CAMINHOS DO JEQUITINHONHA: ANÁLISE DO PROJETO DE COMBATE Á POBREZA RURAL

Marcela de Oliveira Pessôa

V. Considerações finais

O presente trabalho buscou fazer uma análise que permitisse a interação entre o contexto nacional e a realidade do Vale do Jequitinhonha, no intento de denotar como se deram os processos que influenciariam seu desenvolvimento socioeconômico amparado pelas políticas públicas.
Fora visto que a formação das políticas sociais tem por pressuposto inicial atender os desamparados socialmente, aqueles que estão à margem da sociedade devido às consequências do processo de modernização. Mais que isso, as políticas sociais devem servir de amparo a estes grupos diante dos males que promovem a ruptura com os modos de vida e produção tradicionais, pré-industriais. No caso brasileiro, a implementação das políticas sociais serviu como mecanismo de amansamento do vulcão social que emergia a partir das contradições sociais advindas de nosso processo histórico. Elas basearam-se essencialmente numa estrutura urbana-industrial e, tal como as demais políticas públicas do estado, emergiram num quadro de hipervalorização dos aspectos técnicos, que concebiam o desenvolvimento estritamente através do modelo produtivista.
Graças a esse modelo os interesses de grupos e setores de maior poder econômico e político foram amplamente privilegiados, usufruindo de largos investimentos destinados às políticas sociais e que acabaram por modelá-las mais orientadas para o crescimento econômico do que para o desenvolvimento social. Enquanto isso, regiões e populações sofriam os efeitos dessa lógica excludente de amplas camadas sociais. Primeiramente, sentiram pela inação do Estado, uma vez que não faziam parte da lógica urbana-industrial-produtivista. E, segundo, quando as políticas públicas chegaram às localidades remotas, mesmo que trouxessem algum benefício, muitas vezes foram introduzidas com desrespeito e prejuízos ao modo de vida tradicional, deixando estas populações à mercê de forças que estavam fora do controle doméstico. Isto se deu porque o desenvolvimento ambicionado não pressupunha apenas modificações estruturais físicas, mas também o apagamento do modo de vida tradicional considerado como atrasado. Sendo assim, as políticas sociais acabaram por reproduzir uma sociedade hierárquica e desigual, e cujas conquistas eram arbitradas por número reduzido influente nas esferas do poder.
Esta dinâmica explica o estado de coisas no Vale do Jequitinhonha, que carrega o estigma da miséria, mesmo sendo rico em aspectos ambientais e imateriais. Como no resto do país, a cidadania no Vale se fez através do sistema de estratificação ocupacional; porém, deu-se mais tardiamente, visto que sua gente teve de esperar para que região tão ruralizada se beneficiasse com as políticas de proteção social ligadas ao trabalho no campo. Ainda hoje, mesmo com a proteção social, a falta de infraestrutura, serviço e a baixa renda, bem como os efeitos da pressão heterônoma, continuam estimulando a saída da gente da região, principalmente com a finalidade da migração sazonal. Uma constante que leva os trabalhadores a se submeter a atividades insalubres na tentativa de salvaguardar suas condições de vida nas localidades de origem.
No novo século, com o surgimento da proposta de uma cidadania ativa, pressupõe-se levar a participação social à gestão do Estado na expectativa de superar o formato tecnocrático de outrora, integrando diferentes agentes sociais. Neste novo modelo de gestão social, a participação atuaria a partir da esfera local, primeiro por ser o lócus onde as pessoas mais diretamente poderiam lutar por transparência e efetividade na gestão pública e, segundo, porque se exigiria que houvesse uma ação mais condizente entre as políticas públicas e a realidade local. Têm sido várias as tentativas de articular a participação social na gestão pública desde então, logo que tem aparecido tanto experiências bem sucedidas como de alcance superficial.
Nesse eito, que se propõe democrático-participativo, é que vem a surgir no Vale do Jequitinhonha o IDENE, com a proposta de gerir o PCPR como uma política pública que visa a ruptura com o modelo tecnocrático de outrora e busca o reconhecimento e valorização do modo de vida tradicional da população que abrange. A pesquisa aqui desenvolvida levantou que, no intento de promover uma melhoria substancial da qualidade de vida de seus beneficiários, a instituição e o Projeto tem atuado por meio de contradições, carregando consigo aspectos positivos ao mesmo tempo em que deixa profundas lacunas. Em linhas gerais pode-se denotar que:

