DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

DESSACRALIZAÇÃO DO SAGRADO CRISTÃO EM FRIEDRICH NIETZSCHE E RUDOLF OTTO

Graça Auxiliadora Nobre Lopes (CV)
Ione Vilhena Cabral (CV)
Tatiani da Silva Cardoso (CV)
Roberto Carlos Amanajás Pena (CV)

2.1 O Super-homem e a desmistificação do Deus Cristão

O prenúncio de um novo homem, de uma nova dádiva ofertada por, Zaratustra, o profeta do novo tempo da superação do além homem. Ora, o anúncio do super-homem emerge da mais simbólica razão humana, da consciência da sua existência, este é despido da ilusão doentia de esperanças supra-terrestres. É a declaração para que o homem faça e expresse sua vontade, pois a terra está fatigada daqueles que menosprezam a vida, ora seja, o super-homem, fiel a terra. Ademais antes do profeta Zaratustra, os seres só apresentavam alguma coisa superior a si mesmo, Deus. Mas, esta foi superada com a morte de Deus e de todos os princípios laicizados pelo cristianismo.

Afirma Zilles 2009:

“É necessário matar Deus para que o homem possa realizar sua liberdade. A morte de Deus é a aurora de humanidade nova. Para Nietzsche, afirmar que Deus está morto é afirmar uma realidade histórica. A idéia de Deus tornou-se vazia, sem vitalidade alguma no mundo. O que existe são homens e algumas comunidades religiosas. Mas para que ainda igrejas a não ser para serem túmulos e monumentos de Deus?”. (Urbano Zilles, pg. 172)

Nietzsche enfatiza em sua filosofia que “Deus está morto”, e mais que foram os próprios cristãos que o mataram. A partir desta afirmação Nietzsche aponta o maior acontecimento da “história universal” e localiza, assim, o ponto de partida de sua reflexão filosófica. A idéia de Deus agora passa a ser sinônimo de transcendência, de idealidade; Deus era o fundamento e a garantia dos valores universais absolutos como, por exemplo: Belo, Bem, Verdadeiro. Com a morte de Deus o filósofo alemão denuncia os antropomorfismos e as ilusões transcendentes próprias do homem.

Comenta ZILLES 2009:

“Concede que a morte de Deus leva a uma transmutação de todos os valores tradicionais. Agora é viver e inventar valores. Eclipsa a razão, e a moral vai a falência. Restam as ruínas trágicas. O homem moderno torna-se inquieto. O assassino de Deus convulsiona a vida do homem que deverá assumir seu lugar. Repudia a Deus e o substitui pelo super-homem”.   

 

Ao anunciar a morte de Deus Nietzsche está apontando, assim, para o caráter ilusório da transcendência. Com isto, em Assim Falava Zaratustra Nietzsche, ele sugere o além-homem para substituir a divindade morta, onde este por sua vez é capaz de superar o homem decadente. Pois, até o momento, o que se tinha era uma sociedade voltada para a idéia de algo superior a ela, já com o super-homem isso muda e é o homem quem supera a concepção de Deus.  Dessa forma, Nietzsche identifica que poucos são os homens que conseguem alcançar a ideia do super-homem, pois o homem decadente está impregnado dos mitos e dos valores cristãos e não consegue com facilidade desmitificá-los.

“Em outros tempos, blasfemar contra Deus era o maior dos ultrajes, mas Deus morreu e com ele morreram esses blasfemadores. De ora em diante, o crime mais atroz é ultrajar a terra e ter em maior conta as entranhas do insondável do que o sentido da terra! Outrora, a alma olhava o corpo com desdém. Nada era tido em mais alta estima que esse desprezo. A alma queria que o corpo fosse fraco, horrível, consumido de fome. Julgava deste modo libertar-se furtivamente dele e da terra”. (NIETZSCHE, 2008, p. 23)

