TURyDES
Vol 5, Nº 12 (junio/junho 2012)

O IMAGINÁRIO DE RURAL DO TURISTA: NARRATIVAS ORAIS

Maria Francisca Magalhães Nogueira, Margarida Maria Cavalcante Limena y Daniel Christino

INTRODUÇÃO

Em pesquisa realizada no estado de Goiás, Brasil, delineamos um percurso para captar o mundo de significações que o campo é para o individuo que busca o rural como lazer. As significações compreenderam as representações, as idéias, os sentimentos que os turistas associam à idéia de campo. Mas,
A imagem mental é essencialmente de consciência, função psicológica. Não é possível dissocia-la da presença do mundo do homem, da presença do homem no mundo. É para ambos o intermediário recíproco. Ao mesmo tempo, contudo, a imagem não passa dum duplo, dum reflexo, isto é, durma ausência (Morin, 1997, p. 42).

Por essa razão, procuramos captar essas significações também por meio da vivência direta e intensa do turista em contato com o campo, considerando que as significações sociais se “inscrevem” e se “encarnam” no “mundo sensível” também pela vivência e eficacidade dos indivíduos. Elas se materializaram na linguagem que sujeito turista utiliza para falar do campo, nas operações de seus sentidos, instituindo objetos, selecionando e construindo, com base no dado natural, uma natureza, uma paisagem.
Exprimiram-se elas, também, nas posturas, nos gestos e formas de contato que o turista estabelece como apropriadas para relacionar-se com a natureza e com os sujeitos, bem como nos estados afetivos e emocionais decorrentes. Essas significações também se presentificaram na dimensão do devaneio, da memória e das estimações de valência às práticas, às tradições e à cultura campestre.
Tratou-se, pois, de captar o rural como um mundo de significações para o turista, dando-se, transformando-se pela criatividade de sua psique. Nesse processo de autoalteração de seu mundo de significações, o indivíduo utiliza símbolos, significantes presentes no mundo público e comum, que é seu social-histórico.
É certo que os turistas não são – e nem mesmo a totalidade dos indivíduos – os suportes que carregariam todas as significações sociais da sociedade goiana tradicional. Aliás, sequer as referentes ao rural. Como ensina Castoriadis (1982, p. 411) “não se pode reduzir o mundo das significações instituídas às representações individuais efetivas”. Mas é inevitável e até necessário que

uma parte das significações imaginárias sociais encontre um ‘equivalente’ efetivo nos indivíduos (em sua representação consciente ou não, em seu comportamento, etc.) e que as outras aí se traduzam de uma certa maneira direta e indireta, próxima ou longínqua (CASTORIADIS, 1982, p. 411).

Essas “traduções” ou “equivalências”, necessariamente complementares, que também foram objeto de nossa atenção, nos permitiriam, aqui e lá, aflorar a questão da identidade relacionada ao campo do social-histórico goiano, traduzido por sua representação pelo turista rural. Isto, ainda que essa especificidade se deva entender como copertencimento à sociedade nacional e à sociedade mundial globalizada sob a égide do capitalismo.
Empreendemos nossa pesquisa empírica com o intuito de explorar o imaginário do turista como mundo de significações.

METODOLOGIA


Este trabalho com narrativas foi realizado em estabelecimentos especializados em lazer rural na região metropolitana (RMG)1 da cidade de Goiânia no estado de Goiás. A escolha da RMG deve-se a estreita relação com a visão de continuum rural-urbano, que coloca em conexão campo e cidade. Priorizamos dentre os estabelecimentos visitados aqueles que possuíam atividades turísticas há mais de um ano, que se enquadram dentro da definição de turismo rural no que diz respeito à localização das modalidades turísticas selecionadas, à ligação com a paisagem rural e a algumas características da cultura local.
A pesquisa foi desenvolvida de agosto a novembro de 2009 e fez parte de projeto de doutorado realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Entrevistamos 27 turistas acima de 30 anos de idade, pois verificamos ser a frequência, nos estabelecimentos de turismo rural que visitamos em Goiás constituída predominantemente de famílias com crianças ou de casais de meia idade2 . Os entrevistados foram escolhidos com o único cuidado de contemplar todos os gêneros e a classe de idade percebida como mais comum entre os freqüentadores dos estabelecimentos selecionados. Consideramos que, com essas ressalvas – já que não empreendemos estudo quantitativo, em que médias, variáveis, proporcionalidades são pertinentes -, poderíamos considerar os informantes intercambiáveis; tanto mais em se tratando de atividade eventual – turismo rural metropolitano – em que nenhum critério a priori poderia qualificá-los enquanto tais.

