AS RELAÇÕES ARGENTINO-BRASILEIRAS: IDENTIDADE COLETIVA E SUAS IMPLICAÇÕES NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

AS RELA??ES ARGENTINO-BRASILEIRAS: IDENTIDADE COLETIVA E SUAS IMPLICA??ES NO PROCESSO DE CONSTRU??O DO MERCOSUL

Daniela Cristina Comin

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Considerações Finais

A pesquisa das relações entre Argentina e Brasil revelou, em primeiro lugar, que a tradicional rivalidade tão presente nas análises dos estudiosos do tema, é perpassada por ideologias e mitos que foram construídos pelos dois países e foram se enraizando na mentalidade coletiva de suas sociedades. Assim, a rivalidade argentino-brasileira é parte constituinte das identidades dos países, embora, como visto, ela tenha diminuído ao longo do tempo e dos acontecimentos.

Uma análise que se restrinja ao estudo de aspectos materiais, como capacidade militar, econômica, dentre outros, não consegue dar conta de todos os elementos que tiveram influência na construção desta rivalidade. Não se descartou aqui o fato de Argentina e Brasil serem os dois maiores países do subcontinente, sejam em termos econômicos, dimensões territoriais, poder político. A questão é saber como estes elementos eram vistos – ou eram percebidos – pelo “outro”. O estudo do período em que a rivalidade se mostrou mais presente demonstrou que as teorias dos geopolíticos tanto argentinos quanto brasileiros exarcebavam em certa medida a verdadeira ameaça que um representava para o outro.

Verificou-se que a resolução da questão de Itaipu em 1979 contribuiu para a quebra do consenso em relação às teorias geopolíticas que alimentavam a rivalidade. Concomitantemente, o novo contexto internacional apontava que as grandes potências não seriam mais aquelas que detivessem armas nucleares, mas as que possuíssem poder industrial e tecnológico. Além disso, a integração européia mostrava sinais positivos enquanto que a América Latina estava diante do esgotamento do modelo de substituição de importações e de outros problemas econômicos agravados pela crise do petróleo. Este conjunto de fatores fez com que Argentina e Brasil refletissem sobre seus papéis e os papéis do outro que, somado à ascensão de governos democráticos, permitiram uma mudança da cultura de rivalidade para a de amizade.

Assim, a quebra de consensos na Argentina e no Brasil levou os dois países a uma reflexão sobre suas identidades. Concomitantemente, puderam-se verificar práticas por parte do Brasil, como seu apoio à Argentina na Guerra das Malvinas que contribuíram para que a Argentina refletisse a respeito desta atitude de “amizade” e mudasse sua visão em relação ao país vizinho. Além disso, a participação conjunta em fóruns internacionais e encontros bilaterais contribuíram para a construção de consensos em relação aos problemas e desafios comuns. Desta forma, Argentina e Brasil que eram países rivais conseguiram, a partir da interação, mudar suas identidades e constituírem uma nova cultura – a cultura kantina – cujo papel que um ator atribui ao outro é de amigo.

Em outras palavras, os vários acontecimentos do final da década de 1970 e início da década de 1980, conduziram a Argentina e o Brasil a uma reflexão sobre si mesmos e a um colapso sobre certos consensos que sustentavam suas identidades. Consequentemente, as antigas idéias que sustentavam a cultura anárquica lockena, e o papel de rival, foram sendo questionadas em razão da introdução de novas idéias e da construção de novos entendimentos compartilhados. Assim, tais entendimentos que antes sustentavam a cultura lockeana foram sendo substituídos por outros típicos da cultura kantina, na qual o papel predominante é o de amigo.

Contudo, o papel de amigo da cultura kantiana não foi internalizado até o terceiro nível. Ou seja, Argentina e Brasil não se identificavam como amigos de fato, mas agiam como “se fossem” amigos, pois esta postura proporcionava benefícios em termos dos interesses particulares de cada um.

O entendimento comum que predominou na década de 1980 de que Argentina e Brasil ocupavam “um mesmo lugar no mundo” não se verificou na década seguinte. Ambos continuaram respeitando as normas da cultura kantiana – o compromisso de não entrarem em guerra entre si - mas não houve uma identificação do Self com o Other. Não houve a constituição de interesses coletivos, pois a base de cálculo para as ações não era o grupo, mas o Self. Assim, os interesses particulares predominaram e as ações eram tomadas com base na melhor maneira de atingi-los.