Neste sentido, o homem era carregado de uma consciência sagrada, onde todas as coisas que existem no mundo são criações consideradas sagradas, onde o corpo encontrava-se prisioneiro da alma. O homem em nenhum momento poderia questionar a existência de Deus, pois estaria negando assim, sua própria existência. Mas, com o super-homem, essa perspectiva muda e com ela tem-se a valorização da transvalorização dos valores.
Assim, o universo proposto pelo profeta Zaratustra o qual o homem está inserido dá lugar aos desejos naturais dos homens, o corpo que antes se via aprisionado aos desejos da alma, se abre para obedecer aos desejos internos. Não existe mais a idéia de céu e inferno criada pelo cristianismo, portanto, o homem nada tem a perder cedendo aos seus desejos. Desse modo, o espírito humano passaria por três metamorfoses citadas na obra Assim falava Zaratustra, o camelo, o leão e a criança.
Na primeira o espírito é semelhante a uma besta de carga que sobrecarrega o espírito com coisas pesadas e passageiras, se retirando para sua solidão o espírito se transforma em leão, despertando o espírito da conquista e liberdade. Este entende que pode alcançar as coisas sem a interferência das divindades, o que se observa nestas passagens de fases onde Nietzsche se refere à própria racionalidade humana, quando esta se torna independente e não mais necessita de Deus para descobrir o sentido das coisas.

“Procura então seu último senhor. Quer ser seu inimigo e de seu último Deus. Para sair vencedor, quer lutar com o grande dragão. Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar senhor nem Deus? “Tu deves”, assim se chama o grande dragão. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. “Tu deves” esbarra-lhe o caminho, resplandecente de ouro, coberto de escamas. E em cada uma de suas escamas brilha em letras douradas “Tu deves”. Valores milenares brilham nessas escamas e o mais poderoso de todos os dragões fala assim: “Em mim brilha o valor de todas as coisas”. Todos os valores já foram criados e eu sou todos os valores. [...] Para criar a própria liberdade e dizer um sagrado não, mesmo perante o dever, para isso, meus irmãos, é preciso o leão”. (Idem, 2008, p 38)

Além do mais é nesta metamorfose que o espírito conquista sua liberdade, não quer simplesmente obedecer ao deveres impostos como ocorria nos séculos passados. Ao contrário, o espírito quer obedecer o “Eu quero” e não mais ao “Tu deves”, antes a razão era submissa aos desejos da alma agora ela sede aos desejos do corpo e à racionalidade. É nesta fase do leão que Nietzsche chama atenção para que o homem possa seguir seus instintos e não mais ser simplesmente um ser aprisionado pelos valores impostos. E por fim, quando o leão se transforma em criança, a qual é afirmação de uma nova criação, o espírito, portanto tem autonomia própria, tem vontade e liberdade.  
Diante desta, perspectiva desencadeada por Nietzsche, o homem na modernidade passa pelo que ele denominou de niilismo, a partir da morte de Deus, esse diagnóstico se dá em função da ausência cada vez maior de Deus no pensamento e nas práticas do mundo Ocidental. O homem é responsável pela perda da confiança em Deus, pela supressão da crença do verdadeiro mundo, e pela dessacralização das coisas sagradas.

“Na verdade, os homens se deram a si próprios todo o bem e todo o mal. Na verdade, não o receberam, não o encontraram, não lhes caiu como uma voz do céu. O homem é que pôs valores nas coisas, a fim de se conservar. Foi ele que deu um sentido as coisas, um sentido humano. Por isso se chama “homem”, isto é, o que avalia. Avaliar é criar. Ouvi, criadores! Avaliar é tesouro e jóia de todas as coisas avaliadas. Pela avaliação se dá o valor. Sem a avaliação, a noz da existência seria oca. Ouvi, criadores! Mudança de valores é mudança de criadores. Sempre destrói apenas aquele que é criador. Os criadores foram primeiramente povos e só mais tarde indivíduos. Na verdade, o próprio individuo é a mais recente das criações”. (Ibidem, 2008, p. 71)

