ANÁLISE DOS ASPECTOS DE REPRESENTAÇÃO, AUTO-REAPRESENTAÇÃO, NARRATIVIDADE E MARGINALIDADE NA CRÔNICA BRASILEIRA

Cleber José De Oliveira

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Como se viu no decorrer desta obra, a crônica se formata como um reflexo social de seu tempo. Constrói-se num espaço híbrido entre a realidade e a ficção. Assim, é possível pensá-la enquanto tipo de narrativa que pode cumprir um papel social, um instrumento de formação de consciência crítica sobre as diferentes camadas da realidade. Particularmente, as crônicas analisadas foram produzidas por cronistas que fazem do seu olhar uma espécie de espelho social onde se manifestam desejos, ainda que implícitos, de concretização de uma sociedade mais justa e humana. Vimos ainda, que nas crônicas “Estamos todos no Inferno”, “Rio de Sangue” e” Provocações”, o discurso crítico subverte as relações de poder tradicionais, verticais e monolíticas. Subverte ordens que sempre partiram do colonizador para o colonizado, da elite para o povo, do opressor para o oprimido do centro para a margem. É nesse contexto que o indivíduo marginal toma pra si a capacidade de se auto-representar e, com isso, promove aquilo que Piglia (2004) cunha como sendo o ‘deslocamento do discurso’, ou seja, o discurso se desloca do centro, deixa de ser produzido apenas pelas elites dominantes para ser produzido também pelas margens que buscam uma afirmação ou reafirmação de sua identidade, há muito distorcida pelos discursos dominantes e preconceituosos das elites.
As analises que decorreram ao longo deste livro nos permitiu entrever algumas especificidades da crônica modernista em relação à chamada crônica contemporânea. O exemplo mais gritante é o contraste entre a crônica de José Simão e a de Rubem Braga.
Em Simão vemos, sobretudo, o trocadilho pornográfico, a referência grotesca aos órgãos sexuais, o amalgama entre política e erotismo (que, é fato, não são exclusividade de Simão, mas, como vimos, estão intensamente presentes na sua crônica).  Além disso, Simão afasta de si qualquer vínculo com o literário. O referido vínculo com o literário, que caracteriza a produção de alguns cronistas modernistas, a exemplo Rubem Braga (Cf. CANDIDO, 1981; ARRIGUCCI JR., 1987), se perde. A referência aos grandes nomes da literatura, a ficcionalidade narrativa, o lirismo, dentre outros, parecem estar ausentes de sua crônica. No limite, é preciso perguntar sobre a crônica de Simão se ela é de fato crônica como a concebemos – questão que fica para outra investigação.
Bastante aquém dos limites extremos de Simão está Jabor. Braga e Jabor, em suas crônicas são muito diferentes. Em Braga, salta aos olhos sua preocupação (central para o Modernismo) de inclusão social. Seja do ponto de vista do conteúdo, seja do ponto de vista do interlocutor, seja na configuração do enunciador, sempre há uma preocupação em trazer o outro para dentro da crônica de modo insistente. No conteúdo, Braga está sempre falando de um povo ideal. Um padeiro, com sua humildade, ou um leitor comum que fala um português cotidiano e não o português elitista de certos gramáticos. Nas metáforas de Braga, um canário que, de repente, canta é imagem de um povo que se alegra com sua princesa.  Para, além disso, nos seus textos o leitor é construído como co-escritor – sinal do valor que o autor dá a esse leitor. Dentro dos textos, as marcas textuais que indicam a presença desse leitor são recorrentes. Braga evoca, aliás, com insistência, a participação do leitor, nomeando-o, ou trazendo seu discurso marcado por aspas. O esforço de comunicação é enorme. Braga, ao modo dos modernistas, e na esteira das lições de Mário de Andrade e Graciliano Ramos, dentre outros, quer fazer de seu texto uma espécie de reflexo da utopia de uma nação em que pobres e ricos, negros, índios e brancos, etc, viveriam como iguais na sociedade brasileira.
Nesse sentido, ao se construir como enunciador dentro de suas crônicas, Braga quer passar a idéia de que é uma espécie de mediador. Media a relação entre povo e elite, media a relação entre leitor comum e literatura erudita. Sua crônica é gênero que está a serviço da constituição da nação assim como o escritor de crônica parece ter função social semelhante. Há em Braga um otimismo quanto ao presente e, sobretudo, quanto ao futuro. Um otimismo que reflete o auge da coesão do projeto modernista de integração entre povo e elite.