RESULTADOS
De acordo com os relatos obtidos, o campo como espaço de lazer, transforma-se no exercício da “prática mágica e espontânea do espírito que sonha”, nos termos de Edgar Morin (1997, p. 98), e no paraíso onírico das recordações do rural tradicional goiano.
O retorno ao rural no estado de Goiás está associado a idéias construídas acerca da cultura e do cotidiano no campo: de pureza, de paz, de tranqüilidade – condição que se acredita não mais existir nas cidades. Não sem razão, as viagens empreendidas a hotéis-fazenda, pesque-pague e a restaurantes rurais, de certa maneira, prestam-se a saciar uma necessidade de volta às origens, de convívio com o natural – enriquecido em Goiás, com as peculiaridades do Cerrado 3 – e, com a vida simples, embora, por vezes, quem visita esses espaços não encontre correspondência com as lembranças guardadas em sua memória ou que estão em seu imaginário de rural.
Das significações imaginárias extraídas dos relatos dos turistas apreendemos estados e atitudes em que ele se põe diante do campo e que se presentificam na dimensão do devaneio, da memória e das estimações de valência às práticas, às tradições e à cultura campestre. A partir disso, ordenamos as significações imaginárias extraídas dos depoimentos em seis categorias não excludentes: o campo imaginado, o campo contemplado, o campo vivido, o campo rememorado, o campo venerado e o campo comemorado.

O campo imaginado
No campo imaginado pelo turista a natureza aparece em primeiro lugar, de acordo com os relatos. Por isso, ele parte em direção a ela como quem vai ao encontro do sagrado, que lhe proporciona paz, felicidade e liberdade. Há nessa viagem, certa dimensão religiosa, sagrada que o separa das coisas profanas, do cotidiano da vida urbana prosaica. E, no contato com “o chão sagrado” do espaço rural, ele executa o gesto de descalçar “os sapatos” da vida social e prática, para participar da força e do poder da natureza.
A natureza, para o turista entrevistado, distingue-se daquela da sociedade goiana ou da cultura tradicional rústica ou caipira que aos poucos foi desaparecendo, embora ainda esteja impregnada de imagens que conferem um status rural ao estado. Estas imagens, de certa forma, contribuem para que haja uma busca imagética do individuo pelo rural, embora hoje transformado em continuum rural urbano em que as relações campo-cidade se intensificam.

O cotejamento com o imaginário social goiano se constituiu na chave mestra para o acesso ao imaginário rural do turista, é mister explicitar-se que o “meio natural” imaginado pelo turista distingue-se daquele do homem, melhor dizer, da sociedade ou da cultura tradicional. Até, senão, sobretudo, porque os seus vínculos com esse meio, ou, mais radicalmente, na expressão de Castoriadis (1982, p. 399), com o “dado” ou “suporte natural”, são de uma toda outra ordem.
Não é demais enfatizar, para maior clareza, com Castoriadis (1982, p. 399), que “o primeiro estrato natural” é ele mesmo imaginário ou “instituído”, constituindo um “outro” da natureza. Ou seja, como diz Morin (2005, p. 112) “A natureza não é unicamente o substrato “objetivo” da realidade antropossocial: é também um produtor antropossocial. A cultura co-produz a natureza dando-lhe um rosto. A natureza existe antes de nós, fora de nós, mas não sem nós”.
Qual é, pois, o rosto da natureza para o turista? Essa natureza aparece para o turista como “as árvores, ar puro, tudo o que a gente não encontra no meio urbano” diz Neiva. Um dos entrevistados mais idoso, mais de 70 anos é mais expressivo e confessa: “eu gosto do campo. Hoje eu sinto quando aquela chuva molha a terra, chego, chego a sonhar com as fileirinhas de arroz, de feijão que você planta, que brota aquelas linhas, certinho. Eu chego a sonhar com isso”.
Tranqüilidade, paz, silêncio, sossego, descanso são os motivos que os turistas mais explicitam para sua ida ao campo. São essas significações que eles associam ao campo com mais frequência. É o que, por exemplo, exprime Márcia: “Eu vim pra cá, assim, procurando tranqüilidade (...). Eu vim cá mais pra relaxar. Pra relaxar do movimento, vim para um lugar tranqüilo. Acho que na fazenda é bem mais tranqüilo”. Essa ruptura com o “movimento”, com a vida cotidiana é a condição mesma da expansão da consciência na contemplação.
Não sem razão, nota ainda Debray (1993, p. 193) que “Estando suficientemente seguro de sua sobrevivência, somente o urbanizado pode dedicar-se aos prazeres do passeio e da contemplação”. Isso leva à questão do caráter estético do passeio do turista ao campo.

