Revista: Caribeña de Ciencias Sociales
ISSN: 2254-7630


O SOFRIMENTO PSÍQUICO NO TRABALHO DE MOTORISTAS FUNERÁRIOS

Autores e infomación del artículo

Bárbara Hansen*

Janaína Campos**

Ivana Moraes de Alencar***

Paulo Eduardo Ribeiro****

UNINOVE - São Paulo - Brasil

janainissima@gmail.com


Resumo: O presente artigo tem como objetivo averiguar as causas do sofrimento psíquico de motoristas de carros funerários da Grande São Paulo, tendo em vista o contato com a morte, algo cotidiano nesta profissão. Este trabalho se fez relevante a partir da necessidade e interesse em conhecer a rotina e atuação destes profissionais. No decorrer desse estudo foi abordado o sofrimento psíquico do trabalho em geral, a atuação desses trabalhadores, bem como a relação com a morte e suas consequências. A discussão se baseou no relato de experiência com motoristas funerários e agentes policiais que atuam no setor de óbitos conduzindo rabecão, além da pesquisa bibliográfica sobre o tema em questão. Constatou-se que o sofrimento psíquico é expresso nos depoimentos desses trabalhadores, e pode se manifestar através de diversos mecanismos de defesa, tais como sublimação, compensação, negação do sofrimento instalado, abuso de álcool e drogas ilícitas, entre outros. Entendemos que a Psicologia do Trânsito tem um papel essencial na prevenção do sofrimento psíquico desse indivíduo-trabalhador-motorista.

Palavras-chave: Psicologia do Trânsito; sofrimento; motoristas funerários; agentes policiais; morte.

PSYCHIC SUFFERING IN THE WORK OF FUNERAL MOTORISTS

Abstract: The objective of this article is investigating the causes of funeral car driver’s psychological suffering of Grater São Paulo, evaluating his relationship with the death, which is a natural issue in this profession. This work became relevant based on necessity and interest in knowing the routine and actuation of these professionals. During this study the psychic suffering was investigated in general kinds of work, the workers performance as well as your relationship with the death and his consequences. The discussion was based on the report of experiences from funeral directors and police officers who works in death sector driving hearse or other vehicles used to collect dead bodies, in addition to the bibliographical research on the subject in question. The psychic suffering observed is expressed in the testimonies of these workers and can be manifested through various defense mechanisms, such as sublimation, compensation, denial of installed suffering, alcohol abuse and illicit drugs, among others. We understand that Traffic Psychology plays an essential role in preventing the psychic suffering of this individual-worker-driver.

Key words: Traffic Psychology; suffering; Funeral directors; Police officers; death.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Bárbara Hansen, Janaína Campos, Ivana Moraes de Alencar y Paulo Eduardo Ribeiro (2018): “O sofrimento psíquico no trabalho de motoristas funerários”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (mayo 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2018/05/sofrimento-motoristas-funerarios.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1805sofrimento-motoristas-funerarios


