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INTRODUÇÃO

 

           

1- OBJETO DO ESTUDO

 

            A eleição de Thatcher na Inglaterra em 1979 e a execução da Reaganomics nos Estados Unidos nos anos 80 provocaram a revitalização do receituário neoliberal, que passou a ser hegemônico. Entretanto, o neoliberalismo teve efetiva implementação inicial na América Latina, sendo o Chile o primeiro país a fazê-lo em 1973, após o golpe militar liderado por Pinochet. Uruguai em 1974 e Argentina em 1976 também experimentaram a terapia neoliberal antes de sua hegemonia ideológica.

            O fracasso dessas experiências da década de 70 e das políticas ortodoxas de estabilização dos anos 80[1] foi interpretado pela visão neoliberal como sendo conseqüência de desequilíbrios ou distorções, que impediriam o livre funcionamento da economia de mercado. Estas distorções (déficits fiscais crônicos, mercado de bens e de trabalho regulamentados, mecanismos de indexação salarial, desregulamentação financeira sem aparato de fiscalização e erro na seqüência da abertura externa) seriam muito mais efeitos dos erros de implementação do que da natureza das próprias políticas propostas.

Como forma de fornecer subsídio para os policy makers dos países latino-americanos, foi realizada em 1989 uma reunião entre membros dos organismos internacionais financeiros, funcionários do governo americano e economistas desses países. Suas conclusões ficaram conhecidas como o Consenso de Washington[2]. A natureza das propostas se traduz na idéia de que a estabilização deve vir necessariamente acompanhada de reformas[3]. Dentre as propostas, tem-se a disciplina fiscal, que visaria a obtenção de um superávit primário e de um déficit operacional de no máximo 2% do PIB. A prioridade fiscal seria "...redirecionar os gastos de áreas ... que recebem mais recursos que seu retorno econômico justifica ... para áreas negligenciadas com alto retorno econômico e potencial..." (Williamson, 1992: 44). Outra proposta seria a manutenção de uma disciplina monetária e a desregulamentação financeira interna para liberalizar o financiamento, com o objetivo final de obter uma determinação da taxa de juros via mercado, mas com uma taxa real moderada. No que se refere à taxa de câmbio, ela deveria ser unificada em cada país e fixada em um nível competitivo, mas aceitando alguma sobrevalorização momentânea como componente de programas de estabilização (Batista, 1994). No front externo, deveriam ser promovidas a liberalização comercial e financeira, como forma de aumentar a concorrência interna, mobilizar a poupança externa e reduzir o risco de políticas locais inadequadas, dada a perda de autonomia da política econômica. A privatização das estatais e a desregulamentação dos mercados de bens e de trabalho completariam o Consenso de Washington, na medida em que acentuariam o papel do mercado na economia, ajudando a elevar o grau de competitividade da economia e a gerar empregos de alta qualidade. A primeira ainda é defendida como uma forma de saldar ou diminuir a dívida pública[4].

            Como reconheceu o próprio responsável pelo termo Consenso de Washington, os objetivos destas propostas são claramente a drástica redução do Estado e a abertura total e irrestrita dos mercados, o que evidencia o seu caráter neoliberal (Williamson, 1992: 45).

            Embora o discurso neoliberal tenha obtido uma grande repercussão nos países centrais, o que se observa é que a liberalização comercial e a redução da participação do Estado na economia não foram tão drásticas assim nesses países[5]. Já na América Latina, as políticas neoliberais têm sido plenamente aplicadas e com menor resistência. Podem, portanto, fornecer uma melhor compreensão dos resultados desse tipo de política. Ainda que a sistematização destas idéias neoliberais, enquanto um receituário de medidas/reformas a serem implementadas na periferia, só tenha sido cristalizada na virada dos anos 80 para os 90, com o Consenso de Washington, a efetiva implementação do programa neoliberal, como visto, já tinha ocorrido na América Latina nos anos 70.

