Revista: Caribeña de Ciencias Sociales
ISSN: 2254-7630


O SENTIDO IDENTITÁRIO E POLÍTICO DA NATUREZA NA POESIA DE DOM AQUINO

Autores e infomación del artículo

Michael Jhonatan Sousa Santo*

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso. Brasil

Correo: michael.santos@pdl.ifmt.edu.br


Resumo: No presente trabalho, objetivou-se aproximar literatura mato-grossense da história de Mato Grosso, para pensar quais seriam as relações daquela com as estruturas do poder político e econômico no estado e se, nas duas primeiras décadas do século XX, almejou se configurar como suporte de uma identidade mato-grossense. Tal objetivo se construiu por analogia à tese de Zorzato (1998). Para sua consecução, propusemos uma reflexão acerca do livro de poemas intitulado Odes, de autoria de Dom. Francisco de Aquino Correa e, no âmbito deste, sobre o poema A chimbuveira.  

Palavras-chave: Dom Aquino. Poesia. Natureza. Identidade e política.

Resumen: El objetivo de este artículo era acercar la literatura de Mato Grosso a la historia de Mato Grosso, pensar en sus relaciones con las estructuras de poder político y económico del estado y si, en las dos primeras décadas del siglo XX, pretendía configurarse. como soporte para una identidad de Mato Grosso. Este objetivo fue construido por analogía con la tesis de Zorzato (1998). Con este fin, propusimos una reflexión sobre el libro de poemas titulado Odas, escrito por Dom Francisco de Aquino Correa y, en este contexto, sobre el poema A chimbuveira.

Palabras clave: Dom Aquino. Poesía. La naturaleza. Identidad y política.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Michael Jhonatan Sousa Santos (2019): “O sentido identitário e político da natureza na poesia de Dom Aquino”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (diciembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/12/poesia-dom-aquino.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1912poesia-dom-aquino


1 Introdução

Na tese Identidade e conciliação: considerações sobre a historiografia de Mato Grosso, o historiador Osvaldo Zorzato (1998) defende que a historiografia mato-grossense produzida de 1904 a 1984 constituiria uma memória historiográfica que surgiu com dois propósitos. Incialmente, constituiu-se como suporte de um projeto identitário mato-grossense. Em seguida, desenvolve-se de modo a justificar opções políticas dos grupos dominantes no estado, produzindo uma narrativa legitimadora das desigualdades sociais existentes, na medida em que se atrelou ao poder constituído para garantir a seus agentes o que ele chama de “primazia do mando”.
No presente trabalho, o que procuramos fazer foi aproximar a literatura mato-grossense da história de Mato Grosso, para pensar quais seriam as relações daquela com as estruturas do poder político e econômico no estado e se, nas primeiras décadas do século XX, almejou se configurar como suporte de uma identidade mato-grossense. Tal objetivo se construiu por analogia à tese de Zorzato. Porém, reduzimos o recorte temporal e nos limitaremos a refletir acerca desse tema tendo por base alguns escritos poéticos de Dom Francisco Aquino Corrêa, que aqui serão pensados como representativos da literatura mato-grossense do período. 
Teria a literatura, como a historiografia, se colocado a serviço da legitimação do mando de um grupo social sobre outros? Teria surgido com o desejo de colaborar na formação de uma identidade regional?
Tais questões se inscrevem no âmbito da pesquisa em andamento intitulada “A natureza na poesia produzida por sacerdotes em Mato Grosso durante o século XX”, por meio da qual estudamos as obras poéticas de Dom Francisco de Aquino Correia, Pe. Antônio Rodrigues Pimentel e Dom Pedro Casaldáliga. O objetivo geral dessa pesquisa é o de revelar a existência de uma tradição que relacione os textos dos três poetas. A hipótese é a de que essa tradição pode se estabelecer a partir de poemas cuja temática seja a natureza, visto que são recorrentes no trabalho dos três escritores.
Nesse âmbito, o que tentamos realizar neste artigo foi esboçar a postura que a obra poética de um desses escritores mantém frente a aspectos tidos como identitários de Mato Grosso, bem como em relação ao poder político e econômico no estado. Procuramos deduzir tal postura da forma dada pelo poeta ao tratamento do tema natureza.
Assim, procuramos refletir acerca de questões como as que seguem. Considerando que D. Aquino escreveu suas obras poéticas nos dois primeiros decênios do século XX (não consideraremos o livro Nova et vetera, cuja publicação data de 1947), quais diálogos seus escritos mantêm com a história do período, segundo Zorzato? Esses diálogos revelam uma literatura empenhada na formação de uma identidade regional? Perguntamo-nos, ainda, se haveria na poética de aquineana traços que constituíssem como que uma traição ao poder político e econômico?1
Três linhas de raciocínio, hipotéticas, constituem-se em torno de tais questões. Uma delas é a de que sendo a literatura e a história manifestações da cultura de um povo, ambas poderiam ter se portado de igual modo frente aos interesses dos detentores do poder político e econômico em Mato Grosso. Outra é a de que a literatura tenha traído, ou subvertido, tais interesses. A terceira representa um lugar intermediário em relação às hipóteses anteriores, indicando uma literatura que subverte que apoia, mas também questiona e nega as estruturas de poder. Nesse sentido, procuraremos esboçar a posição da literatura mato-grossense, representada por D. Aquino, frente aos temas identidade e poder.