  1. Em consonância à proposta democrático-participativa, para a concepção do Projeto, a instituição exige a relação dos beneficiários com espaços formais de participação, tais como a formação e regularização das associações e a presença nos CMDRS’s.
  2. Em tentativa de ruptura com o modelo tecnocrático de outrora, a instituição tenta valorizar o modo de vida dos beneficiários reconhecendo que empreendimentos de grande escala podem escamotear a relação tradicional de produção dos beneficiários, assim como sua identidade. Desta forma, em vez de financiar macroempreendimentos, como fora feito pelas agências de desenvolvimento no passado, o IDENE, através do PCPR, arma o pequeno produtor com possibilidades técnicas para facilitar o seu trabalho e na expectativa de gerar-lhe emprego e renda.
  3. Também em diferença às relações entre Estado e sociedade no passado, a instituição evita relações clientelísticas/paternalistas com seus beneficiários dado que, segundo os entrevistados, embora os agentes institucionais da esfera microrregional sejam cuidadosos e empáticos, são também exigentes em transparência pública e não dão privilégios a municípios ou comunidades. Estes aspectos fazem com que a instituição seja bem quista e ganhe a confiança de seus beneficiários.

Por outro lado, algumas atitudes da instituição, mesmo com “boa vontade” em seus princípios, são insuficientes para o fim que se propõe. Uma das mais visíveis concerne na constante rotatividade dos agentes que atuam nas localidades. Embora o desligamento seja tomado como positivo, no que diz respeito à expectativa de romper com situações que engendrem paternalismo/clientelismo institucional, também faz romper com as raízes institucionais no espaço, que permitiriam melhor conhecer e partilhar da realidade destas comunidades. Outro ponto pungente diz respeito ao fato que, mesmo que os subprojetos produtivos pudessem servir de alternativa para a migração regional, pode-se dizer que todos estão inconclusos. Eles não trouxeram ainda os benefícios que se esperava: a renda gerada é pouca e falta toda uma série de articulações que fortaleçam a capacidade de autonomia e sustentabilidade produtiva para superar questões como baixa viabilidade técnica, dificuldades de origem ambiental e acessibilidade.
Conforme coloca Kliksberg (1999), no que tange aos melhores resultados advindos da gestão que contempla a participação, eles provém de ações que trabalham com metas e suprametas que relacionam uso ótimo dos recursos, equidade, sustentabilidade e estímulo à capacitação, e nestes aspectos o PCPR tem deixado a desejar. O Projeto tem apresentado grandes hiatos entre a proposta e seus resultados, aspectos que devem ser sanados urgentemente se a pretensão é realmente provocar uma mudança na qualidade de vida dos beneficiários para a superação da pobreza. As principais falhas concernem aos seguintes aspectos:

  1. O reduzido número de técnicos atuando no nível microrregional os impõe um ritmo excessivo de trabalho, impedindo assegurar uma ação sinergética entre os agentes e as comunidades. A rotatividade e falta de promoção de carreira dos mesmos também os desestimula conhecer mais a realidade das comunidades e tomá-la para si.
  2. A falta de maior interatividade entre instituição e beneficiários faz perdurar deficiências no acesso a informação por certas comunidades em relação aos recursos e outras questões técnicas às quais o IDENE poderia contribuir a solucionar; e os subprojetos acabam ficando a mercê da força dos interesses políticos de prefeituras e outras instituições.
  3. O diagnóstico feito nas comunidades não tem sido devidamente explorado para evitar que os projetos, depois de implantados, mantenham-se inconclusos, sem atender os fins que prescreve. Do mesmo modo, falta à instituição aceitar a complexidade dos subprojetos produtivos e complexificar o programa ao mesmo nível para atingir melhores resultados.
  4. Por fim, falta ao IDENE operacionalizar efetivamente o capital social, de modo a estimular as comunidades utilizarem seu potencial para além dos laços locais. Isto é, falta instigar a coletividade a superar a descrença no poder de cooperação, promovendo a organização e articulação de redes; aspectos que podem levar à agregação de associações, a se evitar a concorrência improdutiva intra e intercomunitárias e, mesmo, aumentar o poder de barganha em mercados maiores.

