Observatorio Economía Latinoamericana. ISSN: 1696-8352


O TURISMO COMO FATOR DE AUTONOMIZAÇÃO ECONÔMICA DA POPULAÇÃO PRAIEIRA DE MARUDÁ (MARAPANIM-PA)

Autores e infomación del artículo

Diego Corrêa Furtado*

Robertho Marconi Santos Ruas**

UFOPA, Brasil

dkhasinau@gmail.com

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Resumo: A abordagem do turismo como objeto de pesquisas tem sido marcada pelas ideias de aculturação dos povos residentes nas localidades turísticas e de sua integração à lógica econômica urbana. Visando contribuir para a relativização dessa perspectiva, o artigo enfoca o caso da localidade de Marudá, no litoral atlântico amazônico. Por meio de revisão bibliográfica e visitas ao local, o artigo descreve o engajamento dos moradores nativos em postos de trabalho ligados ao turismo balnear e a alternância dessas vinculações ao exercício da atividade pesqueira. Não significando a renúncia à pesca, este movimento apenas restabeleceu a condição de polivalência produtiva, outrora perdida em favor da constituição da pesca como atividade econômica exclusiva de Marudá. Conclui que, ao atenuar a dependência em relação à atividade pesqueira, o turismo favorece o aumento da autonomia dos nativos e fortalece a pertença ao universo econômico do campesinato.

Palavras-chave: Aculturação. Autonomia camponesa. Avaliação da atividade econômica. Campesinato amazônico. Desenvolvimento sustentável. Economia pesqueira. Povos tradicionais.

Resumen: El tratamiento del turismo como objeto de investigación está marcado por las ideas de aculturación de los pueblos residentes en los destinos turísticos y de su integración a la lógica económica urbana. Para contribuir a la relativización de esta perspectiva, el artículo enfoca el caso de Marudá, en el litoral atlántico amazónico. Por medio de revisión bibliográfica y visitas, el artículo describe la ocupación de los moradores nativos en puestos de trabajo vinculados al turismo y la alternancia de esas vinculaciones al ejercicio de la actividad pesquera. No significando la renuncia a la pesca, este movimiento sólo restableció la condición de polivalencia productiva, otrora perdida en favor de la constitución de la pesca como actividad económica exclusiva de Marudá. Concluye que, al atenuar la dependencia en relación a la actividad pesquera, el turismo favoreció el aumento de la autonomía de los nativos, fortaleciendo su pertenencia al universo económico del campesinado.

Palabras clave: Aculturación. Autonomía campesina. Campesinado amazónico. Desenvolvimiento sustentable. Economía pesquera. Evaluación de la actividad económica. Poblaciones tradicionales.

Abstract: The treatment of tourism as a research object continues to be marked by ideas such as acculturation of natives from touristic destinations and their integration into the urban economic logic. Aiming to contribute to the relativization of this perspective, the paper focuses on the case of Marudá hamlet, on the Atlantic coast of the Amazon. Through bibliographic review and visits to the village, the paper describes the hiring of native residents in jobs related to bathing tourism and the alternation of these links to the exercise of fishing activity. Not meaning the renunciation of fishing, this movement merely reestablished the condition of productive polyvalence, once lost in favor of the constitution of fishing as an exclusive economic activity in Marudá. It finally concludes that, by mitigating the dependence related to fishery, tourism favored an increase in the autonomy of the natives, also strengthening their belonging to the peasant economic universe.

Keywords: Acculturation. Amazonian peasantry. Economic activity evaluation. Fishing economy. Peasant autonomy. Sustainable development. Traditional people.

Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Diego Corrêa Furtado y Robertho Marconi Santos Ruas (2018): "O turismo como fator de autonomização econômica da população Praieira de Marudá (MARAPANIM-PA)", Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, (diciembre 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/oel/2018/12/turismo-autonomizacao-economica.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/oel1812turismo-autonomizacao-economica