            Um pouco atabalhoada e tardiamente, o Brasil passa a implementar as reformas neoliberais, exatamente na passagem da década de 80 para a de 90. O governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), eleito em 1994, embora tenha modificado o tipo de política de estabilização macroeconômica[6], dá continuidade à estratégia neoliberal, ao defender a política antiinflacionária como pré-requisito para a retomada do crescimento, e as reformas estruturais como meio de obter essa retomada do desenvolvimento.

            Ainda em 1991, Pedro Malan, o ministro da Fazenda do governo FHC, afirmava que para assegurar o crescimento, desenvolvimento e mudança tecnológica de longo prazo, seria preciso mais do que a estabilidade macroeconômica e a reforma microeconômica, elementos definidos pelo Consenso de Washington. Segundo o autor, o Estado teria um papel essencial ao influir como um aliado em um "...mecanismo de coordenação que sobrepõe a tendência do mercado de exercer suas opções de espera: opção de postergar investimento em fábricas de equipamentos; opção de postergar a repatriação de flight capital; opção de permanecer em ativos altamente líquidos e assim por diante" (Malan, 1991: 11). Aparentemente, o que ele considera como essencial no papel do Estado é o seu caráter de aliado ao mecanismo de mercado, atuando apenas onde este não for eficiente, isto é, onde este exercer suas opções de espera; quando este optar por esperar, quem não espera é o Estado. A essencialidade do Estado em um projeto de desenvolvimento estaria na possibilidade de sua atuação junto às imperfeições do mercado, ou seja, como complemento à tendência deste último.

            A singularidade e a efetiva implementação do receituário neoliberal na América Latina formam o contexto que define o objeto do trabalho proposto. Sem deixar de lado os outros casos importantes como Chile, Argentina e México, o estudo foca as políticas neoliberais no Brasil durante a década de 90, especificamente, o impacto da abertura externa (abertura comercial e liberalização financeira externa) sobre o padrão de crescimento e a distribuição. Como o escopo do objeto se restringe à década de 90, a análise não se estende até o ano de 2001, momento em que ocorre uma inflexão na economia mundial, que repercutiu no desempenho não só da economia brasileira, mas também no de outras economias da América Latina. Mesmo assim, é preciso ressaltar que os acontecimentos do período 2001-2002 parecem trazer forte evidência a favor dos argumentos centrais levantados neste trabalho.

 

2- JUSTIFICATIVA E REFERENCIAL TEÓRICO

 

            A importância da referência dos casos anteriores de aplicação dessas políticas na América Latina reside no fato de que essas experiências já demonstraram que, dentre outros efeitos, produz-se extremas fragilidade externa – dependência exacerbada em relação aos capitais externos em um mundo de forte instabilidade do sistema financeiro internacional - e vulnerabilidade – baixa capacidade de resistência da economia nacional frente a choques externos decorrentes da fragilidade[7].

            Ao implementar-se políticas de estabilização baseadas em âncoras cambiais, provocou-se uma sobrevalorização do câmbio real que, em conjunto com um elevado grau de abertura comercial, gerou saldos negativos na conta comercial. Para financiá-los, a alternativa é a atração de capitais externos por meio de altas taxas de juros internas. Estes capitais ainda se aproveitam da elevação do grau de liberalização financeira externa, e acabam por incrementar a tendência de valorização do câmbio real.

            Restrições externas provocadas por esse tipo de política, aparentemente, são resolvidas por correções na taxa de câmbio, de forma que, se as taxas de desvalorização nominal superarem as taxas de inflação, ocorrerá uma desvalorização do câmbio real, diminuindo os déficits na balança comercial. Isto reduziria a necessidade de atração de capitais externos e, portanto, de se manter taxas elevadas de juros, o que poderia promover o crescimento futuro. Esta visão conjuntural acaba reduzindo o problema da vulnerabilidade externa a uma mera correção de preços relativos, o nível geral de preços doméstico vis a vis os preços externos.