1. considerações iniciais
A morte desde os primórdios da civilização é um acontecimento que causa fascínio e paralelamente aterroriza a humanidade.
A ambiguidade dessa relação com a morte nos levou a escolha do tema, com o intuito de compreender a influência dessa atividade em motoristas de carros funerários.
O presente trabalho tem como objetivo averiguar as causas do sofrimento psíquico de motoristas funerários tendo em vista o contato com a morte, que é algo cotidiano nesta profissão.
O que a morte causa nesses colaboradores, como eles lidam com essa atividade, quais os sofrimentos psíquicos que estão presentes nesta categoria, são questioidntos que tivemos e que veremos ao longo do presente artigo.
O sofrimento psíquico pode se manifestar através de diversos mecanismos de defesa, tais como sublimação, compensação, negação do sofrimento instalado, abuso de álcool e drogas ilícitas, uma suposta indiferença frente ao seu processo de trabalho, entre outros.
Sendo assim a qualidade de vida no trabalho será reflexo da influência das vivências de prazer e sofrimento dos trabalhadores.
Entendemos que a psicologia do trânsito tem um papel essencial na prevenção do sofrimento psíquico desse indivíduo-trabalhador-motorista.
2. A ATUAÇÃO DOS MOTORISTAS FUNERÁRIOS
            O que é ser um motorista funerário/agente policial? Como é lidar com a ausência da vida naquele corpo que há algum tempo ainda exista?
De acordo com Câmara (2011, p. 87) o ofício do agente funerário existe desde o ano de 1600 d.C., porém este, “era feito por irmandades e ordens terceiras, vinculadas à igreja Católica e às organizações sociais. ”
Em seu livro Tabu da Morte, Rodrigues (2006) nos conta um pouco dos processos históricos sobre a atuação do agente funerário. “A morte é um produto da história”, diz ele.
No decorrer da história, a morte é vista de formas variadas. A partir do séc. XIX se torna um acontecimento detestável, pois, representa uma ruptura no andamento normal da vida. Em decorrência dessa forma de ver a morte, desenvolve-se na prática funerária, a questão da estética fúnebre.
Isso se deu como consequência do medo da morte, fazendo com que fosse mantida a beleza do morto, o que sugere a ausência de sofrimento. (RODRIGUES, 2006).
No séc. XX ocorre uma ocultação da morte e a exclusão de quem está morrendo em decorrência do tabu que se erguia a partir desse momento. A morte deixa de ser “tudo” para se tornar “nada”.
Essa ocultação faz parte da incapacidade social de lidar com a mesma. A responsabilidade com as práticas que envolvem o luto é terceirizada, despersonalizando a situação a fim de amenizar a angústia gerada pela morte.
Dessa forma, as pessoas se distanciam do trato com os mortos e se tornam apenas espectadores. (RODRIGUES, 2006)
Ainda Rodrigues, no livro Tabu do Corpo:
Ninguém permanece perto de um cadáver, sem que sua fisionomia ateste que é precisamente um cadáver o que está vendo. Se a pessoa não está habituada, apresenta certas reações típicas, ousa olhar rapidamente para o cadáver e afasta os olhos imediatamente, de maneira a não deixar dúvida de que quer separar sua visão de algo que não quer ver; há quem cubra os olhos e quem desmaie (RODRIGUES, 1986, p. 49).
            A morte é um assunto tão árduo e penoso que, as pessoas evitam falar desse tema com todos os outros, até mesmo com que está morrendo.
Freud relaciona o falar e o pensar sobre a morte com a civilidade do sujeito. Seria a morte algo tão incrédulo e bárbaro que, o homem que falasse ou pensasse a respeito, seria taxado de descivilizado? Vejamos o que nos diz Freud (1914-1916):
Quando se trata da morte de outrem, o homem civilizado cuidadosamente evita falar de tal possibilidade no campo auditivo da pessoa condenada. Apenas as crianças desprezam essa restrição e desembaraçadamente se ameaçam umas às outras com a possibilidade de morrer... dificilmente o adulto civilizado sequer pode alimentar o pensamento da morte de outra pessoa, sem parecer diante de seus próprios olhos empedernido ou malvado; a menos que, naturalmente, como médico ou advogado ou algo assim, tenha de lidar com a morte em caráter profissional. Menos ainda ele se permitirá pensar na morte de outra pessoa se algum proveito em termos de liberdade, propriedade ou posição estiver ligado a ela (p.173).
            Ou seja, ser um profissional de áreas e ofícios específicos que trabalham com a morte, como citado acima, por exemplo, médico ou advogado, dá-lhe o direito de não ser descivilizados.
O que nos deixa um questioidnto: O trabalhador deve “agradecer” à sociedade por não ser descivilizados ou julgados por simplesmente trabalhar com a morte? E quando o ofício é carregar o portador da morte, um corpo sem vida ou maquiá-los e cuidá-los, será que realmente essa pessoa é aceita pela sociedade?
Percebemos que, anos depois, em uma pesquisa com profissionais de saúde feita em um hospital, ABRANCHES (1988), confirma o que nos disse Freud referente ao falar sobre a morte na frente do desenganado:
Como o hospital converteu-se no lugar da morte moderna, os profissionais deste são envolvidos por uma atitude de adiarem o mais possível o momento de avisar a família, o próprio doente nem pensar... para não atrapalhar a organização do trabalho...” (p. 54).
            A profissão não é só estigmatizada pelos familiares, mas sim, pela sociedade como um todo. Se atualmente a sociedade vive uma incapacidade de lidar com a morte. Como é visto quem trabalha com ela?
No entanto, essa profissão ainda é pouco valorizada e não há reconhecimento da sociedade. Ao contrário, muitas vezes o profissional é criticado e julgado pela crueldade de ganhar dinheiro com tal atividade.
Vejamos o que explica Câmara (2011) ao citar Ruiz e Cavalcante (2007):
A relação com os clientes é mais tensa, pois passam a ser vistos como a materialização da dor. Rotulados como aqueles que ganham às custas do sofrimento alheio; reclamam do processo de estigmatização, no qual são vistos como “papa defuntos” e em que as pessoas recorrem a rituais de afastamento em relação a eles (p. 20).
            Nos dias de hoje, são essas as atribuições do agente funerário, como podemos conferir na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE):
Realizam tarefas referentes à organização de funerais, providenciando registros de óbitos e demais documentos necessários. Providenciam liberação, remoção e traslado de cadáveres. Executam preparativos para velórios, sepultamentos, conduzem o cortejo fúnebre. Preparam cadáveres em urnas e as oridntam. Executam a conservação de cadáveres por meio de técnicas de tanatopraxia ou embalsamamento, substituindo fluidos naturais por líquidos conservantes. Embelezam cadáveres aplicando cosméticos específicos 1.
            Não é somente o agente funerário que transporta cadáveres e dirigi o famoso “rabecão” ou carro fúnebre. Na Polícia Civil do Estado de São Paulo, o responsável por fazer a remoção do corpo, é o agente policial. Este faz o transporte do corpo do local encontrado até o Instituto Médico Legal / IML.
Observemos que, o antigo cargo de Motorista da Polícia Civil, agora foi alterado para Agente Policial, segundo o Artigo 8º da Lei Complementar nº 494, de 24 de dezembro de 1986: O cargo de Motorista, pertencente ao Quadro da Segurança Pública, fica com sua denominação alterada para Agente Policial, devendo ser integrados no nível inicial da respectiva série de classes.
            Veremos o ofício do Agente Policial: Conduz viaturas policiais (precisa possuir Carteira de Habilitação profissional D).
Auxilia em investigações e outras tarefas. Esse profissional auxilia em várias funções e principalmente na investigação de crimes junto com o investigador de polícia. Museu da Polícia Civil do Estado de São Paulo, 2017.
Ou seja, tratamos aqui de dois tipos de trabalhadores que executam, entre tantos outros, o mesmo ofício: transporte de cadáveres.
Interessante analisar dois perfis de trabalhadores de ofícios parecidos e perceber queixas tanto iguais, como diferentes, porém ter a morte como seu “ganha-pão”.
Permita-nos, contar aqui, a origem do serviço policial e Instituto Médio Legal – órgão que integra e possibilita que o ciclo seja fechado pela funerária.
Um dado relevante que, a maioria das pessoas não sabe, é que o instituto médico legal/ IML, está subordinado à superintendência da polícia técnico-científica.
Foi criado com o intuito de fornecer bases técnicas em medicina legal para o julgamento de causas criminais. A mais conhecida das funções do IML é a necropsia, vulgarmente chamada de autópsia - exame do indivíduo após a morte. No entanto, associar o IML exclusivamente às necropsias é errado, pois este tipo de exame constitui-se em apenas 30% do movimento do instituto. A maior parte do atendimento (70%) é dada a indivíduos vivos, pessoas que foram vítimas de acidentes de trânsito, agressões, acidentes de trabalho etc. Governo do estado de São Paulo – Secretária da Segurança Pública2 .
            A história do Instituto Médico Legal / IML é encontrada através do site da Polícia Técnico-Científica, porém é uma bibliografia breve, vejamos:
É o órgão técnico mais antigo da polícia de São Paulo, e foi criado oficialmente em abril de 1886, no governo do conselheiro João Alfredo Corrêa de oliveira, presidente da província de São Paulo. Em 20 de abril do mesmo ano, foi baixado o “regulamento para o serviço médico policial da capital, que seria feito por dois médicos”.
Os decretos nº 1.414, de 1906, e nº 1.892, de 1910, ampliaram a ação dos médicos, definindo com mais segurança as devidas atribuições. Foi neste período que o órgão passou a se chamar "gabinete médico legal".
Em 1933, o interventor federal Armando de Salles Oliveira reorganizou o órgão policial que passou a denominar-se "conselho médico legal". Em 20 de março de 1959, foi novamente reorganizado, como "Instituto Médico Legal” 3 .
            Observemos uma ligação entre os agentes funerários que estão presentes no setor de Óbitos e os funcionários do Instituto Médico Legal, que são pressionados violentamente pelos agentes, para que a necropsia seja realizada o mais rápido possível e se consiga rapidamente o atestado de óbito, e enfim, poder fazer seu trabalho final.
Há ainda, preconceito e estigmatização dentro dos próprios “colegas de oficio”, quando chamados de “papa-defuntos” por estes. (ALDÉ, 2003).
            Ou seja, além de todo preconceito encontrado na sociedade e até em sua família, o trabalhador sofre, também dentro do seu próprio meio, por colegas que fazem o mesmo trabalho ou até piores, gerando um grande sofrimento psíquico.
2.1 O sofrimento psíquico dos motoristas