1 INTRODUÇÃO
            A análise do contato entre membros de sociedades centrais, urbanas, e de sociedades locais, particulares, tribais, forneceu o alicerce para a constituição da Antropologia como ramo específico do saber (FELDMAN-BIANCO, 1987). O reordenamento de relações e os deslocamentos de posições sociais decorrentes das situações de contato tendiam a ser interpretados como fatores de aculturação dos povos tribais, de eliminação dos traços distintivos de sua cultura e homogeneização à cultura da sociedade dominante (CUCHE, 1999). Paulatinamente, porém, consolidou-se divergente concepção, que, valorizando os aspectos dinâmicos da cultura, buscava destacar as condições de participação das sociedades locais nas situações de contato, descrevendo seus membros não mais como meros receptáculos da mudança, vítimas passivas dos emissários da sociedade englobante, mas agentes sociais capazes de articular formas ativas de engajamento ao processo de mudança (NEVES, 1995).
            Analogamente a esse quadro, a constituição do turismo como temática de pesquisa científica favoreceu, em um primeiro momento, a compreensão desse ramo de atividade econômica como fator de desestruturação social e cultural das localidades receptoras de fluxos turísticos. A partir da década de 1990, porém, os estudos sobre o tema passaram a adotar maior rigor metodológico, reconhecendo a multiplicidade de configurações por meio das quais o turismo pode se objetivar no mundo social. Vertentes desse campo de estudos se aproximaram dos princípios erigidos pela Antropologia e aderiram à concepção de cultura como sistema heterogêneo e dinâmico. Descartando modelos explicativos deterministas e reconhecendo a necessidade de análise contextual do fenômeno turístico, mitigaram a relevância da noção de aculturação, da mesma maneira como a Antropologia antes fizera (SANTOS; BARRETTO, 2006). Como também ocorre com as ciências sociais, no entanto, os estudos do turismo não se constituem por sucessão de paradigmas, mas tão somente pela diversificação de perspectivas analíticas, coexistindo, portanto, ainda hoje, em paralelo à visão de contexto, análises mais alinhadas à precedente concepção de turismo como fator de aculturação.
            A vitalidade da concepção aculturacionista se revela, por exemplo, na disseminação de discursos e estudos em prol de um turismo reputado como sustentável, como se o vocábulo “turismo”, assim escrito, sem termos qualificantes, remetesse a uma atividade intrinsecamente predatória – dos pontos de vista ambiental, social e cultural. Opondo-se a essa imagem generalizante e reconhecendo a polissemia subjacente à noção de turismo, o trabalho busca demonstrar, no âmbito de uma específica localidade da costa atlântica amazônica, que a atividade, como ali circunstancialmente se processou, favoreceu justamente o restabelecimento de traços pretéritos de organização da vida econômica dos moradores nativos, e não sua aculturação e adesão à lógica econômica urbana dos turistas. Busca demonstrar que o fortalecimento de traços culturais correlatos a uma lógica econômica camponesa – marcada pela busca por maior autonomia em relação às forças do mercado – no local ocorreu em função da intensificação dos fluxos turísticos, e não apesar deles.
            Nessa esteira, ao efetivar um exercício de relativização acerca da temática do turismo, este artigo não pretende propor uma essencialização inversa, uma romantizada visão da atividade como intrinsecamente apta a suprir os objetivos ambientais, econômicos e sociais ligados à noção de sustentabilidade. Pretende, porém, indicar a relevância de que a análise dos processos turísticos – e particularmente aqueles em curso no litoral amazônico – perpasse pela compreensão de que o turismo, significando necessariamente fator de promoção do intercurso entre membros de distintas formações sociais, não necessariamente se liga a processos de aculturação, desestruturação social e dominação econômica. Espera-se, assim, contribuir para a percepção de que o turismo não representa força econômica intrinsecamente predatória, mas simplesmente fator econômico cuja interpretação e valoração demandam análises contextualizadas.