O campo contemplado
Se ao turista o campo e a natureza, são vistos como “paisagem bonita” e até como Divina – como afirma Carlos Alberto: “o canto dos pássaros para mim..., é divino essa natureza” -, sua viagem ao campo é uma verdadeira festa para os sentidos. Sendo assim, o contato com a natureza provoca no turista deleite4 . Há, de fato, verdadeira contemplação 5 – olhar admirativo e afetuoso, em que mais se ama do que se conhece.
O que agrada aos sentidos, afinal, é uma das mais tradicionais definições do belo6 . Iara relata que gosta de ficar ouvindo “o barulho das águas, das árvores...”. José Maria se encanta com “o verde da mata, o canto dos pássaros, o gado, o pasto. To vendo um pônei ali também, então, isso aí...também to ouvindo uma galinha, to ouvindo o barulho dum miquinho...”.
A confissão de Neiva Explicita as articulações e as continuidades da atitude contemplativa com seu objeto e com seus frutos. “Ah, eu gosto de ficar assim em paz, sem escutar barulho, bem tranqüilo, bem relaxado. Assim...ver ás águas, a tranquilidade mesmo”. Ele quase se unifica com o objeto contemplado, no esquecimento de si mesmo. Sua paz é a tranqüilidade das águas; a tranqüilidade das águas é a paz.
Através dos relatos pude perceber que a vida no campo é vida poética. A atitude contemplativa, pelo menos incoativamente, também é vida poética. Mas, talvez, de uma forma mais receptiva, talvez mais passiva, em que o sujeito mais reflete a claridade de uma luz poderosa do que a produz ele próprio. Ainda que esse espelho e essa fonte se confundam em sua comunhão intima.
Entendemos, nesse trabalho, a poesia como estado, talvez, mais predominantemente ativo, talvez de mais alegria e festa do que de harmonia e deslumbramento; talvez de mais satisfação e exaltação do que de fascínio e êxtase, recorrendo aqui às qualificações que Morin (2005, p. 132-140) associa a esses estados. Talvez, quem sabe, pode-se dizer que são “moradas”, aposentos contíguos de um mesmo casarão encantado.
O sentimento confessado por Lúcia, no espaço de lazer rural, nos permite melhor compreender do que se está a dizer: “é capaz mesmo... é como se Lúcia do dia a dia não existisse. Aqui é uma Lúcia moleca, uma Lúcia criança, uma Lúcia que consegue ver, assim, o pingo d’agua e se maravilha com isso. Agora mesmo em cada árvore queria subir de novo como se fosse criança”. A poesia talvez, é possível dizer, seja mais moleca, mais lúdica, mais serelepe do que contemplativa.

