ciente do conceito aberto dependente de valoração atribuído a direitos fundamentais, Ferrajoli (2008:43) leciona que para saber quais direitos devem ser garantidos como direitos fundamentais devem-se considerar três critérios axiológicos: o nexo entre os direitos humanos e a paz instituída no preâmbulo da Declaração Universal de 1948; o nexo entre direitos e igualdade; e o papel dos direitos fundamentais como leis do mais débil.
Em relação a esta positivação dos direitos fundamentais, num primeiro momento surgiram os direitos individuais civis e políticos, também denominados de direitos de defesa. Os direitos fundamentais conferidos ao indivíduo, a princípio, estavam atrelados àqueles direitos inerentes ao ser humano, que exigem do Estado abster-se de atuar para que sejam exercidas as liberdades clássicas como o exercício dos direitos de liberdade, de propriedade, de segurança. 
Em um segundo momento, atrelado aos direitos de defesa do indivíduo e somando-se a eles, denominou-se uma outra categoria de direitos fundamentais que seria a dos direitos sociais. Essa classe de direitos exige uma prestação do Estado, uma atuação positiva por parte dele, seja intervindo nas relações privadas, seja estabelecendo políticas públicas eficazes.
Uma terceira categoria de direitos fundamentais também surge para ser exercida em conjunto com as demais. Esta classe apresenta conteúdo fraternal, abrange direitos de solidariedade, coletivos, difusos e a tutela pelo Estado de interesses de índole transindividuais. Nesta classificação também estão o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, a paz e a autodeterminação dos povos.
Há também quem entenda pela existência de outras categorias de direitos fundamentais, a exemplo de Bonavides (2012) que coaduna do pensamento de que há direitos de quarta geração que compreenderiam o direito à democracia, à informação e ao pluralismo. Em decorrência do direito fundamental ao pluralismo aqui estariam inseridos os direitos de grupos sociais considerados vulneráveis a exemplo dos consumidores, pelo que os direitos de quarta geração também representariam “um desdobramento em relação aos direitos de terceira geração, no sentido de propiciar a sua adequada concretização”. (XAVIER, 2006:195).
Muitos doutrinadores ao se referirem à classificação dos direitos fundamentais utilizam a denominação geração: direitos de primeira geração, de segunda, de terceira e até de quarta geração, mas Dimoulis e Martins (2009) ensinam que esta terminologia não é a mais correta, pois não pode-se afirmar que os direitos incluídos nas categorias posteriores surgiram necessariamente após os direitos incluídos nas categorias precedentes, ou seja, não é possível dizer que os direitos sociais, que estão em uma segunda categoria, teriam surgido apenas após os direitos de liberdade, que se encontram em uma primeira classe de direitos.
Além disso, o termo “geração” faz surgir uma ideia de substituição, o que também não ocorre com os direitos fundamentais, pois os diversos direitos da cada categoria são considerados e devem ser exercidos em conjunto com os direitos das demais, eles são complementares e devem ser exercidos de forma concorrente. 
Assim como a determinação de direitos como fundamentais ao indivíduo, a categorização desses direitos também está atrelada às bases da dignidade da pessoa humana. A este respeito, conforme salientado por Bobbio (2007), a promoção do ser humano é considerada, ao lado da função de tutela ou garantia, como a principal função do Estado, ou seja, assegurar o respeito da dignidade humana seria o fim último do Estado e, inclusive, da sociedade.
Tratando de algumas características dos direitos fundamentais Ferrajoli (2008:34) aduz que “os direitos fundamentais são direitos que não são passíveis de supressão”. Para o mencionado autor, o que a democracia política não pode suprimir, ainda que esteja sustentada na unanimidade e no consenso, são justamente os direitos fundamentais, que portanto são direitos contra a maioria, sendo estabelecidos como inalienáveis e invioláveis contra qualquer poder e em defesa de todos.
Também é nesse sentido o entendimento de Bockenforde (1993:69):

Todos los derechos fundamentales son derecho diretamente aplicable, vinculan especialmente también al legislador (art. 1,3), y esta vinculación se somete al control judicial (art. 93, 1, art. 100). Su limitación es sólo posible de manera restringida, y sólo en la medida em que este permitida expressamente (art.19, 1 y 2).