2 REFERENCIAL TEÓRICO: SISTEMAS ECONÔMICOS NÃO CAPITALISTAS E CAMPESINATO
Ao tratar do contato entre diferentes sociedades e da possibilidade ou impossibilidade de homogeneização de traços culturais correlatos à esfera econômica, o texto evidencia sua afiliação à concepção de Chayanov (1966), para quem existe uma diferenciação entre concorrentes lógicas que presidem as relações econômicas em distintos contextos sociais. Segundo Chayanov (1966), o modo de produção capitalista (MPC), lógica que preside as trocas econômicas em contextos formais, possui princípios estruturantes próprios, que, quando empregados na análise de outros modos de produção (p. ex., economia natural, feudalismo, escravismo, campesinato), redundam em equívocos.
Em esforço de delimitação teórica, Chayanov (1966) associou o conceito de exploração camponesa a um numeroso segmento social da Rússia pré-revolução, ligado à pequena posse rural e à produção agrícola pautada pelo trabalho familiar. De acordo com o autor, haveria uma sobreposição parcial entre unidade de produção (membros da família camponesa aptos ao trabalho) e unidade de consumo (todos os membros da família camponesa), variável ao longo do ciclo demográfico do grupo doméstico. Os esforços da unidade de produção, ou seu grau de auto-exploração, seriam modulados pelo estrito objetivo de satisfazer as necessidades de consumo da família camponesa, enquanto no MPC o nível de exploração do trabalho seria determinado pela maximização do lucro.
Particulares estratégias de alocação da força de trabalho familiar e a posse ou não de terras e instrumentos de trabalho obrigariam os camponeses a desenvolver suas atividades em condições de maior subordinação ao mercado (p. ex., pelo aluguel de terras), ou permitiriam maior autonomia (sempre relativa, jamais absoluta). Traço estruturante da exploração camponesa, para Chayanov (1966), seria a integração parcial do segmento ao mercado, sua coexistência com o modo de produção dominante, nunca seu isolamento. Os esforços, porém, seriam dirigidos à conquista de superiores graus de autonomia relativa, menores demandas de auto-exploração do trabalho para satisfação das necessidades de consumo do grupo familiar e, consequentemente, à conquista de melhores níveis de bem-estar – não significando, necessariamente, enriquecimento.
No entanto, desenvolvido em um contexto tão particular, o conceito de campesinato acabou relegado a uma posição periférica na produção científica, sendo geralmente associado à reprodução de estereótipos de um camponês petrificado no passado histórico ou identificado com formas de existência social correlatas aos espaços circunstancialmente ocupados: o meio rural, a fazenda, a roça, o sítio, o assentamento. Visando ultrapassar essas leituras e auferir condições de ampliar o escopo de aplicabilidade do instrumental teórico do campesinato a uma maior gama de situações empíricas, Ploeg (2008), de visão mais cosmopolita, cunhou a noção de condição camponesa.
Ratificando a visão de Chayanov, a condição camponesa, segundo Ploeg (2008), seria a contínua luta por autonomia em um contexto de dependência e privações. Esta luta se viabilizaria por meio de particulares arranjos de coprodução entre homem e natureza, e seus recursos deveriam ser combinados de modo a possibilitar formas menos desvantajosas de vinculação ao mercado. Para além da estrita análise da evolução do ciclo demográfico familiar, Ploeg (2008) valoriza a diversidade cultural como fator explicativo da diversidade empírica de formas pelas quais a condição camponesa se expressa no mundo. Unindo todas as variadas formas de consubstanciar a condição camponesa, haveria uma postura de diferenciação do campesinato frente a outros modos de produção, caracterizado pela experiência, pelo profundo enraizamento aos contextos locais e pela ligação entre o conhecimento da procedência dos recursos e a noção de confiança.
Esta lógica econômica, segundo Ploeg (2008), institucionalizaria um distanciamento – não cisão – em relação aos mercados, pois os repertórios culturais locais, ou economias morais, modulando as relações dos camponeses com agentes e órgãos do governo e do mercado, levariam a uma atitude de desconfiança em torno das promessas oriundas do mundo externo. O autor sugere, pois, que os camponeses buscam evitar a imediação e guiar suas decisões de acordo com relações construídas cuidadosa e progressivamente no decurso do tempo, compensando sua desconfiança a respeito do mundo exterior com a confiança na experiência e em seus próprios desejos. Assim, a condição de autonomia seria construída através de particulares arranjos entre unidades de produção e de consumo, recursos e saberes locais, para alcançar o máximo possível de flexibilidade e mobilidade em face das forças de coerção exercidas pelos agentes do modo de produção dominante.
As noções de condição camponesa, lógica econômica camponesa e autonomia relativa – ainda em Ploeg (2008) remetidas à atividade agrícola – são, porém, compatíveis com as condições de vida de grupos sociais reconhecidos como agricultores familiares, povos tradicionais e congêneres (MOTTA; ZARTH, 2009). Tais denominações, aliás, apenas emergiram devido às especificidades das demandas pleiteadas pelos respectivos grupos de interesse no plano jurídico-político e às incompreensões a que fora submetida a noção de campesinato na esfera acadêmica. Tratando-se, a população nativa da localidade enfocada neste artigo, de comunidade cabocla praieira, parece, portanto, adequado apoiar-se nesse quadro teórico para compreender a lógica que preside a organização de sua vida econômica e o intercurso estabelecido com a sociedade abrangente.

