AS NUANCES DO ATUAL PROCESSO DE INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA DO SUL: RELAÇÃO DE FORÇAS DO ESTADO E ENTRE OS ESTADOS

Roberto Mauro da Silva Fernandes
Adauto de Oliveira Souza

ENTRE A GEOPOLÍTICA E A INTEGRAÇÃO: o Território Boliviano, um eterno prisioneiro Geopolítico? Qual o seu papel na América do Sul?

 Ao longo dos anos muitos teóricos, principalmente os militares brasileiros, convergem em dizer que a Bolívia consiste em ser o “heartland” sul-americano, transpondo para o continente as posições teóricas que Halford Mackinder elaborou em 1904 para o cenário da corrida hegemônica mundial (SILVEIRA, 2009, p.254).  De acordo com a teoria do Poder Terrestre do geógrafo britânico, o controle do mundo seria ensejado a partir do domínio de um determinado espaço terrestre no coração do Velho Mundo, denominado pelo mesmo de “ilha mundial”. Nessa ilha havia uma área central localizada entre a Europa e a Ásia e nela a região geoestratégica ou heartland, que corresponde a Europa Oriental, o domínio desse espaço permitiria a disseminação do poder daquele que a detivesse.
Para Mackinder (1904) "quem controla o heartland domina a pivot área e quem domina a pivot área controla a "ilha mundial", e quem controla a "ilha mundial" domina o mundo". No ponto de vista de Halford Mackinder essa área pivô ou coração continental (heartland), era o Império Russo e suas virtualidades, que segundo o autor, constituía-se num novo pólo de poder mundial e deveria ser levado em consideração:
Tem existido e existem nessa zona as condições de uma mobilidade de poder militar e econômico que tem um caráter transcendentes e, sem dúvida, ilimitado. A Rússia repõe o Império Mongol. Sua pressão sobre a Finlândia, Escandinávia, Polônia, Turquia, Pérsia, a Índia e a China recoloca os ataques centrífugos dos homens das estepes. Ocupa no mundo a mesma posição estratégica central que ocupa a Alemanha na Europa. Pode atacar por todos os lados e pode também ser atacada por todos os lados, exceto pelo norte. O completo desenvolvimento de sua moderna mobilidade ferroviária é simplesmente uma questão de tempo [...] Reconhecendo acertadamente os limites fundamentais de seu poder, seus dirigentes desfizeram-se do Alasca; deve-se isso ao fato de que não possuir nada sobre o mar é para a política russa uma lei tão fundamental como para a Inglaterra é manter o domínio do oceano (MACKINDER, H. J., 1904, p.436).

Observa-se na opinião de Mackinder (1904) que o Império Russo teria condições de expandir o seu poder na escala global, já que na época da exposição de sua tese, não existiam potências continentais de peso em condições geopolíticas similares. A posição geográfica que concederia ao Império Russo sucesso militar, também lhe faria tornar-se, em associação com seus vastos territórios, ferrovias e suas potencialidades econômicas, um “vasto mundo econômico” (MACKINDER, J. H., 1904, p.433).     
Estas proposições Realistas vão ganhar fôlego no contexto sul-americano com a disputa pelo controle regional entre Brasil e Argentina durante todo o século XX, a transposição da teoria do poder terrestre para o espaço sul-americano se explica porque, principalmente, no Brasil, na Argentina e Chile, como em outros países da América Latina, “‘importou-se’ prontamente e exclusivamente a geopolítica, desde os seus primeiros movimentos na Europa” (COSTA, 1992, p.186).
Shiguenoli Miyamoto em 1981 e Leonel Mello em 1985 em suas respectivas teses, O pensamento geopolítico brasileiro (1920-1980) e Do discurso triunfalista ao pragmatismo ecumênico (Geopolítica e política externa do Brasil Pós-64), identificam fortes influências de Ratzel, Kjéllen, Mackinder e Spykman, nos estudos de Backheuser, Travassos, L.Rodrigues e Golbery, e entre os muitos outros que internalizaram as respectivas teorias e métodos no contexto sul-americano.
Dessa forma, a teoria do poder terrestre de Mackinder, na América do Sul vai ganhar grande aplicação a partir das proposições de Mario Travassos. Mello (1985) aponta a evidente influência de Mackinder na tese deste militar brasileiro:
No campo intelectual, a geopolítica de Travassos sofreu uma influência determinante de Mackinder, com sua teoria sobre o poder terrestre. Essa teoria foi reelaborada e aplicada de forma criadora às condições peculiares do continente sul-americano, com o planalto boliviano assumindo o papel de área-chave com importância análoga à do “heartland” euroasiático. Para Travassos, o controle da Bolívia, região pivô do continente, outorgaria ao Brasil o domínio político-econômico sul-americano (MELLO, 1985, p. 73).