            Entretanto, como demonstraram as experiências chilena, argentina e mexicana, a vulnerabilidade externa, que se manifesta em sobrevalorização cambial, déficits externos crônicos e superendividamento público, possui um caráter mais estrutural, rígido. A elevação do grau de abertura comercial de uma economia como essas, promove dois efeitos. O efeito direto diz respeito à elevação no volume de importações, o que impacta diretamente sobre as contas externas. Um segundo efeito indireto sobre as contas externas se produz quando essa abertura comercial promove uma reestruturação econômica interna. Como os produtos externos se tornam mais baratos, as encomendas da indústria terminam por se transferir para os bens produzidos externamente. Este processo, depois de algum tempo, leva ao fechamento de unidades produtivas internas, o que lhe justifica a nomenclatura de processo de desubstituição de importações. Assim, a elasticidade da demanda da indústria por importações, notadamente por bens intermediários, acaba se elevando. Com isso, qualquer crescimento da renda interna acaba por se refletir em uma elevação das importações e, portanto, em problemas nas contas externas.

            Além dos efeitos da abertura comercial, o caráter rígido da restrição externa, dada pela vulnerabilidade, é agravado pela liberalização financeira externa. Esta promove a entrada de capitais externos que, sob uma forma ou outra de entrada, acabam por se refletir em transferências futuras de juros, lucros e dividendos – isto quando não entram na forma de capital especulativo de curto prazo –, implicando na piora da conta de serviços no futuro. Os problemas das contas externas oriundos de uma longa trajetória de câmbio real sobrevalorizado são, desta maneira, potencializados pela abertura comercial, que leva a saldos negativos na balança comercial, e pela liberalização financeira externa, que tende a agravar o déficit em transações correntes, ao mesmo tempo em que pode promover a entrada maciça de capitais externos, contribuindo para a sobrevalorização cambial. Assim, antes de um mero problema de preços relativos, a fragilidade externa e a vulnerabilidade dessas economias são mais decorrência das estratégias de aumento do grau de abertura externa, inerentes as políticas neoliberais que foram implementadas.

            Ao contrário do que se costuma supor, o ajuste neoliberal e, em específico, as políticas propostas pelo Consenso de Washington, não se resumem à estabilização macroeconômica, mas conformam uma concepção de desenvolvimento da qual a primeira é apenas um componente[8]. Pode-se dividir o programa de ajuste neoliberal em três elementos ou componentes distintos[9].

            O primeiro componente seria o da estabilização macroeconômica, com o objetivo de reduzir a inflação e controlar as contas governamentais. Não se pode dizer que haja uma política econômica de estabilização claramente neoliberal, apenas que o fracasso das políticas ortodoxas para completar este elemento do programa neoliberal provocou a introdução de instrumentos heterodoxos no combate à inflação, como a utilização da âncora cambial, seja na forma de regimes dolarizados ou de bandas cambiais[10].

            As reformas estruturais de abertura comercial, desregulamentação dos mercados, privatização de estatais e de serviços públicos, a eliminação da maior parte dos subsídios, garantindo a liberalização dos preços, e a abertura financeira, formam o segundo elemento. São pré-condições estruturais que possibilitam o funcionamento da economia de mercado, com prudência fiscal, apoiada na iniciativa privada que, para o pensamento neoliberal, garantem o terceiro elemento do programa com a retomada dos investimentos e crescimento econômico associado à distribuição de renda para os países periféricos[11]. A economia de mercado, funcionando sem intervenções e/ou regulamentações levaria à ordem natural harmônica, ao desenvolvimento econômico.

            Evidentemente, a seqüência aqui ilustrada de implementação deste programa não é tão mecânica. Há instrumentos da fase de reformas estruturais, por exemplo, que ajudam na estabilização macroeconômica, ou seja, podem existir situações concretas em que instrumentos das duas primeiras fases podem se sobrepor. A abertura comercial, elemento das reformas estruturais, promove a concorrência entre os produtos importados e os nacionais, o que tende a reduzir os preços domésticos. A desregulamentação (flexibilização) do mercado de trabalho, por sua vez, pode reduzir os custos do trabalho, segundo o discurso neoliberal, na medida em que diminui os encargos sobre o trabalho, proporcionando o aumento do número de vagas no mercado de trabalho e contribuindo também para o combate à inflação.