O campo vivido
O corte com o cotidiano é registrado pelos turistas nos diversos gestos com o que se despedem da veste social. Roselane gosta de “tirar o sapato, pé no chão, essas coisas”. A fala de Valéria aponta que essa ruptura marca a entrada no mundo da descoberta, da dilatação da mente, próprios do estado poético: “Aqui a gente não ta preocupada, a gente vem à vontade, pra começar completamente à vontade, de chinelo, roupa confortável, no dia a dia... E junto do traje vem o espírito, que vai se abrindo para o que a gente vai encontrar por aqui, na realidade, aqui. Muito ar, né!, ar fresco, ar saudável, bichinho, que a gente não sabe o nome, mas sabe que vem da natureza...”.
Erlane (acompanhada do marido) diz que o “rural é mais gostoso...bem-estar, respiração...Vim aqui ver uma planta que tem aqui e que é diferente, que ele (o marido) viu e eu não vi”. De novo o bem-estar, a descoberta que pode associar-se com o sentimento de Maria Fernanda, no Pesque-Pague, quanto ao encanto da simplicidade que liberta “a gente pode ficar tranqüilo, a gente sente menos necessidade de cada coisa...”.
No clima de boa vontade geral – quase unânime – do turista para com o campo, Irasmon confessa “Eu vejo que as pessoas ficam mais livres, mais liberais, ou seja, chegam à felicidade”.

O Campo rememorado
Vi que há um campo rememorado pelos turistas e regula-se muito mais pelos critérios da verossimilhança que pelos da verdade factual. A rememoração do campo é assim uma faceta do imaginário rural do turista. Recordar é, pois, dar uma forma simbólica, um sentido, uma significação atual à experiência passada. É abrir-se a interpretação da experiência passada para o que Cassirer (1997, p. 92) denomina “a terceira dimensão do tempo, a dimensão do futuro”. A memória é sempre memória afetiva já que reorganiza poeticamente a experiência passada.
Que lembranças têm os turistas de sua vivência rural pretérita? Que significação dão eles a essa experiência compartilhada do campo?
Uma primeira observação se impõe. Ainda que 17 dos 27 entrevistados se identificam como de origem rural, quase ninguém associa suas lembranças ao trabalho, aos processos produtivos do campo. A pouca evocação espontânea dos processos produtivos do campo pode ser relacionada também a rápida transformação do campo goiano7 . Segundo senhor Waldomiro, “hoje a pessoa faz é comprar na cidade para comer na roça. Não traz da roça para comer na cidade, não. Quando muito traz da roça uma laranjinha...”.
Á vida no campo, rememorada, os turistas associam qualidades de caráter e valores humanos positivos. Alegria, simplicidade, saúde, solidariedade e amizade são alguns deles. Segundo Seu Waldomiro, na roça “ali, ó, o pai criava dez filho, sustentava tudo, criou tudo, sabe, cada homem sadio, direito, tem gente boa (...). Na roça era bom demais...Tinha escolinha, lá na roça você estudava, você criava seu filho. Eu conheço gente que criou terceira geração numa fazenda só”.
É, nas lembranças das festas que os valores da roça – imaginados – mais se explicitam. Roselane relembra as festas de casamento: “era aquelas festas que matava cinco bois mais ou menos; era gente demais (...) vinha gente de tudo ali, os vizinhos (...)”. Luiz apresenta a vida passada no campo como vida festiva, um idílio num mundo simples e natural: “No domingo a gente saía, juntava os amigos, sempre tinha uma vela na igreja, tinha um leilão que a gente fazia (...) tinha um leilão de frango, leilão de leitão. (...) Eu lembro a queima de Judas que tinha também lá na fazenda. Ah, era muito boa, o povo tudo aprontava pra ir na festa naquela fazenda que ia ter o Judas e todo mundo ia bater, espancar ele, pendurar e depois botar fogo nele, explodir e depois, assim a gente saía.”
O rural transformado projeta cada vez mais linhas de continuidade entre campo e cidade, mas, mesmo assim, ainda continua sendo o paraíso das recordações da infância. Maria Fernanda relembra que “ia tomar banho de córrego com as primas. Não tinha chuveiro na casa, era normal mesmo o banho de córrego no final da tarde.”
De fato, a experiência adulta dos turistas tempera a visão infantil, paradisíaca do campo. Convidados a se manifestarem sobre a eventualidade da troca da vida urbana atual por uma ida ou um retorno à vida rural, eles deixam aflorar a memória social dos constrangimentos e dos aspectos da vida do campo, bem como os encantos e as comodidades da vida urbana. Muitos dos relatos dão conta de que a bica d’agua do banho era de agia fria, que ela substitui o banheiro que faltava e que é lá que se tinha de lavar a louça. Que o lampião romântico significa também falta de eletricidade.
Os turistas querem o campo como “um ponto de refúgio” (Roselane), “refrescar um pouco a cabeça” (Lúcia), “reviver” (Lara), “um pouquinho ver as origens do campo (Lúcia), mas não o vêem como alternativa de vida. Eles tem consciência de seu enraizamento e de seus compromissos urbanos. “Minha profissão é meio assim complicada, não bate com a vida no campo” diz José Maria. “Viver na zona rural, talvez pela condição do mundo moderno, das condições mesmo de trabalho, ficaria muito difícil” (Iara). Mas não é só isso. Eles também apreciam as vantagens e os valores da vida urbana: “a comodidade (Marcelo), a parabólica...a comunicação externa” (Leônia), “o cinema...contato..on-line...internet” (Maria Fernanda), “muita gente. Isolamento, eu não gosto” (Erlane).
O individuo ao buscar o campo como refúgio, o faz com a consciência que “tem que ter um equilíbrio” (Márcia) entre a vida rural e a vida urbana. “Associar os dois”8 como gostaria Maria Fernanda.