Pode-se afirmar que o ordenamento nacional vela pela supremacia dos direitos fundamentais, ao estipulá-los no texto constitucional e ao tratá-los visando-se proteger, garantir e promover a dignidade da pessoa humana, que é o fim último da ordem constitucional.  
A respeito do tratamento normativo a ser dado aos direitos fundamentais, “a teoria, a dogmática e a prática dos direitos fundamentais devem regressar ao espaço jurídico-constitucional e ser considerados como elementos estruturantes de uma comunidade jurídico-constitucional bem ordenada”. (CANOTILHO, 2008:116).
Os direitos fundamentais, fundamentados na dignidade da pessoa humana e incluídos como cláusulas pétreas pela Constituição, são elementos importantes a serem observados pelo ordenamento jurídico, devendo ser garantidos e protegidos no estabelecimento das relações com o Estado e com os particulares.

 

3 A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

 

A positivação dos direitos fundamentais no ordenamento nacional, em um primeiro momento, atribuiu-lhes efeitos apenas no que tange às relações públicas (Estado-indivíduo), servindo como meio de proteção da pessoa frente ao Estado. Havia uma dicotomia entre os ramos do direito público e do direito privado, separando-se a aplicação das disposições constitucionais das prescrições do direito privado.
Contudo, vários fatores como a globalização, o neoliberalismo e de um modo geral as mudanças sociais, influenciaram no aumento da expressividade do poder de alguns sujeitos privados, fazendo com que assim não apenas o Estado pudesse ser considerado como violador dos diretos fundamentais, incluindo-se também as pessoas, a coletividade como um todo; não raras vezes, não é o Estado o grande vilão frente aos direitos fundamentais, mas sim sujeitos privados, especialmente quando dotados de poder social ou econômico que se apresentam como inimigos desses direitos (VECCHI, 2011:113).
Alie-se ao fato de a Constituição possuir uma força irradiante, o que passou a ser assim considerado a partir de meados do século XX e fez com que os direitos e garantias fundamentais nela previstos fossem aplicados às relações públicas e também às de âmbito privado. Tal noção ganhou força com o entendimento jurisprudencial nesse sentido, vindo a se tornar estreme de dúvidas após a promulgação da Constituição de 1988 e com o fenômeno da constitucionalização do direito privado, cuja respectiva utilização do nível de eficiência e rapidez e os conceitos a ele transcendentes abriram espaço igualmente democrático para a convivência pacífica, hierárquica e suplementar entre sistemas, a benefício das exigências da sociedade. (MARTINS E FERREIRA, 2011:265-307).
De se observar nesse sentido que conforme já dito em relação aos direitos humanos, também a dignidade humana e os direitos fundamentais enquanto corolários devem ser objetos de proteção não só por parte do Estado, mas também pelos particulares nas relações privadas. Uma vez que a concepção vigente de ser humano é inexoravelmente indissociável da dignidade e bem assim não há ser humano que não seja digno, tanto o Estado como também e em igual proporção a sociedade devem dignificar a pessoa, dando-lhe condições mínimas de vida e favorecendo, na medida do possível, o desenvolvimento das capacidades pessoais do indivíduo. (ANDRIGHI, 2009:1187-1188).
A propósito, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais que os consideram como valores que fundamentam todo o ordenamento jurídico, foi um fator decisivo para a atribuição de seus efeitos às relações privadas.
Não há um fundamento absoluto e único para os direitos fundamentais e a gama de direitos a ser observada nas relações entre os particulares para que não violem os direitos dos indivíduos é enorme. A possibilidade de lesão dos direitos fundamentais pelos particulares no estabelecimento de suas relações privadas frente aos imperativos do poder econômico torna-se comum, principalmente naquelas sociedades como a brasileira em que há grande desigualdade social.
Ato contínuo, a possibilidade de ser lesionado um direito fundamental de um indivíduo é proporcional à sua situação de vulnerabilidade. Assim, quanto mais vulnerável for uma pessoa, maior será a possibilidade de um direito fundamental seu ser violado no estabelecimento de relações jurídicas com seus pares, pelo que Bockenforde (1993:70) ao tratar do dever do Estado de interferir e de regular as relações privadas ensina que “o Estado é obrigado a intervir nas relações privadas, com o fulcro de relativizar as desigualdades sociais presentes na sociedade, bem como no sentido do desenvolvimento e do bem-estar sociais como bases da liberdade para todos”.
Com isso pode-se afirmar que a proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos dos indivíduos, em razão da grande expressividade dos poderes privados na sociedade brasileira, não poderia estar restrita ao âmbito de relações Estado-indivíduo/sociedade fazendo com que o Estado atue de forma a proteger as pessoas de seus pares e, inclusive, delas mesmas. 