Jabor não procede assim. Se em Braga temos um cronista que se esforça por conversar com seu leitor, em Jabor o que transparece é uma espécie de solidão melancólica. De resto, falta pouco para que Jabor manifeste seu asco pelo leitor que o lê. Suas crônicas, entretanto, se sucedem como textos que lamentam o presente como momento de dissolução da vida verdadeira, aquela que corresponde aos anos em que o escritor foi jovem, isto é, os anos 50 e 60, momento do auge da utopia modernista. Se em Braga há aquela função de levar beleza e encanto ao povo, de buscar beleza e encanto nesse mesmo povo, Jabor se mostra distanciado desse povo. De resto, ainda que evoque esse ou aquele “leitor” dentro do texto, isso é uma considerável exceção. A incomunicabilidade é recorrente entre Jabor e seu leitor. No limite, o mundo parece intangível para Jabor. Numa crônica sobre a mulher, o cronista desiste de tentar conhecer esse ser, “a mulher”.
 O literário está ali, entretanto, aparece, como em Braga, como sinal ostensivo do “literário”, como marca de literatura em si. Nesse sentido, cita-se aqui e ali esse ou aquele autor, faz-se aqui e ali uma referência erudita para que se evoque ou se permita uma alusão ao “literário”. Em todo caso, como vimos na crônica que fala sobre o incêndio da UNE, “1964 o sonho e pesadelo”, Jabor se permite colocar em questão a linguagem jornalística e mesclar presente e passado. Aqui, ponto auto de sua crônica, aquilo que podemos entrever como sendo linguagem literária se manifesta. Isto é, uma linguagem em que as regras e fronteiras do discurso referencial permitindo que objeto e sujeito se integrem. Nesse ponto, Jabor deixa entrever seu uso do passado. Para ele o passado serve como um conjunto de categorias para que se possa fazer o cotejo com o presente. Como vimos, o presente sempre sai perdendo nesse caso. Nesse ponto Jabor se distancia enormemente de Simão e vai buscar refúgio em procedimentos literários que se pode encontrar em muitos autores. Nesses termos, Jabor pode ser considerado um modernista tardio (aspecto que talvez mereça melhor análise no futuro), devido a sua explicita admiração e nostalgia ao projeto modernista de nação brasileira. Vimos o quanto é recorrente em Jabor certa amargura em relação a um presente que parece deterioração do mundo em que as relações de comunicação literárias típicas do modernismo eram a regra do gênero crônica.
            Apresentei ainda algumas reflexões a cerca do narrador pós-moderno de Silviano Santiago. Vimos, que este narrador se, na sociedade contemporânea, pela fragmentação da narrativa e de seu descentramento. Isto decorre da possibilidade do narrador, na pós-modernidade, não mais precisar partir de uma situação vivida por ele, colocando assim o ato de observar como sendo essencial ao narrador. Devendo, este, ser um observador nato. Além disso, esboçamos que a crônica “Provocações” de Luis Fernando Veríssimo pode ser tomada como um exemplo de texto que apresenta aspectos do narrador pós-moderno, isso em relação à crônica modernista “O padeiro” de Rubem Braga. Com isso, evidência uma nova perspectiva de estudo da crônica como gênero.         Reiterando uma afirmação já feita, a questão do narrador pós-moderno na crônica contemporânea brasileira não se encerra em nenhuma definição fechada e definitiva. Ao contrário, é um fenômeno aberto a muitas interpretações e se apresenta sob múltiplas formas. Este estudo pretendeu apenas explorar algumas delas.

             Por fim, evidenciamos que a sociedade contemporânea deve apreender a vivenciar múltiplos contextos e linguagens e a conviver com múltiplas subjetividades humanas, sem pretender reduzir a multiplicidade ao hegemônico e construir, no diálogo, novos territórios a partir dos entre-lugares, dos inter-contextos e dos inter-textos, enriquecendo a configuração de singularidades em meio às pluralidades. Dessa maneira, na sociedade pós-moderna é um equivoco pensar num núcleo fechado de produção literária. Não há mais verticalidades absolutas. É na horizontalidade que se manifestam, de forma valorosa, as diferenças. Portanto, o marginal hoje reclama algo que há muito lhe foi negado – o direito de se auto-representar, seja na vida cotidiana, seja na literatura.

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