O campo venerado
A dimensão religiosa está presente na busca do campo pelo turista. Ele o representa para si mesmo como coisa sagrada, separada das coisas profanas, do cotidiano da vida prosaica. Não foi minha intenção procurar ou estabelecer homologia entre os elementos estruturais e suas significações nos processos de turismo e de peregrinação. Uma aproximação, no entanto, nos parece fecunda para nosso objetivo de desvelar o imaginário rural do turista.
Posso afirmar que o turista rural é também um peregrino 9; enquanto se desloca, põe-se em movimento, em direção ao espaço sagrado. A primeira epifania deste sagrado se faz, pela visão. As pessoas querem, em primeiro lugar, observar, ver. Foi por meio da visão que eles se iluminaram, conforme testemunharam. O sagrado revelou-se para eles.
Mas o campo é também sua casa por substituição, a morada que lhes acolhe, sossega, tranqüiliza, aquieta, consola. Que lhes revigora. Onde eles se encontram em paz, felizes e em liberdade: a terra, a natureza. Institivamente, eles parecem saber, como enfatiza Morin (2005, p. 451), que “precisamos então reencontrar a nossa Natureza...”.
Refugiando-se da cidade, para a natureza sagrada os turistas se dirigem: Irasmon, para “sair da capital, da cidade, do barulho do dia a dia”. Márcia: “Pra relaxar, pra relaxar do movimento”. Lívia: “Devido ao descanso, ao sossego...Vim em busca disso”. Carlos Alberto quer “repor as energias pra começar segunda-feira tranqüilo. Porque da Terra emana força e poder”. Iara valoriza “O contato com a terra. Acho que é importante. Pisar na terra”. Roselane procura “o contato direto com a natureza, tirar o sapato, pé no chão”.
O contato com a terra, com chão sagrado, para o qual o turista se prepara pelo rito de tirar os sapatos da vida social e prática, o faz participante da força e do poder da natureza. Atualiza suas esperanças. Ressignifica sua vida.
Esse encontro com o “chão sagrado” é efêmero, a permanência no espaço de lazer não vai além do final de semana. Essas condições não são totalmente propícias à emergência de uma sociabilidade mais convivial, que afinidades, cumplicidades, trocas de emoções criem uma “comunhão”. Um “nós” não chega a se constituir. Marta lamenta não encontrar a sociabilidade do rural antigo, em que “se você passa, chama pra conversar, tomar um cafezinho naquela xicrinha de louça, né? ‘não, vem cá, toma um cafezinho aqui”. Ah!...então era gostoso. Quantas vezes a gente ia pra fazenda e o pessoal chamava: ‘não, vem aqui, vamos fumar um cigarrinho’...hoje em dia não tem mais isso, né!”
Márcia estranha que ninguém fale com os outros, porque “aqui, por exemplo, tem quiosque perto, mas ninguém conversa com ninguém”. Isto, porém, não a incomoda, porque “vim pra cá esperando tranqüilidade, não assim, com o intuito de às vezes confraternizar com a pessoa ao lado. Eu quero um lugar tranqüilo”. Kétina pensa como Márcia e não gostaria de repetir a sociabilidade do rural de antigamente: “Ah!...Acho que não sei. Não seriam as mesmas pessoas; eu acho que não, não. Não, não...Aquilo lá é tradição de família”.
Verifiquei nas falas das pessoas a visita a estabelecimentos rurais não é feita em conjunto com outros peregrinos, diferentemente do que se faz nas peregrinações religiosas, e, em regra, esse turista dispõe de pouco tempo. Em decorrência disso, a sociabilidade torna-se breve, a te mesmo para a celebração conjunta com outros que não os familiares.