A pesquisa mostrou que com a integração criou-se uma maior interdependência entre os dois países, mas esta ficou restrita ao campo econômico não chegando a constituir uma identidade coletiva. Além disso, a Argentina receava em se tornar um mero exportador de produtos primários, ou seja, a interdependência gerava naquele país o que Wendt chama de “medo de ser explorado”.

Por outro lado, nunca houve no caso dos países latino-americanos um grande fato externo, como uma guerra, que configurasse o chamado “destino comum” como existiu no caso europeu. No início da década de 1980, o conjunto de problemas comuns e uma espécie de sentimento de “isolamento no mundo” foram fatores importantes para que a mudança de cultura fosse possível e produziram o entendimento intersubjetivo de que os países da América Latina, e particularmente Argentina e Brasil, tinham um destino comum, mas na década seguinte, com a relativa resolução destes problemas, parece desaparecer esta noção.

Quanto à homogeneidade, embora ambos fossem países democráticos e com regime político presidencialista, esta homogeneidade por si só, não possibilitou a emergência de uma identidade coletiva, mas foi importante no sentido de permitir a aproximação em meados de 1985, pois gerou uma maior confiabilidade entre os países.

Portanto, a passagem da cultura Lockeana para a Kantina possibilitou a construção do Mercosul, mas seus países membros não constituíram uma identidade coletiva e, consequentemente interesses coletivos, visto que a internalização da amizade foi incompleta, ou seja, ocorreu apenas no segundo nível, o que significa dizer, que sua motivação foi um cálculo interessado.

Neste sentido, Argentina e Brasil convergiram em avaliar a integração regional – o Mercosul - como melhor forma de atingir seus interesses. Enquanto para o Brasil o Mercosul tinha, sobretudo importância política, pois garantiria sua influência na região fazendo um contraponto às opções ALCA e NAFTA, para a Argentina, o bloco tinha um interesse principalmente econômico, mas também serviu para balancear suas relações entre Brasil e Estados Unidos e assim obter maiores benefícios.

A convergência em não criar instituições supranacionais está ligada à questão da não internalização completa da cultura kantiana, e, por conseguinte, aos interesses particulares de cada Estado. Ao Brasil não era interessante – e nem necessário - ceder parcela de soberania visto que era o país com maior influência e, portanto, maior poder de barganha. A Argentina, por outro lado, queria ter autonomia na reestruturação de sua economia. Assim, optaram por uma estrutura institucional intergovernamental e também se evitou, de certa forma, uma maior participação da sociedade que poderia influenciar nos rumos da integração. Portanto, embora tenha sido criada empatia entre os negociadores e um sentido de identificação com um projeto comum, este “comum” atendia a interesses particulares, não constituindo uma identidade coletiva em torno do Mercosul o que limitou uma cessão maior de soberania.

Em vista disso, não houve a elaboração de políticas conjuntas para a resolução de problemas comuns. A conseqüência foram medidas unilaterais e desentendimentos que enfraqueceram o bloco politicamente. Além do chamado déficit democrático que de certo modo limitou a legitimação do Mercosul.

Assim, a democratização, a interdependência e a integração não foram fatores suficientes para a consolidação da cultura da amizade, permanecendo uma relação em que o outro tem um sentido estratégico. A internalização completa da cultura da amizade, ou seja, a formação de uma identidade coletiva parece só ser possível quando houver uma maior participação social no processo de integração que permita a criação de um sentimento de pertencimento ao Mercosul, ou seja, de uma identidade mercosulina.

Para Habermas (2001), a criação de um verdadeiro sentimento de solidariedade entre os cidadãos de diferentes países só é possível se primeiramente houver a criação de projetos que produzam uma cultura política comum e que gerem um interesse pela integração primeiramente na esfera pública local.

Portanto, a elaboração de políticas e projetos conjuntos não apenas no campo econômico parecem ser necessários para que haja um maior contato entre Argentina e Brasil e, concomitantemente, se crie novos entendimentos compartilhados que permitam que as relações no âmbito do Mercosul não tenham apenas motivações egoísticas, mas para que se crie um verdadeiro sentido de comunidade, consolidando a cultura da amizade, e eliminando os resquícios de rivalidade que ainda existem nas mentalidades coletivas de argentinos e de brasileiros.