            Muitos leitores podem se perguntar porque escolher pesquisar e relatar experiências de motoristas carregados de estigmas, dores, preconceitos, ao vivenciar a morte lado a lado.
            Além de nossa empatia para com os trabalhadores, o compromisso com a Psicologia e a simpatia pelo tema, Souza e Boemer (1988), dizem que ter a morte como tema em estudo, é gerar grande contribuição para a classe que atua diretamente no laboral envolvendo a morte, ou, como já citavam “operários da morte”, pela pobreza de pesquisas e trabalhos nessa área.
O que também nos evidencia Abranches (1988, p. 51):
Que contribuições positivas, poderá trazer os estudos sobre a morte em uma sociedade tecnológica que, perdeu a visão das necessidades humanas e individuais. Uma sociedade ocidental moderna onde, pelo sistema capitalista, o homem vivo pode quase tudo, o morto nada pode produzir nem consumir, ou seja, o homem é valorizado como produtor de mercadoria ou mesmo como a própria mercadoria, a interdição e o silêncio censuram o debate sobre o tema tanático, não proporcionando ao homem meios de compreender sua morte e de controlar a angústia por ela gerada.
            Para iniciarmos o estudo sobre o sofrimento psíquico dessa classe tão pouco valorizada e contemplada em suas necessidades, precisamos entender o que é o sofrimento psíquico no ambiente de trabalho.
Levemos em consideração fatores como o ambiente, a categoria de trabalho, as condições que o trabalhador se encontra, a gratificação e o reconhecimento que se recebe, além das rotinas e tarefas repetitivas, como principais fontes de causas de sofrimento psíquico no trabalho.
Vejamos o que diz Dejours (1987) apud Mendes (1995, p.34):
É a organização do trabalho, a responsável pelas consequências penosas ou favoráveis para o funcioidnto psíquico do trabalhador. O autor afirma que podem ocorrer vivências de prazer e/ou de sofrimento no trabalho, expressas por meio de sintomas específicos relacionados ao contexto sócio profissional e a própria estrutura de personalidade.
            Além da organização, experiências que o trabalhador vive, memórias que traz consigo e suas próprias funções psíquicas também são responsáveis por ocasionar esse sofrimento, aumentar ou diminuir o mesmo.
            Novamente em Dejours (1990) apud Mendes (1995, p. 35) cita que “a qualidade do sofrimento está relacionada à cadeia biográfica e à história de vida do sujeito, ou seja, quando as condições externas salientam esta cadeia, haverá um reencontro das relações parentais infantis com a realidade atual”.
Ainda podemos considerar - para essa classe de trabalhadores - a relação com a morte, que é intensa e rotineira, também a presença do medo e do perigo.
De acordo com Abranches (1988), além do medo de doenças ou algo parecido, ainda podemos identificar nos profissionais que optam por trabalhar com o óbito tão de perto, uma angústia de morte maior do que a maioria da população. Tem-se a impressão de que haverá controle maior sobre o temor da morte, por se trabalhar com ela.
A morte, na sociedade atual, ainda é considerada um tabu, um assunto que não tratamos com naturalidade em rodas de conversas.
            Considerar que trabalhar com algo que dê enjeitamento às pessoas, onde há um preconceito social, é visto de forma tão negativa, nos leva a pensar que, o medo e o perigo são aliados fortes do sofrimento psíquico. O que é explicado por Flach et al. (2009), ao citar Freud:
Para Freud (1920/1980), o sofrimento está relacionado com o perigo. A ansiedade (Angst) descreve um estado particular de esperar ou preparar-se para o perigo, ainda que possa ser desconhecido. O medo (Furcht) exige um objeto definido de que se tenha temor (Fürchtet). O susto ocorre quando o sujeito se defronta com um perigo sem estar preparado para enfrentá-lo. O ponto central dessa definição é tanto o perigo quanto a expectativa, elementos que podem oferecer significativas contribuições para o estudo do sofrimento em gestores. O sofrimento não constitui um dado da natureza, mas uma posição designada, assumida e reconhecida, culturalmente, entre sujeitos históricos (p.195).
            Observa-se também, um desconforto para a família do trabalhador, muitas vezes cercados pelo medo de contaminação de doenças, a intimidação da sociedade, a visão do “trabalho sujo” e o afastamento social, como nos evidencia Souza e Boemer (1998, p. 27):
Os trabalhadores são conscientes do constrangimento e desconforto gerado pelo seu trabalho às pessoas de sua família e sociedade. Tal trabalho se mostra a eles como preocupante na medida em que os expõe a riscos de saúde e penoso, dado o lidar com o corpo humano afetado em sua integridade.
            Segundo Cunha (1978), para essa questão do perigo da contaminação de tratar um corpo morto e a segurança que se deve ter para tal atividade, observemos o cuidado dos índios Krahó, desde o início do século XIX, onde a água usada para lavar o defunto é tão perigosa que, leva-se a areia molhada para longe do lugar onde ocorreu a lavação e espalha-se nova areia no local.
            Cunha (1978) ainda nos diz que os índios, pelo ritual pesado que é o morrer e todas as providências a serem tomadas, familiares e sepultadores são lavados ou tomam banho de riacho para se purificarem.
Interessante esse cuidado com a purificação do próprio corpo e alma dos índios Krahó, uma vez que, a cada funeral usam a água para esse ritual, seja para sentir leveza e “tirar o peso” de sua alma, seja para se lavar de doenças.
Imaginemos o agente funerário ou agente policial, a cada funeral ou recolha de corpos, ter a oportunidade de lavar-se, purificar-se e preparar-se para a próxima atividade. Hoje em dia, na sociedade atual, corpos e corpos são preparados para o funeral ou carregados para o IML, sem nem mesmo, a maca ou a gaveta do “rabecão” estarem limpas.
Diante deste cenário, como o agente pode se preparar para lidar com o próximo defunto?
Para irmos além da teoria, decidimos ir a busca desses trabalhadores e ouvi-los, a fim de trazer ao presente trabalho uma realidade desconhecida por muitos, porém ricas de sentimentos, emoções, histórias e humanidade.
Observamos o que diz Silva et al. (2016, p.134) quando cita Dejours (2011, 2012) “assim, além das ameaças concretas apresentadas pelas condições de trabalho, interessa saber também de que maneira os trabalhadores percebem os riscos, de que maneira os vivenciam em seu cotidiano.”
Outra questão claramente visível nesse cotidiano, é o sofrimento psicológico em lidar com mortes de crianças, cadáveres crianças e tudo que isso envolve.
Abranches (1988) ao citar Ariès (1981) nos conta um pouco de história, referente à morte de criança. Pensava-se que antes do século XVIII, a criança não tinha personalidade e não era valorizada, sendo assim, a mesma era substituída e isso não causava nenhuma comoção.
Esse cenário se modifica a partir do século XIX, quando a burguesia começa a sentir a dor da morte infantil, comovendo os pais em suas mais profundas emoções de dor e luto, não suportando essa situação, procuravam eternizar a criança falecida através de estátuas.
O adulto ao ver uma criança sem vida acredita que esta morreu sem se realizar. Chiattone (1996) apud Abranches (1988)
Atualmente, a morte infantil pode ser considerada uma tragédia. Pode gerar desacordo entre seus familiares, podendo causar separação dos mesmos.
O luto da morte infantil é muito mais denso, penoso e pode durar por uma vida inteira para seus pais.
Para os profissionais estudados neste trabalho, lidar com a morte infantil é de grande identificação com seus próprios filhos.
Esses profissionais colocam-se no lugar de outros pais, o que podemos chamar de empatia, dificultando a desvinculação dessa família e dessa morte.
Como veremos nos depoimentos abaixo, esse tipo de comportamento contraria o próprio mecanismo de defesa da psique, que consiste em não se envolver com a dor do próximo e não ser empático para que esse envolvimento não lhe cause mais sofrimento.
3. O PAPEL DA PSICOLOGIA DO TRÂNSITO NESTE CENÁRIO
Segundo Hoffmann, Cruz e Alchieri (2003), a Psicologia do Trânsito surgiu em 1920, porém, foi no final da década de 50, início dos anos 60 que foi desenvolvida.
Atualmente, a área mais operante da Psicologia do Trânsito é em exames psicotécnicos para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação em todo território nacional.
Vejamos o que Lamounier (2005, p. 35) nos diz, referente à pequena história desse processo:
Seu início no Brasil foi marcado pela contratação de psicólogos pelo Detran / RJ, na década de 1950, com a finalidade de estudar o comportamento dos condutores. Isso ocorreu em virtude de o diretor do Departamento Estadual de Trânsito do estado do Rio de Janeiro (DETRAN / RJ), na época, se interessar por conhecer as causas humanas que provavelmente estavam envolvidas na ocorrência de acidentes. Assim, foi sancionada a Lei 9545, que instituía o Exame Psicotécnico para candidatos à Carteira Nacional de Habilitação (CNH), sendo o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP).
            Embora, os colegas psicólogos especialistas em Trânsito tendem a partir, quase que 90% para o ofício de aplicação de exames psicotécnicos, as atividades são mais abrangentes.
Uma vez que, investigamos comportamentos humanos no trânsito, como afirma o Conselho Federal de Psicologia (2010, p. 10):
uma área da Psicologia que investiga os comportamentos humanos no trânsito, os fatores e processos externos e internos, conscientes e inconscientes que os provocam ou os alteram.
Neste sentido, temos uma ampla atuação com esses seres humanos que utilizam a via, seja com pedestres, ciclistas, motociclistas, motoristas de todos os tipos, caminhoneiros, entre tantos outros.
Para esses motoristas funerários e agentes policiais que tivemos o prazer de conhecer, o psicólogo ficaria responsável por diminuir o sofrimento psíquico desses profissionais, a fim de prevenir acidentes devidos a estresse, pressão, medo, angústia, utilização de drogas, entre outros.
Na Alemanha, no consultório de Psicologia de Trânsito de Braunschweig, uma nova área de acompanhamento para motoristas foi apresentada no Anuário de 1977: a “Terapia do Trânsito”.
A Terapia de Trânsito não é só um curso para infratores, mas uma sequência de horas terapêuticas para os motoristas que experimentam dificuldades em evitar as infrações, especialmente em relação ao uso de álcool e drogas. Os psicólogos de trânsito colocam como meta de seu trabalho: evitar as futuras infrações no trânsito (ROZESTRATEN, 2000 p.80-85).