            Essa característica leva alguns autores a argumentar que não é possível chamar o enfoque neoliberal de paradigma por causa de suas diferentes aplicações práticas em termos de instrumentos, ritmo de implementação, seqüência e combinação de políticas, em função das diversas especificidades dos países que implementaram esse tipo de enfoque. Rosenthal (1996) cita os distintos regimes cambiais adotados, as diferentes políticas de estabilização macroeconômica e a forma diferenciada como foi liberalizada a conta de capital, como exemplos deste tipo de argumento.

            Entretanto, a diversidade de formas de implementação da estabilização e da abertura externa não é o que define o programa neoliberal, mas a natureza das reformas. Em primeiro lugar, é importante a estabilização macroeconômica, independentemente da forma (ortodoxa ou heterodoxa) utilizada, pois ela é considerada uma pré-condição para os outros dois componentes do programa[12]. Entretanto, a principal diretriz do programa neoliberal, dada a estabilização, são as reformas estruturais que, supostamente, garantiriam o crescimento e o desenvolvimento futuros, pois elas gerariam a concorrência entre a iniciativa privada, levando a ganhos de produtividade e competitividade. Em suma, a política neoliberal se define por um ideário de mais longo prazo, uma concepção de desenvolvimento, embora tenha como pré-condição uma política de estabilização de curto prazo, ortodoxa ou não[13].    

Dentre as reformas estruturais, a abertura externa é uma das mais importantes, até como forma de obter o financiamento externo e incentivar a concorrência e a produtividade, fatores tidos como necessários para a retomada do crescimento. Essa abertura externa é composta pela abertura comercial, no que se refere à liberalização das importações e à promoção das exportações, pela abertura na conta de transações correntes, traduzida na maior facilidade de remessa de lucros e dividendos, por exemplo, e pela liberalização da conta de capital. Do lado financeiro, um maior grau de abertura significa uma maior facilidade dos residentes para adquirir direitos e assumir obrigações em moeda estrangeira e dos não-residentes em acessar os vários setores do mercado financeiro local (Akyüz, 1992).

            Especificamente no que se refere à abertura externa, o pensamento neoliberal passou de uma defesa do tratamento de choque, para um argumento seqüencial[14]. O tratamento de choque ou liberalização radical não se preocupava com alguma seqüência na liberalização comercial e da conta de capital, limitando-se a apregoar as benesses das duas. Por outro lado, o argumento seqüencial defende que a desrepressão financeira interna deve ser realizada em primeiro lugar. Ela seria obtida por meio de uma reforma fiscal para reduzir a rigidez das taxas de juros e pela desregulamentação financeira doméstica. Isso se justificaria porque, em se mantendo a repressão financeira interna, e com taxas de juros domésticas superiores às internacionais, a entrada de recursos externos levaria ao superendividamento externo e à valorização cambial. Em seguida, deveria ser feita a unificação do mercado cambial para acabar com as discriminações contra exportadores e/ou importadores potenciais. Só depois disso é que seriam realizadas a abertura comercial e, necessariamente por último, a liberalização financeira externa[15].

            Com as recentes crises financeiras da década de 90, o argumento seqüencial teve que ser complementado. Segundo essa "revisão", a estabilização e a seqüência das reformas são insuficientes, pois os mercados financeiros possuem informações assimétricas. Em outras palavras, uma economia de mercado totalmente desregulamentada e liberalizada não traria os resultados decantados, já que existem imperfeições de mercado, conforme Stiglitz (1999), o que demandaria a presença do Estado para atenuar/regular essas imperfeições[16]. Embora isto aparente um certo recuo na idéia neoliberal de mais mercado e menos Estado, é necessário deixar claro que este tipo de intervenção só se justifica para corrigir as falhas de mercado, a fim de tornar a economia de mercado mais competitiva e eficiente. É a natureza dos mercados que define a forma e o grau da intervenção, indesejável, porém necessária, e não o contrário.