O esquema de Mario Travassos baseava-se na posição do território brasileiro no continente sul-americano, marcado, como afirmou, por dois antagonismos: o Atlântico versus o Pacífico (COSTA, 1992, p.203). Tal proposição teórica estava essencialmente assentada na natureza geográfica do território brasileiro, mas que determinavam os resultantes geopolíticos pautados nas políticas de expansão das áreas de influência dos dois principais Estados do continente (Brasil e Argentina), que em sua opinião, resultaria numa inevitável disputa hegemônica.
Para Mario Travassos a política de comunicações platina, engendrada pela Argentina, naturalmente levava-a a se expandir militar, política e econômica para as terras a montante do Prata, estendendo seu domínio até o Pacífico e aos limites da Bacia Amazônica:
Como se vê, Buenos Aires está ligada, diretamente, por estrada de ferro, com as capitais de três países limítrofes. Com assunção, dobrando via fluvial, e, de passagem, assegurando o contato (Concórdia-Salta), entre as redes argentina e uruguaia. Com Santiago (e Valparíso) por meio da via férrea de montanha que vincula a riqueza andina com o Atlântico. Com La Paz, pela soldagem em Tupiza, da via argentina com as linhas bolivianas, após seus trilhos percorrerem até La Quiaca a bagatela de 1.795 km (TRAVASSOS, 1947, p.55).

O autor assim sintetizava a sua preocupação ao demonstrar a dianteira da Argentina na corrida, através da projeção ferroviária que atraía para o Prata a economia do “heartland” sul-americano. As preocupações de Mario Travassos se davam, principalmente, com a articulação terrestre Buenos Aires-La Paz, pois esta extensão da influência argentina sobre a zona de transição entre os dois antagonismos dava aos mesmos o controle do “heartland” da América do Sul (COSTA, 1992, p. 204).
Mario Travassos também propôs que o coração sul-americano encontrava-se no triângulo econômico Cochabamba-Santa Cruz de la Sierra-Sucre. Brasil e Argentina decidiriam a disputa pela supremacia no subcontinente a partir da conquista dessa área, que segundo o autor, encontrava-se estrategicamente posicionada entre os sistemas amazônico e platino, num excelente eixo de articulação com o Atlântico (SILVEIRA, 2009, p.654).
Essa teoria influenciou uma geração posterior de militares, geógrafos, cientistas políticos, enfim, aqueles que viveram as conjunturas política, econômica e militar na América do Sul durante as décadas subseqüentes, convergindo e/ou ampliando as teses de Travassos.
O general Golbery, por exemplo, sugere como estratégia para conter o avanço argentino ao “heartland” de Travassos (Bolívia), “a vitalização e integração do ecumênico nacional, do Centro-Oeste brasileiro, especialmente o Mato Grosso, placa-giratória, superiormente situada nas cabeceiras comuns das duas grandes bacias hidrográficas (COSTA E SILVA, 1981, p. 58). O autor ainda enfatizava que essa área seria fundamental para fazer-se valer a dinâmica geopolítica brasileira.
Devemos também destacar as concepções de Domingo Laino acerca do avanço brasileiro sobre as fronteiras dos seus vizinhos sul-americanos na década de setenta, destacando as investidas do Brasil em direção a Santa Cruz de La Sierra e as jazidas de Mutún, situada na Zona de Fronteira, na qual se localizam os municípios brasileiros de Corumbá/MS e Ladário/MS e os municípios bolivianos de Puerto Quijarro e Puerto Suarez, com o suposto objetivo de se apossar do triângulo geopolítico Santa Cruz-Cochabamba- Sucre:
Em conseqüência, a estratégia brasileira consiste em ocupar esse triângulo geopolítico. Com prejuízo de quem se pergunta? É obvio que com prejuízo de uma potência mais próxima. Sufocar qualquer tentativa de desenvolvimento da segunda potência da América Latina para serem eles os dominadores (LAINO, 1979, p.54).