2 O sentido identitário e político da natureza em Dom Aquino

Em sua tese, Zorzato (1998) defende que a historiografia produzida em Mato Grosso de 1904 a 1984 não surgiu de um desejo de estabelecer um conhecimento científico acerca da formação desse estado, embora tenha se travestido enquanto tal. Esse historiador se inscreve no âmbito daquilo que podemos chamar de uma historiografia renovadora (GARCIA, 2003), a qual tem seu surgimento com o advento da Universidade Federal de Mato Grosso e, em seu bojo, do curso de graduação em História.
O modo como esse historiador interpreta e reescreve a história de Mato Grosso se dá de, pelo menos, dois modos, não necessariamente sequenciais. Primeiro, revela fatos silenciados por uma historiografia tradicional, que teria predominado até a década de 1980 e que tem entre seus representantes nomes como Virgílio Correa Filho, Estevão de Mendonça e Rubens de Mendonça. Exemplo, citado por Zorzato (1998), de um fato notório, mas silenciado por essa historiografia, é a presença de escravidão em Mato Grosso, a qual foi coibida por interventores federais, no início dos anos trinta.
O segundo movimento realizado por Zorzato é o de interpretar essa historiografia tradicional a fim de perceber quais intenções norteavam a ênfase, às vezes deformante, em alguns fatos históricos, em detrimento de outros silenciados. Nesse sentido, afirma que esse caráter deformante da realidade histórica que fora produzido por essa historiografia se expressou nas narrativas, por exemplo, na caracterização do trabalhador mato-grossense como sendo “pacato e submisso, sujeito a ser a manobrado” (1998, p.3). Efeito esse derivado de uma naturalização das relações de trabalho. Por outro lado, membros das elites do estado são representados como heróis, cabendo-lhes na historiografia tradicional os papéis de “defensores das nossas fronteiras”, “patriotas”, “ordeiros”, “civilizadores do sertão”, “revolucionários” (1998, p.3).
Partindo dessas evidências materiais, conforme indicamos anteriormente, Zorzato defende a ideia de que a historiografia tradicional teria se desenvolvido com uma intenção objetiva de legitimar o domínio de uma elite local sobre o poder econômico, político e social em Mato Grosso:

Se, num primeiro momento, esta historiografia surge como suporte de uma identidade almejada, num segundo ela se transforma claramente num suporte do poder. Isto é, o processo mais geral do exercício do poder incorpora a memória ao processo histórico, estando a primeira a serviço do segundo. O atrelamento se faz não apenas para justificar opções políticas, mas constitui-se também num estilo de mando, onde todos os sujeitos históricos devem reconhecer seu lugar, sendo constantemente lembrados disso. (ZORZATO, 1998, p. 10)