3 MÉTODO
As observações empíricas e reflexões do artigo se remetem à localidade (distrito) de Marudá, na costa oceânica do município de Marapanim, estado do Pará (Figura 1). Marapanim é um município do nordeste paraense, localizado a 160 km de distância da capital estadual, Belém. Banhado pelo oceano Atlântico, apresenta ambientes de restinga, manguezal, praia e matas secundárias com níveis variáveis de conservação. Conforme último censo populacional, o município reúne 26.605 habitantes (IBGE, 2010), distribuídos entre a sede urbana e vários distritos e vilas. Esta população, porém, aumenta sobremaneira no veraneio (termo sem conotação climatológica, significando simplesmente o mês de julho e a virada do ano) e nos feriados, devido ao movimento de pessoas de outros municípios em direção à zona costeira do município em questão. Teixeira (2015, p. 73) indica que, em julho, dirigem-se a Marapanim – como um todo, mas sobretudo ao distrito de Marudá – entre 50 mil e 60 mil veranistas, que compõem a população flutuante ou população temporária do município.

            A pesquisa emprega abordagem empírica e bibliográfica para subsidiar a discussão proposta. No primeiro plano, realizaram-se sucessivas incursões a Marudá ao longo de todo o ano de 2017 para observação sistemática de seu cotidiano. Conduziram-se também entrevistas abertas com moradores do local, por meio de conversas travadas em circunstâncias informais. Além disso, as observações igualmente se beneficiaram do frequente contato mantido pelos autores deste trabalho com o referido contexto empírico – desde 2006 –, tanto em situações de visitação turística, quanto, por duas vezes, em situações de investigação científica sistemática.
No segundo plano, recorreu-se aos trabalhos de diferentes autores, ligados a tradições disciplinares diversas (p. ex., Antropologia, Economia, Botânica, Farmacologia, Engenharia de pesca), que, em sucessivas temporalidades, legaram contribuições à compreensão das mudanças sociais vivenciadas pela população de Marudá. Figurando como cenário de diversos estudos remetidos às relações entre sociedade e ambiente, a localidade conta com rica documentação acerca de suas formas próprias de organização social, das práticas econômicas ali objetivadas e das particulares configurações de usos de recursos naturais ali inventariadas ao longo do tempo.
A associação entre observação empírica e pesquisa bibliográfica permitiu, enfim, formular ponto de vista propício à análise do turismo em Marudá a partir do viés processual. Apenas por meio de perspectiva diacrônica, afinal, se poderia pretender alcançar adequadamente a compreensão sobre as mudanças, permanências e eventuais reafirmações de traços culturais correlatos à organização da vida econômica dos moradores daquela localidade.

