Revista: Atlante. Cuadernos de Educación y Desarrollo
ISSN: 1989-4155


IDENTIDADES DE GÊNERO E O ENSINO DE HISTÓRIA NO SEGUNDO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

Autores e infomación del artículo

Adriano Toledo Paiva*

Aparecida Amorim**

PPGHIS/UFMG, Brasil.

adrianohis@yahoo.com.br


Resumo:
Esse artigo é uma análise crítica da questão da identidade e das relações de gênero presentes em materiais didáticos das séries iniciais do Ensino Fundamental. Buscamos identificar se no processo de construção dos textos didáticos foram usadas metodologias da pesquisa histórica, assim como o diálogo com as produções historiográficas e fontes. A pesquisa ancorou-se na necessidade de discussão sobre os temas identidades e relações de gênero nos debates educacionais. Consideramos necessário questionar sobre o quanto os livros didáticos têm se apropriado das questões gênero e de diversidade sexual, e também avaliar como os manuais lidam com as questões pertinentes à diversidade de orientação sexual, e de identidade de gênero elaboradas pelos estudos acadêmicos mais recentes.

Palavras-Chave: história; ensino; livros didáticos; gênero; sexualidade;

IDENTIDADES DE GÉNERO Y LA ENSEÑANZA DE HISTORIA EN EL SEGUNDO AÑO DE LA ENSEÑANZA FUNDAMENTAL
Resumen:
Este artículo es un análisis crítico de la cuestión de la identidad y de las relaciones de género presentes en materiales didácticos de las series iniciales de la Enseñanza Fundamental. Buscamos identificar si en el proceso de construcción de los textos didácticos se utilizaron metodologías de la investigación histórica, así como el diálogo con las producciones historiográficas y fuentes. La investigación se ancló en la necesidad de discusión sobre los temas identidades y relaciones de género en los debates educativos. Consideramos necesario cuestionar sobre cuánto los libros didácticos se han apropiado de las cuestiones de género y de diversidad sexual, y también evaluar cómo los manuales se ocupan de las cuestiones pertinentes a la diversidad de orientación sexual, y de identidad de género elaboradas por los estudios académicos más recientes.

Palabras clave: historia; educación; libros didácticos; género; sexualidad;

GENDER IDENTITIES AND HISTORY TEACHING IN THE SECOND YEAR OF ELEMENTARY SCHOOL
Abstract:
This article is a critical analysis of the question of identity and gender relations present in didactic materials of the initial grades of Elementary School. We tried to identify if in the process of construction of didactic texts methodologies of historical research were used, as well as the dialogue with the historiographic productions and sources. The research was anchored in the need to discuss the issues of identities and gender relations in educational debates. We consider it necessary to question how much textbooks are appropriate for gender and sexual diversity, and also to assess how the textbooks deal with the issues pertaining to the diversity of sexual orientation and gender identity elaborated by the most recent scholarly studies.

Keywords: history; teaching; didactic books; genre; sexuality;


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Adriano Toledo Paiva y Aparecida Amorim (2018): “Identidades de gênero e o ensino de história no segundo ano do ensino fundamental”, Revista Atlante: Cuadernos de Educación y Desarrollo (abril 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/atlante/2018/04/historia-ensino-fundamental.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/atlante1804historia-ensino-fundamental


