AS NUANCES DO ATUAL PROCESSO DE INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA DO SUL: RELAÇÃO DE FORÇAS DO ESTADO E ENTRE OS ESTADOS

Roberto Mauro da Silva Fernandes
Adauto de Oliveira Souza

1.4 O CONTRA-SENSO ENTRE A RETÓRICA E A REALIDADE

Na tentativa de resolver seus problemas internos os Estados Unidos realizaram uma manobra política e econômica que consistiu em exportar sua crise, ação que ensejou uma nova divisão internacional do trabalho. A crise norte-americana caminha paralela ao contexto de crises econômicas que passam a desenhar os caminhos do mundo a partir da década de 70.
Depois de 1973 a pobreza, o desemprego em massa, a miséria, a instabilidade, reapareceram em grandes proporções em várias partes do planeta, conjuntura inimaginável para as populações, governos e economistas, que desfrutavam das benesses políticas, econômicas e sociais surgidas na “Era de Ouro”. Como demonstrou Hobsbawm (1995), no mundo pós-“Era de Ouro”:
O crescimento foi, mais uma vez, interrompido por várias depressões sérias, distintas das “recessões menores”, em 1974-7, 1980-2 e no fim da década de 80. O desemprego na Europa Ocidental subiu de uma média de 1,5% na década de 1960 para 4,2% na de 1970. No auge do boom  em fins da década de 1980, estava numa média de 9,2% na Comunidade Européia, em 1993, 11%. [...] Quanto a pobreza e a miséria, na década de 1980 muitos dos países mais ricos e desenvolvidos se viram outra vez acostumando-se com a visão diária de mendigos nas ruas, e mesmo com o espetáculo mais chocante de desabrigados protegendo-se em vãos de portas de caixas de papelão, quando não eram recolhidos pela polícia. Em qualquer noite de 1993 em Nova York, 23 mil homens e mulheres dormiam na rua ou em abrigos públicos, uma pequena parte dos 3% da população da cidade que não tinha tido, num ou outro momento dos últimos cinco anos, um teto sobre a cabeça (HOBSBAWM, 1995, p.396).
  
O contexto de crise social era absoluto, atingindo, sobretudo, as principais economias do planeta, essa conjuntura logicamente incidiu sobre os países da periferia que passariam a vivenciar a partir da década de 80, uma realidade caracterizada por uma grande quantidade de políticas monetárias e cambiais que acentuariam os problemas domésticos dos Estados.
Na América Latina, por exemplo, a crise mundial corroborada pelos choques do petróleo em 1973 e 1979 ensejou práticas econômicas que incidiram no campo político, transformando o contexto de “governos de exceção” (em alguns casos, que ascenderam nos anos anteriores aos períodos de crise). Práticas que foram precursoras das primeiras ações no âmbito neoliberal que mais tarde viriam a se transformar nas principais regras de conduta econômica da América do Sul no final da década de 80 e início de 90.
Segundo Luiz Fernando Sanná Pinto foi o governo de Ronald Reagan, o centro desencadeador do projeto neoliberal. A economia norte-americana preconizou esse papel pela importância que possuía na economia mundial. Em 1981 o governo Reagan criou uma política que diminuiu os impostos e aumentou os gastos militares, gerando grande déficit fiscal. Assim, com esses déficits a administração daquele governo optou por aumentar ainda mais as taxas de juros, dessa forma, atraindo capitais de outras partes do mundo, financiando sua dívida:
Para garantir as condições para o crescimento econômico que advogava, Reagan diminuiu enormemente os impostos sobre as rendas mais altas e cortou muito dos gastos sociais do Estado, o que foi combinado com um aumento colossal dos gastos militares baseados na mais alta tecnologia, justificados pelo clima da Segunda Guerra fria. Isso aumentou ainda mais o déficit fiscal dos Estados Unidos, o que se manifestou em função da enorme quantidade de recursos aplicados nos setores improdutivos e indiretamente produtivos ligados ao Pentágono e suas economias externas, em uma elevação da renda da mão-de-obra altamente qualificada que tal expansão exigia, com seus efeitos secundários aquecendo a demanda externa de certos produtos e serviços (PINTO, 2008, p.60).
 