            Fazendo um paralelo com o trânsito e motoristas brasileiros, e adequando ao cenário do presente estudo, juntamente com a definição do Conselho Federal de Psicologia (CFP) em, analisar e investigar comportamentos humanos implantaríamos junto aos órgãos de trânsito e instituições relacionadas, a nova área de “Terapia do Trânsito”, focando nossas investigações e atuação em diminuição do estresse e do uso de álcool e drogas ilícitas e ainda, um trabalho de preparação psicológica para esses motoristas ao lidar com tal realidade.
4. METODOLOGIA
            Hubner (2001, p. 41) aponta para a importância do método utilizado, pois trata-se de uma seção fundamental em qualquer projeto de pesquisa, seja em projetos propriamente dito ou em dissertações ou em teses em geral.
            A autora complementa sua lógica de pensamento dizendo que no método é preciso detalhar e deixar claro a lógica de ação adotada e seguida pelo pesquisador, além dos principais fenômenos que se decide estudar, não se esquecendo, no entanto, de suas ramificações, inter-relações e a forma de se obtê-los.
            A primeira parte do delineamento dessa pesquisa se deu a partir de pesquisa documental que foi realizada a partir levantamento de bibliografias que abordassem o assunto tema desse artigo.
            Segundo Gil (2002, p. 44) a pesquisa bibliográfica é feita a partir da utilização de material já utilizado por outros autores, principalmente na forma de livros e/ou artigos científicos, cuja finalidade é não só aprofundar como também ampliar os conhecimentos sobre o objeto de estudo.
A segunda parte do delineamento dessa pesquisa foi feita a partir do nosso relato de experiência com os motoristas funerários e agentes policiais, foi feita uma pesquisa bibliográfica para embasamento teórico de cunho qualitativo, que tem como principal propósito a discussão e levantamento de informações sobre a atuação dos psicólogos do trânsito com os profissionais mencionados.
4.1 Sujeitos
Foram ouvidos 7 sujeitos entre motoristas funerários e agentes policiais, com idades entre 31 e 55 anos. Todos do gênero masculino. 4 participantes possuem Ensino Médio Completo e 3 participantes concluíram o Ensino Superior. Temos 3 católicos, 1 evangélico, 1 agnóstico e 2 que acreditam em Deus, porém não possuem religião definida. O tempo de atuação nesse ramo varia entre 1 e 30 anos de colaboração. Ouvimos 4 motoristas atuantes em São Paulo, 1 em Itapecerica da Serra, 1 em São Bernardo do Campo e 1 de Cotia.
4.2 Instrumentos utilizados
Para realizar o levantamento bibliográfico, primeira parte desse estudo, os dados foram coletados através de levantamento bibliográfico a partir da utilização de livros, artigos, monografias, teses e dissertações que abordavam o tema, adquiridas de fontes seguras de consulta (Medline, Lilacs, Bireme, Scielo, Google Acadêmico, Biblioteca das Universidades Federais, etc.).
Para realizar a segunda parte da pesquisa foi realizada uma entrevista semiestruturada, cujos resultados serão apresentados a partir de agora.
5. RESULTADOS
            A pesquisa apresentada neste artigo procurou verificar quais os sofrimentos psíquicos decorrentes do trabalho com a morte.
Como os trabalhadores dessas categorias se percebem no mundo e quais estratégias (conscientes e inconscientes) apresentam em recusa do sofrer.
Dejours (1994) apud Rodrigues (2006, p. 5) define “a normalidade como o equilíbrio psíquico entre constrangimento do trabalho desestabilizante ou patogênico e defesas psíquicas.”
Os resultados encontrados no presente estudo sugerem que esses trabalhadores estão rodeados de estímulos externos, tais como: o preconceito da sociedade, o constrangimento e desconforto gerado pelo seu trabalho a ele próprio e sua família, levando-os a uma visão negativa.
E o próprio sofrimento psicológico ao lidar com a morte em si, a baixa remuneração, o sofrimento acentuado em relação a mortes infantis, o abuso de substâncias, entre outros.
Ouvimos dos profissionais que conversamos motivações diversas que os fizeram entrar para esse ramo, entre elas: necessidade de emprego, estabilidade, ramo da família e oportunidade para ingressar em outras carreiras, porém nenhum deles mencionou que entrou por empatia pelo ofício, por amor à profissão ou porque gosta de servir à sociedade com seu trabalho.
O que nos leva a pensar que o profissional não gostaria de estar ali, naquele ambiente que lhe é desagradável pelas diversas motivações citadas acima, surgindo assim o sofrimento no trabalho (RODRIGUES et al., 2006).
Para chegar aos resultados obtidos nesse estudo, foi utilizado um questionário com perguntas fechadas, e que serão apresentados na íntegra a partir de agora.
Vale lembrar que todas as respostas foram escritas pelos próprios participantes e optou-se por mantê-las exatamente como eles escreveram.
5.1 Depoimento nº 01
Inicias: E.G
Idade: 55 anos
Sexo: Masculino
Estado civil: Solteiro
Tem filhos? Não
Escolaridade: Ensino médio completo
Religião: Acredita em Deus, porém não tem religião.
Função: Agente policial aposentado da Polícia Civil do Estado de SP
Tempo de trabalho: 30 anos
1. Depois que começou a trabalhar com a morte, como passou a vê-la?
Resposta: A morte é a coisa mais certa que já vi na vida. Não tem preto, branco, rico ou pobre. Todo mundo é igual. Todas as pessoas. Porque para mim, são pessoas. Não é ser humano, eu não chamo de ser humano, porque o ser humano não tem alma. Ser humano é um animal, um mamífero. Então chamo de pessoas.
Se você for na savana africana, o bicho tem mais compreensão da vida do que as pessoas. Porque o bicho mata para comer, e as pessoas matam por matar. Então eu chamo de gente.
Eu acompanho as necropsias que são feitas pelos médicos professores aqui da USP, entro com os alunos na sala e fico assistindo. É normal. Você pega, fatia o cérebro. É tranquilo.
2. Como é para você lidar com a dor dos familiares diante de um ente querido?
Resposta: Não tenho relação com a família ou ente querido do defunto. A gente não pode se envolver. Isso é a tática de todos que trabalham com isso. Se você tiver alguma relação, você fica doido, maluco. E também não pode sentir dó, você não sabe quem é quem. Converso bem pouco com a família, só aviso para não ficarem beijando o defunto, porque ali passa muita bactéria, doenças, vírus. A gaveta é suja, não é limpa, então você fica resíduos de vários corpos que passaram por ali. É sujo.
3. Como é sua relação com os colegas de trabalho?
A relação é boa. Cada um é cada um. Tem que tratar com respeito, se não, a corregedoria da polícia vem em cima de você.
4. O que lhe motivou a entrar nesse ramo?
Resposta: Ah, por necessidade né. Eu conheci pessoas que comentaram sobre o concurso da Polícia na época, e eu me interessei, prestei e passei. Na realidade, você trabalha porque precisa. O cara nunca vai trabalhar recolhendo reciclagem, lixo porque gosta. Trabalha porque precisa. É igual a gente.
5. Você gosta da sua profissão?
Resposta: Gosto.
6. Quais são as especificidades de dirigir esse tipo de transporte? (Dificuldades no trânsito)
Resposta: Dirigir no trânsito de São Paulo é muito irritante, é muito difícil. A gente faz 12 horas e folga 2 dias, quando a CEPOL4 liga para a gente ir pegar um talão por exemplo, tem que calcular o tempo do trânsito para ver se não vai passar da jornada, porque não ganhamos hora extra. Em geral, nós vamos retirar o corpo até mesmo se o tempo ultrapassa, mas se vemos que ultrapassa muito, aí deixamos pro pessoal do outro turno. Mas é praticamente o dia inteiro na rua dirigindo.
[E como é para você andar nas ruas carregando um defunto, perante aos olhares de outras pessoas?]
Resposta: Então, como o carro que íamos, era o da Polícia Civil, não tinha identificação de remoção de cadáveres, igual tem o do SVO5 , aquele branquinho, que está escrito, remoção de cadáveres e Prefeitura de SP. Poucas pessoas sabiam que aquela viatura, era de fato, o rabecão. As pessoas não gostam de saber e nem de estar dirigindo a viatura (rabecão), tanto que as vezes mandavam os caras do GOE6 ou DEIC 7 de castigo, para dirigir viatura. Tem muita malandragem e sacanagem.
7. Você tem interesse em mudar de carreira? Se sim, o que pretende fazer?
Resposta: Eu estou aposentado agora, então já sai do meio. Não tenho como mudar de carreira ou de profissão. Mas agora eu vou pescar, comer e descansar um pouco. Mas não posso dizer que não vou mais trabalhar, num país como esse que oscila muito, a gente não sabe o que vai acontecer e não pode dizer que não vai mais trabalhar.
[E o que você faria?]
Resposta: Ah não sei, não posso te falar agora com precisão. Poderia trabalhar num restaurante. Sei lá.
8. Como se vê (profissionalmente) diante da sociedade?
Resposta: A sociedade não conhece nada. Só conhece o ser humano quando precisa. IML, funerária é tudo a mesma coisa para eles.
Outro dia, entrei na favela para pegar um corpo de bandido. Sai perguntando para um ou outro comerciante por ali, aonde estava o defunto. Ninguém quis me dizer. Quando perguntei a um moleque de 10 anos que estava de bicicleta, me apresentei como o cara da funerária.
Ele disse: “Você não é da funerária nada cara. Você é da polícia civil. Eu não posso entregar o talão, mas vou andando de bicicleta e você me segue. Assim que eu olhar para rua, você entra. É lá que ele está. ” E estava mesmo, detalhe que eu havia escondido a viatura para ninguém saber que eu era da polícia. Mas é isso, o cara de bem não sabe de nada, não sabe distinguir a realidade, o cara do mal, o ladrão, esse sabe.
[E isso te incomoda?]
Resposta: Não me incomoda. Todo mundo ignora, acha que nunca vai acontecer com ele. As pessoas têm que conhecer seus direitos. Não acho meu trabalho importante. Se você não tem uma patente alta, ou está na TV, você não é reconhecido. Você só é mais um.
9. É comum levar para casa os problemas do trabalho?
Resposta: Eu moro sozinho e não penso nos problemas em casa.
10. Você costuma conversar com a sua família sobre o seu trabalho?
Resposta: Eu não moro com ninguém e não converso sobre isso com meus conhecidos.
11. O que costuma fazer para se divertir?
Resposta: Ah sempre tomo uma cervejinha e pesco. Fico no bar com os colegas e costumo brincar com todo mundo.
12. Como foi o seu pior dia de trabalho?
Resposta: Não tem um dia pior, todo dia é igual. Mas fico pensando em uma situação, que nunca consegui resolver ou identificar o que houve. Um dia na Santa Casa no Centro vi um fato que não tenho conhecimento. Abri a porta do rabecão e vi fogo correndo de um lado para o outro nos trilhos da porta. Eu não entendi, o rabecão não estava pegando fogo, foi somente isso que aconteceu.
Também me lembrou de outra história, quando eu era pequeno, morava na casa no interior de MG, próximo a BR 40, meu pai com câncer, a luz do lampião que estava em cima da casa, ficava subindo e descendo. Nunca entendi o que acontecia.