Esta e as outras teorias sobre o “heartland” sul-americano remetem a um período em que a geopolítica estava marcada pelas tensões de fronteiras, e os seus principais protagonistas, Brasil e Argentina, articulavam-se no continente, alicerçando suas políticas pelo ponto de vista militar, num contexto histórico que situava a Bolívia como peça de extrema importância para a política expansionista dos dois países, que associavam suas pretensões ao domínio da Bacia Platina.
Mas, o processo conjuntural que conhecemos como Globalização engendrou uma nova realidade econômica, ensejou a criação de blocos econômicos, consolidou os processos de transnacionalização e conseqüentemente criou novos discursos (sobretudo aqueles que pregam a cooperação entre os Estados). Não existia mais, a partir do processo de globalização da economia, o quadro de tensões capitalismo versus socialismo, que tanto sustentou as práticas e as teorias geopolíticas na América do Sul, dessa forma, outros paradigmas viriam a ser criados com o novo contexto.
A retórica de determinados sujeitos e atores (instituições governamentais e de pesquisa, grupos econômicos, classes empresariais, etc.), passou a dar a Bolívia um novo papel no cenário regional.  Depois do fracasso das políticas neoliberais aos moldes do Consenso de Washington, no início do século XXI, e que ocasionou uma reviravolta política no continente, levando forças de centro-esquerda ou progressistas ao governo desses Estados, uma nova conjuntura começava a ser produzida na América do Sul.
O discurso a partir desse novo momento seria outro, o território boliviano e a sua posição geográfica seriam o elo, o grande eixo de integração da América do Sul. Osmar Ramão Galeano de Souza afirma que a Bolívia não é mais um país que pauta sua importância somente como elemento de segurança, de equilíbrio na política da balança do poder, mas, “procura um novo papel dentro do qual se elaboram importantes projetos econômicos para a sub-região, envolvendo aí, a Bacia do Prata, a Região Amazônica, e até o Pacífico” (SOUZA, 2004 (c), p.134). As palavras desse autor retratam bem a nova “função” do território boliviano no contexto sul-americano pós-crises da década de 90.
Para Olic (2005) a localização da Bolívia confere-lhe um importante papel em qualquer projeto de integração regional, seja entre os Andes e o Pacífico ou entre as Bacias Platina e Amazônica. Por sua vez Serafim Carvalho Melo, destaca a importância da Bolívia no que ele denomina de “Centro Oeste Sul-Americano” (Mapa nº 2). Uma região circunscrita em um círculo com centro em Santa Cruz de la Sierra, com 1300 km de raio formado pelo Paraguai, norte da Argentina, norte do Chile, sul do Peru, pelo centro-oeste e noroeste do Brasil e por toda a Bolívia, com uma área de 5.000.000 Km² (MELO, 2005, p.17). Área que seria para o autor o grande centro de integração da América do Sul.