            Até mesmo um autor que se afirma neoestruturalista (cepalino) acaba concluindo o mesmo: "por certo, os princípios que inspiram esta virada [neoliberal] - a economia de mercado, a propriedade privada, a prudência fiscal e o protagonismo do setor privado - são patrimônio das principais correntes do pensamento econômico atual: do neoliberalismo por um lado e do neoestruturalismo por outro" (Ramos, 1997: 16). A diferença que existiria entre as duas correntes, segundo o próprio autor, é que os neoestruturalistas (neocepalinos) acreditariam que esses princípios são condição necessária para o desenvolvimento, mas não suficiente. Restaria ao Estado corrigir as falhas do mercado, especificamente, implementar medidas adicionais para evitar problemas distributivos, já que as reformas neoliberais trazem resultados apenas no longo prazo. Se este autor tiver razão, o projeto Reforming the reforms[17] da nova CEPAL não parece estar muito longe do revisionismo do pós-Consenso de Washington, como define Stiglitz (1999): o Estado como suporte da natureza e lógica dos mercados.

            Aceitando que o programa neoliberal tem suas medidas e instrumentos articulados em dois conjuntos diferentes (programas de estabilização e reformas estruturais), a referência teórica deste trabalho é a de que as experiências passadas de sua implementação referendam a impossibilidade de se obter, a partir disso, regimes sustentados de crescimento e desenvolvimento econômicos. Os resultados dessas experiências mostram que, ao contrário de uma retomada dos investimentos e de uma redistribuição de renda, o que se produz é uma situação de fragilidade e vulnerabilidade externas, que acabam por restringir o crescimento e, no melhor dos casos, manter o padrão de distribuição da renda.

 

3- OBJETIVOS DO TRABALHO

 

            Considerando o objeto e a referência teórica do estudo, o seu objetivo geral é fazer uma avaliação do programa neoliberal de abertura externa implementado no Brasil durante a década de 90. De acordo com o referencial teórico, serão avaliadas as reformas no que diz respeito tanto aos seus efeitos econômicos de mais longo prazo (padrão de crescimento do país e distribuição da renda), quanto aos efeitos de curto prazo sobre variáveis que sejam influenciadas também pelas políticas de estabilização. Apesar de se tratar de uma concepção de desenvolvimento, de mais longo prazo, faz-se necessária também uma avaliação das políticas de estabilização sobre o padrão de crescimento e a distribuição, não apenas por que elas também pertencem ao programa neoliberal, mas porque os seus efeitos condicionam a retomada ou não dos investimentos e a direção e o estágio das políticas de fomento ao desenvolvimento.

            Em termos específicos, a avaliação do impacto da abertura externa no Brasil durante a década de 90 será feita sobre o processo de crescimento dessa economia e o perfil distributivo que essa abertura determinou. O que se pretende demonstrar, em primeiro lugar, é que a abertura comercial e a liberalização financeira externa provocam elevação da fragilidade financeira externa e da vulnerabilidade externa do país, manifestadas, principalmente, na elevação do endividamento público, no superendividamento externo (tanto público quanto privado) e nos crescentes déficits no balanço de pagamentos. As liberalizações cambial, financeira e comercial, que compõem a estratégia neoliberal de desenvolvimento, levam a uma restrição externa que tende a constringir as taxas de crescimento da economia. Por outro lado, como essa estratégia de desenvolvimento implica na extrema dependência de capitais externos, o aumento da vulnerabilidade acaba por elevar a probabilidade de reversão no fluxo desses capitais, isto é, aumenta a probabilidade de ocorrência de crises de balanço de pagamentos ou cambiais. Daí a importância de se tomar como referência outras experiências latino-americanas (Chile, Argentina e México, em especial) para o neoliberalismo tardio brasileiro[18], bem como as estratégias de inserção internacional utilizadas pelos países asiáticos, confrontando-as com as primeiras.