1.Introdução
Nesse artigo analisaremos um estudo comparativo de dois livros didáticos empregados em escolas vinculadas à Secretaria Estadual de Educação do Estado de Minas Gerais. (Apolinário,  2005) (Alves & Cavalcante, 2014) Nossa proposta tem como objetivo analisar a abordagem dos conceitos de gênero nos materiais dos alunos da segunda série do Ensino Fundamental, em diferentes datas de publicação, ano de 2005 e 2014. Avaliaremos como no processo de construção do texto do livro foram empregados metodologias da pesquisa histórica e o diálogo com as produções historiográficas para promoção de uma prática e conteúdos pedagógicos que analisem a diversidade sexual e as identidades de gênero. Nesse intento, problematizando a produção do material didático adotado, apresentaremos os diversos aportes teóricos e metodológicos existentes nessa produção, e como os alunos estão em contato com fontes documentais de diversas naturezas, possibilitando a realização de leituras críticas das temporalidades, espacialidades, culturas e histórias individuais.
Como nos demonstra Sônia Regina Miranda e Carina Martins Costa (2001:78-79), o passado e a História são coisas muito diferentes, separadas no tempo e no espaço. Todavia, uma coisa é um recorte de tempo e no espaço de algo que passou; outra, muito diferente, é a narrativa construída sobre um aspecto do passado. A interpretação do passado está intrinsecamente relacionada ao tempo de sua produção, enquanto narrativa do acontecimento escolhido na análise, e não se refere diretamente ao período original. Conforme podemos evidenciar na análise de Michel de Certeau (1976:20-21), todo o processo de construção e operação histórica envolve o meio social do produtor do conhecimento, suas percepções de mundo e questionamentos suscitados por estas, bem como o espaço institucional e a estruturação dos cursos de graduação/pós-graduação e seus referenciais teóricos e metodológicos. Desta forma, analisaremos o discurso historiográfico sobre os conceitos de gênero na apresentação das historicidades das famílias nos manuais analisados.
Na busca de aproximações do saber histórico e escolar, a base curricular deve integrar o fazer histórico e o seu ensinar ao saber historiográfico. Todavia, cumpre ressaltar que esta aproximação entre teoria e prática não deve ser representada pela apropriação de debates acadêmicos em sala de aula, mas, em vez disso, devemos refletir sobre a diversidade cultural e a mudança histórica no tempo (Miranda e Costa 2001:78-79). Nesta perspectiva, observamos que os livros devem se apropriar dos debates acadêmicos como ferramentas analíticas para direcionar seus métodos e argumentos de síntese. Todavia, o sucesso na construção de um projeto pedagógico e da prática docente consiste na realização de uma pesquisa diagnóstica e da observação do ambiente escolar, acompanhadas de uma avaliação contínua dos resultados do desempenho dos alunos nas atividades cotidianas. Reflexões constantes sobre os nossos métodos de avaliação, por exemplo, proporcionam alterações intensas na prática e gestão educacional e na construção dos saberes docentes.
Segundo Ernesta Zamboni (2001), devemos situar o aluno no contexto histórico no qual vive, demonstrando que sua história individual não está dissociada da de seu país e do mundo. Deste modo, devemos incentivar nossos alunos a enfocar as mudanças espaciais próximas e distantes, sob uma perspectiva de multiplicidade temporal. Devemos evocar tradições e costumes culturais que proporcionem comparações, procedimentos de diferenciação e similitudes dos estudantes, estimulando o confrontar desta conclusão com uma temporalidade distante. A realidade local e o estudo do lugar devem ser incentivados na sala de aula, com o objetivo de estimular, como argumenta Zamboni (2001), uma construção identitária. Tal identidade caracteriza-se pela percepção do discente de sua realidade social e de seu papel de agente histórico na sociedade, ou seja, perpassa uma conscientização sobre os significados de ser cidadão (Zamboni, 2001:73-74).
Em nossas propostas de análise do emprego das fontes primárias na construção discursiva do livro didático, verificaremos como os alunos produzirão trabalhos nos quais perceberão seus laços e identidades históricas com outros tempos, através da contraposição de diversos discursos historiográficos e de seus diferentes sujeitos históricos, modos de vida e contextos. Portanto, seguindo as determinações dos descritores legais para a área, avaliamos que os livros didáticos incentivam o aluno a aprender história produzindo-a: construindo e sistematizando um conhecimento; fazendo levantamento de suas próprias hipóteses, pesquisa de informações e confrontando-as; incentivando o diálogo dele com seus amigos, a produção de seu próprio texto ou outra forma linguagem, que evidenciará as similitudes, permanências e mudanças no tempo e espaço; trazendo estímulo para o confronto entre o passado e o presente. Desta maneira, os alunos são estimulados a refletir criticamente sobre a disciplina estudada, interpretando as transformações e permanências nas vivências culturais de uma coletividade em seus diversos períodos históricos.