Também já me aconteceu outro episódio, no prédio em que eu morava, no térreo, alguém mexia na maçaneta da porta da vizinha, que só usava ali para pintar quadros, e também arrastava uma mesinha que tinha no corredor. Quando abria a porta do meu apartamento para ver, não tinha ninguém. Era frequente. Eu não tinha medo e falava para pessoa: vai dormir, não me aporrinha, eu te ajudo no que você precisar. Porém ninguém falava comigo.
Eu acredito que a pessoa fica vagando, quando não tem uma outra pessoa para acolher, uma família que não dá assistência. Ai a pessoa fica por aí, não fica em paz, não descansa.
13. Quantos corpos em média, você busca por dia?
Resposta: Tem dia que de 3 a 4 ou 14 ou 15. É muito incerto.
14. Quantas viaturas têm para cada região?
Resposta: 1 viatura para zona sul, 1 para leste, 1 para oeste e 1 para centro e norte.
São 4 gavetas por rabecão, ou seja, cabem 4 pessoas. Na maioria das vezes, fazemos montagem, mesmo sendo proibido por lei. As vezes morrem 5 pessoas, você só tem 4 lugares, leva tudo embora, porque vai ser mais doloroso e demorado para a família esperar mais horas para virem buscar aquele 1 que ficou.
15. Quais equipamentos de proteção que você usa?
Resposta: Só luvas. Sem jaleco, sapato especial nem nada.
16. Não tinha medo de pegar alguma doença?
Resposta: Até tinha, mas tinha que fazer. Já peguei pessoas com doença da vaca louca, ebola e hepatite C. Para esses casos, nem a média faz a necropsia com medo de pegar. Só assina o laudo.
5.2 Depoimento nº 02
Inicias: C.K.M
Idade: 39 anos
Sexo: Masculino
Estado civil: Casado
Tem filhos? Sim, 1 filha
Escolaridade: Superior em Administração
Religião: Católico
Função: Agente funerário
Tempo de trabalho: 20 anos
1. Depois que começou a trabalhar com a morte, como passou a vê-la?
Resposta: Bom, enxergar de forma mais natural possível, porque antes eu tinha um paradigma de que: ahh, morte e tal e daí ficava meio assustado quando lidava com esse assunto.
E também passei a dar mais valor à vida, porque eu percebi quão frágil a vida é. Hoje estamos aqui, mas daqui 5 minutos a gente não sabe mais qual será nosso futuro. Passei a valorizar mais a vida e as coisas que o dinheiro não compra. Valores intangíveis que na correria do dia a dia acaba não dando tanto valor assim. Atrás do sucesso profissional a gente deixa passar batido valores como: caráter, ética, hombridade... então eu passei a dar mais valor a esses tipos de coisas.
2. Como é para você lidar com a dor dos familiares diante de um ente querido?
Resposta: No começo foi meio complicado, porque sem preparação psicológica a gente acaba absorvendo a dor do próximo. Então por várias vezes eu ia embora pra casa chorando, ficava mal... Principalmente quando era criança. Você entregar um filho pro pai no cemitério e escutar a lamentação de um pai de uma mãe, aquilo choca e a gente absorve um pouco daquilo.
Ao longo do tempo eu consegui discernir e separar um pouco mais. Encarar mais profissionalmente do que levar pro lado pessoal. Então hoje em dia eu tenho mais liberdade, mais desprendimento com a situação. Hoje eu consigo lidar melhor com isso.
[Faz quanto tempo que você trabalha com isso?]
Resposta: Eu tenho 20 anos já.
3. Como é sua relação com os colegas de trabalho?
Resposta: É legal, é bacana. A gente troca bastante informações. De casos que acontece com um e com outro e vamos trocando experiências e vamos sempre tentando ajudar. Tanto do lado psicológico quanto do lado profissional. Pra gente passar um pouco dessa experiência que a gente teve ao longo do tempo. De como lidar, de como não absorver essa dor dos familiares. Então é uma troca boa.
4. O que lhe motivou a entrar nesse ramo?
Resposta: Bom, o ramo já é da família né, então eu cresci no ambiente de funerária. Quando eu tinha 18 anos eu tirei minha carteira de motorista pra vir trabalhar na funerária. Então para mim é mais fácil porque meu pai já trabalhava com isso. Então se tornou mais fácil pra mim porque eu já estava habituado.
5. Você gosta da sua profissão?
Resposta: Gosto. Gosto mais da outra né? (Músico)
[Mas é hobbie ou você também trabalha com isso?]
Resposta: Eu também trabalho com isso. É que eu prefiro lidar com a alegria do que com a tristeza. E são os opostos e eu consigo dar essa balanceada legal. Serve como uma válvula de escape. Por que às vezes eu vejo uma família chorando, mas a noite eu tô no palco e vejo todo mundo sorrindo, dançando e se divertindo.
6. Quais são as especificidades de dirigir esse tipo de transporte? (Dificuldades no trânsito)
Resposta: Enfrento dificuldade por conta de horário. O trânsito hoje em dia é caótico em qualquer lugar que você vá. Até mesmo aqui em Itapecerica que é uma cidade relativamente menor do que São Paulo, mas tem trânsito também e a gente quando lida com esse tipo de trabalho a gente lida com a pressão do horário. Porque a liberação do IML às vezes acontece em um horário próximo ao fim do expediente do cemitério e a gente tem que se habituar e fazer da melhor forma para que dê tempo. Então a pressão é de horário mesmo.
7. Você tem interesse em mudar de carreira? Se sim, o que pretende fazer?
Resposta: Não, hoje não. Eu sou formado em Administração e hoje tô aqui e é da família também.
8. Como se vê (profissionalmente) diante da sociedade?
Resposta: Hoje ainda existe um certo preconceito quando fala que trabalha em funerária. Mas por outro lado tem pessoas que valorizam esse tipo de trabalho. Porque não é todo mundo que tem coragem de fazer. E não é todo mundo também que está preparado. Quando a gente fala de funerária, que lida com a morte, tem esse medo, esse preconceito O que vai acontecer. Eu já tive caso de entregar o corpo no cemitério e a pessoa não pegar na minha mão, porque tem medo de contaminação. Porque acha que porque a gente lida com isso estamos contaminados. Mas não fazem ideia de que a gente usa EPI (equipamento de proteção individual), tem aquele cuidado com a nossa saúde também. E assim como o “aidético” sofre preconceito, porque a AIDS não pega pelo toque. Mas muita gente também não sabe. Às vezes por ignorância e às vezes por preconceito sim.
9. É comum levar para casa os problemas do trabalho?
Resposta: Olha a gente às vezes leva. Porque como a gente lida com pressão, às vezes vai pra casa meio pilhado. Não consegue desligar muito daqui. Eu tento, mas às vezes não consigo. Meu lado emocional, quando eu chego em casa ainda tô a 100 por hora. Então até eu desligar e cair na rotina de casa é um pouco difícil. A família sofre mais, né?
Porque às vezes o filho fala e você não dá muita atenção porque tá nervoso, tá pensando aqui. A esposa, enfim.... É um pouco complicado.
10. Você costuma conversar com a sua família sobre o seu trabalho?
Resposta: Raramente, difícil.
[Sua filha, por exemplo, ela não tem curiosidade, não pergunta, questiona?]
Resposta: Ela até já veio aqui ver meu trabalho, ela gosta. Tem curiosidade.
11. O que costuma fazer para se divertir?
Resposta: Eu pego meu violão, sento e toco algumas músicas. Componho também né. Eu pinto quadro e aí eu pego essas válvulas de escape. Eu jogo futebol também, né.
Pra balada eu não vou, porque quando eu vou para a balada é pra trabalhar também.
12. Como foi seu pior dia de trabalho?
Resposta: Foi no dia que eu fui levar uma criança no cemitério e entreguei pro pai, e o pai começou a falar coisas sentimentais como: meu filho, por que você me deixou? E aquele dia eu vim tomando o papel do pai.
[Você já tinha sua filha?]
Resposta: Já tinha, inclusive foi logo depois que ela nasceu que isso aconteceu. Porque aí eu já sabia o que era o sentimento de amor pai e filho. Então aí doeu bastante. Esse foi o meu pior dia de trabalho.
5.3 Depoimento nº 03
Inicias: D.A.V
Idade: 36 anos
Sexo: Masculino
Estado civil: Divorciado
Tem filhos? Sim, 1 filha (4 anos)
Escolaridade: Superior em Radiologia
Religião: Não tem religião, mas acredita em Deus.
Função: Motorista tanopraxista
Tempo de trabalho: 5 anos
1. Depois que começou a trabalhar com a morte, como passou a vê-la?
Resposta: Olha, passei a enxergar que cada ano que ficamos mais velhos, nos aproximamos mais da morte. Infelizmente essa é a leitura que tenho.
E que nossa carne não vale absolutamente nada. Pois, minutos após a morte os bichos são projetados de dentro do organismo pra fora. Começam a comer nossa carne de dentro pra fora. Isso foi chocante no início, tudo abala no início de um trampo desse, desde odores até a dor dos parentes.
Hoje em dia eu dou mais valor à vida. Quando eu comecei a trabalhar nesse lugar, eu comecei a usar muita droga, bebida não, mas eu cheirei muita cocaína, fumei maconha. Depois que eu sai, graças a Deus eu larguei a droga. Só continuo com a maconha mesmo. Mas atrapalhou minha vida, por que eu parti pra uma droga mais pesada, pra ficar anestesiado em relação ao serviço. Por que o serviço é bem difícil mesmo, é complicado.
Principalmente quando você chega numa cena de horror, pegar uma criança num acidente de carro. Você vai se sentindo uma pessoa mais fria. Eu fui ficando frio, isso você pode ter certeza. Mas, depois que eu larguei o serviço, eu voltei a ser uma pessoa mais emotiva. Por que eu sou bem emotivo mesmo.
Hoje em dia eu dou muito valor a vida, já não uso mais droga, me cuido pra caramba. Não tenho mais vontade de usar droga, depois que sai do trampo eu tive problema, porque sentia vontade, mas hoje graças a Deus eu já não sinto mais.
Eu procuro não perder mais noites à toa, dormir à noite pra poder aproveitar mais o dia. Eu tive uma visão totalmente conturbada no início. Passei a ver que a vida não valia nada: “ah que merda isso, a gente morre e acabou.” No começo foi assim, então usava droga pra caramba e foda-se tudo. Entendeu?! Era nesse clima mesmo que eu entrei. Daí conforme foi passando os anos eu passei a ver que era a carne que não valia nada, mas que a gente tinha que cuidar da gente, cuidar da alma, fazer o bem. Minha avó sempre me ensinou que quando eu ia fazer um serviço pegar no pé do morto e falar “vai com Deus”, fazer uma oração. No começo eu fiz isso, escutava muito a minha avó. Mas depois eu acabei esquecendo. Cinco, seis, sete corpos por noite você não vai fazer isso com todos, entendeu.
Meu, o trampo é muito difícil, muito difícil. Eu acho que se eu não tivesse drogado a maioria das vezes, o drogado que tô falando, não é louco de cocaína, eu cheirava pouco e ficava normal aparentemente, só que meu estado mental não estava normal. Eu estava fazendo aquilo como se fosse normal, mas não era normal. Você consegue entender?
E eu já cheguei a ir trabalhar careta também, é bem diferente. Eu torcia pra não dar trampo, porque eu não queria mais usar. Tipo, eu usei pra caramba já e daí no dia seguinte dava aquela rebordose 8 e daí eu pensava: poxa espero que não dê trampo, pra eu não usar.
