MERCOSUR Y UNIÓN EUROPEA

MERCOSUR Y UNI?N EUROPEA

Manuel Cienfuegos Mateo y otros

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V. A consagração jurídico-positiva do primado

8. Após o compromisso insatisfatório que conduziu ao Tratado de Nice, decidiu o Conselho Europeu de Laeken, de 15 de Dezembro de 2001, convocar uma Convenção encarregue de formular propostas acerca da estruturação da União Europeia, tanto no contexto de uma Europa alargada como em face dos desafios que se lhe colocam numa nova ordem global. Apesar de não ter recebido um mandato expresso para esse efeito, esta Convenção acabou por adoptar um projecto de Constituição Europeia que, após alguns revezes, acabou por ser assinada, em Outubro de 2004, pelos Estados-Membros45.

Um dos pontos deste projecto que mais polémica gerou foi, precisamente, a consagração expressa do primado do Direito da União Europeia, o qual “saltava” dos arestos do TJCE directamente para o texto do Tratado subscrito pelos Estados-Membros. Pela primeira vez, na História da integração europeia, o princípio do primado obtinha um reconhecimento expresso46. Dispunha o art I-6º do projecto de Constituição Europeia, “a Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União no exercício das competências que lhe são atribuídas primam sobre o direito dos Estados- Membros”. A compreensão deste preceito requer, em primeiro lugar, uma análise do seu âmbito(i), e, seguidamente, uma reflexão sobre a sua natureza, por forma a podermos determinar o seu verdadeiro alcance no domínio do processo de integração europeia(ii).

9. Uma primeira questão que deve ser formulada é a de saber o que quis o projecto realmente abranger quando se refere a “direito dos Estados- Membros”? Estará a fazer alusão apenas ao Direito ordinário interno ou a incluir também o Direito Constitucional dos Estados-Membros? Parece-nos que esta disposição não poderá referirse meramente ao Direito ordinário, pois não seria verosímil que o legislador comunitário fosse consagrar uma norma que representasse um retrocesso face à jurisprudência do TJCE, solução que acarretaria sérios prejuízos para os interesses da União, atentando contra a plena efectividade da sua ordem jurídica. Quanto ao Direito adoptado pelas instituições da União, por um lado, parece abranger todos os actos previstos na projecto(independentemente do seu valor hierárquico), e, também, actos atípicos(desde que produzam efeitos jurídicos), por outro lado, estão incluídos igualmente todos os domínios materiais integrados na esfera da Constituição. De resto, segundo alguns Autores, uma das virtualidades deste preceito seria, precisamente, a de que o princípio do primado, diferentemente do que sucede segundo os Tratados em vigor47, passaria a aplicar-se também às matérias dos segundo e terceiro pilares48. No entanto, a força aparente desta cláusula não tem uma suficiente sustentação nas restantes disposições do projecto49, uma vez que, no que respeita à PESC, não é, praticamente, atribuída jurisdição ao Tribunal de Justiça(art III-376.º, n.º1). O princípio do primado está, assim, condenado, neste domínio, a permanecer letra morta, pois foi precisamente através do mecanismo das questões prejudiciais que o TJCE criou as teorias do primado e do efeito directo50. Ponto de crucial importância na interpretação do art I-6º passa, igualmente, pela dilucidação da expressão “no exercício das competências que lhe são atribuídas”. Extrai-se, assim, claramente desta expressão que o primado actua apenas na esfera de atribuições da União Europeia, não ocorrendo uma subordinação genérica dos actos estaduais ao Direito europeu, daqui decorrendo, pelo menos, que a Constituição Europeia coabita plenamente com as Constituições nacionais51. Porém, esta norma não estabelece quem tem competência para determinar se a legislação europeia foi adoptada ultra vires, pelo que os focos de tensão entre os Tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça tenderão a subsistir52, para além de que a Constituição não confere a este Tribunal o poder de anular ou declarar a invalidade de actos nacionais contrários aos Tratados53, o que faz com que a magna questão da judicial kompetenz-kompetenz permaneça em aberto.

8. Delimitado o âmbito do art I-6º, torna-se agora necessário, tendo em atenção o que foi dito sobre a construção jurisprudencial do primado, as correspondentes reacções dos tribunais nacionais e os fundamentos últimos deste princípio, determinar o verdadeiro significado e importância, para o processo de integração europeia, da inserção deste preceito nos Tratados. Pretenderá esta norma codificar a jurisprudência do TJCE nesta matéria, resolvendo unilateralmente as divergências existentes entre este Tribunal e os Tribunais Constitucionais nacionais, ou apenas arbitrar este conflito mediante a consagração de uma solução intermédia? Elevará a Constituição Europeia o primado a princípio absoluto, procedendo à aniquilação das Constituições nacionais? “Estaremos diante de uma pirâmide normativa de tipo kelseniano? Havendo contradição entre qualquer norma estatal e uma norma europeia, aquela será tida por inválida, insusceptível de produzir efeitos desde a ocorrência da contradição, nula?”54. A este respeito podem divisar-se duas orientações radicalmente opostas.