Quando o homem toma consciência de que as coisas existem porque são criações de sua razão, tem-se um rompimento deste com as coisas sagradas. Substituição assim, da teologia pela ciência, onde a idéia de Deus substituída pelo ponto de vista do homem provocou uma ruptura com os valores absolutos, tais como as essências, e o fundamento divino. É nesta perspectiva que se observa que toda verdade a qual se acreditou até o presente não passa de uma de ilusão. Estas considerações se apresentam como característica do niilismo, o esvaziar do fundamento, a dessacralização das coisas definidas como sagradas, a transvalorização dos valores morais.
Assim, com o fim do Deus cristão tem-se como conseqüência o fim da moral cristã estabelecida e de todas as doutrinas impostas e secularizadas pelo cristianismo. O niilismo enquanto transvalorização dos valores faz surgir o niilismo enquanto desvalorização da existência humana. Portanto, a existência passa a ser apenas dor, e dor sem sentido, o homem do niilismo será agora uma consciência infeliz no qual sabe que o mundo, tal como deveria ser, não existe, e sente que o mundo que existe não deveria ser.
Este homem decadente para Nietzsche é aquele que, não é capaz de pensar a sua própria existência e “encarar” a realidade que está a sua volta. A idéia do amor criada como meio de harmonia entre os homens não passa de uma fraqueza humana que limita e oprime aqueles que acreditam na sentença “ame seus inimigos” e tem a compaixão como sinal de virtude. Esse amor é característica dos fracos e decadentes que têm a capacidade de resistir aos seus instintos.

“O que eu condeno nos que sentem a compaixão é o fato desses perderem facilmente o pudor, o respeito, o delicado sentido nas distâncias, porque a compaixão lembra demasiado o cheiro da plebe, assemelhando-se em muito aos modos desabonadores, dando lugar ao que por vezes as mãos piedosas possam ter efeitos demasiados desastrosos sobre um grande destino, sobre feridas não cauterizadas, sobre o privilegio de se suportar uma grave culpa. Entre as virtudes insignes eu coloco a força de superar a compaixão: pus em verso, na “Tentação de Zaratustra”, um caso, no qual, por um clamor angustioso que chega a ele, a compaixão o invade, como uma ultima culpa, desejando que se dedique menos ao culto dos seus princípios”. (NIETZSCHE, 2005, p. 43) 

Desse modo, para Nietzsche a compaixão é considerada uma das piores virtudes do cristão, pois aliena o homem em mundo não real. As coisas que foram criadas pelo homem assim como, o conceito de Deus (alma, virtude, culpa, além, verdade, eternidade) são realidades que não existem, não passam da imaginação de mentes doentias dos cristãos.
Além disso, a compaixão é para os misericordiosos sua felicidade, mas para Zaratustra é desprovida de pudor, sem qualquer caráter moral, na verdade as loucuras da terra foram cometidas pelos compassivos. Tal compassividade culminou na morte de Deus, pois de tanto ter compaixão pelos homens acabou morrendo. Nietzsche aconselha, assim, fugir de tais homens, pois estão destinados a viver em um fracasso na busca do além mundo, sugere ainda, que o homem aproveite ao máximo os prazeres dessa vida, não esperando desfrutar de outra supra-sensível, que não existe, por ser apenas ilusório.    
Portanto, fica clara a posição de Nietzsche com relação à destruição do homem pelo Cristianismo que aliena, escraviza e aprisiona o individuo em labirintos sem saída. A compaixão seria neste caso esta prisão, pois deixa o homem sem opinião própria, além disso, o cristianismo é a promessa de um mundo melhor, sem guerras, conflitos, desigualdades, e todas as formas de anomalias que o próprio homem criou para fugir de si mesmo.
Contudo, somente alcançam a idéia de super-homem aqueles que conseguem fugir desse aprisionamento. Estes seriam os homens de espírito livre porque conseguem chegar a um elevado grau de conhecimento que não se deixam dominar pelas regras e dogmas do cristianismo, concebendo a essência humana como causa última de todas as coisas.