Além dos comentários já realizados, é importante destacar que Zorzato propõe uma divisão da história de Mato Grosso em três momentos, tendo em vista a relação desta com a historiografia do estado. 
O primeiro momento apontado pelo autor vai de 1890 a 1930. O advento da república dá início a rearranjos do poder político, fazendo irromper confrontos armados entre grupos representantes de coronéis, derivados do interesse pelos novos lugares de poder. A partir de 1904, tem-se início o que Zorzato define como “processo de construção identitária de Mato Grosso” (p. 6).  Segundo ele, tal processo teria se orientado por dois objetivos: era necessário construir para os próprios mato-grossenses uma identidade que os unisse diante da “ameaça que a chegada de estranhos representava” (p.15). O segundo objetivo era o de reagir às imagens negativas que eram divulgadas por viajantes, militares e comerciantes que vinham a Mato Grosso. Em ambos os casos, percebe-se que o projeto identitário em questão parte de um desejo de atender a uma demanda exterior. Infere-se da tese de Zorzato que havia uma busca por atrair estrangeiros para Mato Grosso (não pelo estrangeiro em si, mas pelo que ele representava). A chegada desses sujeitos precisava ocorrer de forma tal que as estruturas de poder já estabelecidas após a república se garantissem, conforme explica o historiador:

Em outras palavras, nesse momento, os mato-grossenses preparam-se para receber forasteiros e, com eles, o “progresso”, decorrente da modernização supostamente desejada. Contudo, cuidam-se para garantir a primazia do mando. Nesse contexto, os memorialistas trabalham para elaborar uma identidade local, destacando elementos tais como os de “pioneiros”, “defensor fronteiriço”, “gente de boa origem”, “amantes do progresso”, etc. Algo que os coloque em condições vantajosas diante dos forasteiros, que chegam aos poucos e em pequeno número. (ZORZATO, 1998, p. 6)

Cronologicamente, dois dos livros poéticos de D. Aquino são publicados nesse momento histórico delimitado por Zorzato. O primeiro intitula-se Odes e foi publicado em 1917, três anos depois do Álbum Gráfico de Mato Grosso, o qual serve não apenas como suporte da identidade mato-grossense almejada, como também divulga uma imagem positiva do estado (ZORZATO, 1998), tornando-o passível de atrair estrangeiros.
Dada a importância política de D. Aquino, era de se esperar que Odes também apresentasse esses traços de forma dominante. Mas isso de fato não acontece.  O que significa um distanciamento entre historiografia e literatura.
Odes apresenta poemas de temática predominantemente religiosa. Tema esse que é abordado numa perspectiva transcendentalista. De certa forma, todos os demais assuntos mobilizados pelo poeta nessa obra são, hierarquicamente, subordinados à religiosidade.
O primeiro poema da série intitula-se “A mim o céu!” (1985, p. 49), e exemplifica o que temos apresentado, por isso citamos algumas estrofes:

Pobre do rico que em luxuosas salas,
De mil riquezas suspirando após,
Teme da morte, que já vai ceifá-las,
O alfanje atroz!

Que de ouro e pérolas os maus se trajem!
Ai! Nunca, nunca hei de invejá-los eu!
Do mundo passa a fugitiva imagem...
A mim o céu!   

Que val 2 dos sábios o laurel severo?
Que val das Musas o gentil florão?
Que é de Vírgilio e do divino Homero?
Que é de Platão?

Que val dos orbes o dourado cetro?
Que valem César, Napoleão, Pompeu?
Passa do mundo o fugitivo espectro...
A mim o céu!