 

4 EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

 

A doutrina classifica a eficácia dos direitos fundamentais em vertical, quando oponível ao Estado; e horizontal, se oponível aos particulares.
A eficácia vertical dos direitos fundamentais representa a possibilidade de o indivíduo opor os seus direitos ao Estado. Por haver uma relação vertical entre o Estado e os cidadãos, os poderes estatais devem respeitar e assegurar o gozo dos direitos fundamentais por todos. Isso faz com que o Estado respeite o livre exercício dos direitos fundamentais e que se abstenha de interferir indevidamente na vida das pessoas, assim garantindo o pleno exercício dos denominados direitos de primeira categoria/dimensão.
Além desse aspecto negativo, de abstenção, o Estado também tem o dever de atuar positivamente no sentido de promover os direitos sociais dos indivíduos estabelecendo políticas públicas ou mesmo intervindo nas relações entre os particulares. Esses dois deveres do Estado, de abstenção e de atuação, fazem surgir às pessoas o direito de exigir o fiel cumprimento de seus direitos, seja por meio dos remédios constitucionais, seja por intermédio de ações judiciais e/ou administrativas.  Sarlet (2010:366) entende nesse sentido:

Do efeito vinculante inerente ao art. 5º, § 1º, da CF decorre, num sentido negativo, que os direitos fundamentais não se encontram na esfera de disponibilidade dos poderes públicos, ressaltando-se, contudo, que, numa concepção positiva, os órgãos estatais se encontram na obrigação de tudo fazer no sentido de realizar os direitos fundamentais.

Já quanto à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, perfunctoriamente consubstancia-se no fato de que numa relação jurídica privada os direitos do próximo devem ser considerados e resguardados, não sendo permitido o sacrifício dos direitos de outrem face ao exercício dos seus próprios direitos. Não é possível que os particulares, no exercício de sua autonomia privada, pratiquem um ato exercendo seu direito de forma abusiva:

A dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar a outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que o critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade passa a ser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro. (SARLET, 2010:60).

A respeito da eficácia horizontal, esta representa a extensão da amplitude dos direitos fundamentais às relações privadas e assim além das relações políticas. Tratando da eficácia dos direitos fundamentais, Dimoulis e Martins (2009:22) lecionam que “o indivíduo pode fazer valer esses direitos tanto perante o Estado como perante a sociedade, já que a Constituição garante sua autonomia enquanto sujeito de direito”.
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais faz com que se produzam efeitos irradiantes, ou seja, todos os seus valores e implicações refletem sobre o ordenamento jurídico de forma a prevalecer a dignidade humana, a igualdade substantiva e a justiça social. A esse respeito, Alexy (2014:128) ensina que:

[...] esses direitos fundamentais devem, enquanto valores ou decisões objetivas de valores, irradiar-se sobre todo o direito. Com isso os direitos fundamentais ostentam sua força não só nas reações entre cidadãos e o estado, mas também no direito civil, que trata da relação entre os cidadãos.

