TURyDES
Vol 1, Nº 1 (octubre / outubro 2007)

O FORTE SÃO MARCELO COMO ELEMENTO DE DESCOMODITIZAÇÃO DO TURISMO DE SALVADOR

Ernesto Britto Ribeiro y Milena Rocha Nadier Barbosa

 

 

Introdução

Com a abertura do Forte São Marcelo à visitação pública, no dia 29 de março de 2006, após anos fechado e maltratado pelos efeitos do tempo e descaso dos poderes públicos e privados do turismo da Bahia, vislumbra-se a viabilização de um atrativo turístico fora do eixo do sol e praia e do turismo de massa em Salvador, Brasil.

 

A reforma do patrimônio arquitetônico contou com o apoio da Prefeitura Municipal de Salvador, com o controle do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan e com a supervisão da ONG que administra o Forte, a Associação Brasileira dos Amigos das Fortificações Militares – Abraf. A criação dos atrativos tecnológicos contou com o patrocínio das empresas LG e Lojas Insinuante. À Faculdade de Turismo da Bahia - Factur coube desenvolver um receptivo diferenciado para o primeiro ano de funcionamento do atrativo.

 

Salvador carece, há muito tempo, de atrativos turísticos que se distanciem da estratégia competitiva baseada em baixo custo, caracterizado essencialmente pelo acesso às belezas naturais da cidade, notadamente às praias dos seus 52 km de orla. Esse modelo de competitividade baseado na estratégia de baixo custo e baixo preço foi adotado em diversos destinos turísticos e não apresentou resultados satisfatórios (BENI, 2006, p. 13). O turismo de sol e praia em uma grande cidade como Salvador é o que menos agrega valor ao destino. É o que poderia ser chamado de commodity do turismo. Se commodities são produtos primários ou padronizados, sem grande valor agregado e encontrados com as mesmas especificações, ou muito parecidas, em várias partes do mundo e/ou vários fornecedores, a exemplo da soja, do café, do cacau ou ainda dos produtos petroquímicos, a descomoditização é essencial para se construir um turismo diferenciado e não-massivo. Tal atividade deve agregar maior valor à experiência do visitante e conseqüentemente contribuir para que mais valores sejam deixados para os moradores do local.  Farias (2004, p.61) sugere que “o mercado crie novos atrativos e ressignifique produtos turísticos, pois existem segmentos sociais, com interesses diversificados, que buscarão esses novos atrativos”.

 

No caminho da descomoditização, o Forte São Marcelo aproxima o produto turístico de Salvador da estratégia da diferenciação. Porter (1989, p.12) ensina que uma empresa diferenciada é aquela que apresenta um atributo único em seu setor. Esse atributo deve agradar aos clientes de forma que a empresa possa cobrar um preço-prêmio pela diferenciação que oferece e ainda deixar os clientes satisfeitos, mesmo que tenham pago mais caro pelo produto ou serviço. Esse diferencial, continua Porter, pode ser baseado em atributos do próprio produto ou serviço, na forma de venda e de entrega, no poder de sedução de uma marca fortemente posicionada e em uma grande variedade de outros fatores.

 

O Forte São Marcelo, agora reformado, possui em sua essência diferenciais que o tornam único. O fato de estar construído sobre um banco de areia rodeado de mar por todos os lados e ser visitado após uma pequena travessia de barco já o destaca dos demais atrativos turísticos da cidade. Sua participação direta ou indireta em mais de 300 anos da história da cidade e do país, também ajuda na formatação de um produto turístico único. Mais ainda: o seu formato arredondado e a composição do seu entorno, a belíssima Baía de Todos os Santos, completam os atributos de exclusividade que são necessários aos produtos diferenciados, conforme as explicações de Porter.

 

Somado aos seus próprios atributos, o projeto ora em implantação leva para o Forte um “arsenal tecnológico” com computadores, telas de plasma, CD e DVD- player, midiateca, simuladores de navegação e outros equipamentos que compõem os roteiros de visitação, dando-lhe um toque de modernidade em seus mais de três séculos de história.

 

Aliada ao patrimônio histórico do Forte São Marcelo e ao aparato tecnológico ali instalado, a Faculdade de Turismo da Bahia desenvolveu, no primeiro ano de implantação, um receptivo diferenciado com o objetivo de humanizar e tornar especial a visita, procurando tocar o visitante e instigá-lo a conhecer mais sobre a história da fortificação e da Bahia. Dessa forma o São Marcelo se apresenta ao público turístico como uma opção de visita diferenciada, fugindo do binômio sol e praia ao qual a cidade está acostumada.