O campo comemorado
O “contato” com a natureza que, temos visto, expressa a busca imaginária pelo campo, encontra seu coroamento na comunhão com ela pelo ritual da refeição. O turista que veio para o campo para “repor as energias” (Carlos Alberto), agora se refaz, nutrindo-se da mãe natureza. O filho que volta comemora comendo. Nessa operação, o turista emprega todos os sentidos: os da alegria e os do gozo10 . Os mais puros e espirituais – a visão, que ele também utilizou na contemplação da paisagem, das águas e das plantas -, a audição, com que ele ouviu o canto dos pássaros, o sussurar do vento a balouçar os galhos e as folhas – e os mais apetitivos e sensuais – cheiro e, mais ainda, o tato e o paladar.
Por associação, alguns alimentos evocaram o “cheirinho”, o gosto da comida do rural tradicional, preparada no fogão à lenha. O “fogão caipira” conduziu Amauri a associar a comida da Santa Branca com a fazenda. O mesmo aconteceu com Neiva, para quem “o cheirinho me faz recordar a fazenda, a casa da minha avó...minha avó até hoje tem fogão a lenha...” Para Erlane, “o cheirinho, né, do tempero, da fumaça” também acrescenta emoção ao “arrozinho com carne” que comeu na Villa Cerrado.
De todos os alimentos citados nos relatos, o pequi é o alimento mais apreciado pelos turistas. Diz Luiz Carlos Queiroz: “Adoro pequi, nossa senhora!... arroz com pequi, tudo com pequi é maravilhoso”. Érica tem a mesma opinião. Ela não foi para o Villa Cerrado exlcusivamente para comer, mas comeu “arroz com pequi, frango com pequi, tudo com pequi é maravilhoso”.
Marta foi para o Villa Colonial pra comer: “Eu comi frango caipira, o arroz, o pequi. Eu adoro pequi. (...) Eu gosto da comida típica, goiana mesmo”. José Maria foi para o banana Menina esperando encontrar: “Em primeiro lugar...uma boa, uma ótima comida caseira. Aquela comida típica” e lá comeu “ a galinha...é, o arroz com pequi, leitoa à pururuca”.

O pequi, humilde fruto das cariocaráceas, é o alimento mais apreciado pelos turistas. No turismo rural ele adquire certa sacralidade simbólica, tornando-se quase um totem, capaz de unir, de congregar os membros da comunidade que o transformou em emblema da goianidade. O pequi, por exemplo, talvez se possa dizer sem sacrilégio, que sua virtude, sua santidade seja imaginária. Se ele se constitui o prato da goianidade.
A sacralidade desse alimento provém de seu caráter simbólico, do fato de unir, de congregar os membros da comunidade imaginada que o escolheu, que o transformou em totem e emblema, a qual ele exprime. Em última análise, o que se comunga com o pequi é uma idéia, uma crença. O que se reitera é o sentimento de pertencer a este grupo. O organismo que se revivifica, de que se refaz a substância é, em último lugar e principalmente a família, com a qual se significa querer permanecer unido, indo comer, juntos, no restaurante rural.
É certo que o ato de comer, por si rotineiro e profano, adquire caráter de celebração em razão da sacralidade do lugar – o campo – e do tempo – o descanso ritual dos dias de não negócio (feriados e finais de semana) – em que se realiza. Simbolicamente, celebra-se o encontro com a natureza pelo ritual da refeição, momento comemorado, em que se comem pratos típicos da culinária goiana, como arroz com pequi; galinhada (arroz com frango), guariroba e outros. Neiva, inclusive, ressalta que gosta de comida caseira e na Pousada,onde a entrevistei, diz que comeu comida “simples...bem normal, mesmo, que significa saúde, saudável, do campo”, comeu “frango de caldo, arroz”.