Portanto para Melo (2005) a Bolívia tem papel fundamental nesse processo, “é o único país que faz fronteira com todos os demais na área de estudo, é também por intermédio dela que muitos produtos chegarão aos territórios dos países ao entorno” (MELO, 2005, p. 135).
Assim, o território boliviano não seria mais visto como país a ser “conquistado” para a contenção das investidas geopolíticas de Brasil ou de Argentina. Com a criação da Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul (IIRSA), um dos projetos de integração do continente sul-americano, a Bolívia ganha um “novo” papel e o seu território passou a ser preponderante para a consecução desse projeto.
Dos doze eixos de integração e desenvolvimento da IIRSA, cinco atravessam o território boliviano, são eles o Eixo Peru-Brasil, incluído por pedidos da própria Bolívia, Eixo Orinoco-Amazonas-Prata, Eixo Andino, Eixo Bolívia-Paraguai-Brasil e o Eixo interoceânico Brasil-Bolívia-Peru-Chile (Rodovia Bioceânica). Este último incide diretamente sobre a fronteira Brasil-Bolívia, mais especificamente em Mato Grosso do Sul (UF). Oficialmente, definida como Zona de Fronteira, (BRASIL, 2005 (a), p.153), encontramos a cidade de Corumbá, e sua vizinha Ladário, do lado brasileiro, Puerto Quijarro e Puerto Suarez, do lado boliviano, cidades-gêmeas, territórios contíguos que estão inseridos na dinâmica flexível da fronteira.
Esta zona de fronteira é importante para o escoamento da produção de commodities do agronegócio e da mineração, tanto para o Brasil, quanto para a Bolívia (OLIVEIRA, 2007 (a), p.54), além de passar a ser o principal elo de integração continental, com a construção do corredor rodoviário Bioceânico.  Assim, a referida Zona de Fronteira possui uma condição estratégica no ponto de vista econômico e logístico para o Mato Grosso do Sul e o continente Sul-Americano.
Atestando o fato de a Bolívia ser a “região pivô” do continente (expressão criada por Mackinder em 1904), constituindo-se, segundo os discursos mais recentes, no elo físico entre a América andina e platina, assim para alguns estudiosos, qualquer processo de desenvolvimento que vise à emancipação política, econômica e social do continente, deve se iniciar por esse país (PEREIRA, 2007, p. 18).
Ademais, analisando a Bolívia como “heartland” da América do Sul, observa-se o grau de importância que esta fronteira do Brasil com Bolívia, em Mato Grosso do Sul, possui para a efetivação dos projetos em andamento relacionados ao corredor Bioceânico. Fronteira que possui terminais hidroviários interiores com logística para movimentação de cargas, funcionando como centro de armazenagem quanto como ponto de transferência de mercadorias, com todos os serviços de movimentação multimodal, além do gasoduto Brasil/Bolívia (OLIVEIRA, 2007 (a), p.50).
Destarte, esta Zona de Fronteira circundada pelos principais pólos industriais com mais de um milhão de habitantes: as cidades de Santa Cruz de la Sierra, Cochabamba e La Paz na Bolívia, Assunção no Paraguai, Salta e Tucuman na Argentina, Arequipa no Peru, Campo Grande e Cuiabá no Brasil (MELO, 2005, p.38/9), ou seja, a mesma está inserida no chamado “Centro Oeste Sul-Americano”.
Condição que transforma a Zona de Fronteira em questão em centro de atração de pessoas. É provável que a Rodovia Bioceânica seja ensejadora de um aumento populacional significativo nesta fronteira, em conseqüência da ampliação de relações econômicas, comerciais e estruturais, possibilitado pela construção do modal rodoviário e da realização dos projetos governamentais e privados que tendem a integração e o desenvolvimento regional, principalmente aos que se referem à industrialização.
A Rodovia Bioceânica condiciona esta Zona Fronteiriça como ponto de passagem. Segundo Miranda (2009), a região está inserida no contexto dos “corredores da globalização”, condicionando as cidades que pertencem ao corredor bioceânico, o caráter de “cidades-corredores” para importações e exportações de grandes centros industriais como São Paulo e Santa Cruz de La Sierra.
Devemos destacar que a condição das cidades dessa Zona de Fronteira como “cidades corredores” já era evidente desde a metade da década de oitenta, devido a intensificação das relações comerciais entre São Paulo e Santa Cruz de la Sierra, que passaram a utilizar a rota das cidades fronteiriças para as suas atividades comerciais (OLIVEIRA, 2009 (b), p.36).
Assim, obras executadas no sentido de viabilização da Rodovia Bioceânica têm desencadeado tentativas de instalação de alguns empreendimentos, tanto do lado boliviano, a exemplo do complexo siderúrgico de Mutúm em Puerto Soares, como do lado brasileiro, o pólo minéro-siderúrgico de Corumbá; a implementação da Zona de Processamento de Exportação (ZPE), já criada no Senado brasileiro, assim como, a inserção da cidade do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo federal, em 2007.
Os recentes investimentos da mineradora indiana Jindal Steel & Power, que pretende explorar as jazidas de minério da Morraria de Mutún, localizada na cidade de Puerto Suarez, com reserva estimada em 40 bilhões de toneladas de ferro e manganês, aumentam as expectativas do governo boliviano acerca das novas dinâmicas econômicas que tal projeto pode ensejar para o país. Trata-se de um projeto e ações que evidenciam que a dinâmica fronteiriça poderá ser alterada com os seus importantes desdobramentos neste espaço fronteiriço.
 O acordo Bolívia e Jindal Steel prevê a construção de uma rodovia transpantaneira que vai ligar Puerto Suarez a Puerto Busch1, na qual a Bolívia pretende escoar a produção de minério de ferro da siderúrgica que vai inaugurar em parceria com a mineradora indiana. Segundo Urt (2008):
Os indianos vão investir US$ 2,1 bilhões na Bolívia e também são responsáveis pela construção da estrada, um projeto ousado,  pois vai passar pelo chaco boliviano, uma região alagada. Estima-se que vão gastar R$ 35 milhões na construção de um terminal de cargas em Puerto Busch e R$ 100 milhões na construção da estrada.  Segundo organograma traçado pelo Ministério de Transportes, a rodovia terá duas etapas – primeiro será construído o trecho Puerto Suarez-Mutún e em seguida Mutún-Puerto Busch (URT, 2008, p.01).