 

Entretanto, ao mesmo tempo em que grande quantidade de diferenciais pode ajudar a desenvolver um produto verdadeiramente único, ela pode também confundir o público com falta de identidade ou identidade confusa. O visitante pode não ter a dimensão correta do atrativo pelo excesso de informações concorrentes e até se decepcionar ao deparar-se com a realidade. Aquilo que poderia ser virtude pode transformar-se em falta de foco, como diz Caio Luiz de Carvalho, referindo-se ao grande potencial turístico da cidade de São Paulo:

 

Porém, é importante ressaltar que essa diversidade, se não for tomado o devido cuidado, pode dificultar a criação da identidade do destino, visto que a grande variedade dificulta o encontro de um foco imediato, responsável por proporcionar a aproximação com o público consumidor. (CARVALHO, 2006, p. 25)

 

 

Problema inverso acontece quando o equipamento não possui alto grau de atratividade, como é o caso do Forte de Monte Serrat, situado na Península de Itapajipe, também em Salvador. Em projeto de pesquisa sobre gestão de atrativos turísticos realizado pela Factur, entre 2002 e 2003, constatou-se que as agências e guias de turismo não o incluíam nos roteiros turísticos oferecidos aos visitantes. Aquela fortificação era entendida apenas como um ponto de passagem para a Igreja do Bonfim, considerada, ela sim, o principal atrativo da Península Itapajipana. Dessa forma, os guias não disponibilizavam tempo suficiente para que os turistas visitassem integralmente o atrativo e não possuíam informações suficientes sobre os atrativos culturais ali presentes, desenvolvidos com o trabalho da Interpretação do Patrimônio.

 

A falta de atratividade intrínseca do Forte de Monte Serrat era alegada para justificar o fato de que os guias de turismo conduziam os turistas com o intuito de circular no entorno da fortificação, contemplar a bela vista da Baía de Todos os Santos, mas não para entrar no Forte. Iniciou-se, então, uma discussão sobre a instalação de atrativo-âncora no andar superior dessa fortificação militar, capaz de, em conjunto com os atrativos culturais ali instalados e com a força da sua história, atrair para dentro dela os visitantes que passavam apenas pelo seu entorno. Tudo isso era causado pelo baixo grau de atratividade do equipamento, situação contrária à que ocorre no Forte São Marcelo.

 

 

A Tematização dos Roteiros

 

No caminho percorrido em busca da exclusividade, concebeu-se como temática fundamental do centro de visitação do Forte São Marcelo a questão da proteção que ele ofereceu à cidade. O objetivo da tematização é criar uma atmosfera que possibilite ao visitante uma viagem ao universo do seu imaginário (RIBEIRO, 2006). O tema que baseou o planejamento do Espaço Cultural foi “O Forte de São Marcelo protegeu a cidade do Salvador”. Essa temática desdobra-se em três roteiros interdependentes dentro do Forte, ocupando dez das 24 celas existentes no equipamento.

 

O primeiro roteiro, chamado de Memórias do Mar, abrange três salas. Nessa primeira exposição são trabalhados os aspectos referentes ao fascínio e aos perigos do mar. A fortificação foi construída por colonizadores encantados com as possibilidades de riqueza em novas terras e que, assim, lançaram-se ao oceano. Por outro lado, o motivo da sua construção é baseado nos perigos que o mar representa, no medo e na insegurança que tal elemento pode gerar.

 

Na primeira sala o visitante pode realizar um mergulho virtual na Baía de todos os Santos através de um simulador. Nessa sala são expostos aspectos sobre as grandes navegações. No segundo espaço a exposição é a respeito das riquezas dos portos das novas cidades da Colônia. Por fim, na ultima sala, é possível escutar relatos de náufragos e entender um pouco mais sobre o aspecto mais sombrio do mar.

 

O segundo roteiro, Memórias do Forte, abrange cinco salas, nas quais são expostos aspectos sobre a própria fortificação. Os motivos para a sua edificação, vistos em Memórias do Mar, ganham uma dimensão mais específica, evidenciando peculiaridades da construção, o cotidiano, revoltas e rebeliões, personalidades históricas ligadas ao patrimônio e questões sobre artilharia. Na última sala, o visitante tem a oportunidade de operar um canhão virtual e sentir-se como um artilheiro da época.