Até onde fora visto, o tipo de participação social promovido pelo Projeto, bem como o alcance dos seus resultados, denotam mais intenção que efetividade. Isto é, o desenvolvimento socioeconômico a partir da gestão participativa que o IDENE se propõe a estimular está muito aquém do que pode proporcionar. Para que a instituição supere o tecnocratismo do passado em busca de um status de agência empoderadora é necessária uma profunda crítica, pois a tentativa de fortalecimento das comunidades por meio do PCPR tem sido estrangulada por toda uma série de fatores aos quais o IDENE pode contribuir a solucionar. Assim, pode-se dizer que a instituição está oferecendo menos do que pode proporcionar e exigindo menos do que pode receber, tanto das instituições que lhe são parceiras quanto das próprias comunidades.
O IDENE tem o bônus de oferecer um suporte estrutural que outras instituições não fornecem para as comunidades, mas precisa de outros fatores para melhorar seus resultados. Não basta que se estabeleçam conformações técnicas, que se ofereça estruturação produtiva e gere empregos pontuais. Superar a pobreza não se resume a oferecer estrutura sem promover capacitação e autonomia, pois, como já foi dito, ela não se limita a questões de ordem física e financeira, mas também de capital humano e social. Do contrário, a instituição vai apenas cair na falácia do tecnocratismo de esquerda, que hipervaloriza o formato técnico de sua ação, supostamente democrático-participativo, enquanto omite parte importante dos reais resultados alcançados.
Faz-se necessário gerar forças como estratégia de resistência à condição de pobreza e, neste sentido, a devida operacionalização do capital social, embora não seja a solução de todos os males, torna-se um recurso acessível diante de comunidades desprovidas de tantos outros ativos. Como já foi colocado, a falta de iniciativas de viés associativo reflete a corrosão do espírito público herdado pelo modo como se processaram as políticas públicas ao longo da história do Brasil, mas as comunidades têm formas latentes de capital social que aguardam para serem potencializadas com este propósito. Aguardam para serem canalizadas e redirecionadas para maior participação e responsividade, contribuindo para o estabelecimento de relações favoráveis à autonomia e sustentabilidade das comunidades. O estímulo ao capital social de ponte com outros atores microrregionais possibilitaria o fortalecimento da capacidade de negociação e incubaria atores sociais. Em longo prazo, tais ações podem auxiliar na tomada de iniciativa e promoção de relações em rede, através de sua cristalização nas ações comunitárias e institucionais, estimulando a ação crítica, autônoma, empoderada e mais cidadã.
Deve-se pontuar que o papel do IDENE enquanto agência de desenvolvimento deve ser o de favorecer o capital social ao possibilitar múltiplas condições para sua existência, construídas a partir da participação social. Portanto, é imprescindível que a instituição arranje meios de estimular a transformação dos laços pessoais e comunitários em formas mais abrangentes. Tal iniciativa pressupõe que as comunidades conseguirão alçar alternativas tanto no que tange a fontes de informação quanto na oportunidade de escolhas e tomadas de decisões. Até o momento, o IDENE tem tentado evitar o viés clientelista/paternalista das políticas públicas nacionais, porém, deve reconhecer que este tipo de relação está presente em outras instituições, e que compõe um quadro de externalidades que atrapalham o desempenho do PCPR. Assim, além da aceitação da situação, deve haver também o enfrentamento, que só poderá começar a acontecer através da negociação em situações de rede.
Como fora visto, embora o IDENE pretenda situar-se como agência empoderadora e apoiadora, ela tem estado apenas a meio passo acima do semiclientelismo introjetador e capacitador (vide quadro 1, seção 4.2.1.1): é como se a instituição estivesse aguardando promover o desenvolvimento apenas amenizando as condições que foram agravadas ao longo da história. O PCPR pode vir a se tornar mecanismo de promoção de um desenvolvimento social equitativo e que valorize as potencialidades locais, mas desde que sejam feitas as adaptações necessárias, pois buscar apenas a geração de renda (que sequer tem sido meta atingida) é apenas meio de melhoria de qualidade de vida, e não um fim em si, como já foi exposto. Os subprojetos são frágeis diante das problemáticas existentes e, consequentemente, o Projeto tem-se apresentado limitado. Não basta o desenho de participação, se capacitação, laços de liderança, cooperação, combate ao clientelismo entre outras questões, não fizerem parte das reflexões e ações das políticas públicas.
No Vale, as pessoas continuam migrando, a mão de obra coletiva continua diminuindo e o capital social sendo depredado pela pressão heterônoma. A valorização do pequeno produtor é ainda recente e inexata, tanto quanto o modelo democrático-participativo. Fato é que as instituições são artefatos que se criam sob diferentes coalizões, e há grandes dificuldades em se promover mudanças efetivas; mas o comportamento de transparência e prestação de serviço dos agentes do IDENE faz crer que se possa esperar mais de sua ação. A realidade jequitinhonhesa não demanda mais de meios paliativos, mas, sim, de modificações estruturais que podem começar a ser alcançadas por meio da complexificação do PCPR. Atuando de forma complexa, o Projeto poderá contribuir na capacitação dos beneficiários, na comunhão de redes e, desta forma, na produção de uma transformação, mesmo que gradual, do sistema sociopolítico e econômico vivido no Vale. Embora não baste por si, visto que não se pode ignorar toda a série de fatores externos que se desdobram sobre as localidades, pelo menos poderá munir os atores locais com maiores possibilidades de reagirem autonomamente à pressão heterônoma na tentativa superar sua condição de pobreza.

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Este libro es producto del trabajo desarrollado por un grupo interdisciplinario de investigadores integrantes del Instituto de Investigaciones Socioambientales, Educativas y Humanísticas para el Medio Rural (IISEHMER).
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