 
Poemas semelhantes a esse dificilmente podem ser entendidos como suporte de um projeto de identidade mato-grossense no sentido proposto por Zorzato ao analisar o Álbum Gráfico de Mato Grosso. Por outro lado, considerando a dimensão política da religiosidade, pode-se compreender que sugere uma atitude de inércia frente a desigualdades sociais e até mesmo em face de desigualdades quanto à circulação de bens culturais. Em última instância, devido ao lugar social de seu escritor, contribuiria para a manutenção de uma estrutura política e econômica já consolidada, conforme explica Bourdieu (2011). Isso, contudo, não nos permite pensar esse poema no sentido político que Zorzato propõe. Isso porque o historiador parte de uma suposta intencionalidade da história quanto à legitimação das estruturas de poder e mando.
Sobre o poema em questão, podemos acrescentar ainda que se funda sobre uma oposição entre “natural” (coisas terrenas, passageiras) e “sobrenatural” (coisas do céu, perenes). Há uma exaltação destas em relação àquelas. Exaltação essa que tem por motivo a ideia de que o céu é atemporal, no nível celeste tudo escaparia a ordem do tempo. Essa atitude do eu lírico frente à temática do tempo ocorre em todo a obra de D. Aquino, mas ganha nuances diversas, chegando a significar um “medo de ser esquecido”, de não ser lembrado pela História.
Se, no geral, o livro Odes não comporta uma leitura política e de projeção identitária, como a que propõe Zorzato para a historiografia, de modo específico, brechas na expressão da temática “tempo” permitem entrever o lugar a ser ocupado pelos temas política e identidade na obra aquineana. Ou seja, desdobramentos da temática tempo podem apresentar o sentido político e social que Zorzato confere à historiografia tradicional. 
Esse medo de ser esquecido em decorrência da transitoriedade da vida pode ser depreendido de poemas em que Aquino exalta a velhice, sempre colocando como horizonte final da vida um “paraíso” pós-morte. Mas sua principal expressão, no livro Odes, encontra-se nos versos de “A chimbuveira” (AQUINO, 1985, p. 125 - 129). Além disso, nesse poema, o tema da transitoriedade da vida, mesmo submisso ao viés religioso, adquire o sentido político identificado por Zorzato. Para demonstrar esse fato, comentaremos dois aspectos do referido texto, tendo em vista a totalidade de seus versos:

A CHIMBUVEIRA

Unusquisque sub vite sua et sub ficu sua. (III Reg. IV, 25)

Ei-la!... a grande árvore,
Que protegeu, umbrosa,
Da minha verde infância
O berço cor-de-rosa,
Velha árvore altaneira,
A minha chimbuveira.

Salve! saudosa árvore,
Que hoje afinal revejo,
E cuido ouvir saudares-me
Com doce rumorejo,
Ó meiga protetora
Do meu cantar de outrora!

Como os cipós que, inúmeros,
Cingem, de toda parte,
Teu rofo tronco altíssimo,
Quem dera hoje abraçar-te,
Solene árvore antiga,
Ó minha velha amiga!

Qual se beija uma pálida
Fronte rugosa e santa
De avó nonagenária,
Beijo-te, ó velha planta,
Que és de um lindo passado
O relicário amado!

À beira do nostálgico
Rio que além esflora
Os capinzais verdíssimos,
Quem te plantou outrora,
Qual eterna atalaia
Sobre a deserta praia?

Dize-me: quantos séculos,
Roçaram-te a ramagem,
Dês que brotaste aos frêmitos
Deste torrão selvagem,
Tu, marco milenário
De um povo legendário?

Quantos e quantos séculos
Que gerações a fio,
Não viste atropelarem-se,
Como ondas deste rio,
Velha árvore fragueira,
minha chimbuveira!

Primeiro, o poema expressa um sentido segundo a qual o eu poético se identifica enquanto sujeito por sua relação com uma planta. Essa identificação se dá pela associação entre natureza e infância que, na primeira e na segunda estrofe, conota uma nostalgia com relação a um passado idealizado.  A árvore, pela dimensão semântica que assume no texto, deve ser considerada como uma metonímia da flora mato-grossense. Logo, também o sujeito poético que aí se constitui não expressa sua experiência em termos individuais. Mas, a estruturação dessa experiência pela combinação de certas palavras, tais como “verde infância”, “berço cor-de-rosa”, submetidas a um ritmo estável e à presença de rimas faz com que ela evoque sentimentos vagos e informulados de sujeitos que tenham, de algum modo, vivenciado uma infância rural. Importa, por isso, destacar a relação de pertencimento da natureza pelo sujeito, denotada pelo pronome possessivo “minha”, em “minha chimbuveira” e a figuração de uma fusão entre sujeito e natureza, expressa pela construção “verde infância”, retomada, na segunda estrofe, pela ideia de cumplicidade e proteção.
Devido a esses fatores textuais, a experiência individual ganha contornos coletivos e a natureza se torna um tipo de protetora, quase como uma mãe, do eu poético e do povo que ele representa.  Portanto, o texto se enlaça, assim, ao projeto identitário de que trata Zorzato (1998), na medida em que formula uma ideia de “união dos naturais da terra” (p. 15) que, segundo o historiador, tinha por objetivo construir:

uma memória de consenso, onde todos são apresentados como pertencendo a uma ‘mesma família’, ‘filhos do mesmo solo’, etc, tem a ver com a necessidade de forjar, fortalecer e disseminar um sentimento de pertencimento ao grupo (ZORZATO, 1998, p. 15).

Da segunda estrofe à oitava, pode-se verificar o segundo aspecto por que o texto em questão adquire o sentido político de que trata Zorzato (1998). A árvore deixa de conotar somente a natureza mato-grossense personificada e, gradativamente, adquire a significação de um arquivo histórico, “testemunha viva” do surgimento de um “povo legendário”. Esse efeito tem seu lugar no processo imaginativo do eu poético, que questiona a planta acerca do passado por ela vivido, propondo, em seguida, respostas às questões que levanta, as quais surgem como resultado de um relembrar o passado.
Assim, no poema, a natureza atesta o caráter “magnífico” do povo mato-grossense, colaborando, noutro nível de significação, para o delineamento do que seria a identidade mato-grossense, bem como indicando o passado necessário à constituição de um sentimento de pertencimento grupal.  O que se sobressai, até então, é a ideia de “povo”, como forma que confere coesão a um grupo. Não se coloca a distinção entre seus membros, ou superioridade de uma parcela sobre outra. Assim, o poema forja e dissemina um sentimento de pertencimento.
Vejamos, ainda, as estrofes que seguem, a fim de perceber quais contornos se somam a essa imagem:

Tu viste, certo, os válidos
Primeiros bandeirantes,
E fremeram-te as vindes
Folhagens exultantes,
Saudando, alvissareiras,
O ciclo das bandeiras.

Viste-os além, no intrépido
Arrojo tão glorioso,
Forçando a barra aurífera
Do Coxipó mimoso,
— A cristalina e flórea
Porta da nossa história.

Das tuas franças árduas,
Não foi que aos emboabas
Espiaram longe os íncolas
Das primitivas tabas,
Velha árvore altaneira,
Ó minha chimbuveira?

Que nomes nessas ásperas
Cortiças se entalharam?
Que de suspiros quérulos
Por ti não perpassaram,
Ó muda e merencória
Testemunha da história!

Sob essas frondes plácidas,
Foi que também os ninhos
Gloriosos embalaram-se
Dos ínclitos Murtinhos
Velha árvore, sagrado
Arquivo do passado!

Mais de vinte anos foram-se
Que abandonei teus ramos...
Ai! como fogem, céleres,
Os sonhos que sonhamos,
Ó minha companheira
Em quadra mais fagueira!

Ao teu virente umbráculo,
Quão outro, hoje retorno!
Volvendo os olhos ávidos
Por todo o bosque em torno,
Ai! de que pranto os banho
Nas saudades de antanho!

Sou hoje o pobre náufrago,
Que, de baixéis dourados.
Só traz lascadas tábuas,
Por únicos salvados,
Ó velha confidente
Da minha alma inocente!

Quem dera, como Titíro
À tua sombra amiga,
Trautear em longos ócios.
A pastoral cantiga,
Ó remansosa estância
Da minha bela infância!

Mas não! lembras-me o trágico
Dia de luto infindo;
Em que vimos o féretro
De minha mãe saindo
Por aquela porteira,
Ó minha chimbuveira!