            Apesar da semelhança no resultado dessas experiências históricas, é preciso diferenciar a natureza da restrição externa que se colocou para esses países em distintos momentos. A crise de balanço de pagamentos na América Latina dos anos 80 foi conseqüência de algumas condições desfavoráveis para a região (Medeiros e Serrano, 1999: 145): drástica redução das fontes externas de financiamento, por conta dos efeitos da crise da dívida externa; deterioração dos termos de troca; forte subida dos juros internacionais; e, redução da demanda pelas exportações da região, em vista da recessão mundial. A resposta a essa crise foi um ajuste exportador, que procurou aumentar os saldos comerciais, através do controle recessivo e da promoção de exportações por meio de políticas cambiais. O resultado, ainda que com um significativo crescimento das exportações, combinou a aceleração inflacionária com a estagnação econômica. Já nos anos 90, o cenário internacional assiste à volta de uma abundante liquidez internacional, por conta tanto do processo de desregulamentação financeira, como da securitização das dívidas externas no início do período. Isso levou a uma mudança no tipo de padrão de financiamento externo (ajuste importador). A nova estratégia possibilitou a obtenção de capital externo para subsidiar programas de estabilização com âncora cambial e para financiar os crescentes déficits em conta corrente; estes originados tanto da abertura comercial, como da sobrevalorização do câmbio real, e da piora na conta de serviços, efeito colateral da abundante entrada de capital externo.

            Em segundo lugar, pretende-se demonstrar que a abertura externa, ao contrário do discurso oficial, tende a ampliar a concentração da renda dentro das economias periféricas, no caso específico do estudo, da economia brasileira na década de 90. Embora recentes estudos empíricos de caráter ortodoxo, como Slaughter (2000), já tenham percebido esse fato, o que contraria as predições do modelo tradicional de comércio exterior, eles ainda não fornecem uma explicação para isso. Pretende-se argumentar, neste estudo, que a concentração da renda após a abertura externa se dá por dois motivos. O primeiro é um efeito direto das reformas neoliberais que - não se pode esquecer isso - são compostas também por políticas de estabilização que acabam por restringir correções (reposições) salariais, embora possam apresentar um impacto redistributivo do tipo once and for all, após a redução do imposto inflacionário, e por reformas no mercado de trabalho que acabam por reduzir o salário médio e a qualidade do emprego oferecido. Além disso, dentro do efeito direto, pode-se acrescentar a tendência que a abertura comercial tem sobre a eliminação de postos de trabalho, o que tende a reduzir a massa salarial nessa economia. O segundo motivo para a elevação da concentração de renda após a abertura externa se define por um efeito indireto desta. Apesar dos ganhos iniciais que podem advir do controle inflacionário, a distribuição de renda possui um caráter estrutural definido pela propriedade dos ativos, ou seja, a distribuição de riqueza, que está ligada a fatores sociais e políticos muito mais complexos, é logicamente anterior à distribuição de renda. A liberalização financeira externa, aqui incluído o efeito da abertura ao investimento direto estrangeiro, tende a provocar uma concentração de riqueza, acentuando o caráter rígido/estrutural da concentração de renda[19].

            Sendo assim, o objetivo deste estudo é analisar os impactos da abertura comercial e da liberalização financeira externa sobre as taxas de crescimento e a distribuição da renda no Brasil dos anos 90. Em específico, procura-se demonstrar que a fragilidade externa e a vulnerabilidade, decorrências da abertura externa, influem negativamente sobre o crescimento e o desenvolvimento, por causa da restrição externa que elas criam. Ademais, pretende-se mostrar que esse processo de abertura tende a piorar a concentração de renda no país, não só por causa dos efeitos diretos das reformas neoliberais, mas também pelo efeito indireto da concentração de riqueza. Esta última, se comprovada, coloca a questão do caráter rígido da distribuição de renda, o que pode indicar que qualquer tentativa de redistribuição dos rendimentos, que não passe por uma redistribuição de propriedade, acaba por se restringir a uma solução paliativa e temporária.

 

4- ESTRUTURA DO TRABALHO

 

            No primeiro capítulo, são apresentadas as principais concepções teóricas que embasam o debate teórico sobre a natureza e os efeitos de uma abertura externa para o caso de uma economia periférica. Essas concepções podem ser agrupadas em três grandes grupos. O primeiro deles é a visão ortodoxa, que passou das já clássicas justificativas para a abertura comercial e a liberalização financeira externa (baseadas no estímulo da concorrência dos produtos externos para o aumento da produtividade e na captação da poupança externa para o financiamento do investimento interno), para a defesa da necessidade de uma seqüência ótima para a abertura externa. Após as crises financeiras da década de 90, a visão ortodoxa passa a defender a abertura externa seqüencial como condição necessária para a retomada do desenvolvimento, mas não suficiente. Para isto, é necessária, adicionalmente, a presença de um Estado que regule as imperfeições do mercado, notadamente do mercado financeiro.

