Revista: Caribeña de Ciencias Sociales
ISSN: 2254-7630


A CORRIDA PELO EL DORADO NA AMAZÔNIA E A SAGA DOS POVOS DA FLORESTA

Autores e infomación del artículo

Maria Liziane Souza Silva*

Maria das Graças Silva Nascimento Silva**

Universidade Federal de Rondônia – UNIR, Brasil

liziane.souza.silva@hotmail.com


Resumo:  O Estado do Acre, sul da Amazônia brasileira, terra que já abundou a seringueira, matéria prima fundamental na fabricação da borracha, foi atrativo para milhares de pessoas que vieram principalmente do Nordeste brasileiro, final do sec. XIX e meados do sec. XX, em busca de trabalho e dinheiro fácil. Neste estudo, abordaremos a história de duas famílias descendentes de nordestinos residentes no Estado: do Sr. Divaldo Alves de Souza e da Sra. Guiomar Medeiro Marques. A situação destas famílias era das mais difíceis devido ao árduo trabalho, o perigo com animais selvagens, doenças típicas da região, e o isolamento dentro dos seringais. Neste estudo adotamos a abordagem fenomenológica, por contemplar as percepções, as subjetividades, emoções e afetividades. A principal técnica adotada foi a da fonte oral.
Palavras Chaves: Amazônia; Látex; Trajetórias migrantes; Nordestino; Eldorado.

Abstract: The State of Acre, southern Brazilian Amazon, land that has already abounded the rubber tree, a fundamental raw material in the manufacture of rubber, was attractive for thousands of people who came mainly from the Brazilian Northeast, XIX and mid-sec. XX, in search of work and easy money. In this study, we will discuss the history of two families descendants of northeastern residents of the State: Mr. Divaldo Alves de Souza and Mrs. Guiomar Medeiros Marques. The situation of these families was one of the most difficult due to the hard work, the danger with wild animals, diseases typical of the region, and the isolation within the rubber plantations. In this study, we adopted the phenomenological approach, considering the perceptions, subjectivities, emotions and affectivities. The main technique adopted was that of the oral source.

Keywords: Amazon; Latex; Migrant trajectories; Northeast; Eldorado.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Maria Liziane Souza Silva y Maria das Graças Silva Nascimento Silva (2018): “A corrida pelo el DSorado na Amazônia e a saga dos Povos da Floresta”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (septiembre 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2018/09/corrida-eldorado-amazonia.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1809corrida-eldorado-amazonia


1 INTRODUÇÃO
A ocupação da Amazônia por cearenses é marcada por movimentos migratórios a partir do final do sec. XIX com o advento da expansão extrativa da borracha, feitos por levas de pessoas vindas principalmente do Nordeste brasileiro. O contexto internacional advindo da Segunda Revolução Industrial fez com que a economia mercantil da borracha ficasse em alta tornando-se atrativo para milhares que vieram em busca da garantia da moradia, do trabalho e do tão sonhado “Eldorado”. Foram milhares que aqui chegaram movidos pelo discurso de terra farta, terra abundante. E como em toda região amazônica, o Acre também foi local que acolheu milhares destes.
Calcula-se que de 1850 a 1900 a população do vale Amazônico aumentou dez vezes. No Acre, esses cearenses começaram a chegar com maior intensidade a partir de 1877 para o corte da seringa, composto por homens que saíam do nordeste brasileiro, de áreas sertanejas do Ceará; Pernambuco; Paraíba e Rio Grande do Norte. Tempos depois, na década de 1940, essa economia novamente é reacendida, durante a “Batalha da Borracha” em período da Segunda Guerra Mundial. Mais uma vez acontece outra migração para a Amazônia, em sua maioria feita por cearenses que viram neste espaço a oportunidade de fazer fortuna. (Martinello, 2004).
Entre milhares desses migrantes estão as famílias do Sr. Divaldo Alves de Souza e da Sra. Guiomar Medeiro Marques, descendentes de famílias cearenses que migraram para o Acre incentivados pela grandiosa falácia que descreviam este lugar como terra de riqueza fácil. Como tantos outros seringueiros enfrentaram dentro dos seringais a dura realidade, oposta daquelas divulgadas pelas propagadas das rádios, cartazes, ou em folhetos pela mídia do Nordeste brasileiro.
Neste conjunto de detalhes entra a importância do tema escolhido, ponto de partida para a compreensão desta migração. O objetivo aqui é refletir através dos relatos dos filhos e/ou esposas, que também são frutos deste processo uma vez que vivenciaram diariamente as dificuldades dentro de seringais, sobre as promessas feitas pelo governo durante o recrutamento desses migrantes; os perigos e adversidade enfrentado no dia-dia dentro dos seringais; as vivencias; as experiencias e o resultado de todo esse processo.  A ideia não é revelar um resultado, mas olhar sobre este outro ângulo e mostrar que existem outras histórias além daquelas contadas nos livros.