4 RESULTADOS
As visitas a Marudá e a imersão em seu cotidiano revelam o caráter híbrido dos regimes de trabalho desenvolvidos pelos moradores da localidade. O referido hibridismo laboral se consubstancia nas observações de que os marudaenses permanecem atrelados a diferentes universos de trabalho no decurso do tempo, negociando seus padrões de engajamento de acordo com as distintas épocas do ano. A distinção entre épocas do ano, aliás, não é feita pela variação sazonal de estações climáticas, mas segundo os níveis de visitação turística registrados ao longo dos meses de um ano.
Tomando por referência o recorte temporal proposto, o mês de julho figura como importante vetor de organização do cotidiano marudaense, pois registra altas taxas de influxo de visitantes, entre 50 e 60 mil pessoas (TEIXEIRA, 2015, p. 73). Corresponde à época denominada, no léxico da região nordeste paraense, como veraneio, e funciona como eficiente fator de movimentação de massas de visitantes por representar o período de férias escolares situado na estação mais seca do ano.
O mês de julho, portanto, figura como a alta temporada da atividade turística e implica mais intenso contato entre a população fixa de Marudá e a população flutuante de veranistas. Há, porém, atividade turística em outros momentos do ano, ainda que em menor escala, perfazendo a baixa temporada. Estes momentos são os finais de semana em geral, mas sobretudo aqueles vinculados a feriados que incidem em sextas ou segundas-feiras, configurando a situação de feriado prolongado. Os principais feriados prolongados são o carnaval e a semana santa, que sempre incidem em dias da semana contíguos a finais de semana; de resto, quase todos os meses do ano possuem ao menos um feriado nacional ou estadual, que eventualmente se prolonga ao final de semana.
Cerca de um ou dois meses antes do início da alta temporada, alguns marudaenses – aqueles que exercem ofícios de pedreiros, marceneiros, pintores – passam a ser crescentemente solicitados pelos proprietários de casas de praia a realizar obras de reparo e manutenção. Com o efetivo início do veraneio, os principais sorvedouros da força de trabalho dos marudaenses passam a ser os empregos temporários como vendedores nos comércios (açougues, mercadinhos, lojas de roupas); garçons ou garçonetes em restaurantes e bares; e camareiros e faxineiros nos hotéis e pousadas. Essas funções, embora existentes ao longo de todo o ano, requerem suplementação de força de trabalho na época do veraneio, para atender a grande demanda acionada pelo influxo de visitantes. Ainda alguns que não logram contratação como excedentes encontram oportunidade nas condições propiciadas pela alta temporada, pois atuam autonomamente como ambulantes na praia, vendendo bebidas, lanches, chapéus, brinquedos e artesanatos diversos.
O intercâmbio entre marudaenses e visitantes no veraneio é tão intenso que obscurece a complexidade do mundo do trabalho estruturado na baixa temporada. Embora o intercurso propiciado pelo turismo não desapareça por completo em nenhuma época do ano, na baixa temporada ele passa a concorrer com uma série de paralelas ocupações, que refletem reminiscências de anteriores modos de organização da vida social de Marudá.
Na baixa estação, durante a maior parte do tempo, a praia de Marudá e as ruas da localidade são tomadas por um esvaziamento quase completo, apenas eventualmente interrompido pela passagem de um carro ou uma bicicleta. O que fazem, então, os moradores fixos do distrito? Em que ofícios se engajam para obter sua subsistência?
Os marudaenses, durante a baixa temporada, permanecem atrelados ao universo de trabalho sustentado pelo turismo, pois vários deles, além de trabalharem nos bares, restaurantes e comércios durante os finais de semana, também atuam como caseiros. Enquanto caseiros, visitam diariamente um conjunto de casas de praia, cuidam de sua vigilância contra invasões e saques e, quando o proprietário anuncia uma visita, promovem a limpeza de seus jardins e quintais e realizam a faxina em seu interior. Este ofício é desempenhado mediante contrato informal, “de boca”, e é permeado por relações de compadrio, devido ao sentimento de vizinhança existente entre o morador permanente e seu vizinho temporário, desenvolvido ao longo de anos, às vezes décadas, de convívio.
A eventualidade das contratações no comércio durante a baixa estação e o baixo grau de esforço requerido pelo ofício de caseiro permitem, assim, que os marudaenses se deparem, nessa época do ano, com a situação de desocupação. Conseguem liberar a força de trabalho que, durante o veraneio, é quase integralmente devotado ao intercurso com os turistas. Sob tais circunstâncias é que se reconhece, empiricamente, o hibridismo laboral antes citado. Na baixa temporada, os moradores da localidade passam a dirigir considerável parcela de seu tempo e de sua força de trabalho à pesca, à catação de moluscos e crustáceos (mariscagem), ao extrativismo e processamento de plantas medicinais e à produção de artesanato. Articulam seus engajamentos a dois universos de trabalho: de um lado, aquele inaugurado pelo turismo; de outro, aquele ligado às formas próprias de relações entre sociedade e natureza, enraizadas na cultura local.
E, ao mesmo tempo em que articulam esses concorrentes engajamentos, os marudaenses objetivam seu hibridismo laboral por meio de um padrão de alternância, modificando as proporções de tempo dedicadas a cada um desses universos, de acordo com a época do ano. No veraneio, suprimem as atividades ligadas à exploração dos recursos do ambiente, em favor do melhor custo de oportunidade representado pelo intercâmbio com a notável massa de turistas. Na baixa estação, reatualizam seus engajamentos híbridos e, mesmo em face de uma baixa taxa de visitação turística, logram satisfazer suas respectivas necessidades de consumo.

