CARLOS GOMES
DECLÍNIO DO SISTEMA COMUNITÁRIO
O sistema comunitário criou e desenvolveu dentro de si as potencialidades e as premissas que conduziram à sua decadência. A produção intensiva de alimentos por iniciativa do homem acaba por conduzir à rotura da partilha comunal. Enquanto que no modo de produção recolector os povos dividiam equitativamente entre si os reduzidos víveres obtidos, a transição para a produção de alimentos começou a abalar esta interdependência e reciprocidade e a substitui-las pela posse individual da maior quantidade de recursos possível. Em regiões, onde o sistema comunitário ainda persistiu por vários milénios, este foi absorvido por populações já integradas noutros sistemas económicos ou dizimado violentamente, sendo raros os casos em que conseguiu subsistir até à actualidade.
O desenvolvimento constante das forças produtivas elevou-se a um nível que permitiu aos povos atingir uma produção superior à indispensável para satisfazer as suas necessidades directas. A conservação e acumulação de excedentes, resultantes da intensificação da produção agrícola e pecuária, não já partilhadas por toda a comunidade mas, pelo contrário, concentradas nas mãos dos chefes tribais, criou as premissas para a sua apropriação coerciva, a acumulação da riqueza e o aparecimento de desigualdades materiais.
A terra arável e os pastos, embora permanecendo como propriedade comunal, começaram a serem atribuídos entre as famílias inseridas na comunidade agrícola. Cada cultivador tende a explorar por sua própria conta os campos que lhes foram distribuídos e a apropriar-se dos instrumentos de trabalho e dos frutos recolhidos. Esta apropriação torna-se incompatível com a partilha igualitária entre todos os membros da comunidade dos bens produzidos. A acumulação da riqueza em gado fará nascer no seio da própria comuna um conflito de interesses que acelera a tendência para novas formas de propriedade. A terra arável começa a ser objecto de apropriação privada, embora as florestas, as pastagens e as terras baldias permaneçam propriedade comunal.
A expansão das sementeiras e da pastorícia, trabalho pesado e distante dos acampamentos, está relacionada com uma mudança potencial nas atribuições dos sexos, em consequência duma maior redução por parte da mulher nas tarefas relacionadas com a obtenção de alimentos e uma mais ampla participação na vida doméstica, consequente da formação da residência sedentária. Acentuou-se a divisão social de trabalho entre o homem e a mulher e, com ela, a passagem do direito materno para o direito paterno que abriu uma brecha na organização gentílica e que, mais tarde, se reflectiu na posse dos bens materiais e no aparecimento dos primeiros indícios de trabalho escravo. A família constituída nesta base adquiriu a característica duma unidade de produção, de acumulação de riqueza e de transmissão hereditária de bens.
Nos últimos estádios do regime
comunitário iniciou-se a diferenciação das pessoas consoante a sua posição
em relação à posse dos meios de produção. Estes acumularam-se na mão duma
classe social em fase nascente, embora ainda não institucionalizada.
Na estrutura política o poder afasta-se cada vez mais da intervenção
colectiva e directa da população. Ganha forma o culto do chefe e com ela a
tendência para a sacralização do seu poder, com atribuição de direitos,
deveres e funções que se vêm a reflectir na apropriação dos meios de
produção e na distribuição igualitária dos bens produzidos. Trata-se duma
modificação ideológica significativa que se reflectiu no evoluir para um
novo sistema económico.