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para a memória e imaginário dos migrantes nordestinos sobressai a abordagem fenomenológica, um método importante para a geografia, que considera as diferentes experiências dos sujeitos, ancoradas na forma de sentir, na percepção e conhecimentos dos indivíduos (Gomes, 1996).
A palavra fenomenologia significa o estudo ou a ciência dos fenômenos e tem Gustav Albert Husserl como pai deste método e da compreensão da pessoa humana. O projeto fenomenológico se define como uma volta às coisas mesmas’. (Husserl, 1989). No combate a adoção do empirismo e do psicologismo, como fundamento da ciência e da filosofia, buscou consolidar um método liberto de pressuposições, das certezas positivas que permeiam o discurso das ciências empíricas, as quem define como ingênuas. Mas, acreditava que a suprema fonte de todas as afirmações racionais é a consciência doadora imaginaria. Por isso o método não se preocuparia com o desconhecido por detrás do fenômeno, mas com o dado, sem querer decidir se este dado é uma realidade ou uma aparência: haja o que houver, a coisa estaria alí.
Foi através deste método que tive a possiblidade da troca de sentimentos empáticos, de forma a poder colocar-se no lugar do outro, na capacidade de poder sentir a dor do outro e compreendê-lo como se fossem um só. Foi na aposta destas sensações, em valorar as sensibilidades destes migrantes, ouvindo cada particularidade, que se optou pelo método fenomenológico.
Quanto a técnica adotada optamos pela da fonte oral que tem se mostrado através dos séculos como uma fonte de conservação, de difusão do saber, para a ciência em geral (Gonçalves e Lisboa, 2007). Ela antecede ao desenho e a escrita, citada nos estudos de (Thompson, 1992) quando diz que ela é tão antiga quanto a própria História, pois foi a primeira espécie de história. Então, definido os entrevistados as seguintes etapas foram contempladas:

  • Primeira etapa: Localização dos entrevistados, nos municípios acreanos, através de conhecidos da família da própria pesquisadora (que é descendente de nordestinos);
  • Segundo etapa: Agendamento do dia, local e horário mais conveniente, respeitando as preferências de cada um dos sujeitos;
  • Terceira etapa: viagem aos municípios dos entrevistados;
  • Quarta etapa: visita e concretização da entrevista, com perguntas pré-selecionas, mas assistemática, como numa conversa informal. Com permissão dos participantes foi feito registros fotográficos e gravação das falas por um celular.
  •  Quinta etapa: transcrição das falas na íntegra no computador.

A escolha de trabalhar o oral visa, sobretudo, dar espaço a história destes sujeitos que foram em sua maioria invisibilizados, não valorizados e base do fenômeno migratório nesta região. Nas diversas horas das entrevistas, o ato de rememorar nem sempre era uma ação saudável e positiva para eles, notava-se sentimentos por vezes que perpassavam por dores e sofrimentos, alternados também de saudades, certa nostalgia. É justamente no ouvir e descrever estas histórias que podemos diminuir o campo de nossas indagações, permitindo a descrição das representações destes sujeitos que viveram a história ou, de alguma forma, com ela tiveram contato. Por isso a importância de fazer falar uma voz adormecida há tempos.
Ouvir estes relatos foi como voltar no tempo, fazer este tempo “presente”, algo vivo, que é na verdade, nosso esforço aqui. (Poulet, 1992) afirma que é graças a esta memória, que o tempo não está perdido. E apesar de entender que o uso oral não é uma é uma representação exata do que existiu, é através deste esforço que buscamos propor uma inteligibilidade, dando voz a estes seringueiros.