A respeito da eficácia que os direitos fundamentais produzem nas relações privadas existem várias teorias, e dentre aquelas que entendem pelos efeitos horizontais pode-se citar a teoria da eficácia indireta ou mediata e a teoria da eficácia direta ou imediata.
A teoria da eficácia indireta ou mediata, segundo Sarmento (2010), seria uma vertente intermediária entre a teoria que nega os efeitos dos direitos fundamentais sobre as relações privadas e entre a teoria da eficácia direta. Essa teoria elucida em seu conteúdo que para que os direitos fundamentais possam ser aplicados entre os particulares eles precisam ser regulamentados pelo legislador. A aplicação dos direitos fundamentais então não decorreria diretamente da Constituição.
Silva (2014:58) ao distinguir eficácia direta da eficácia indireta leciona que “o modelo indireto preconiza apenas uma influência das normas de direitos fundamentais na interpretação das normas de direito infraconstitucional”. E ainda ensina que “no modelo indireto, a despeito de haver uma produção – indireta – de efeitos por meio da reinterpretação do direito infraconstitucional, não há uma verdadeira aplicação da norma de direito fundamental às relações entre particulares”. (SILVA, 2014:59).
Outra teoria é a da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares que, segundo Duque (2013), surgiu na Alemanha com a utilização da expressão Drittwirkung der Grundrechte ao se considerar que os direitos fundamentais são ordenadores da vida social e por isso possuem importância direta para o direito privado. Consideraram que a não aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas levaria a torná-los sem efeitos e seriam incluídos como direitos apenas declaratórios.
Considerando-se o disposto no ordenamento jurídico brasileiro a teoria aplicável seria a da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais, pois a aplicabilidade imediata desses direitos está prevista expressamente na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º. 
Dizer que os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata significa que gozam de autonomia, ou seja, independentemente de haver qualquer outra previsão legal são aplicáveis diretamente nas relações privadas, o que pode se dar por meio de mandamentos ou de restrições. A característica da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais confere ao particular o direito de invocar as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias (CANOTILHO, 2008), donde se observa que a aplicação direta pressupõe que em face da unidade do ordenamento jurídico todo e qualquer direito deve viger apenas sob os fundamentos e dentro dos marcos da Constituição, não fugindo o direito privado a esse desiderato. (DUQUE, 2013:112).
A eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas é baseada em cinco pilares: a dignidade da pessoa humana como fundamento da ordem jurídica e do direito privado; os direitos fundamentais devem ser garantidos na vida social, pois são valores supremos; o significado dos direitos fundamentais mudou, afastando-se da classificação apenas como direito de defesa frente ao Estado para ser incluído também como uma defesa em face dos próprios particulares; são direitos multidirecionais, aplicando-se a todos; e por serem direitos diretamente vigentes no âmbito público, também o devem ser no âmbito privado. (DUQUE, 2013).
O fato de a Constituição brasileira estabelecer entre os seus valores a igualdade material, o que garante às pessoas um tratamento igualitário pelo Estado e pelos demais, também pode ser considerado como um forte argumento para a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Outro importante valor constitucional é a solidariedade social que enseja o respeito aos direitos do próximo e a busca do bem comum.
Prata (1982:137-138) defende a aplicação da eficácia imediata das normas de direitos fundamentais nas relações privadas ao afirmar que a extensão da eficácia direta do domínio público para o domínio privado significa que:

[...] esses direitos estão defendidos de qualquer ameaça provinda do domínio negocial interprivado, isto é, que as entidades privadas têm de respeitar de forma direta e necessária os direitos constitucionalmente garantidos, e não que a sua eficácia depende da medida em que o estado configure legalmente a situação jurídica das entidades privadas de acordo com os direitos fundamentais.

Também é importante ressaltar que no texto constitucional não há nenhuma previsão mesmo que implícita, que se refira ao fato de que os direitos fundamentais dos indivíduos devem ser opostos e respeitados diretamente apenas pelo Estado. Não há limitação no que tange à oponibilidade dos direitos fundamentais aos particulares, o que leva à conclusão de que eles também são oponíveis aos entes privados.
Ainda sobre as razões que autorizam a aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas, Vecchi (2011:118) cita os seguintes fundamentos constitucionais da eficácia horizontal:
a) a força normativa da Constituição; b) o reconhecimento do patamar hierárquico superior às normas constitucionais; c) o caráter unitário do ordenamento jurídico; d) o caráter objetivo (normativo) dos direitos fundamentais; e) a eficácia imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, 1º, da CF de 1988); f) o reconhecimento da dignidade humana como fundamento da ordem jurídica e a consequente necessidade de proteção integral da pessoa humana (art. 1º, III, da CF de 1988); g) a função social da propriedade, do contrato, da empresa e da livre iniciativa (arts. 5º, XXIII; 170, caput, 186 e 1º, IV, da CF de 1988); h) o valor social do trabalho (art. 1º, IV, da CF de 1988).