A droga e a cachaça ajudam o cara a lidar com isso normalmente. É pra isso que serve a droga, pro cara lidar com isso como se ele tivesse indo entregar uma roupa, uma comida, ou retirar alguma coisa. Você passa a ver o corpo como um objeto. Você tem que ir lá retirar e levar pro IML e acabou. Careta não dá, louco você faz isso como se fosse normal.
Bom, resumindo então, a morte faz parte da vida e não valemos nada depois que morremos. Assim que eu vejo a morte hoje em dia.
2. Como é para você lidar com a dor dos familiares diante de um ente querido?
Resposta: Quando tive que lidar com a dor de estranhos não tive problema, era meu trabalho. A gente não pode se envolver. Mas quando é nosso parente, não tem como estar preparado pra tanta dor. Mas talvez esteja mais preparado do que alguém que não tenha vivenciado tal experiência. Eu mesmo troquei e maquiei o corpinho dela (ele arrumou a avó quando ela faleceu). É bem triste, o sentimento que eu tive na hora foi completamente diferente do sentimento que eu tive quando fazia isso em outros corpos. Porque eu cheguei a fazer trabalho com maquiagem também, um serviço por fora pra ganhar um dinheirinho a mais.
Mas é bem triste mesmo. É diferente você trocar um estranho, você também tá envolvido com aquela situação. Uma pessoa que era pai, mãe, deixou a família. É triste, o sentimento de tristeza tá ali com você.
3. Como é sua relação com os colegas de trabalho?
Resposta: Minha relação foi muito boa. Todos alcoólatras, desde o senhor que registrava os joviais, o guarda do IML, os motoristas que lá ficavam. Eram 5: 3 motoristas e 2 ajudantes. Todos bebiam e bebiam muito, em todos os plantões. A gente cozinhava lá mesmo, tinha uma cozinha bem limpa. Cada dia um levava a mistura, o mais velho cozinhava muito bem e eu auxiliava no início. Pois, a noite o bicho pegava e ficava só nas remoções. Mas eram todos meus amigos e alguns tenho contato até hoje.
Quem bebia muito era o ajudante que trabalhava comigo, o profissional da funerária que registrava os óbitos. Porque lá era um prédio só, era o IML no prédio de cima e a funerária no prédio de baixo. Então eu fazia os dois serviços, quando não tinha o rabecão pra recolher corpo na rua, eu retirava corpo nos hospitais e enfeitava corpo também. Que era a forma de eu ganhar um dinheirinho a mais também, com maquiagem essas coisas. Então, tinha o agente funerário que mexia com esse trabalho, entendeu. Era motorista/agente funerário que mexia com esse trabalho.
Então, problema com bebida todo mundo bebia. Inclusive o meu ajudante tomava um tubo de cachaça por plantão. A gente trabalhava 12 por 36 ele tomava um tubo de cachaça por plantão.
Eu assumia o carro 19h00 da noite e ficava louco até 3h00/4h00. Daí depois ia comer alguma coisa pra entregar o carro as 7h00 da manhã. Mas era assim todo dia, todo dia louco. E assim louco você não se abala tanto. Era mais pra da uma quebrada no ambiente, no cheiro... e também na comoção. Porque você vai tirar um corpo na residência. Tá todo mundo em cima do corpo gritando. Pessoas com aquele sentimento de não aceitação do fato. Então é muito difícil. Você tem que estar com o psicológico em dia, o que é muito difícil. Ou louco mesmo, porque você faz o trampo e bola pra frente, você pega o corpo coloca na gaveta, joga no carro e próximo. É assim que você passa a lidar com o serviço, entendeu. Próximo, próximo e próximo.
4. O que te motivou a entrar nesse ramo?
Resposta: Foi por acaso. Uma empresa estava recrutando motorista categoria D em São Bernardo do Campo. Minha mãe trabalha na prefeitura de lá e me avisou. Fui lá fiz a prova escrita e fiquei na espera como motorista D, ou pegava ambulância, ou caminhão da carrocinha ou carro de maluco. Aí apareceu uma vaga, um senhor não se adaptou no serviço e me chamaram, eu fui.
Foi mais pela necessidade de trabalho, e por acaso mesmo aí eu fiquei curiosíssimo e fui estudar maquiagem de cadáveres.
5. Você gosta da sua profissão?
Resposta: Gostava do trampo sim, mas pagavam muito mal.
6. Quais são as especificidades de dirigir esse tipo de transporte? (Dificuldades no trânsito)
Resposta: Não tem dificuldade alguma, veículo um pouco largo e um pouco alto. Por isso pra algumas remoções de difícil acesso, chamamos auxilio dos bombeiros. Mas na rua no dia a dia as pessoas respeitam apesar de não termos pressa, eles dão passagem.
Alimentação, não deixam você pagar, em padarias. Era mó onda.
7. Você tem interesse em mudar de carreira? Se sim, o que pretende fazer?
Resposta: Mudei de carreira, fui pra motorista de ambulância e depois de ônibus. Romperam o contrato com a prefeitura senão estaria lá até hoje.
8. Como se vê (profissionalmente) diante da sociedade?
Resposta: Diante da sociedade me via humilhado e mal remunerado. Por fazer o que poucos fariam, ou quase ninguém.
Tinhas uns ricos que se comoviam e davam caixinhas altíssimas por dó de ver a gente a noite toda ali pegando defunto.
9. É comum levar para casa os problemas do trabalho?
Resposta: Sim, comum levar.
10. Você costuma conversar com a sua família sobre o seu trabalho?
Resposta: Conversava sim, mas não muito. Mas se deixasse, eu mesmo tinha todos os dias história pra contar ou desabafar com a minha família.
11. O que costuma fazer para se divertir?
Resposta: Jogar futebol e treinar musculação. Fumar baseados e sair pra comer fora, curto muito.
12. Como foi seu pior dia de trabalho?
Resposta: O meu pior dia de trabalho foi quando peguei um acidente de um ônibus que o motorista dormiu e invadiu o pedágio, sentido oposto.
Como era feriado estava parado. Tinha umas crianças mortas, umas com a idade da minha filha hoje em dia. (na época em que trabalhava como motorista, não tinha filhos. Fez a comparação das crianças com a idade que sua filha tem hoje).
Foi bem difícil, esse momento foi o pior. Crianças sempre dói mais.
5.4 Depoimento nº 04
Inicias: S.M.A
Idade: 42 anos
Sexo: Masculino
Estado civil: Casado
Tem filhos? Sim, 2 filhas
Escolaridade: Ensino médio completo
Religião: Evangélico
Função: Motorista de funerária
Tempo de trabalho: 8 anos
1. Depois que começou a trabalhar com a morte, como passou a vê-la?
Resposta: A morte nada mais é do que um veículo que te conduz até a Deus.
2. Como é para você lidar com a dor dos familiares diante de um ente querido?
Resposta: É muito dolorido, pois somos ser humanos também, mas não podemos envolver.
3. Como é sua relação com os colegas de trabalho?
Resposta: É muito boa, nos respeitamos muito.
4. O que te motivou a entrar nesse ramo?
Resposta: Foi por necessidade de trabalho.
5. Você gosta da sua profissão?
Resposta: Sim, eu gosto do que faço. Mas tem o preconceito, ninguém gosta quando ver. Faz sinal da cruz.
6. Quais são as especificidades de dirigir esse tipo de transporte? (Dificuldades no transito)
Resposta: Não tem dificuldade.
7. Você tem interesse em mudar de carreira? Se sim, o que pretende fazer?
Resposta: Não tenho.
8. Como se vê (profissionalmente) diante da sociedade?
Resposta: Um trabalhador qualquer.
9. É comum levar para casa os problemas do trabalho?
Resposta: As vezes sim.
10. Você costuma conversar com a sua família sobre o seu trabalho?
Resposta: Sim, converso.
11. O que costuma fazer para se divertir?
Resposta: Jogar futebol, tocar violão e bateria e cantar na igreja.
12. Como foi seu pior dia de trabalho?
Resposta: Foi quando eu foi pegar um corpo no IML de Osasco, nunca tinha visto ninguém aberto, eu assustei. Foi muito difícil.
5.5 Depoimento nº 05
Inicias: A.O
Idade: 42 anos
Sexo: Masculino
Estado civil: Casado
Tem filhos? Sem filhos
Escolaridade: Ensino médio completo
Religião: Católico
Função: Motorista de funerária
Tempo de trabalho: 10 anos
1. Depois que começou a trabalhar com a morte, como passou a vê-la?
Resposta: Natural.
2. Como é para você lidar com a dor dos familiares diante de um ente querido?
Resposta: É complicado, mas não podemos nos envolver.
3. Como é sua relação com os colegas de trabalho?
Resposta: Boa.
4. O que te motivou a entrar nesse ramo?
Resposta: Tava precisando de motorista mas eu não sabia que era para funerária.
5. Você gosta da sua profissão?
Resposta: Gosto. É ótima. Sossegada.
6. Quais são as especificidades de dirigir esse tipo de transporte? (Dificuldades no transito)
Resposta: Não tem dificuldade.
7. Você tem interesse em mudar de carreira? Se sim, o que pretende fazer?
Resposta: Não tenho.
8. Como se vê (profissionalmente) diante da sociedade?
Resposta: Não é bom, as pessoas fazem o sinal da cruz. Não quer pegar em sua mão. Não tem escapatória, mas é sossegado.
9. É comum levar para casa os problemas do trabalho?
Resposta: Não levo nada. Eu desligo.
10. Você costuma conversar com a sua família sobre o seu trabalho?
Resposta: Não.
Nesse momento, o atestado de óbito ficou pronto e o agente funerário teve que acompanhar à família, sendo assim não conseguiu responder todas as perguntas.
5.6 Depoimento nº 06
Inicias: C. M
Idade: 52 anos
Sexo: Masculino
Estado civil: Casado
Tem filhos? Sim, 2 filhas
Escolaridade: Ensino médio
Religião: Católico
Função: Agente policial
Tempo de trabalho: 27 anos
1. Depois que começou a trabalhar com a morte, como passou a vê-la?
Resposta: É difícil explicar. No começo é mais fácil, se torna rotineiro. No começo abala, choca, ainda fico até hoje quando é criança, acidente de trânsito, quando é uma morte banal, com instinto de crueldade, ai abala bastante. Mexe psicologicamente, fica abalado mesmo. Depende do caso se torna rotineiro. Mas quando é mulher espancada pelo marido, ai a gente fica indignado, porque pensa na esposa, irmãs, mãe e filhas. Fora isso, se torna rotineiro.
2. Como é para lidar com a dor dos familiares diante de um ente querido?
Resposta: Procura não entrar no mérito. Porque se conversar com a família vai acabar chorando junto. Recolhe o mais rápido possível para não ficar abalado. Mas dependendo do caso, acaba chorando.
3. Como é sua relação com os colegas de trabalho?
Resposta: Acredito que boa. A gente só se vê em serviço. Não fazemos confraternização igual em empresa. Não nos vemos fora do plantão. Só em serviço mesmo.
4. O que te motivou a entrar nesse ramo?
Resposta: Não foi motivação. Prestei concurso, passei e não me apresentei. Primeiro na Policia Civil, depois na Policia Militar, passei e também não fui, eu era muito novo, já era para ter entrado. E na terceira vez na Civil de novo, aí resolvi me apresentar. Eu estava namorando e queria casar, então nesse ano, me apresentei. Estabilidade de emprego também.
5. Você gosta da sua profissão?
Resposta: Gosto. Não tem rotina, mas o trânsito acaba com a gente.
6. Quais são as especificidades de dirigir esse tipo de transporte? (Dificuldades no transito)