Evo Morales, ao discursar, em Arroyo Concépcion, distrito de Puerto Quijarro a moradores, sindicalistas, empresários, comerciantes da localidade afirmou: “Será nossa maior obra de integração nacional, pois teremos, via rio Paraguai, um caminho para o Oceano Atlântico” (URT, 2008, p.02).
Dessa forma, a Bolívia, por estar geograficamente localizada no centro do continente sul-americano enseja a atração de tais investimentos e seria integradora e facilitadora dos transportes e do comércio entre os países do seu entorno (SAMPAIO, 2008, p.233). Sendo seu território fundamental para o Brasil, já que se figura como a via preferencial para a conexão deste com o Pacífico, ligação que será ensejada, pelo menos no discurso, pelo Eixo Interoceânico (Rota Bioceânica) Brasil-Bolívia-Peru-Chile.
É preciso ressaltar que a rodovia Bioceânica para o governo brasileiro é a materialização de antigos objetivos. Albuquerque (2010) afirma que na atualidade os fundos brasileiros de desenvolvimento regional, que contemplam os projetos de infra-estrutura de transporte, energia e comunicação, não deixam de representar a realização das visões estratégicas de Mario Travassos (ALBUQUERQUE, 2010 (b), p.76).
Travassos (1947) pregava uma estratégia de comunicações para o Brasil que girava em torno da influência brasileira na porção ocidental do continente, que incidiriam nas áreas de contato ao sul com o Uruguai e conseqüentemente a Bacia Platina, e mais ao norte, com os limites setentrionais da Amazônia, política que seria completada com a movimentação do país, cumprindo seu “destino geopolítico”, em direção ao oeste (TRAVASSOS, 1947, p. 244). Daí, no livro Projeção Continental do Brasil, a atenção especial para as vias terrestres de articulação entre o porto de Santos e Santa Cruz de La Sierra.
Lysias Rodrigues na década de 40 também defendia uma política de expansão para o Brasil baseada na criação de uma rede nacional-continental a partir das comunicações por todo o continente sul-americano (incluindo a aérea), com o objetivo de neutralizar possíveis instabilidades fronteiriças, originadas do que o autor denominou de “Punctum Dolens” da América do Sul, sobretudo, em Iguaçu, a tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), na Bolívia, no triângulo geopolítico (Sucre-Cochabamba-Santa Cruz de la Sierra) e em Letícia, com a tríplice fronteira Brasil, Peru, Colômbia (RODRIGUES, 1947 apud COSTA, 1992, p.206).
Assim, alguns setores do Brasil serão um dos que se beneficiarão com a rodovia que atravessa o território boliviano, afinal o Eixo Brasil-Bolívia-Peru-Chile é parte do projeto IIRSA, que preconizada pelo governo brasileiro, possui investimentos advindos do BNDES, além de se constituir na materialização de um antigo projeto geopolítico do Brasil, que no passado nasceu com viés Realista da movimentação brasileira no continente sul-americano e que atualmente também possui o caráter da cooperação, ensejada pela conjuntura da globalização.
Espera-se que com esse projeto integracionista, pautado pela IIRSA (agora parte do COSIPLAN), que resultou na construção da rodovia (“La Carretera”), a Bolívia colha bons resultados. Nesse sentido, somente o fato da empresa indiana (Jindal Steel & Power) assinar com o governo boliviano um acordo que prevê a exploração das jazidas de minério de Mutum, ensejando a possibilidade da criação de um pólo minéro-siderurgico na região de Puerto Suarez, gerando empregos, como também, a construção de um terminal de cargas em Puerto Busch, que pode vir a resolver o problema de insularidade do país, já se constitui num avanço para a Bolívia no que se refere aos seus contatos com o cenário internacional (transnacionalizado), sobretudo, porque a Bolívia foi protagonista de grandes choques político-sociais ao longo desses últimos anos, ficando estigmatizada pela opinião pública internacional como instável.
Os desdobramentos sócio-econômicos desses e outros empreendimentos vão depender da dinâmica do Estado boliviano em agregar valores na sua produção e nas suas articulações políticas no plano regional. Por ora, seus recursos de poder o condiciona a desempenhar seu papel no contexto regional e mundial de forma limitada. Acerca dos recursos de poder é necessário um esclarecimento, em relação à utilização e a posse dos recursos de poder existe a distinção entre o poder potencial e o poder real. Pecequilo (2010) ressalta que:
O poder potencial representa qualquer recurso que exista em estado bruto, não podendo ser utilizado [...] refere-se ao poder que existe, mas que ao não ser transformado em algo prático não agrega valor ou capacidade [...] o poder real é aquele determinado pela capacidade de conversão, sendo passível de utilização para o exercício do domínio ou projeção. Quanto mais eficiente for a conversão de poder potencial em real, maior será a possibilidade de um Estados agir no sistema internacional (PECEQUILO, 2010, p. 57).
 