3 ÁREA DE ESTUDO: O ESTADO DO ACRE
O recorte espacial escolhido para este estudo foi o Estado do Acre localizado Sul da Amazônia brasileira, região que ainda abriga milhares destes seringueiros. Escolhemos duas regiões neste Estado que eram portas de entrada desses migrantes durante a economia da borracha: o município de Tarauacá, as margens do Rio Tarauacá, localizado no centro do Estado e o município de Mâncio Lima, extremo oeste do Estado, próximo às margens do Rio Juruá.

Historicamente a economia acreana baseia-se no extrativismo vegetal, sobretudo na exploração da borracha, responsável pelo povoamento não indígena da região. Durante a economia da borracha os afluentes da margem direita do Rio Amazonas eram os únicos caminhos dos seringueiros por onde adentravam através de navios desde os portos de Belém até chegarem no Acre.

Localizado na porção ocidental da região norte do país, na Amazônia ocidental, entre as longitudes de 66º38’ WGr e 74º00’ WGr e latitudes 7º07’ S e 11º08’ S, o Acre faz limites internacional com o Peru e a Bolívia e divisas estaduais com Rondônia e o Amazonas. Com uma área de 164.123,737 km², representando 1,92% do território nacional e 4,26% da região norte é o 15º Estado brasileiro em extensão territorial. (Acre, 2008). Segundo Censo do IBGE em 2010 hoje possui demográfica é de 4,47 hab/km², e a estimativa populacional para 2016 do Estado era de 816.687. Atualmente este Estado possui 22 municípios e tem como capital a cidade de Rio Branco. (Brasil, 2010)
A madeira é o principal produto de exportação do estado, também grande produtor da castanha-do-pará, açaí, e óleo de copaíba. Entre as principais atividades agrícolas destacam-se: a mandioca; o milho; o arroz e a cana de açúcar. (Acre, 2008). É um Estado considerado novo. Em 15 de junho de 1962, através da Lei 4.070, foi elevado da condição de Território Federal para a categoria de Estado. Atualmente, 71% da população concentra-se nas áreas urbanas, predominando na capital, Rio Branco 58% desta população urbana, (Acre, 2009).
O mais ocidental dos estados do Brasil, o Acre ainda mantém boa parte de sua área florestal, cerca de 90%, preservada. Até a década de 1970, mais da metade da população do Acre vivia em forte relação com a floresta, na condição de seringueiros, ribeirinhos ou indígenas, inspirando a denominação hoje conhecida como “povos da floresta”. Sua economia até então era de base extrativista, e desde então, adquiriu um caráter mais desenvolvimentista e exploratório. (Acre, 2010).
Todavia, falar do território acreano requer discutir a história de sua ocupação por não indígenas, que se constituiu devido aos milhares de famílias provindas de lugares tão longínquos, que se lançaram neste novo espaço, carregados de anseios, sonhos e grandes expectativas de fazer fortuna.

4 AMAZÔNIA DO SÉCULO XIX E XX NO CONTEXTO MUNDIAL
Durante muito tempo, a região amazônica foi conhecida como terras desconhecidas, que não despertava nenhum atrativo ou interesse, economicamente falando. A importância de se analisar os motivos e detalhes que fizeram esse quadro se reverter é tamanha, pois, está intimamente ligada com os fatores externos (Europa e EUA), que acontecia nesse momento fazendo com que os fatores internos -Brasil-, contribuíssem ainda mais para a mudança desse quadro.
Na segunda metade do século XIX, a borracha já era uma matéria prima indispensável à indústria de bens de consumo na Europa e nos Estados Unidos e consequentemente iniciava-se o crescimento de exportação da mesma. Mas foi a partir de seu processo de vulcanização (a borracha torna-se infensa às variações de temperatura) que houve um súbito crescimento. A quantidade exportada quintuplicou, começando então um período de interesse tanto nacional como internacional sobre a Amazônia, que continha reservas vultuosas de seringais. (Oliveira, 1985). Daí se vê a emergência do neocolonialismo, que continha em seu mais íntimo objetivo: a conquista econômica dessas “zonas estratégicas” para garantir o monopólio de suas matérias primas. É neste quadro de profundas transformações estruturais que se situa a economia extrativa da borracha na Amazônia.