Resposta: Trânsito estressante. Tem que prestar atenção 24 horas porque as pessoas mudam de faixa direto sem dar seta. Presenciamos pequenos furtos no transito, tipo de celular, mas não podemos para a viatura para abordar o cara. É complicado porque somos em 1 viatura para as regiões norte, centro e oeste. É só para louco uma coisa dessas.
7. Você tem interesse em mudar de carreira? Se sim, o que pretende fazer?
Resposta: Não, porque eu já vou me aposentar. Minha intenção é morar na praia e ficar de frente para o mar.
8. Como se vê (profissionalmente) diante da sociedade?
Resposta: Perante à sociedade, eu presto um serviço que poucos gostariam de fazer ou tem condições de fazer. Eu presto um bom serviço.
9. É comum levar para casa os problemas do trabalho?
Resposta: Não. Já estou há tanto tempo. Esqueço que estava no serviço. Nem comento do serviço em casa.
10. Você costuma conversar com a sua família sobre o seu trabalho?
Resposta: Não.
11. O que costuma fazer para se divertir?
Resposta: Praia, sítio, churrasco com os amigos.
12. Como foi seu pior dia de trabalho?
Resposta: Talvez tenha sido no 111. Carandiru. Quando faleceu muito bandido, tinha muito serviço, fora os serviços que já tinham no dia a dia. Vinham com caminhão frigorífico, a gente tinha que se revezar, realmente foi pesado. Mamonas Assassinas foi pouco serviço, você tá mais focado. No da TAM também tinha muito serviço. Mas o do Carandiru foi muito desgastante. Se houver uma catástrofe no Brasil, o IML se torna muito pequeno. Não comporta.
5.7 Depoimento nº 07
Inicias: F.A
Idade: 31 anos
Sexo: Masculino
Estado civil: Solteiro
Tem filhos? Não.
Escolaridade: Superior completo (Ciências Biológicas USP)
Religião: Agnóstico.
Função: Agente policial
Tempo de trabalho: 1 ano
1. Depois que começou a trabalhar com a morte, como passou a vê-la?
Resposta: Natural, normal, comum.
2. Como é para lidar com a dor dos familiares diante de um ente querido?
Resposta: Não se envolver. No começo, fui na casa de uma senhora que tinha um cachorro, e ele não saía do lado dela. Quando fomos retirar o corpo, o cachorro ficou mal. Aí eu fiquei mal também, me emocionou, porque eu gosto muito de animais. Mas não tenho empatia, porque se tiver e ser empático com todos, não dá.
3. Como é sua relação com os colegas de trabalho?
Resposta: É boa. Dependendo do parceiro. Tem parceiro que não bate, é ruim. Não bate as características. Aí você tem que lidar com o trânsito, a morte e o parceiro ruim.
4. O que te motivou a entrar nesse ramo?
Resposta: Primeiro foi a estabilidade. Depois a área envolvida com a perícia, pois quero ser perito. E a ponte para outros concursos. Quero entrar para a Polícia Federal, IBAMA ou perito.
5. Você gosta da sua profissão?
Resposta: Sim. Não tem rotina, cada plantão é uma novidade.
6. Quais são as especificidades de dirigir esse tipo de transporte? (Dificuldades no trânsito)
Resposta: Trânsito estressante. Tem que prestar atenção 24 horas porque as pessoas mudam de faixa direto sem dar seta. Presenciamos pequenos furtos no trânsito, tipo de celular, mas não podemos para a viatura para abordar o cara. É complicado porque somos em 1 viatura para as regiões norte, centro e oeste. É só para louco uma coisa dessas. Fora tudo isso que o outro parceiro falou, dependendo de onde você entra, local, favela, eles jogam pedras, tijolos, dá tiro. A gente corre risco. Tem que pedir apoio para a PM. A realização de manobras porque o carro é grande, então tem que ter habilidade para manobrar em local de difícil acesso.
A gente encontra lama, cratera, morro e dificulta a realização da remoção. Na Zona Norte tem muito morro e é perigoso tombar. Tem ruas que começam largas e depois diminuem e só cabe uma bicicleta, não cabe o carro, não dá para manobrar, tem que voltar de ré. Também tem que ter força na perna para trocar a marcha porque é mais dura e mais pesada que carro normal.
7. Você tem interesse em mudar de carreira? Se sim, o que pretende fazer?
Resposta: Sim. Perito criminal ou ambiental.
8. Como se vê (profissionalmente) diante da sociedade?
Resposta: Depende da pessoa. Como policial, odiado. Como funcionário de recolha, querido. É um momento ruim e a pessoa se sente aliviada da gente fazer esse serviço. Como policial, odiado porque ninguém gosta de polícia.
9. É comum levar para casa os problemas do trabalho?
Resposta: Não, pois é um estresse de trânsito que para ali. É um estresse de trânsito que a gente fica perto e para.
10. Você costuma conversar com a sua família sobre o seu trabalho?
Resposta: De vez em quando, em casos diferentes.
11. O que costuma fazer para se divertir?
Resposta: Viajar, natureza, campo e bichos.
12. Como foi seu pior dia de trabalho?
Resposta: Como sou novo, não tem muita coisa. Mas teve um dia que choveu muito, o trânsito não estava bom, não conseguia me deslocar mesmo ligando a sirene, não conseguia.
Tinha uma prioridade que era uma senhora. Uma criança brincando de patinete caiu na perna dela, teve que operar, ficou internada no hospital e melhorou. Porém quando voltou para casa, acabou falecendo. Esse dia foi bizarro. Foi uma gritaria só. A filha da senhora chamava a criança de assassina, a mãe da criança se doía e tudo mais.
6. ANÁLISE
Após o processo de pesquisa realizado e das respostas coletadas com os participantes desse estudo, e que foram utilizadas como embasamento para os questioidntos iniciais, o que pode ser visto será apresentado nas falas a seguir:
“Ah, por necessidade né. Eu conheci pessoas que comentaram sobre o concurso da Polícia na época, e eu me interessei, prestei e passei. Na realidade, você trabalha porque precisa. O cara nunca vai trabalhar recolhendo reciclagem, lixo porque gosta. Trabalha porque precisa. É igual a gente” (Sujeito 1).
“Bom, o ramo já é da família né, então eu cresci no ambiente de funerária” (Sujeito 2)
“Foi mais pela necessidade de trabalho, e por acaso mesmo aí eu fiquei curiosíssimo e fui estudar maquiagem de cadáveres.” (Sujeito 3).
“Não foi motivação... eu estava namorando e queria casar, então nesse ano, me apresentei. Estabilidade de emprego também.” (Sujeito 6).
“Primeiro foi a estabilidade. Depois a área envolvida com a perícia, pois quero ser perito. E a ponte para outros concursos. Quero entrar para a Polícia Federal, IBAMA ou perito ” (Sujeito 7).
Alguns profissionais tentam de alguma forma compensar seu sofrimento usando a coragem ou um trabalho único que poucos fariam. Identificamos um mecanismo de sublimação compensatória presente, a fim de lidar melhor com seu trabalho, assim é o que nos diz Boemer et al. (1998, p. 36) ao citar PITTA (1991):
Ao referir-se ao mecanismo de sublimação compensatória, o qual busca explicar as atividades humanas e que se torna absolutamente necessário para os que têm como ofício de lidar cotidiano com dores, perdas, sofrimento e morte.
Temos aqui, a teoria afirmada nessas falas de agentes funerários / policiais civis:
“Porque não é todo mundo que tem coragem de fazer. E não é todo mundo também que está preparado.” (Sujeito 2).
“Por fazer o que poucos fariam, ou quase ninguém.” (Sujeito 3).
“Perante a sociedade, eu presto um serviço que poucos gostariam de fazer ou tem condições de fazer. Eu presto um bom serviço.” (Sujeito 6).
“Como funcionário de recolha, querido. É um momento ruim e a pessoa se sente aliviada da gente fazer esse serviço” (Sujeito 7).
            Esses trabalhadores, assim como outros que atuam com recolhimento de lixo, esgoto, dejetos entre outros “objetos de trabalho inaceitáveis”, sofrem o preconceito da sociedade pelo simples fato do objeto de trabalho ser considerado inferior, impuro e intocável. Vejamos Silva et al (2016) ao citar as autoras Barros e Lhuilier (2013):
De acordo com essas autoras, essas atividades, além de não possuírem uma imagem socialmente valorizada, estão susceptíveis de contaminar aqueles que as realizam. Fazer dos restos seu ofício não é tão simples: “significa confrontar-se com o que provoca nojo ou repulsa a si próprio e àqueles que possuem um olhar de desprezo sobre essas atividades ou desviam o olhar para manter o dejeto no esquecimento” (Silva et al., 2016, p. 136).
            O que pode ser confirmada pelas seguintes falas:
“Eu já tive caso de entregar o corpo no cemitério e a pessoa não pegar na minha mão, porque tem medo de contaminação. Porque acha que porque a gente lida com isso estamos contaminados. Mas não fazem ideia de que a gente usa EPI (equipamento de proteção individual), tem aquele cuidado com a nossa saúde também. E assim como o “aidético” sofre preconceito, porque a AIDS não pega pelo toque. Mas muita gente também não sabe. Às vezes por ignorância e às vezes por preconceito sim” (Sujeito 2).
“Não é bom, as pessoas fazem o sinal da cruz. Não quer pegar em sua mão. Não tem escapatória, mas é sossegado.” (Sujeito 5).
Encontramos ainda, a dificuldade em lidar com mortes de crianças, como citado acima. Segundo Hoffmann (1993), a morte infantil é de difícil aceite para a maioria das pessoas. A percepção que uma morte dessa categoria deixa é que, o (a) pequeno (a) foi desprovido da vida, do sentindo que tinha ao mundo e que aquela foi uma vida impedida.
Hoffmann (1993) ao citar Zaidhaft (1990), enumera algumas hipóteses para explicar essa dor maior entre os que ficam: “pelo ciclo de vida que não se teria cumprido; por ela ser desprotegida; por ser depositária do nosso narcisismo; por ser símbolo de nossa imortalidade que se vai”. (P. 367)
Vejamos esses depoimentos carregados de dor:
“Principalmente quando era criança. Você entregar um filho pro pai no cemitério e escutar a lamentação de um pai de uma mãe, aquilo choca e a gente absorve um pouco daquilo.” (Sujeito 2).
“O meu pior dia de trabalho foi quando peguei um acidente de um ônibus que o motorista dormiu e invadiu o pedágio, sentido oposto. Como era feriado estava parado. Tinha umas crianças mortas, umas com a idade da minha filha hoje em dia”. “... Principalmente quando você chega numa cena de horror, pegar uma criança num acidente de carro” (Sujeito 3).
“.... No começo abala, choca, ainda fico até hoje quando é criança...” (Sujeito 6).
Identificamos também, através do depoimento de um motorista, o alto abuso de substâncias como drogas e álcool, a fim de amenizar o sofrimento e enfrentar a realidade do trabalho, na tentativa de tornar aquela atividade, o mais natural possível, uma vez que, se o trabalhador não estiver drogado ou alcoolizado, não consegue realizá-la.
            O uso de substâncias como drogas ou álcool ativa o sistema de recompensa do cérebro, fazendo com que o indivíduo tenha sensações de prazer.
Biologicamente, esse sistema tem a função de “garantir a sobrevivência do indivíduo e da espécie, ao dar motivação para comportamentos como comer, beber e reproduzir-se.” (CARDOSO; SABBATINI 9)