Não vamos discutir porque tal política foi possível, mas é importante verificar que o programa neoliberal dos Estados Unidos, implantado no início da década de 80, caracterizou-se por políticas de juros elevados e de quebra de direitos trabalhistas. Pinto (2008) também ressalta que o Estado não diminuiu seu papel na economia, “apenas substituiu gastos sociais por gastos militares e financeiros. Ao mesmo tempo, não houve redução do protecionismo [...] medidas tarifárias foram substituídas por medidas não-tarifárias” (PINTO, 2008, p.58). Observação convergente as análises de Eric Hobsbawm:
O maior dos regimes neoliberais, os EUA do presidente Reagan, embora oficialmente dedicado ao conservadorismo fiscal (isto é, orçamentos equilibrados) e ao “monetarismo” de Milton Friedman, na verdade usou métodos Keynesianos para sair da depressão de 1979-82, entrando num déficit gigantesco e empenhando-se de modo igualmente gigantesco a aumentar seus armamentos (HOBSBAWM, 1995, p.402).
 
Percebemos partir dessas observações que ocorria um contra-senso entre a retórica e a realidade. Segundo as palavras do presidente Reagan, “o governo não era a solução, mas problema” (Hobsbawm, 1995, p.401). Tal retórica defendia a tese de que a intervenção do governo, havia se tornado ineficiente, mas, em contrapartida, esse mesmo governo atuava diretamente em alguns setores do Estado norte-americano, enquanto pregava a não-intervenção no plano internacional. Theotônio dos Santos analisou essa conjuntura da seguinte forma:
Estávamos, assim, diante de um aparente contra-senso: um governo anti-socialista aumentava drasticamente o planejamento centralizado da economia, embutido dentro dos gastos militares. Ao mesmo tempo um governo ultra-liberal, para sustentar essa política, gerava o maior déficit do tesouro, jamais imaginando pelos audazes neokeynesianos (SANTOS, 2004 (c), p.170).

Mas, esse contra-senso entre a defesa de políticas neoliberais no plano exterior e a prática de políticas econômicas planejadas pelo governo no ambiente interno, não se resumia somente aos Estados Unidos, os regimes mais comprometidos com a economia de laissez-faire eram também “profundamente nacionalistas e desconfiados com o mundo externo” (HOBSBAWM, 1995, p.402).
A implantação das políticas neoliberais, apesar da retórica do “Estado Mínimo” que as apoiou, não diminuiu a participação do governo dos países centrais em relação à intervenção econômica e ao planejamento. Pelo contrário, aumentou cada vez mais sua participação na medida em que os juros altos pesaram sobre as dívidas públicas:
Entre os 7 grandes países [ Estados Unidos , Reino Unido, Japão, Alemanha, França, Itália e Canadá], a participação da dívida pública bruta no PIB aumenta de uma média de 36,8% em 1973 para 43,2% em 1980, 55,5% em 1985, 59,5% em 1990 e 67,3% em 1994. Em aparente paradoxo, este foi o período sob hegemonia conservadora. Foram os anos de triunfo do pensamento neoliberal quando se cortaram drasticamente os gastos sociais na maior parte desses países (SANTOS, 2004 (c), p.104).

O paradoxo citado, pautado pela transferência dos recursos destinados aos gastos sociais para o pagamento das dívidas públicas das principais economias do mundo e pelas práticas do modelo neoliberal de abertura econômica para os países periféricos, atingiu o segundo bloco incidindo sobre os seus ambientes domésticos, principalmente, no campo político.
A reviravolta econômica do planeta a partir da década de 1970 e que levou a instalação das políticas neoliberais nos anos 80, foi impactante para a América Latina, principalmente, do ponto de vista da política externa hemisférica do governo Reagan, que como conseqüência “endureceu” os regimes políticos na América Central e no Caribe e abrandou os regimes de exceção na América do Sul.
Segundo Pinto (2008, p.125), “a administração Reagan1 passou a atuar de maneira muito dura com relação à América Central e o Caribe”. A década de 80, essas áreas ficaram marcadas pelo jogo de forças entre movimentos que almejavam a sua desvinculação política e econômica em relação aos Estados Unidos e este último na tentativa de manter suas posições nestas:
Reagan ordenou a invasão de Granada, em 1983, lançou uma “guerra de baixa intensidade” contra o governo revolucionário da Nicarágua e as guerrilhas de El Salvador e pressionou fortemente o governo de Michel Manley, da Jamaica, bem como o governo panamenho, sobretudo por conta da questão do Canal do Panamá, que em poucos anos não deveria mais ser controlado pelos EUA (PINTO, 2008, p.126).
        