5 DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Os trabalhos datados das décadas de 1990 e 2000 conceberam a dinâmica de mudança social verificada em Marudá como direta decorrência da consolidação do turismo balnear no local. Ressaltando as modificações nos padrões de ocupação do solo e a privatização do espaço para construção de casas de praia e estradas, Bastos (1995) demonstrou a ocorrência de danos ambientais e sugeriu que eles poderiam inviabilizar práticas comerciais, alimentares e terapêuticas das populações nativas e ameaçar suas especificidades socioeconômicas e culturais.
Potiguar Jr. (2001) e Coelho-Ferreira (2009), ambos em pesquisa de campo na segunda metade dos anos de 1990, alimentaram hipóteses de que a necessidade de complementação da renda doméstica levaria a comunidade de pescadores a se engajar cada vez mais aos postos de trabalho associados ao atendimento das demandas dos veranistas. A prestação de serviços, afinal, como observado por Coelho-Ferreira (2009), podia ser não somente temporária, restrita ao veraneio, mas, em alguns casos, prolongar-se, tornando-se vínculo permanente.
Adentrando os anos 2000, Furtado et al. (2006) declararam que Marudá perdera o status de vila pesqueira, convertendo-se em estação balnear. Para além da reordenação espacial promovida pelo turismo, as próprias manifestações culturais locais, como a dança carimbó, eram preteridas por aquelas de apelo midiático. Alegavam-se ocorrer mudanças de comportamento e expectativas dos marudaenses a partir da prolongada, ainda que sazonal, interação com os veranistas.
No entanto, a produção bibliográfica subsequente, acumulada a partir de 2010, registra – em consonância ao que o trabalho de campo antes relatado também permitiu observar – a continuidade de uma série de ocupações e ofícios ligados à exploração tradicional dos recursos naturais, via pesca, mariscagem, extrativismo vegetal, apesar das evidentes marcas de mudança propiciadas pelo turismo. Assim, a análise das mudanças passou a ser contraposta à análise das permanências. Todavia, trabalhos como os de Alves, Gutjahr e Silva (2015), Borcem et al. (2010) e Flor e Barbosa (2014; 2015), não esclarecendo o exato papel do turismo nesses processos, pareceram se assentar na ideia de que as ocupações ditas tradicionais eram reproduzidas devido a suas características simbólicas particulares, seu profundo enraizamento cultural, e em detrimento do turismo e de sua força erosiva. Desse modo, o papel atribuído ao turismo permaneceu ligado à ideia de mudança, de desarticulação das formas próprias de organização social e de organização da vida econômica.
Resta, portanto, o pressuposto de que o turismo, embora malsucedido segundo essa ótica, implica renúncia a estilos de vida e a formas de organização social do trabalho ditos tradicionais. O presente artigo, porém, propõe interpretação alternativa, indicando que, aos moldes como atualizado em Marudá, o turismo, além de não ter desestruturado nenhuma idealizada tradicionalidade, efetivamente atuou como fator de reabilitação de traços de uma lógica econômica precedente.
Etnografia de Furtado (1987), não disponível na rede de computadores e insuficientemente esmiuçada pela bibliografia subsequente, expressamente afirma que em um tempo tão remoto quanto o ano de 1957, jornais da cidade de Belém já enalteciam as qualidades de Marudá, sobretudo seu clima e a quietude de seu cotidiano, divergindo da turbulenta vida citadina (FURTADO, 1987, p. 110-111). Estimulava-se, desde então, a utilização turística da vila de Marudá.
Por outro lado, Furtado (1978; 1987) situa na década de 1930 a fundação da vila pesqueira de Marudá, impulsionada pela construção de estrada ligando a localidade à cidade de Belém. Como a estrada permitiria tirar proveito da piscosidade da orla litorânea, escoando-se peixe fresco para grandes centros consumidores, grupos de moradores de terras mais interiores – e inclusive de outros municípios – se deslocaram até a acosta e ali constituíram residência permanente. Abdicaram de seus sistemas de produção polivalente, em que articulavam agricultura, pesca, criação de animais e extrativismo, e passaram a exercer a pesca como atividade exclusiva.
Daqui, extrai-se, já, uma primeira observação: a pesca, o cotidiano haliêutico, a sociabilidade pesqueira e a economia monovalente (pautada no produto único) não constituem estilo de vida da maior profundidade histórica e cultural para os marudaenses, tendo emergido apenas na década de 1930. A constituição da pesca como atividade exclusiva, aliás, é que figura como fator desarticulador de uma anterioridade cultural, a desagregar os consolidados sistemas de produção polivalentes.