O Supremo Tribunal Federal (BRASÍLIA, STF, RE n. 201.819/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, 2005), Corte Constitucional brasileira, já decidiu pela aplicabilidade da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas:

[...] I. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

Vê-se então a possibilidade de o indivíduo exigir diretamente do Estado a efetivação de seus direitos fundamentais em eventual colisão com determinações estatais e até mesmo frente a seus pares, seja por intermédio do Poder Executivo, seja pelo Poder Judiciário. Até porque, tanto o Poder Público quanto os particulares estão vinculados e têm o dever de zelar pela dignidade da pessoa.
A respeito da proteção a ser dada à dignidade da pessoa humana, Sarlet (2010:129) aduz a importante conclusão:

[...] o dever de proteção imposto – e aqui estamos a nos referir especialmente ao poder público – inclui até mesmo a proteção da pessoa contra si mesma, de tal sorte que o Estado se encontra autorizado e obrigado a intervir em face de atos de pessoas que, mesmo voluntariamente, atentem contra sua própria dignidade, o que decorre justamente do já referido cunho irrenunciável da dignidade pessoa.

O imperativo da prevalência da dignidade da pessoa humana pode fazer com ela se sobreponha inclusive contrariando a autonomia do seu próprio titular, a depender do caso concreto, com a finalidade de proteger a pessoa. Bem assim, o Estado pode e deve intervir nas relações privadas para resguardar o indivíduo de decisões decorrentes do exercício de sua autonomia, inclusive protegendo a pessoa de atos praticados por ela mesma por sua livre e espontânea vontade. Dentro desse dever de proteção está a obrigação do Estado de atuar regulando as relações entre particulares, impondo limites às tratativas privadas e até mesmo desconstituindo aquelas que firam os direitos fundamentais e a dignidade do indivíduo.
Assim é que os direitos fundamentais, valores supremos da ordem constitucional, devem ser necessariamente observados na discussão de casos concretos. Por serem autônomos e de aplicabilidade imediata podem ser diretamente aplicados pelo judiciário na solução dos litígios que envolvam as relações entre os particulares.
Contudo, uma questão a ser observada no tratamento da eficácia horizontal dos direitos fundamentais é o fato de que os particulares não podem ser colocados no polo passivo desses direitos com o mesmo tratamento a ser dado ao Estado no caso da eficácia vertical. O dever do Estado em relação à garantia dos direitos fundamentais tem dupla interface, pois ele tem o dever de se abster e, ao mesmo tempo, o dever de atuar positivamente, visando protegê-los de lesões.
No que tange aos particulares, esse dever deve ser analisado com cautela, pois os cidadãos não podem ser equiparados ao Estado neste ponto. O dever de se abster de ferir os direitos fundamentais dos seus pares certamente deverá ser observado pelo particular, porém em relação ao dever de proteção não pode ser dado exatamente o mesmo tratamento. Há quem entenda que mesmo no âmbito privado também existiria a obrigação de proteção dos direitos fundamentais dos consortes.
Tratando sobre os deveres do particular, Sarmento (2010) entende que a tutela dos direitos individuais nas relações privadas não se esgota na obrigação de abstenção, também abrange uma atuação repressiva e corretiva e, além disso, pode abranger deveres positivos, a depender do caso concreto e dos interesses envolvidos. 
Outro ponto importante a ser ressaltado é que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais deverá ser observada não apenas quando houver posições de desigualdade entre as partes, como por exemplo, entre uma forte empresa e um simples consumidor, mas também deverá ser aplicada nas relações estabelecidas entre os cidadãos comuns que aparentemente estariam no mesmo nível de igualdade.
A promoção da igualdade real entre os consumidores, também denominada de igualdade substancial, é um dever do Estado. Para isso Prata (1982) defende que essa obrigação do Estado deve atuar em três vias que são: restabelecimento da igualdade negocial por meio da tutela do contratante mais vulnerável; atribuição de direitos que se concretizam por meio de prestações positivas do Estado; e a promoção de uma real igualização que será concretizada pela edição de uma legislação discriminadora.
Lado outro, apesar da igualdade hierárquica dos direitos fundamentais em abstrato a eficácia que cada direito irá produzir sobre uma relação privada não incide da mesma forma e com a mesma intensidade para todos os direitos fundamentais. Ao ser analisada uma situação concreta entre particulares é que se poderá dizer como será os efeitos dos direitos fundamentais naquele caso. É dizer, a eficácia de um direito fundamental direcionada ao ordenamento jurídico-privado varia de norma para norma, ou seja, depende do direito fundamental em questão, do âmbito da vida onde se direciona sua aplicação, bem como da própria situação das partes envolvidas. (DUQUE, 2014:229).
Denota-se a propósito que os direitos fundamentais por serem de índole constitucional e por terem a mesma localização no texto da Constituição, possuem a mesma hierarquia ao serem analisados abstratamente, ou seja, a Constituição não determinou a eles uma ordem de incidência. Porém, a igualdade hierárquica em abstrato dos direitos fundamentais não impede que em uma relação jurídica, havendo conflito entre os direitos das partes, seja realizada uma ponderação entre eles, podendo, inclusive, mitigar a eficácia de um deles em detrimento da prevalência de outro. Em outras palavras, determinados direitos fundamentais devem recuar ou gozar de preferência, quando em um caso concreto colidirem com outros direitos fundamentais de titulares distintos. (DUQUE, 2014:178).
Com efeito, na solução dos casos concretos que envolvam os direitos fundamentais nas relações privadas não se deve deixar de lado a autonomia privada, ponderando as situações que os envolvam com o livre exercício da vontade do indivíduo. Nesse sentido, Sarmento (2010:247) ensina que para realizar a tarefa da ponderação entre os direitos fundamentais e a autonomia dos indivíduos deve-se considerar o seguinte:

1) Se a ação violadora do direito puder ser indiretamente imputada ao Estado, os direitos fundamentais, em tese, devem ser aplicados; 2) Quanto mais poderosa for a pessoa ou instituição privada, maior deve ser o seu grau de vinculação aos direitos fundamentais; 3) Quanto maior a proximidade da relação jurídica à esfera pública, maior deve ser a proteção do direito fundamental em jogo, e menor a proteção à autonomia privada, e vice-versa; 4) A aplicação dos direitos fundamentais no campo privado não pode conduzir a uma homogeneização da comunidade, ou seja, é preciso preservar a identidade e as peculiaridades dos diversos agentes sociais.

Ainda sobre a análise a ser feita na ponderação direito fundamental versus autonomia privada é importante citar a lição de Barroso (2006:76), o qual estabelece que ao se realizar esta tarefa deve-se considerar os seguintes fatores: a) a igualdade ou desigualdade material entre as partes; b) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade de critério; c) preferência para valores existenciais sobre os patrimoniais; e d) risco para a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana é utilizada como o critério hermenêutico mais importante na avaliação de uma situação concreta em que se argua a violação ou não de um direito fundamental, mas essa análise valorativa deve ser feita com cautela. Deve ser encontrado um ponto de equilíbrio entre a tutela dos direitos fundamentais e a autonomia privada.
Há uma discussão na doutrina quanto à possibilidade de se renunciar aos direitos fundamentais. É importante esclarecer que quando se fala em renúncia a direitos fundamentais abrange-se apenas o seu exercício e não a sua titularidade. Então, existem dois posicionamentos: o que considera não ser possível a renúncia ao exercício dos direitos fundamentais conforme a autonomia privada do indivíduo e o que entende ser possível que os particulares, em situações concretas, abdiquem de exercer alguns de seus direitos fundamentais.
Mesmo havendo esta divergência, há um consenso entre as duas correntes em relação à possibilidade de haver restrições voluntárias aos direitos fundamentais pelos próprios titulares desses direitos. Assim, conclui-se que apesar de serem considerados normas principiológicas de valor supremo, os direitos fundamentais não são absolutos e intocáveis em todas as situações. Analisando-se o caso concreto, é possível que uma das partes da relação jurídica tenha restringido os seus direitos fundamentais sem que isso configure uma violação à sua dignidade e que, então, enseje uma proteção estatal:
Quanto maior for o grau de indisponibilidade de um direito, menor é a possiblidade de se cogitar uma renúncia ao seu exercício; por outro lado, quanto maior for o grau de autodeterminação do particular, vale dizer, a constatação dos pressupostos totais para a tomada de uma decisão inteiramente livre, maior é a margem de autonomia que se abre ao indivíduo para dispor de aspectos ligados à sua dignidade e ao exercício de direitos fundamentais. (DUQUE, 2014:204).