4,1 Primeiros fluxos migratórios de nordestinos para a Amazônia
Alguns fatores contribuíram para a migração nordestina como: as ilusões de enriquecimento rápido; as propagandas realizadas por seringalistas para atrair essa mão de obra; os subsídios governamentais concedidos para o transporte; a facilidade do transporte de cabotagem (navegação mercante) até o porto de Belém; além da famosa seca de 1877 que assolou aquela região formando consequentemente excedentes populacionais nos locais de trabalho. E era a região do Acre uma das que mais atrairia, visto pelo potencial de riqueza em látex. Calcula-se que de 1850 a 1900 a população do vale Amazônico aumentou dez vezes. (Martinello, 2004).

Os dados acima revelam o tamanho que foi essa migração em sentido norte do país explicando a realidade econômica que se encontrava a região naquele momento. Segundo (Oliveira, 1985) a região destacou-se como a principal fornecedora do látex. Este ciclo permaneceu em alta atingindo seu clímax em 1912. Mas o que parecia inimaginável, com uma riqueza “inesgotável”, acontece em seguida a queda da produção. O ano de 1912 seria o auge e o fim da hegemonia brasileira. As razões que levaram à queda da exportação foram devido a emergente concorrente asiática que agora possuía plantios da seringa e exportava agora em maior quantidade.

4,2 Segundo fluxo migratório para a Amazônia
Após um longo período de decadência da exportação da borracha brasileira que levou muitos seringais a falência deixando seringueiros em total abandono, esse quadro viria a mudar justamente porque seu principal concorrente, a Ásia, tivera suas plantações arrasadas pela Segunda Guerra Mundial, na década de 1940. Este foi um momento, mesmo que curto e simbólico em relação à outrora, de reavivamento da exportação da borracha no Brasil. A partir de 1942, durante o período da Segunda Guerra Mundial o Brasil novamente se destacaria como fornecedor de matérias primas para o EUA, principalmente a borracha, ressuscitando e reativando a maioria dos seringais. Era o segundo surto da borracha na Amazônia (Martinello, 2004).
Acordos internacionais foram feitos e os incentivos governamentais brasileiros começam, entre eles cartazes otimistas e slogan como “borracha para a vitória”, mobilizando novamente extratores de diversos estados, inclusive os veteranos nordestinos, - que coincidentemente com o primeiro ciclo da borracha, passavam novamente por mais uma seca, agora no ano de 1941-1942, - reunindo cerca de 20 a 30 mil flagelados para se alistarem a trabalhar nos seringais da Amazônia. O projeto se deu durante a gestão do então Presidente Getúlio Vargas (Martinello, 2004).