Como também reportado por Nascimento (2006), em referência a contexto socioambiental análogo e espacialmente próximo a Marudá, a exclusividade pesqueira favoreceu a subordinação econômica das populações costeiras. Em decorrência da estruturação da cadeia de escoamento do pescado, os pescadores ficaram submissos à volatilidade do mercado e ao oportunismo dos “patrões” (donos de barcos e fornecedores de petrechos de pesca) e dos “marreteiros” (atravessadores, comerciantes intermediários), sendo enredados por relações comerciais desfavoráveis. Além disso, não mais contavam com os produtos obtidos por outros subsistemas de produção, como os cultivos, para o autoconsumo, ficando sua obtenção condicionada à aquisição via compra (FURTADO, 1978).
Remetendo-se à condição de espoliação a que os pescadores exclusivos se encontravam submetidos, Nascimento (2006) cunhou o termo “tempo de famitura”, em contraposição ao “tempo de fartura”, demarcatório do precedente período de produção polivalente. Como produtores polivalentes, apesar da simplicidade das condições materiais de vida, os trabalhadores participavam de diferentes circuitos comerciais e, ainda quando as relações econômicas não se mostravam satisfatórias, tinham acesso a alimentação variada para consumo doméstico, pois produziam-na pessoalmente. Como pescadores exclusivos, produtores monovalentes, ao contrário, se tornavam reféns do produto único.
À vista do exposto e retomando-se o caso de Marudá, pode-se argumentar, portanto, que a relativa supressão da atividade pesqueira por meio da consolidação da localidade como polo turístico não só não desarticulou nenhuma tradicionalidade imemorial – como antes exposto –, como, na verdade, restituiu a condição de polivalência econômica, um traço precedente de organização da vida econômica daquele grupo social. E colocando-se como opção laboral àquela população, os postos de trabalho instituídos pelo turismo liberaram a comunidade de pescadores da espoliação decorrente da dedicação exclusiva à atividade pesqueira.
Poder-se-ia argumentar que a exclusividade pesqueira tem sido substituída pela exclusividade turística. O vivo hibridismo de engajamentos laborais encontrado em campo e a anterioridade dos registros de atualização da atividade turística em Marudá – remontando ao ano de 1957, deve-se lembrar –, porém, não autorizam essa conclusão. O atendimento de serviços ligados à demanda turística se coloca claramente como opção complementar de engajamento laboral, inclusive devido à precariedade e informalidade dos laços contratuais estabelecidos entre moradores, visitantes e empresários. Além disso, as relações travadas entre turistas e marudaenses são fortemente marcadas por sazonalidades, concentrando-se em determinada época do ano, o que inviabiliza conversões ocupacionais tão disruptivas. Assim, não prospera a hipótese de conversão ocupacional, mas tão somente de alternância e cumulatividade ocupacional.
Constituindo-se como complementar recurso a ser mobilizado pelos marudaenses na formulação de suas circunstanciais estratégias de reprodução social, o trabalho associado ao polo balnear permite, assim, que esses atores se movam com maior autonomia econômica. Tal autonomia se consubstancia na liberação desses atores em face das amarras impostas pelo trabalho monovalente e em sua renovada aptidão para transitar entre dois distintos domínios de engajamento laboral, articulando distintamente seus recursos ao longo do tempo.
Conclui-se, assim, que o turismo, apontado como fator de desagregação social de Marudá, se vincula, ao contrário, ao restabelecimento de traços precedentes dos modos de organização da vida econômica da respectiva população. Não promovendo a fixação dos marudaenses aos postos de trabalho do polo balnear, o turismo representa a recomposição do padrão de produção polivalente, pois permite o engajamento desses trabalhadores a concorrentes universos laborais e assim restitui sua autonomia para transitar entre um e outro, de acordo com seus interesses e estratégias particulares. Não se crê que a informalidade demarcatória das relações de trabalho desses dois universos laborais possibilitem grandes chances de ascensão social aos marudaenses, porém se advoga que a possibilidade de alternância entre um e outro representa fator de mitigação dos riscos de subalternidade e espoliação ligados à exploração intensiva de uma única atividade.

REFERÊNCIAS

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*Biólogo (Centro Universitário do Pará – CESUPA). Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável (Universidade Federal do Pará – UFPA). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Natureza e Desenvolvimento (Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA).
** Graduado em Ciências Sociais, ênfase em Antropologia (Universidade Federal do Pará – UFPA). Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável (Universidade Federal do Pará – UFPA). Doutor em Saúde e Produção Animal na Amazônia (Universidade Federal Rural da Amazônia – UFRA).

Recibido: 30/11/2018 Aceptado: 04/12/2018 Publicado: Diciembre de 2018

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