Para uns, art I-6º “não comporta um nexo estrutural de validade idêntico ou semelhante ao que se produz entre normas situadas dentro do mesmo ordenamento (por exemplo, entre normas constitucionais e normas ordinárias, entre lei e regulamento, entre jus cogens e tratado, entre tratado constitutivo da União Europeia ou de outra entidade internacional e acto dele derivado, ou entre tratado principal e tratado acessório). Falta um elemento genético e fundacional ao Direito da União diante do Direito de cada Estado membro”55. Numa orientação aproximada, também o Conseil Constitutionnel considerou que o princípio do primado, resultante do art I-6º, devia ser lido em conjugação com art I-5º, do qual resulta a obrigatoriedade do respeito, por parte da União, das estruturas políticas e constitucionais dos Estados-Membros, para além de que o projecto, conservando a natureza de Tratado internacional, faria com que esta primazia decorresse do art 88-1 da Constituição francesa56.

Por oposição, há quem entenda que a consagração do primado do Direito da União Europeia, no texto do projecto de Constituição para a Europa, envolve uma aceitação explícita por parte dos Estados-Membros de que as suas Constituição nacionais e os seus Tribunais, cuja vocação é serem considerados a última autoridade de um sistema jurídico, estão por ele limitados, pelo que os Estados deixam de ser os “Senhores dos Tratados”57.

10. Na nossa opinião, já o referimos, a questão chave acerca do primado do direito da União Europeia reside na existência, ou inexistência, de um poder constituinte europeu58. Ora, se a Convenção sobre o futuro da Europa- que levou a cabo a tarefa de elaborar o projecto de Constituição- não se assumiu como um instrumento de manifestação de um poder constituinte europeu59, deve, necessariamente, concluir-se pela impossibilidade do art I-6º poder constituir o reflexo de um primado substancial do Direito da União Europeia60. Como pensamos ter ficado demonstrado, não estão reunidas condições ontológicas que permitam a emergência de um poder constituinte europeu, referindo-se, no próprio preâmbulo do projecto, que tal acto resultava da vontade dos “povos europeus”, para além de que o Tratado Constitucional só entraria em vigor quando ratificado por todos os Estados de acordo com as respectivas normas constitucionais(art IV447.º). Numa perspectiva sistemática, o art I-6º, surgindo logo após o preceito relativo às relações entre a União e os seus Estados-Membros, e no qual se afirma que a União respeita a identidade nacional reflectida nas estruturas constitucionais dos seus Estados-Membros(art I-5º), conjugado com o art I-11º, sobre as competências da União, e no qual está consagrado o princípio das competências por atribuição, confirma a não detenção pela União Europeia da competência das competências, o que faz com que o primado do Direito da União Europeia resulte sempre de uma cedência da vontade estadual e não de um atributo próprio da ordem jurídica comunitária.

Será, no entanto, a consagração jurídico-positiva do primado do Direito da União Europeia totalmente inócua em face da evolução do processo de integração política e jurídica traçado até ao presente momento? A resposta é negativa, quer por estritas razões de ordem prático-jurisprudencial, quer por razões de ordem sistémicosimbólica. Quanto às primeiras, através da sua consagração no Tratado, a autoridade e legitimidade deste princípio são substancialmente reforçadas, podendo o TJCE citar simplesmente este preceito, abandonando a invocação do seu precedente, ao qual subjazem questões complexas de um ponto de vista conceptual, empírico e normativo61. Por outro lado, confere-se a esta cláusula uma função de irreversibilidade, pois, apesar de remota, não é de excluir a possibilidade do TJCE introduzir nuances na interpretação de um princípio que, até ao momento, foi considerado absoluto e incondicional62. Quanto às segundas, estão intimamente ligadas aos fins últimos subjacentes ao projecto de Tratado Constitucional, os quais encerram uma duplicidade teleológica. Numa primeira dimensão este projecto procurou responder aos desafios do alargamento e da nova ordem mundial63, procedendo, nomeadamente, ao redesenhamento das regras de votação por maioria qualificada, abolindo a estrutura dos pilares, estendendo a co-decisão a novas matérias ou alterando o equilíbrio de poderes, entre Estados e a União, em áreas como a política criminal, imigração e asilo, política externa, defesa ou propriedade intelectual64. Porém, na impossibilidade de se alcançar um compromisso que representasse uma ruptura com os Tratados anteriores65, dotou-se projecto de Constituição europeia, adicionalmente, de uma elevada carga sistémico-simbólica66, designadamente através da consagração expressa dos símbolos da União(art I-8.º), da adopção de uma fraseologia estadual- lei europeia, lei-quadro europeia(art I-33.º), Ministro dos Negócios Estrangeiros(art I-28.º), ou do acolhimento de certas disposições de origem jurisprudencial, como a própria designação de Constituição67 ou o princípio do primado, com a expectativa de criação de um terreno propício que possibilitasse ao TJCE alimentar um processo dinâmico e evolutivo68. Deve, assim, reconhecer-se, não obstante o carácter não federal deste art I-6.º, que a consagração expressa do primado, ao contrário de outras criações jurisprudenciais, como o efeito directo ou preempção, que não lograram consagração expressa no projecto, resulta de uma técnica de consciencialização lenta e gradual da supremacia absoluta do Direito Comunitário que se encontra ao serviço de um voluntarismo constituinte69. Em suma, pode, assim, dizer-se que o escopo do art I-6.º é apenas, no universo bidimensional que, segundo WEILER, caracterizava a evolução da teoria do primado70, reforçar (ainda que de forma significativa) a dimensão supranacional deste princípio.