Estes métodos publicitários que era de responsabilidades do Departamento de Propaganda e Imprensa – DIP, do Governo Getúlio Vargas, para trazer o nordestino novamente à Amazônia (Santana, 2012), agora como um “soldado da borracha” (em época de guerra Mundial ele poderia optar entre ir ao front de guerra ou “servir” na Amazônia). Nestas imagens percebe-se o grande poder de influência da imagem ideológica, colocando a região como terra da fartura, terra da vitória, mostrando caminhões carregando toneladas de borracha colhidas com fatura pelos trabalhadores, sem nenhuma conexão com a realidade que os esperava. Palavras perfeitamente articuladas, projetadas como signo ideológico, destacando aquilo que discute (Bakhtin, 1999), quando a palavra é designada por um signo ideológico, e tem o poder do convencimento, de instigar a persuasão no indivíduo, que geram transformações sociais significativas, dotada de valores sociais, mas mergulhadas nas contradições.
A grande mobilização não poupou até mesmo o então Presidente da República Getúlio Vargas, que fez a seguinte declaração:
“Brasileiros, com a mesma clareza com que me habituei a falar-vos, venho hoje dirigir-me a vos para solicitar a vossa cooperação leal e decidida em prol de uma campanha que hoje se inaugura: a campanha da borracha. Sabeis quão gigantesco é o desgaste de material na presente guerra. [....]. As armas Aliadas precisam de mais borracha, dessa borracha que existe [....]. Extraí a borracha onde puderdes, de acordo com os planos que estão, hoje, sendo lançados através de todos municípios brasileiros, com a colaboração sincera de vossos prefeitos. A solidariedade de vossos sentimentos me dá a certeza prévia da vitória desta campanha que nos dará mais borracha para a vitória. Inauguro, pois, solenemente o Mês Nacional da Borracha, a que ficarão consagrados esses dias de junho, nos quais ides aumentar, poderosamente, o nosso esforço de produção”. (Boletim da Associação Comercial do Amazonas, 1943, apud,Martinello, 2004: 146).
Também era comum ouvir nas rádios e jornais apelos diários, como já mostrava jornal O Acre em 1943, segundo (Nascimento Silva, 2000):
“Seringueiros! (...) o instante que atravessa a pátria não deixa a nenhum filho do Brasil o direito de esquivar-se do cumprimento do dever. O esforço de guerra que empreendemos para derrotar os soldados tiranos, e as batalhas que travamos nos campos, fábrica, mares, céus, escolas, lares, templos de fé e etc., estão a exigir de todos nós – soldados da liberdade – uma contribuição maior e melhor pela vitória do Brasil e dos aliados. Todas as nossas atenções e preocupações devem estar voltadas neste momento grave de nacionalidade para a voz de comando do chefe nacional Getúlio Vargas obedecendo-o com energia e boa vontade, a fim de que mais tarde, vitoriosos, olhemos com orgulho o passado de cabeça erguida, entreguemos a nossos filhos e legado dos nossos maiores: A Pátria estremecida, com sua história acrescida do nosso exercício e do amor ao Brasil.” (Jornal o Acre, 1943, apud, Nascimento Silva, 2000: 59).
Era um discurso que precisava entrar em cada lar, persuadir, iludir, conquistar famílias inteiras a migrarem. Propagandas oficiais invadiam o Nordeste e o sonho de riqueza e vida próspera, o paraíso parecia estar mais perto do que se poderia imaginar. O nordestino precisaria ser valente e leal, se alistar e mostrar todo seu amor ao país (Santana, 2012). É sob esse sistema de “incentivos” que ocorre novamente outra migração. O Acre também será um dos receptores destes extratores conforme mostra figura abaixo.

5 TRAJETÓRIAS DE SERINGUEIROS NO ACRE
Este ponto trata da história de duas famílias que tiveram suas vidas marcadas pela migração durante o primeiro e segundo surto da borracha para o Estado do Acre.

5,1Divaldo Alves de Souza 92 ex-seringueiros do município de Tarauacá, hoje residente em Rio Branco, Acre

A entrevista foi realizada em março de 2017, durante viagem realizada a capital de Rio Branco. Iniciamos a conversa de forma descontraídacom belas gargalhadas mostrando um ser agradabilíssimo e muito acolhedor. Antecipadamente, eu já havia pré-selecionado um roteiro de perguntas, que ia anexando-as durante a nossa conversa, de forma que as colocarei na sequência a mim respondida.

  • Quais os motivos da vinda de sua família para o Acre?

Meus avós são tudo nordestino ne. Meu pai, Joaquim, chegou aqui no Rio Iaco, em Sena Madureira, em pra cortar 1906, naquela época chamavam brabo ne, quando foi em 1909 ele volta pro Ceará, chego encontro a mãe dele já falecida, pai dele ainda era vivo ele volta no começo de 1910. Em 1916 casou com minha mãe e em 1926 eu nasci. Só eu mesmo. Pois é, nasci lá no seringal Paraíso. (Entrevista em março de 2017).
O entrevistado, Sr. Divaldo, é filho de migrantes nordestino chegados para o corte da borracha ainda durante a primeira economia da borracha. Filho deste processo, foram os seringais amazônicos sua única vivenda.

  • Como era a situação dentro dos seringais?