Mediante a essa definição podemos aferir que a Bolívia é um dos maiores produtores de matérias-primas, vide o exemplo do gás natural e das reservas de ferro e manganês das jazidas de Mutum, porém o processamento destas matérias-primas não é realizado no país, portanto, o Estado boliviano possui um poder potencial que não consegue converter em poder real, permitindo que outros (o caso da Jindal Steel) agreguem valor e consigam domínio a partir de seus recursos.
Quanto aos tipos de poder existe uma distinção entre o hard e o soft and cooptive power , ou seja, respectivamente o poder “duro” e o poder “suave”:
Dentre os recursos de poder que associamos ao hard power encontram-se o tamanho e a geografia de um país, a sua localização e natureza das fronteiras (se são pacíficas ou conflituosas), a população de um Estado, referente a sua organização interna e estabilidade, quantidade e distribuição desta população no espaço, seu caráter e moral nacional (patriotismo), estado de preparação militar, recursos naturais e matérias- primas e, por fim, a capacidade industrial instalada [...] No outro extremo o soft and cooptive power [...] relaciona-se ao poder do convencimento e das idéias, sendo suas principais fontes o desenvolvimento econômico, o conhecimento e tecnologia, a ideologia e cultura. São exemplos de poder soft a flexibilidade, a adaptabilidade, a disseminação de valores, “a coca-cola e o jeans” (PECEQUILO, 2010, pp. 58/9).