            Ainda no primeiro capítulo, é analisada a visão crítico-conjuntural, segundo a qual a restrição externa ao crescimento econômico é fruto de políticas econômicas (conjunturais) equivocadas, em específico, da utilização da taxa de câmbio como a variável âncora para os programas de estabilização, o que levaria à sobrevalorização do câmbio real e aos conseqüentes problemas de balanço de pagamentos. Em seguida, apresenta-se a terceira visão, a hipótese da fragilidade e vulnerabilidade externas, para a qual a restrição externa ao crescimento e desenvolvimento não seria um mero problema de preços relativos, mas conseqüência de uma estratégia (opção) nacional pela elevação irrestrita do grau de abertura externa, ao serem liberalizados o comércio exterior e as finanças do país. A elevação do grau de abertura externa, principalmente da abertura financeira, ainda traria o problema da redução da autonomia de política econômica nacional.

            O segundo capítulo, por sua vez, procura estabelecer, como contraponto ao objeto definido, as experiências de outros países. Especialmente, são analisadas as experiências pioneiras de três economias latino-americanas (Chile, Argentina e México). Além disso, são examinadas as similaridades (se as há) e as especificidades da opção feita por países asiáticos em suas inserções internacionais, e até que ponto o discurso ideológico neoliberal propagandeado e, em grande medida, imposto pelos países centrais, é de fato a característica determinante de suas próprias políticas nacionais.

            Em seguida, o capítulo três trata da experiência brasileira propriamente, na década de 90. Este capítulo conta com um breve resumo histórico da inserção internacional do país, procurando relacioná-la com as opções nacionais de desenvolvimento adotadas em momentos específicos. Especial atenção, entretanto,  merece a década de 90 por ser nesta que os graus de abertura comercial e liberalização financeira externa foram mais aprofundados. Além disso, a estabilização macroeconômica – pelo menos no que se refere à inflação – só foi obtida após a introdução do Plano Real, na primeira metade dessa década.

No capítulo quatro, serão analisados os impactos dessa abertura externa sobre as taxas de crescimento e a distribuição de renda e riqueza no país durante o período selecionado e, por último, a conclusão apresenta uma síntese das principais conclusões do estudo.



[1] Década esta que ficou conhecida como a "década perdida" para a região por causa da estagnação de seu PIB per capita.

[2] As conclusões da reunião foram compiladas em Williamson (1990).

[3] Como o caráter dessas reformas não é meramente econômico, tornava-se necessária a alteração de aspectos político-institucionais nos países que as aplicassem. Dado que esta tarefa envolve conflitos não desprezíveis, foi realizada uma outra reunião, em 1993, para fornecer subsídios de atuação no campo político-institucional interno. As conclusões e prescrições desta nova reunião são encontradas em Williamson (1994).

 

[4] O fato de que muitos dos objetivos não tenham sido atingidos, quando da implementação dessas propostas em vários países, não significa que as medidas propagandeadas não tenham sido aplicadas. Muito pelo contrário, isso já seria uma prova de que existe muita diferença entre o que se vende como discurso e o que se obtém na prática.

[5] Esta assimetria é mais nítida quando se observa os EUA. "A bem da verdade, a política de reestruturação norte-americana foi feita à custa do neoliberalismo dos demais países, com importações artificialmente barateadas pela valorização do dólar e parte substancial de seus déficits comercial e fiscal por eles financiados" (Cano, 2000: 26-27).

[6] Na verdade, o Plano Real começa a ser executado um pouco antes da eleição de FHC, mas é o governo deste que dá sustentação ao plano após a sua eleição.