Eu comecei a cortar ainda antes da guerra, com 18 anos. La onde nos trabalhava, o trabalho era difícil. Cortava de madrugada porque era melhor de tirar leite, é mais frio ne, e a seringa tem dela que o vento coalha logo o leite. Tinha estrada que era longe, aí eu ia. O chato era sair bem cedo, com muito sono. O sapato era a gente mesmo que fazia. Mas aí os pés ficava durmente, vermelho. A rôpa a mulher costurava, comprava tecido lá no barracão. Não era lavada todo dia porque não dava tempo, as vezes só no domingo lavava. A gente naquela época vivia da caça e tinha peixe no rio. Quando o caçador não mata na estrada aí a gente tirar um dia pra caçar porque não pode ficar sem rancho ne, mas era difícil. [...] Vi muita onça. Uma vez, eu me atrepei com medo, e num atirei, porque elas tavam muitas assim, fazendo uma roda, eram muitas, eram umas oito pra dez. Passei mais de horas lá, vendo aquela zuada delas, até que depois oh! perna pra quem te quer! [...] É, a malária sempre atacava mais ne, eu tive muita malária. Mas, eu tinha inflamação, eu passei assim uns dois mês, que eu num tinha coragem era de nada, eu pensei que ia morrer, era uma fraqueza no corpo. Cada vez mais fraco. Até que eu tomei um remédio e fiquei bom. [...] Quando a mulher ganhava neném era com as parteiras. Tinha uma que morava com duas horas, viajava de noite ne.(Entrevista em março de 2017)
Seu discurso revela a dificuldade dentro dos seringais. acordar de madrugada, sem roupas adequadas, enfrentando perigos de animais silvestres ou a densa mata ate chegar para pedir ajuda a alguém era algumas das situações diárias.

  • Teve algum contato com a família do Nordeste depois que veio ao Acre?

Rapaz, um tempo desse, tá com bem uns dez anos, minha filha trabalhava na Teleacre, e lá ela teve contato com uma sobrinha do meu pai. Por que em 1943 meu pai teve notícia dele e dera o endereço pra ele, mas depois perdeu o contato. Minha filha teve contato com político lá de fortaleza, ora, político né..., ai ele ligou pra mim, deu o endereço, no outro dia ele conseguiu, falei com essa minha sobrinha. Mas depois perdemos o contato dinovo. Ninguém conhece mais ne. (Entrevista em março de 2017)
Apesar de ter feito contato uma vez Sr. Divaldo não conseguiu mais o contato com sua família deixada no Nordeste, esgotando toda possibilidade de resgate do vínculo familiar.

  • Ganharam muito dinheiro com o corte da seringa? Comparando antes com o agora, qual sua avaliação?

Não. Num ganhei não, porque no seringal que trabalhei dava pouco leite ne. [...]. Hoje tá tudo mais fácil. Agora pra mim não tá porque eu tô velho, não tenho mais força ne, não aguento mais andar. Não tenho força de pegar um objeto. Mas tenho saudade da mata. Isso é que tenho saudade, da época de fazer as coisas. Eu além de cortar eu também já fui mateiro, fazia estradas. Eu vim pra Rio Branco por causa do estudo das meninas. Já tá com 27 anos que cheguei. Eu num queria vir não. Ai pessoal me aconselhava: rapaz vai embora! Cheguei aqui fui vender banana. Já tava aposentado, do soldado da borracha. Eu cansei de dizer: se eu viver até 40 anos pra mim já tá bom, cansei de dizer. Hoje já tenho 92 anos. (Entrevista em março de 2017)
Ele revela que não chegou a ganhar dinheiro com o corte da seringa, quebrando de vez a falácia das inúmeras campanhas nacionais, que falavam em enriquecimento, muita fartura para este seringueiro. Mas apesar disso Sr. Divaldo lamenta a saudade da mata também, uma das coisas que remetem boas lembranças, principalmente porque eram tempos em que podiam trabalhar.

5,2 Guiomar Medeiro Marques, nascida em 1927, 91 anos, moradora de Mâncio Lima à direita e sua filha Zilmar Marques à esquerda.

Da mesma forma que o primeiro entrevistado seguimos a sequência das perguntas. Em viagem em fevereiro de 2017 ao município de Mâncio Lima, dona Guiomard nos recepcionou com um carinho diferenciado estampado na face por estar revendo sua neta (a autora é neta de dona Guiomard) que há anos não a via. O carinho foi igualmente recíproco. 

  • Quais os motivos da vinda de sua família para o Acre?