Era uma melancólica
Sesta... nas pedras cavas
O rio além queixava-se,
E tu também choravas,
Doce consoladora
Do meu penar de outrora!

Era uma melancólica
Sesta... nas pedras cavas.
O rio além queixava-se,
E tu também choravas,
Doce consoladora
Do meu penar de outrora!

À medida que a imagem da árvore como “sagrado arquivo do passado” se completa no texto, mais o sentido político dessa figura se faz perceber. Destaca-se dele dois aspectos. Primeiro: a relação entre emboabas e íncolas, que não diz respeito ao fato histórico da guerra dos emboabas (1707). No poema, “emboabas” são todo e qualquer forasteiro que chegasse a Mato Grosso, enquanto “íncolas” designa os moradores locais. De certa forma, a relação entre emboabas e íncolas no poema expressa a função que se esperava que a identidade mato-grossense cumprisse diante da chegada lenta e crescente de forasteiros a Mato Grosso. Segundo: o sentido político do “arquivo histórico natural” se faz se perceber de forma óbvia nos adjetivos empregados por Aquino para caracterizar os “Murtinhos”: “gloriosos”, “ínclitos”.  Vale destacar, quanto a isso, que o poema em análise teria sido escrito, conforme o autor, em 1910, embora a publicação em livro só tenha ocorrido sete anos depois.
Isso mostra que a exaltação dos Murtinho por Aquino se dá em um contexto em que àqueles haviam se articulado aos Ponce, e a outros representantes da elite mato-grossense para derrubar o governo de Antonio Paes de Barros, fato que culminou na derrocada deste em 1906 (CAVALCANTE, COSTA, 1999).  Assim, no poema, os “Murtinhos” são representativos de uma elite, cujo valor e honra é atestada pelo arquivo histórico e sagrado da natureza. Trata-se de uma metonímia que evoca, na ordem da significação, todo uma estrutura política e econômica, baseada na Mate-laranjeira, de propriedade dos Murtinho, para legitimá-la em todos os seus atos. Destacamos que essa legitimação se sustenta em uma imagem da “natureza”. A natureza garante aos “seus”, aos da terra, o direito de organizar a sociedade, o que abrange tanto o trabalhador braçal pouco instruído, mato-grossense, quanto o estrangeiro recém-chegado. Há, por assim dizer, uma naturalização das relações de poder. 
Uma vez consolidados os sentidos de identidade grupal e de legitimação das estruturas políticas e econômicas, as indagações históricas do eu lírico cessam. O olhar do eu poético volta-se, então, para o futuro e o medo do esquecimento se faz perceber, para além da melancolia do eu lírico, no fato de que mesmo a centenária chimbuveira teria sem fim, como todos os demais seres da Criação.
Quem continuaria a guardar a história do “legendário” povo mato-grossense após o fato inelutável da morte? Como o sentimento de morte é encarado por alguém que não deixa descendentes em virtude do celibato? Por diferentes motivos, o medo de ser esquecido pela história, pelas gerações vindouras, parece estar na base do poema em análise, assim como em diversos outros textos de Aquino. O medo seria a fraqueza, a brecha, que permitiu que o discurso poético aquineano fosse anexado pelo poder e mobilizado como elemento de legitimação de desigualdades sociais? 
O professor Fernando Tadeu Borges, ao discutir a tese de Romyr Garcia (2003), durante a ministração de aulas da disciplina que ensejou o presente artigo, destacou o fato de que Garcia critica a historiografia mato-grossense renovadora, na qual o próprio Tadeu se insere. Essa crítica ocorre porque historiografia renovadora teria se deixado orientar por alguns mitos, os quais lhe impossibilitaram a penetração em determinados fatos históricos. Um desses mitos é o do desenvolvimento. Crítica semelhante fora feita pela historiografia renovadora à tradicional, visto que esta também havia se fiado a alguns mitos, como o do isolamento de Mato Grosso (VOLPATO, 1980). O professor Fernando assumiu que talvez Romyr (2003) estivesse certo. Mas, disse-nos que deveríamos nos perguntar pelo porquê dos mitos, e acrescentou que talvez surjam da nossa dificuldade, ou incapacidade, de encarar a realidade.
A anexação do discurso poético de Aquino pelo poder se deu em virtude da expressão do projeto identitário mato-grossense e de conteúdos legitimadores de uma estrutura política e econômica que engendrou desigualdades sociais gritantes. O poema “A chimbuveira” exemplifica a expressão desses temas. Estão estes temas, para Aquino, assim como os mitos estão para a historiografia renovadora e tradicional? Seriam eles efeito do medo ou da impossibilidade de encarar o real? Quanto a Aquino, parece-nos que a causa da anexação de seu discurso poético pelo poder é o medo de ser esquecido pela história. 