[7] Comparando as experiências asiática e latino-americana, Medeiros (1997: 299) afirma: "do ponto de vista macroeconômico, a conseqüência maior dos distintos anos 80 na Ásia e América Latina sobre os anos 90 foi a maior fragilidade externa que se abateu no continente latino-americano em meio à abundância de capitais externos. Esta vulnerabilidade decorre de três aspectos. O maior peso das transferências financeiras, a menor taxa de crescimento das exportações, a maior volatilidade dos fluxos de capitais".

 

[8] "Este enfoque [neoliberal] tem se refletido em algumas reformas fundamentais das políticas e dos mercados, e tem um duplo objetivo de estabilização macroeconômica e desenvolvimento da competitividade internacional" (Rosenthal, 1996: 11). Este último aspecto é que propiciaria o crescimento de mais longo prazo.

[9] Na realidade, Fiori (1997: 12) define o programa neoliberal em três fases. O termo “fase”, empregado por ele, talvez não seja o melhor, pois pode dar a idéia de uma seqüência necessária e mecânica, sem interfaces. Cano (1999: 300) prefere falar em dois principais conjuntos que compõem as reformas neoliberais. Esses dois conjuntos correspondem às duas primeiras fases definidas por Fiori: estabilização e reformas estruturais.

[10] Portanto, não é possível qualquer tipo de identificação do ajuste neoliberal apenas com políticas ortodoxas de administração de demanda, ainda que estas tenham sido aplicadas em algum momento.

[11] É neste ponto que se define o maior perigo de entender o termo “fase” como algo necessariamente seqüencial. Assim procedendo, acaba-se por aceitar o argumento neoliberal de que o desenvolvimento (fase III) é fruto necessário das reformas neoliberais (fase II). Embora isto não passe de um wishful thinking, é exatamente assim que o argumento costuma ser apresentado pelos seus simpatizantes.

 

[12] A estabilização é um dos principais componentes para a obtenção dos chamados fundamentos que, após a abertura externa, garantem a absorção de capitais externos.

[13] Nesse sentido, o Plano Real faz parte de um programa neoliberal de desenvolvimento "...por sua concepção estratégica de longo prazo, anunciada por seus autores, desde a primeira hora, como condição inseparável de seu sucesso no curto prazo ... para que só depois de restaurada numa economia aberta de mercado possa dar-se então a retomada do crescimento" (Fiori, 1997: 14). Para o mesmo aspecto, só que para o caso chileno da década de 70, ver Foxley (1988).

[14] Mckinnon (1973) e Mckinnon (1991).

 

[15] "Existe hoje um consenso de que a conta de capitais é o último fator a ser liberado" (Williamson, 1992: 46).

[16] Note-se a semelhança deste argumento com a perspectiva de Malan (1991), citada anteriormente, para o qual a "essencialidade" na atuação do Estado acaba sendo diluída na sua restrição à regulação das imperfeições de mercado, e na subordinação daquela à lógica deste.

[17] No que se refere aos impactos da abertura externa, o projeto de reforma das reformas pode ser encontrado em Ffrench-Davis (1999) e Ocampo (1999).

[18] "A crise do Cone Sul do início dos anos 80, a mexicana de 1994, bem como a dos países asiáticos, afirma-se simultaneamente como uma crise de balanço de pagamentos e uma crise financeira, decorrentes ambas da liberalização financeira e do ajuste importador. Quanto menor a taxa de crescimento das exportações, maior o crescimento do coeficiente de importações e, paradoxalmente, quanto maiores os fluxos de capital já atraídos, menor é a taxa de crescimento compatível com a sustentabilidade deste padrão de financiamento externo" (Medeiros e Serrano, 1999: 146-147). A recorrente relação entre uma dinâmica de acumulação extremamente dependente do financiamento do capital estrangeiro e restrições externas ao crescimento (com crises de endividamento externo) é bem analisada em Tavares (1999).

 

[19] Ao analisar a necessidade de altas taxas de juros em uma estratégia de dependência do capital externo e os efeitos dessa necessidade, Cano (2000: 68) conclui que "esse mecanismo (mais as privatizações e a especulação bursátil) acelerou o aumento da concentração da riqueza financeira, desencadeando novas pressões por maiores valorizações do capital".