V. O Tratado de Lisboa e o Primado 11. Os chumbos ao Tratado Constitucional, nos referendos que tiveram lugar em França e na Holanda, colocaram um travão definitivo nos processos de ratificação nacionais com vista à entrada em vigor deste texto. Consequentemente, com vista à superação deste impasse, foi aprovado, no Conselho Europeu de 18 e 19 de Outubro, realizado em Lisboa, um Tratado reformador, o qual será assinado, também em Lisboa, pelos 27 Estados-Membros, em Dezembro de 200771.

12. Com o novo Tratado é eliminada a referência expressa ao primado, referindo apenas a Declaração nº 27 anexa ao Tratado, sob o título princípio do primado do direito comunitário, que “A conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, os tratados e o direito da União adoptado com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições referidas na referida jurisprudência”. Qual o significado desta alteração?

Em primeiro lugar, ela tem de ser compreendida no contexto que presidiu ao acordo alcançado, pois os Estados-Membros perceberam que a carga sistémico-simbólica do projecto de Constituição tinha constituído um obstáculo à sua aceitação, pelo que concordaram na eliminação das referências aos símbolos, da fraseologia estadual, referente aos instrumentos e ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, bem como da consagração expressa do primado. Ao invés, os aspectos substanciais desse texto permanecem no novo Tratado, tais como a fusão da União e das Comunidades, a personalidade jurídica da União ou as novas regras de votação.

Conclui-se, portanto, que a grande franqueza da Constituição Europeia residia no facto desta alardear uma força que, na realidade, não possuía, podendo até afirmar-se que a remoção do Tratado do princípio do primado constitui o ponto mais significativo deste recuo.

No entanto, os Estados não quiseram que esta eliminação pudesse ser interpretada como uma renúncia a um princípio fundamental que faz parte do “acquis communautaire”, pelo que decidiram fazerlhe uma referência numa declaração anexa ao Tratado.

13. Qual então o alcance concreto da adopção desta solução? Deve começar por dizer-se que esta alteração é significativa, pois, ao contrário dos protocolos e dos anexos do Tratado(art 36.º do Tratado reformador), as declarações desta natureza não possuem efeitos jurídicos vinculativos73. Estas declarações não integram

formalmente os Tratados, pelo que não estão sujeitas a ratificação e, consequentemente, não podem entrar em vigor nos ordenamentos jurídicos nacionais e comunitário74. Assim sendo, nem o TJCE, nem os tribunais nacionais, podem invocar este princípio contido na declaração, pois ele não pode, por si só, restringir, excluir ou modificar os efeitos jurídicos de normas nacionais contrárias ao Direito da União Europeia. Porém, este recuo dos Estados-Membros é algo paradoxal, pois se, por uma lado, se retira ao primado a força jurídica conferida pelo Tratado, por outro, ao contrário do que sucedia com o art I-6º, que devia ser interpretado em conjugação com o respeito das estruturas políticas e constitucionais dos Estados-Membros, e com o princípio das competências por atribuição, não restam agora dúvidas que o conteúdo do primado é o resultante da jurisprudência do TJCE, que afirmou a supremacia absoluta do Direito Comunitário.

Ora, considerando que esta questão se reveste de uma elevada sensibilidade política, uma declaração expressa, com este conteúdo, por parte dos Estados-Membros, não equivale a uma abdicação total e definitiva da consagração jurídico-positiva do primado, sendo bem possível estar-se a preparar terreno para a conversão de um princípio de soft law em hard law75.

Se terminó de imprimir en abril de 2008 en LERNER EDITORA SRL Duarte Quirós 545, L. 2 y 3, CP 5000, Córdoba, República Argentina