 

Por fim, no terceiro roteiro, Memórias da Cidade, pode ser observado o tesouro guardado pelo forte: a Cidade do Salvador. Em duas salas distintas, o visitante é convidado a conhecer a cidade por ele protegida. Planos urbanos e monumentos são apresentados em televisões, maquetes e em um mirante virtual, que traça a vista do frontispício da cidade em panoramas divididos por século.

 

A visita é finalizada com um vídeo sobre os fortes da cidade do Salvador apresentado no auditório do Espaço Cultural, incentivando a visita às outras fortificações da cidade.

 

O desafio que se apresenta para a gestão do turismo fica para além dos atributos únicos que o Forte já possui, como sua estrutura arquitetônica secular e os equipamentos eletrônicos de última geração industrial. Uma resposta a esse desafio é a construção multidisciplinar, com turismólogos, historiadores, museólogos, militares, administradores e outros profissionais, de um receptivo turístico diferenciado com exclusividade e inovação. Dessa forma estará estabelecida a estratégia de diferenciação turística do Forte São Marcelo, baseada no tripé: patrimônio histórico, tecnologia de última geração e atendimento turístico de excelência.

 

O atendimento ao turista foi planejado através de um receptivo interpretativo criado no Forte e para o Forte. Uma metodologia bastante difundida no exterior, “a interpretação mostra aos visitantes por que o local de importância patrimonial tem valor – para eles (visitantes), para a comunidade e talvez regional ou internacionalmente” (VEVERKA, 2003, p.23), promovendo, assim, a valorização e a diferenciação do bem interpretado. Esse autor é enfático ao descrever os benefícios da prática interpretativa. De acordo com ele,

 

A interpretação é parte indispensável ao sucesso definitivo (financeiro, político e educacional) dos lugares de importância patrimonial. A interpretação da estória e mensagem do lugar, é a razão principal da visita aos lugares de importância patrimonial e um elemento-chave no desenvolvimento de qualquer lugar de turismo patrimonial. [...] Programas e serviços interpretativos podem ajudar a aumentar a visitação do lugar, aumentar a repetição de visitas, aumentar e aperfeiçoar o apoio da comunidade, e uma variedade de outros benefícios [...] (VEVERKA, 2003, p.25)

 

No Forte, a interpretação foi desenvolvida através de roteiros guiados pelos monitores do Espaço Cultural. O planejamento desses roteiros seguiu os princípios interpretativos de provocar a curiosidade, tornar a linguagem acessível, utilizar diversas mídias, revelar significados e, principalmente, relacioná-los com a experiência do visitante.

 

Através do receptivo interpretativo, o Espaço Cultural buscou distinguir-se dos demais espaços museológicos da cidade, aproximando-se mais do contexto do visitante que do patrimônio em “pedra e cal”. O Forte tornou-se assim um local para a revelação dos significados que lhe são inerentes e que contribuem para o sistema cultural de Salvador. Esse é o valor que deve ser agregado ao seu produto turístico.

 

Além da importância da diferenciação para o desenvolvimento turístico, na ação interpretativa do Forte São Marcelo há aspectos relativos à própria comunidade soteropolitana. “Cada cultura deve ser compartilhada com todos, mediada pelo respeito e pela dignidade”, ensina Farias (2004, p.62) => não consta das referências. Nele, a comunidade de Salvador deve se reconhecer e sentir-se acolhida por valores que lhe são próprios. Atendendo a essa premissa, a interpretação no Espaço Cultural destaca a importância de o homem associar-se ao seu passado histórico. Pois, como afirma Merrimam,

 

A idéia fundamental é, de fato, formar um grupo daqueles que vivem, dos mortos, e daqueles que ainda não nasceram, um grupo do qual o individuo faça parte e se sinta feliz em reconhecer-se como membro [...] (um grupo no qual) todas as grandes vitórias ele pode compartilhar; todos os grandes homens são seus companheiros na constituição do grupo; todas as dores são por construções suas; todas as esperanças e sonhos, realizadas e frustradas também são suas. E assim, ele se torna apesar de seu status simples um grande homem, membro de um grande grupo, e sua vida simples é assim modificada pela glória que de outra maneira nunca se esperaria alcançar. Ele é elevado sobre e acima de si mesmo para mundos superiores onde ele caminha junto a seus grandes ancestrais, um, de um ilustre grupo do qual o sangue está em suas veias e do qual o domínio e a reputação ele tem orgulho de carregar. (MERRIMAN, ano apud TILDEN, 1977, p. 12)