3 Considerações finais

Roland Barthes (2004) afirma que todo discurso, assim que enunciado, se colocaria a serviço de um poder. Todo o discurso seria, assim, opressivo, com exceção do literário, cuja característica definidora é a de ser libertador. Contudo, nenhum enunciado estaria a salvo de ser colocado a serviço de um poder, nem mesmo o literário. 
Podemos compreender que “o medo do esquecimento” é a fissura por onde o discurso poético aquineano se deixou colocar a serviço de um poder. Por essa brecha, ele serviu como suporte do projeto identitário mato-grossense, bem como produziu sentidos legitimadores da primazia do mando de uns grupos sociais sobre outros. 
Barthes (2004) explica que quando um enunciado é colocado a serviço de um poder, sem que tenha sido essa a intenção do enunciador, cabe a este abjurar. Isto é, renunciar ao que foi dito. Considerado no contexto do livro Odes, em relação aos demais temas que o poeta aborda nessa obra, o medo do esquecimento é apenas uma fenda.
Ainda assim, esse tema permite supor uma intencionalidade do poeta quanto à divulgação de um projeto identitário, bem como expressa um sentido político que reforça a “primazia do mando” de um grupo social sobre outro, conforme verificamos. Tendo em vista que tais linhas de interpretação se embasam no que temos chamado de fenda, essa função política poderia, também, ser considerada como um efeito de sentido não imaginado pelo autor. Isso se Aquino houvesse abjurado de algum de seus escritos sobre o tema em questão. Porém, semelhante fato não ocorreu. Demonstra-o o segundo livro poemas publicado por Aquino. 
Tal obra intitula-se Terra natal, e foi publica inicialmente em 1919. A nosso ver, ajusta-se perfeitamente às intenções políticas e identitárias verificadas por Zorzato ao analisar a historiografia tradicional. De mãos dadas com o poder, esse livro foi reeditado três ainda durante a vida do autor, em 1922, em 1940 e 1947.

Referências bibliográficas

BARTHES, R. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2004.
BORGES, Fernando Tadeu de Miranda e outros. Apontamentos para estudos sobre a produção historiográfica em Mato Grosso (1970-2010). In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ano 173, n. 456. Brasília: Gráfica do Senado, p. 177-209.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
CORREA, F. de A. Odes. 4. ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1985.
_______.Terra natal. 4. ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1985.
GARCIA, R. C. Mato Grosso (1800-1840): Crise e Estagnação do Projeto Colonial. São Paulo: Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da FFLCH-USP, 2003.
VOLPATO, L. R. R. Mato Grosso: Ouro e Miséria no Antemural da Colônia (1751- 1819). Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da FFLCH/USP, 1980.
ZORZATO, O. Conciliação e Identidade: Considerações Sobre a Historiografia de Mato Grosso (1904-1983). Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História da FFLCH/USP, 1998.                                                                          

*Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso. Doutorando em Estudos de Linguagem pela UFMT.
Tais questões se aplicam, considerando-se mudanças de contexto histórico, também aos escritos poéticos de Pe. Pimentel e D. Pedro Casaldáliga. Todavia, a obra desses escritores não será abordada nesse artigo, visto que o trabalho se estenderia demasiadamente.
Vale. 


Recibido: 14/12/2019 Aceptado: 20/12/2019 Publicado: Diciembre de 2019


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