Referências
BRASIL, Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatística socioeconômica. Brasília, 2005.
CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica: ensaio sobre o homem. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1997. 2ª. Ed.
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: Uma história do olhar no ocidente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
MORIN, Edgar; NAIR, Sami. Uma política de civilização.Lisboa: Instituto Piaget, 1997 (Coleção Economia e Política).
MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.
........................... Sociologia: a sociologia do microssocial ao macroplanetário. Lisboa: Europa-América, 1984.
........................... O método 1: a natureza da natureza. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.
PLAZAOLA, Juan S. Introducción a la estética: História, teroria, textos. Madrid: Biblioteca Cristianos, 1973.
STEIL, Carlos Alberto. O turismo como objeto de estudos no campo das ciências sociais. In: RIEDL, Mário; ALMEIDA, Joaquim Anécio; VIANA, Andyara Lima Barbosa (Org.). Turismo rural: tendências e sustentabilidade. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2002. p. 51-80.


1 De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Brasil, 2005), uma região metropolitana é densamente urbanizada e constituída por uma série de municípios interligados a uma cidade principal, que no caso dessa pesquisa é Goiânia – Capital de Goiás.

2 A literatura sobre o turismo rural mostra essa tendência com relação à frequência aos estabelecimentos turísticos.

3 O Cerrado ainda é a vegetação predominante no Estado de Goiás, apesar dos inúmeros alertas quanto à sua progressiva destruição.

4 Para maior compreensão do caráter estético da contemplação consultar Morin (2005, p. 132). Para este autor “A estética contemporânea é concebida não somente como uma característica própria da obra de arte, mas a partir do sentido original do termo, aisthétikos, de aisthanestrhai, “sentir”. Trata-se de uma emoção, uma sensação de beleza, de admiração, de verdade e, no paroxismo, se sublime; aparece não somente nos espetáculos ou nas artes, entre os quais, evidentemente, a música, o canto, mas a dança, mas também nos odores, perfumes, gostos dos alimentos ou das bebidas; origina-se no encantamento diante do oceano, da montanha, do nascer do sol”.

5 Nessa pesquisa entendemos contemplação como visão simples, intuitiva, olhar admirativo e afetuoso, em que mais se ama do que se conhece e que, por isso mesmo, é mais ou menos inefável.

6 Para esta discussão sobre o caráter estético da natureza nos fudamentamos em Plazaola, Juan S. Introducción a la estética: História, teoria, textos. Madrid: Biblioteca Cristianos, 1973, p. 358-360.

7 Há emergência de um novo rural em Goiás, que se consolida e que projeta linhas de continuidade entre campo e cidade, que chegam a desorientar o turista. Passou muito celeremente da fazenda autárquica, auto-suficiente, para uma situação em que o alimento parece emanar miraculosamente dos armazéns e dos empórios da cidade, em direção ao campo, que em vez de comida passou a produzir commodities.

8 Não é arbitrário afirmar que essa alternância proporciona ao turista os benefícios que Morin (1984, p. 258) apontara nos anos 70 para a “dupla vida urbana-neo-arcaica”: “o relaxamento fora do ecossistema urbano e o ganha-pão neste ecossistema (...) um certo bem-estar na alternancia das duas “culturas”, ou mesmo dos dois cultos: o culto da vida urbana moderna, da sua intensidade e das suas liberdades, e o culto da vida rústica, com a presença tranqüilizadora da Physis e do Arque”.

9 MacCannel, citado por Steil (2002, p. 59) aponta “um processo de sacralização no turismo que seria semelhante ao que acontece no campo religioso, fazendo com que determinados artefatos, naturais ou culturais, sejam erigidos como objeto de veneração e respeito”.

10 Sobre a hierarquia dos sentidos, conforme algumas escolas filosóficas e estéticas, fundamentamo-nos em Plazaola, Juan S. Introducción a la Estética: Historia, Teoria, Textos. Madrid: Bilbioteca de Autores Cristianos, 1973, p. 309-310; 317; 369-371.



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