As forças progressistas e revolucionárias foram impulsionadas pela crise econômica de 1979-83 que atingiu a região, alavancando os processos que tinham por objetivo as reorientações políticas para os Estados envolvidos. A América do Sul, assim como a América Central, vivia naquele período de crise econômica e da implantação das primeiras políticas neoliberais, um contexto conturbado, paralelo a um momento de redemocratização.
A crise econômica mundial que desencadeou retóricas e práticas neoliberais, na década 80, reorientaram o quadro político sul-americano, os “Estados de exceção”, as ditaduras militares, vão ser extintas gradualmente, desdobramento das intensas pressões populares e dos grupos ligados as mesmas, que enxergavam na redemocratização a criação de reformas sociais amplas, como também, a democracia passava a ser importante para os Estados Unidos e as demais economias centrais, pois viam na mesma um instrumento para fortalecer os partidos e as forças políticas defensoras dos projetos econômicos mais liberais, ou seja, neoliberais (PINTO, 2008, p.128).
Em meio à conjuntura, caracterizada pelos interesses daqueles que compunham os diferentes aparelhos dos Estados orientados por governos ditatoriais (ansiosos pela resolução dos problemas econômicos e sociais ensejados pela “crise da dívida”) e pelas necessidades políticas e econômicas das economias centrais (principalmente dos Estados Unidos) em expandir o projeto neoliberal, desenrolou-se o processo de redemocratização na América do Sul.
As crises do sistema econômico mundial, que conseqüentemente enfraqueceu as estruturas políticas e econômicas dos regimes autoritários, levaram os Estados Sul-Americanos a crises no plano doméstico e externo. Assim, os governos civis no continente foram ocorrendo em efeito cascata, com a Argentina (1983), Uruguai (1985), Brasil (1986), Paraguai (1989), Bolívia (1989), todos esses países no ano de 1989 passaram por eleições presidenciais, o Chile retornou à democracia em 1990.
Todos esses Estados estavam atrelados as mazelas da “crise da divida”, como também sentiam os efeitos da chamada “Década Perdida”, embora, sentidos de forma diferenciada. A conjuntura desastrosa pautada por crises fiscais e problemas econômicos conduz os países Sul-Americanos para o caminho da integração, sendo o MERCOSUL o primeiro ensejo integracionista. De acordo com Silva (2010) o entendimento entre Brasil e Argentina, surge a partir da decisão dos presidentes Alfonsín e Sarney em 1985, de formar um mercado comum entre os dois países num prazo de dez anos. O autor também afirma que: “[...] O Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento foi firmado em 1988 e, em 1990, através da Ata de Buenos Aires, o prazo para a formação do Mercado Comum foi reduzido para quatro anos” (SILVA, 2010 (b), p.318).
O governo Collor (1990-1992) acelerou o processo de integração entre Brasil e Argentina, processo que culminou com a assinatura do Tratado de Assunção em maio de 1991, e incluiu Paraguai e Uruguai, criando o MERCOSUL. O objetivo dos governos Collor e Menem era fazer o novo bloco ingressar rapidamente no mundo globalizado.  Assim, liderados por Brasil e Argentina, o demais países inclinaram-se as práticas neoliberais, concomitantemente ao processo de integração.
O projeto de integração da América do Sul possui sua gênese a partir das crises ocorridas na estrutura econômica internacional, sobretudo, da crise estadunidense, que mudaram as orientações políticas e alavancaram novas diretrizes para o plano econômico mundial e, subitamente para a América do Sul. Dessa forma, os processos transnacionais foram importantes (como ainda são) para o estabelecimento dos novos rumos do continente. A crise norte-americana ao ser exportada preconizou o estabelecimento das retóricas e das práticas neoliberais, que, em parte, colaborou para a institucionalização do processo de integração da América do Sul, via MERCOSUL, que apesar de um início meramente “comercialista”, cujo objetivo foi remover barreiras tarifárias e não-tarifárias, tornou-se no pós-crises da década de 90 o principal pilar da integração sul-americana.
 A América do Sul que no início do século XXI passou por processos políticos, sociais e econômicos, impulsionados pelas conjunturas de um contexto global despolarizado, extremamente influenciado pela globalização e nuances dos movimentos de transnacionalização da economia. O continente sul-americano nos dez primeiros do novo século sentiu inexoravelmente as influências de uma Ordem Mundial em transição, que indefinida, enseja a alguns sujeitos novos papéis e, acima de tudo, práticas contundentes.
     


1 É preciso ressaltar que esses acontecimentos foram respaldados pela análise conservadora do Comitê de Santa Fé, que via uma suposta penetração soviética no interior da região durante o governo liberal Carter.  Esse Comitê originou quatro relatórios na década de 80 (por isso é também conhecido como Documentos de Santa Fé), que apresentavam a necessidade de reforçar a segurança na América Latina, aparecendo pela primeira vez o conceito de conflito de baixa intensidade, críticas ao estatismo Latino-Americano, como também, as primeiras análises que afirmavam a relação de alguns países Americanos com o narcotráfico (Nicarágua, Cuba e Colômbia). O Comitê de Santa Fé, também influenciou a política externa dos governos Bush pai e filho (SILVA, 2010 (a), p.7)    

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