 

 

Considerações Finais

 

Considerando verdadeiro o senso comum que diz que o turismo de massa geralmente atenta contra a sustentabilidade da localidade, o caminho a seguir é o da diferenciação do produto turístico. Isso é possível quando o destino possui atributos intrínsecos que o tornam único ou, ainda, quando identifica uma carência específica na demanda e consegue satisfazer a essa necessidade.

 

O caso da cidade do Salvador é típico. Ela se consolidou como um destino de sol e praia, que é tradicionalmente um segmento turístico de massa. Após a consolidação do destino, as autoridades gestoras do turismo passaram a envidar esforços para deslocar o foco da demanda de sol e praia para a de eventos, cultural e de negócios.

 

Hoje a cidade já não é mais um destino exclusivamente de verão. As atividades empresariais, os congressos e seminários nacionais e internacionais e outros eventos já dominam as estatísticas do turismo local. O foco está definido e o caminho traçado. É preciso diversificar os atrativos para satisfazer o público que atende ao novo chamado desse destino turístico. O convite deixa de ser para passar as férias em nossa praia e passa a ser para vir fazer negócios em nossa terra.

 

É nesse cenário que o Forte São Marcelo chega para ocupar um espaço praticamente ainda sem dono. O espaço do atrativo turístico diferenciado, voltado para um público seleto, não-massivo. Esse público corresponde a um volume de demanda capaz de movimentar a economia do equipamento, possibilitando a sua manutenção e a do seu aparato tecnológico. Não se sabe ainda se seria capaz de remunerar o capital nele investido.

 

Vale ressaltar que essa diferenciação não é estanque. Ela se dá em um processo continuo de pesquisa e aperfeiçoamento. Caberá, portanto, à gestão do Forte São Marcelo garantir que o planejamento do receptivo seja atualizado, de forma a atender às mudanças do mercado e ao amadurecimento do próprio Espaço.

 

Assim como o Forte São Marcelo, outros atrativos com características exclusivas vão surgir na cidade, formando o cenário de um destino que se afasta da idéia de commodities turísticas e se aproxima cada dia mais da diferenciação estratégica. É assim que a localidade agrega valor ao produto turístico que oferece aos seus visitantes e atrai uma categoria de turistas ecológica e socialmente consciente e curiosa em conhecer a história do lugar e sua influência em sua própria história de vida. É também assim que ela possibilita ao visitante deixar no destino uma parcela mais representativa de suas economias, agregando, destarte, mais valores à comunidade local.


Referências

BENI, Mário Carlos. Política e Planejamento Estratégico no Desenvolvimento Sustentável do Turismo. Turismo em Análise, São Paulo, vol. 17, n. 1, p. 5-22, Maio 2006.

CARVALHO, Caio Luiz de. Desafios para consolidar um destino turístico: estudo preliminar do caso Cidade de São Paulo. Turismo em Análise, São Paulo, vol. 17, n. especial, p. 24-35, Janeiro 2006.

FARIAS, Eny Kleyde. 2004. (não consta das referências)

FARIAS, Eny Kleyde. A construção de atrativos turísticos com a comunidade. In: MURTA, Stela; ALBANO, Celina (Orgs.). Interpretar o patrimônio: um exercício do olhar. Belo Horizonte: UFMG: Território Brasilis, 2002. Cap.4, p. 59-74.

PORTER, Michael. Vantagem Competitiva: criando e sustentando um desempenho superior. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

RIBEIRO, Ernesto Britto. Tematização de Empreendimentos Turísticos. Disponível em www.sobreturismo.com.br Acesso em 17/07/2006.

TILDEN, Freeman. Interpreting our heritage. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1977. 120 p.

VEVERKA, John A. Por que lugares de importância patrimonial necessitam de interpretação para sua sobrevivência ao longo do tempo. Turismo: tendências e debates, Salvador, Ano 5, nº5, p. 21-25, Mês 2003

 


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