É, eles contavam lá (no Nordeste) que aqui era um ri de riqueza, a borracha era uma riqueza, todo mundo que era seringueiro era rico, tinha muito dinheiro! Não tinha nada!, Meu pai contava que eles diziam que a seringueira era uma bolsa de dinheiro! Todo mundo vivia bem e o cearense vieram pra cá, muito cearense nessa época! Vieram só sofrer e morrer aqui e nunca puderam voltar, algum que volto! (Entrevista em fevereiro de 2017).
Na fala da Sra. Guiomard observa-se o poder das grandes propagandas governamentais e/ou dos próprios patrões em busca de mão de obra para seus seringais. O nordestino era alvo destes anúncios, das ideologias criadas sobre esta região.

  • Como era a situação dentro dos seringais?

Pelo menos meus irmãos, eles saía duas horas da madrugada todo dia pra cortar, não podia passar nem um dia, porque passasse um dia, atrasava, tinha que pagar a renda da estrada, e tinha que cortar todo dia, chegar duas horas da tarde, aí ia defumar o leite, defumar o leite e preparar a borracha. Quando acabava dali ia mariscar pra pegar a janta. O cearense que vieram pra cá vieram só sofrer, morrer aqui! vieram só morrer aqui e sofrer! Não teve um que dissesse que vivia bem não! sofrendo dentro da mata, cortando seringa, com fome, saindo de casa meia noite pra cortar seringa, como meu pai saía,...isso aqui tudo era mata bruta, todo canto, não tinha estrada pra canto nenhum, seringueiro carregava as borrachas nas costas, sacos de farinha nas costas, horas e horas pra poder chegar em casa, na barraquinha dele. Era um sacrifício muito grande, era pobre nesse tempo, era uma pobreza tão grande que fazia pena. Não sabiam..., queriam e matavam as estradas, cortavam sem saber, a estrada morria. O povo era muito pobre, era coberto de remendo, a rôpa só tinha remendo, da boca da calca até em cima, na cintura, era remendado, era homens e mulheres, pouca gente que não tinha remendo nas roupas... Pobre, num tinha do que viver, criava um bacurim na corda, criava uma galinhazinha mais num dava pra criar muito porque antes de crescer comia e ainda tinha que cortar seringa. Outros viviam só da agricultura, plantando um pezim de roça, de milho, essas coisas, tudo era muito difícil, pra comprar as coisas era um sacrifício, tinha gente que comia até ensoço, falta de farinha em tudo. Era muito perigoso, tina muita onça pra atacar a pessoa na mata, era um sacrifício medonho. Eu também ajudava a plantar milho, mandioca, arroz,... cansei de ajudar, tanto na casa  do meu pai, como aqui com meu marido. Ia, ia pro roçado também. Antigamente era duro, antigamente era cruel. Num existia remédio como existe hoje em dia não. Se sentia uma dor dava “ventosa” Aí no lugar da dor enchia um copo d’água, quando acabava butava no lugar da dor. Aquela forca chupava do copo d’água, o copo ficava chupado ate passar. Quando tirava passava a dor. Muita gente fazia.(Entrevista em fevereiro de 2017).
A narrativa revela que não havia facilidade para ninguém, ao contrário, a dificuldade imperava. Essa era realidade dentro dos seringais, passando privações, correndo perigos, fome; era tempo de sofrimento, de trabalhar para sobreviver. Cai por terra neste momento o discurso da “terra da fartura, terra do dinheiro”.

  • Teve algum contato com a família do Nordeste depois que veio ao Acre?

Meu marido não! Ele não tinha contato com ninguém lá. Só irmão ele disse que era 20 irmão. Agora quando ele veio pra cá, a mãe dele e o pai dele já tinha morrido, é uma família grande, mas ele nunca teve contato com ninguém... nunca mais teve contato, perdeu tudo. A minha mãe tinha muita vontade, de rever a família, mas ela morreu em 1942. (Entrevista em fevereiro de 2017).
A perda do vínculo familiar era algo comum. Pai, mãe, inúmeros irmãos, foram totalmente apartados devido grande distância e a falta de comunicação existente da época.

  • Ganharam muito dinheiro com o corte da seringa? Comparando antes com o agora, qual sua avaliação?