Embora haja a possibilidade de restrição aos direitos fundamentais, tal deve ser exercida em conformidade com o núcleo essencial desses direitos. Cada direito fundamental apresenta um núcleo essencial individualizado que deve necessariamente ser observado pelos particulares ao estabelecerem suas relações. Assim, mesmo a parte optando por restringir o exercício de algum de seus direitos fundamentais, esse ato de disponibilidade não poderá infringir o que é considerado como núcleo essencial do direito fundamental. Isso corresponde exatamente ao que defende Ribeiro (1999:138) ao afirmar que “ressalvado o núcleo essencial do direito afectado, ao qual em caso algum o titular pode renunciar”.
Ato contínuo, da mesma forma que o Estado tem o dever de proteger os particulares contra ingerências indevidas em seus direitos fundamentais provocadas por uma norma jurídica inconstitucional, por exemplo, ele também, fundamentado no seu dever de proteção, deverá resguardar os direitos fundamentais dos indivíduos no caso de serem violados no âmbito de suas tratativas privadas.
Não obstante todas as implicações positivas da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, Sarmento e Gomes (2011:62) apresentam um alerta quanto à aplicação ampla e indiscriminada dos direitos fundamentais entre os particulares ao estabelecer que:

[...] a hipertrofia da eficácia horizontal dos direitos fundamentais pode, em nome da utopia da realização destes direitos em todos os espaços sociais, converter-se numa verdadeira distopia, ao restringir em excesso a autonomia privada, ainda que com propósitos “politicamente corretos”.

É certo que os direitos fundamentais são valores reconhecidos pelo sistema jurídico e atuam como normas jurídicas basilares do ordenamento, apresentando a característica da ampla e geral aplicabilidade em todos os tipos de relações jurídicas: públicas e privadas. No entanto, mesmo tendo sofrido considerável relativização ainda é vigente e tem força o princípio da autonomia privada no qual estão baseadas as relações privadas.
Frise-se que a ponderação é imprescindível na efetivação de princípios e notadamente os fundamentais. Nesse sentido, a lição de Ferreira (2004:50):

A lei da ponderação mostra que o sopesamento entre os princípios em colisão pode ser separado em três estágios. O primeiro envolve a identificação do grau de não satisfação ou lesão do primeiro princípio. O segundo estágio se refere ao grau de importância de satisfação do outro princípio. Finalmente, o terceiro estágio diz respeito à relação entre a importância de satisfação do princípio e a lesão ou não satisfação do outro.
Por isso, a importância de se realizar uma ponderação entre os direitos fundamentais e a autonomia das pessoas, sob pena de lesar de tal forma esse direito que inviabilize os indivíduos de exercê-lo.

 

CONCLUSÃO

A Constituição não se resume a uma mera ordem de valores estáticos e estritamente teóricos. É a Lei Maior, a norma fundamental, que consagra e positiva entre outros os princípios fundamentais e estruturantes de uma vida digna em sociedade.
Nesse sentido, a força do poder econômico e de grupos sociais apresenta um grande potencial para violação dos direitos fundamentais dos mais vulneráveis, fato que faz com que estejam sujeitos a lesões aos seus direitos: a autonomia privada nas relações entre particulares não pode ser considerada como sendo de exercício absoluto. Dessa maneira, justifica-se a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas como uma ferramenta a favor da igualdade, ao conferir proteção aos mais fracos.
Notadamente, porque se sedimentou o entendimento segundo o qual os direitos fundamentais se consubstanciam num arcabouço dos valores mais essenciais para a sociedade, bem como uma garantia de exercício de prerrogativas indispensáveis à vida com dignidade. Nesse sentido, promover e garantir os direitos fundamentais não é tarefa somente do Estado mas também de toda a sociedade, dado que é esta própria em si considerada e por meio de seus membros individualmente determinados os destinatários e ao mesmo tempo titulares das aludidas prerrogativas constitucionais.
Forçoso é reconhecer portanto que a eficácia dos direitos fundamentais transcende a relação particular-Estado e alcança as relações privadas, protegendo a pessoa humana de possíveis excessos e arbitrariedades porventura exercidos pelos poderes sociais não estatais e disseminados na sociedade atual. Bem assim, os direitos fundamentais são disposições autônomas e não precisam de regulamentação infraconstitucional para serem efetivos: têm aplicação direta aos casos concretos, o que faz com que os particulares e os poderes do Estado tenham o dever de aplicá-los nas situações práticas, salientando-se que é possível aos magistrados dar efetividade a esses direitos mesmo que em contradição com uma lei que os tenha violado.
É dizer: guardadas as devidas proporções, seja pública ou privada a relação jurídica entabulada haverá incidência dos direitos fundamentais e a respectiva eficácia irradiante dos mesmos.

 

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Recibido: 29/01/2016 Aceptado: 31/03/2016 Publicado: Marzo de 2016

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