 O hard power denota a influência e importância prática de um Estado numa conjuntura específica, a partir dessa concepção teórica que distingue os poderes de um Estado, podemos perceber que a Bolívia, não possui um poder “duro” capaz de ditar regras nem no contexto regional e muito menos no global.
A Bolívia se constitui num dos países mais pobres da América Latina, cerca de 70% de sua população (8 milhões de habitantes) vivem na linha da pobreza e da extrema pobreza, intui-se assim, que em termos numéricos o seu mercado consumidor é relativamente baixo, em relação a sua organização interna e estabilidade, atualmente passa por um processo de reestruturação nas suas bases sociais e políticas.
Recentemente, um presidente de origem indígena foi eleito (Evo Morales), um acontecimento histórico para a Bolívia, devido ao grande número de indígenas no interior de sua sociedade, que levou o Executivo nesses últimos cinco anos a criar mecanismos de rupturas num sistema já pré-estabelecido, caracterizado por largas desvantagens a população indígena e que, de alguma forma, incomoda aqueles que dominam as estruturas de poder no país.
A mobilização do governo Morales no plano doméstico também gerou reflexos, não muito bem aceitos por alguns setores de outros Estados, inclusive do Estado brasileiro, sobretudo, no caso da nacionalização das bases da Petrobrás. A própria institucionalização da folha de coca gerou alguns protestos no âmbito internacional, fato que contribuiu para estigmatizar ainda mais a Bolívia como “instável”, e de certa forma, tal rótulo dificulta a inserção internacional do país, criando barreiras na atração de capitais e investimentos. A capacidade industrial instalada da Bolívia também não contribui para que influencie outros Estados, assim como muitos países da América do Sul, é grande exportador de matérias-primas, não possui um setor industrial que exporta produtos com valor agregado. Assim, seu poder de convencimento (soft Power) no sistema regional e internacional é quase nulo.
Como também é fato que exista um grande desconhecimento sobre a riqueza de sua cultura, podemos citar como exemplo, a idéia de que plantador de coca boliviano é sinônimo de “cocaíneiro”, ou seja, que todo plantador de coca tradicional é traficante de cocaína. Dessa forma, como uma nação que ainda é desconhecida no interior da América do Sul, e na maioria das vezes por parte de meios midiáticos tem seus valores imateriais deturpados, pode influenciar ações de escala regional?   
A Bolívia pode ser classificada como um Estado que possui um Papel local, que atua de forma limitada no cenário regional, mantendo sua soberania, que tenta preservar sua existência política e territorial. Seu território possui grande importância no ponto de vista prático e ideológico no processo de integração da América do Sul via IIRSA. Atua na estrutura Sul-Americana condicionada aos demais países com mais força, aliando-se para obter vantagens políticas e econômicas, como faz em relação ao Brasil. Durante o governo Lula (2003-2010), o apoio ao governo Morales (2006-) foi condicional, apesar de alguns conflitos pontuais envolvendo os dois Estado, não podemos esquecer que a proposta do Brasil é a integração.
Estabelecida a posição da Bolívia num contexto passado e no atual, acreditamos que, apesar de praticamente ser desprovida de recursos de poder, sua contribuição para o processo de integração dar-se-á, obviamente, a partir da “utilização” do seu território, seja no aspecto prático de escoamento da produção de baixo ou alto fluxo dos países Sul-Americanos (como também da produção da própria Bolívia), seja no aspecto ideológico desse processo que visa, primordialmente, reciprocidades de ação entre os Estados do continente.


1 Região que pretende servir para escoar a produção boliviana na Zona de Fronteira do Brasil com a Bolívia, a realização desse projeto pode proporcionar a exportação da produção de minério ou outros bens pripmários a partir de uma instalação portuária boliviana, vindo a resolver sua dependência dos portos localizados ao longo do rio Paraguai, sobretudo, daqueles que se encontram na cidade Ladário/MS no lado brasileiro da fronteira.

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