Só dava pras contas. Hoje ta rico! Pessoal ta todo mundo rico, avista de antigamente ta tudo rico, porque antigamente passava de um ano sem ver um tostão na mão, num tinha do que viver, num tinha do que receber nada, era uma pobreza tão grande. (Entrevista em fevereiro de 2017).
O dinheiro era insuficiente.  A Sra. Guiomard relata a facilidade existente nos dias atuais. Somente o fato da facilidade ao acesso às coisas é comparada a uma grande riqueza, ou seja, hoje sim, estes sujeitos conseguiram a riqueza.

              
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A economia da borracha na Amazônia promoveu fato nunca visto antes nesta região. A grande ocupação por milhares de pessoas vindas, principalmente do nordeste brasileiro, para compor a força de trabalho especifica para o corte da seringa, no momento em que se tornara uma das principais economias do país, o “ouro branco” do momento. 
O período áureo da borracha deslumbrava tamanha riqueza - para os imperadores desta região. Porém, não é comum encontrar obras abordada a partir da visão daqueles que vieram para compor a força de trabalho nos seringais. Por isso nosso empenho de dar voz, ouvindo alguém que esteve intimamente ligado e foi fundamental neste processo, olhando sobre esse outro ângulo e descobrindo que existem escondidos pelas “frestas” da história, novas e grandiosas revelações que vão de encontro desconstruindo toda uma falácia implantada pelas propagandas da época.
Os relatos nos revelam que ninguém ficou rico, ninguém teve a vida transformada pela riqueza da borracha. Tudo era utopia. O sonho de riqueza e de voltar com vida melhorada virou fumaça, virou ilusão. Foram submetidos a um trabalho penoso, perigoso. Impedidos de escapar de tal situação pelo isolamento e solidão que era os seringais, era o seringueiro aparentemente livre, mas na verdade era um escravo. Para muitos, este foi um caminho sem volta pois, nunca mais viriam seus entes queridos deixados no Nordeste.
Todavia, não foram fracassados, ao contrário, através destes relatos nos mostram como foram fortes, destemidos diante as situações de perigos, seja por animais, por doenças típicas que os acometiam, pela dificuldade de acesso de um seringal ao outro, pela fome que passaram, pela roupa que não tinha para vestir. Repassaram para seus descendentes que são capazes em meio a todas as adversidades.
Seus nomes não estão estampados em nenhum monumento, livro, ou prédio histórico nem tampouco em lista de heróis. Mas foi ouvindo suas narrativas que descobrimos que foram mais que heróis, tornaram-se imperadores dos saberes, ricos de coragem, de superação, que desenvolveram seus próprios métodos de sobrevivência. Foram os mais importantes soldados, e diferentemente do que a história oficial os elege, estes foram sem dúvida os verdadeiros heróis da Amazônia. Chegaram fixam-se no novo espaço e formaram a base daquilo que hoje se conhece por sociedade acreana, conhecidos também como “povos da floresta”. Quanto à saudade, ah, esta foi guardada delicadamente nos confins de suas memórias.

REFERÊNCIAS

ACRE, Governo do Estado (2008): “Atlas do Estado do Acre”. FUNTAC, Rio Branco.
­­ACRE, Governo do Estado (2009): “Acre em números”. SEPLAN, Rio Branco.
ACRE, Governo do Estado (2010): “Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre”. Fase II (Escala 1:250.000) – Documento Síntese. 2ª ed. SEMA, Rio Branco.
BAKHTIN, M (1999): “Marxismo e filosofia da linguagem”. HUCITEC, São Paulo.
BRASIL (2010): IBGE -Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “Censo Demográfico”. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ac. [Consulta: setembro de 2017].
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* Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Geografia da Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Campus - BR 364, Km 9,5. Cep: 76801-059 - Porto Velho – RO. Email: liziane.souza.silva@hotmail.com
** Doutora em Ciências Sócio Ambiental e Desenvolvimento Sustentável e docente do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia. Campus - BR 364, Km 9,5. Cep: 76801-059 - Porto Velho – RO. Email: gracinhageo@hotmail.com

Recibido: 12/09/2018 Aceptado: 21/09/2018 Publicado: Septiembre de 2018


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