            O que nos faz compreender o motivo destes trabalhadores utilizarem de forma recorrente substâncias psicoativas no trabalho, pois sua atividade cotidiana, que era para ser algo habitual, na verdade é extremamente dura e complicada, precisando da motivação através das drogas e do álcool.
E ainda podemos entender que, usando essas substâncias, toda dor e sofrimento psíquico é recompensado através da sensação de prazer.
De acordo com o DSM- V, 2014:
Os transtornos relacionados a substâncias abrangem 10 classes distintas de drogas: álcool; cafeína; Cannabis; alucinógenos (com categorias distintas para fenciclidina [ou arilciclo- -hexilaminas de ação similar] e outros alucinógenos); inalantes; opioides; sedativos, hipnóticos e ansiolíticos; estimulantes (substâncias tipo anfetamina, cocaína e outros estimulantes); tabaco; e outras substâncias (ou substâncias desconhecidas). Essas 10 classes não são totalmente distintas. Todas as drogas que são consumidas em excesso têm em comum a ativação direta do sistema de recompensa do cérebro, o qual está envolvido no reforço de comportamentos e na produção de memórias. A ativação do sistema de recompensa é intensa a ponto de fazer atividades normais serem negligenciadas. Em vez de atingir a ativação do sistema de recompensa por meio de comportamentos adaptativos, as drogas de abuso ativam diretamente as vias de recompensa. Os mecanismos farmacológicos pelos quais cada classe de drogas produz recompensa são diferentes, mas elas geralmente ativam o sistema e produzem sensações de prazer, frequentemente denominadas de “barato” ou “viagem” (P. 481).
            Analisemos essas falas:
“Quando eu comecei a trabalhar nesse lugar, eu comecei a usar muita droga, bebida não, mas eu cheirei muita cocaína, fumei maconha. Depois que eu sai, graças a Deus eu larguei a droga. Só continuo com a maconha mesmo. Mas atrapalhou minha vida, porque eu parti pra uma droga mais pesada, pra ficar anestesiado em relação ao serviço. Por que o serviço é bem difícil mesmo, é complicado...
Meu, o trampo é muito difícil, muito difícil. Eu acho que se eu não tivesse drogado a maioria das vezes, o drogado que tô falando, não é louco de cocaína, eu cheirava pouco e ficava normal aparentemente, só que meu estado mental não estava normal. Eu estava fazendo aquilo como se fosse normal, mas não era normal. Você consegue entender?!
A droga e a cachaça ajudam o cara a lidar com isso normalmente. É pra isso que serve a droga, pro cara lidar com isso como se ele tivesse indo entregar uma roupa, uma comida, ou retirar alguma coisa. Você passa a ver o corpo como um objeto. Você tem que ir lá retirar e levar pro IML e acabou. Careta não dá... louco você faz isso como se fosse normal…. Minha relação foi muito boa. Todos alcoólatras, desde o senhor que registrava os joviais, o guarda do IML, os motoristas que lá ficavam. Eram 5: 3 motoristas e 2 ajudantes. Todos bebiam e bebiam muito, em todos os plantões.
Então, problema com bebida todo mundo bebia. Inclusive o meu ajudante tomava um tubo de cachaça por plantão. A gente trabalhava 12 por 36 e ele tomava um tubo de cachaça por plantão. Eu assumia o carro 19h00 da noite e ficava louco até 3h00/4h00. Daí depois ia comer alguma coisa pra entregar o carro às 7h00 da manhã. Mas era assim todo dia, todo dia louco. E assim louco você não se abala tanto. Era mais pra dar uma quebrada no ambiente, no cheiro... e também na comoção...” (Sujeito 3).
Um dado interessante é que somente um dos entrevistados citou a sua relação, bem como a dos seus parceiros/conhecidos com a droga e o álcool, o que nos faz pensar ou questionar se os demais também não utilizavam ou não tinham parceiros e/ou conhecidos que faziam uso de tais substâncias e não mencionaram; talvez por vergonha ou receio não mencionaram o possível uso de drogas lícitas e ilícitas.
Ainda observando a fala do sujeito 3, ele relata que quando estava sob efeito de tais substâncias, não se abalava tanto, ficava anestesiado e executava melhor o seu trabalho, o que segundo Lima (2010), pode até ser funcional, a fim do trabalhador lidar melhor com seu cotidiano no trabalho e o que lhe é imposto 10.
Segundo Fontaine (2006) apud Lima (2010), os trabalhadores usuários de substâncias podem seguir por dois caminhos: consumir a droga apenas no seu tempo livre, fora do horário de trabalho, apenas para seu lazer ou consumir como um auxílio, ou ainda uma necessidade enquanto labuta.
No caso do agente funerário que conversamos (Sujeito 3) a droga e o álcool eram usados como um apoio e suporte para o seu trabalho, uma vez que não aguentava o contato com a realidade de seu ofício.
É possível entender, então, o uso de medicamentos e psicotrópicos como uma prática de “modificação dos estados de consciência” não exatamente voltada para a obtenção do prazer, mas para aliviar a carga da responsabilidade que se torna demasiadamente pesada.” (Fontaine 2006 apud Lima 2010 p. 263)
Por fim, analisaremos a seguir, a única resposta em comum que foi citada por todos os motoristas:
“Não tenho relação com a família ou ente querido do defunto. A gente não pode se envolver.” (Sujeito 1).
“Encarar mais profissionalmente do que levar pro lado pessoal.” (Sujeito 2)
“Quando tive que lidar com a dor de estranhos não tive problema, era meu trabalho. A gente não pode se envolver.” (Sujeito 3).
“É muito dolorido, pois somos ser humanos também, mas não podemos envolver.” (Sujeito 4)
“É complicado, mas não podemos nos envolver.” (Sujeito 5).
“Procura não entrar no mérito. Porque se conversar com a família vai acabar chorando junto.” (Sujeito 6)
“Não se envolver.” (Sujeito 7).
            Percebemos nessas falas que foram unânimes em todas as entrevistas, um distanciamento desse profissional em relação à família do defunto, ou seja, distanciamento de toda dor ali presente, da compaixão pelo outro.
            Heloani (2005) relata que o trabalhador para evitar qualquer falha em seu processo de trabalho, tende a se concentrar e pensar mais sobre esse processo, e anular sua afetividade perante suas decisões, racionalizando suas emoções. Esse movimento pode resultar em um embotamento afetivo.
O autor, ao citar Karasek e Theorell (1990), nos diz ainda que, mascarar seus sentimentos afetivos, pode ser conhecido como alexitimia - “palavra usada por expressar uma ideia de distanciamento, por parte do sujeito, em relação a seus próprios sentimentos.” (p. 12) ou depressão essencial e por normopatia.
Embora executando “normalmente” suas tarefas, a pessoa age mecanicamente, sem encontrar qualquer prazer no que faz, ostentando uma gélida insensibilidade em relação a si mesma e a tudo que a cerca. São quebras de um funcioidnto frágil e regressivo da pessoa em seu todo psíquico e orgânico. (MARTY, 1976, p. 12) apud (HELOANI, 2005).
                Já a normopatia é definida por Joyce Mc Dougall como:
Síndrome em que o sujeito evita qualquer manifestação de sofrimento, construindo uma verdadeira couraça para se blindar contra qualquer sofrimento de ordem psicológica; essa atitude, que implica a não elaboração de emoções, leva a uma debilidade do equilíbrio psicossomático, acarretando uma grande variedade de doenças. (HELOANI, 2005, p.12)
O autor ainda conclui que, independente da denominação normopatia ou alexitimia, o fato de repreender, aprisionar esse sentimento afetivo pode, ao longo do tempo, levar a doenças cardiovasculares, como infarto do miocárdio e hipertensão arterial.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em primeiro lugar, esta produção nos dignificou com a compreensão mais clara sobre as rotinas dos trabalhadores aqui estudados, suas dores, anseios, dificuldades, medos e mecanismos de defesa que utilizam, além de nos mostrar onde podemos atuar precisamente para que o sofrimento seja minimizado.
O que vimos nesse artigo foi ricamente gente cuidando de gente, em sua forma mais vulnerável, mais exposta e frágil, sendo trabalhadores que mereciam integridade e respeito. Assim como, ficou evidente, a fragilidade da vida humana diante da morte.
Mesmo lidando com a morte os profissionais que lidam com isso se envolvem com sua atribuição, uns menos, outros mais, contudo, todos acabam por sofrer psiquicamente em diferentes intensidades e campos.
Assim como há sofrimento em toda e qualquer profissão, essa não seria diferente. Queremos alertar que ainda na morte há vida, pois existem pessoas que precisam ser cuidadas e olhadas, como em qualquer outra atuação.
O trabalho termina nos deixando um sentimento de agradecimento a esses profissionais que, mesmo na dor, fazem um trabalho digno de muito respeito e essencial para a vida humana.
Não há, no entanto a pretensão de se esgotar o assunto em questão com esse estudo e o que se espera a partir dos resultados encontrados é que além de trazer maiores contribuições para o tema, ela seja capaz também de auxiliar pesquisadores e pessoas que se interessem pelo assunto.
Ainda no que se refere aos estudos futuros, sugere-se uma ampliação das questões metodológicas, por exemplo, aumento o número de participantes e, se possível, que esses participantes fossem de diferentes regiões para que a partir de suas contribuições advindas de diferentes realidades seja possível obter resultados capazes de apresentar uma melhor interpretação dos dados.
8. REFERÊNCIAS
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*Psicóloga especialista em Psicologia do Trânsito babihansen@hotmail.com
**Psicóloga especialista em Psicologia do Trânsito janainissima@gmail.com
*** Mestre em Psicologia ivanamor@uol.com.br
**** Mestre em Psicologia da Saúde p.eduardo.ribeiro@uol.com.br
1 Disponível em http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf
2 Disponível em http://www.ssp.sp.gov.br/fale/institucional/answers.aspx?t=3
3 Disponível em http://www.policiacientifica.sp.gov.br/saiba-mais-sobre-a-superintendencia-da-policia-tecnico-cientifica/
4 Centro de Operações da Polícia Civil.
5 Serviço de Verificação de Óbitos
6 Grupo de Operações Especiais
7 Departamento Estadual de Investigações Criminais
8 Sensação de mal-estar causada por algum entorpecente; ressaca de drogas ilícitas.
9 Disponível em http://www.cerebromente.org.br/n08/editorial08-recompensa.htm)
10 De acordo com pesquisadores da área de drogadição, gostaríamos de destacar que o uso funcional, não implica em qualquer forma de consentimento à uma perspectiva funcionalista. Apenas que, o uso da droga não é ao acaso, porém tem o propósito de buscar uma melhor maneira de realizar seu laboral penoso, assumindo assim, uma forma de atribuição para que o trabalhador possa realizar suas tarefas diárias.

Recibido: 07/03/2018 Aceptado: 11/05/2018 Publicado: Mayo de 2018


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