2.Os livros didáticos analisados: textos e contextos
Como explicita Louro, as identidades de gênero estão em constante alteração e transformação, porque essa construção é social e discursiva, envolvendo símbolos, representações e práticas, ou seja, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou femininos. (Louro, 1997: 28) Nas séries iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, as crianças são submetidas a diferentes processos de crescimento e socialização. As discussões que são realizadas no segundo ano, partindo do plano das suas identidades individuais, familiares, escola, comunidade e sociedade, promovem uma reflexão sobre condições, normas e disposições sociais. Evidentemente nesse processo está em diálogo um crisol de diferentes histórias pessoais, identidades sexuais, pertencimentos étnicos, condições socioeconômicas e acesso a bens culturais.
Analisaremos a obra coletiva desenvolvida e produzida pela Editora Moderna, sob a responsabilidade de Maria Raquel Apolinário, Projeto Pitanguá, especialmente a Unidade 02, “Como é sua família”. Apolinário realiza uma discussão com a família de Antônio Augusto Pinto, uma pintura a óleo sobre tela de Almeida Júnior (1981), depositada na Pinacoteca do Estado de São Paulo. (Apolinário, 2005: 22) Desta forma, no texto enfoca-se a família patriarcal, com o pai assentado em uma cadeira em ambiente ricamente ornado, contendo instrumentos musicais e símbolos aristocráticos, tais como: piano, obras de arte, partituras, livros e violoncelo. Os filhos posicionam-se aos pés dos pais, a mulher está deslocada ao segundo plano com ofícios de coser e bordar. A filha aprende o ofício com a mãe, enquanto os filhos do sexo masculino estão deslocados para uma maior proximidade com a figura paterna. O pintor categoriza o papel feminino para um segundo plano na representação pictórica. As atividades de abertura do capítulo solicitam que se faça uma reflexão sobre o quadro: “Descreva a cena retratada no quadro acima. Quantas pessoas compõem essa família? Quem é a pessoa mais velha e a mais nova desse quadro? O que existe de parecido e de diferente entre a sua família e a mostrada no quadro?”. (Apolinário, 2005: 22) Contudo, não há uma discussão sobre a concepção de gênero e de representação empregada pela temporalidade da imagem. Esse assunto também não é indicado ao professor em notas no manual, tampouco em um caderno anexo para o professor.
No capítulo analisado, Apolinário menciona conceitualmente os diferentes tipos de famílias “compostas por muitas pessoas”, “enquanto outras podem ter poucos membros”; mas não aborda outros arranjos familiares destoantes da concepção tradicional, ou seja, heterossexual, patriarcal e composta por pais e filhos.  Em outro tópico, designado “Outras famílias”, Apolinário analisa o conceito de crianças que não vivem com suas famílias e estão nas ruas, fugindo dos maus tratos de pais e outros familiares. Aborda-se também menores que vivem em orfanatos, assim como menciona a adoção como “outra forma de ganhar uma família”. (Apolinário, 2005: 26)
Apolinário emprega o estudo histórico comparativo de “uma família de 100 anos atrás, que tinha em média 7 filhos”, e de uma família no ano 2000, em que cada mulher brasileira tinha em média 2 filhos. (Apolinário, 2005: 28) Observamos a representação imagética de uma mulher parturiente cercada por muitos filhos, ladeada por uma outra mulher com apenas dois filhos de braços dados. Afinal, não há uma discussão sobre o conceito de família, assim como se imputa a mulher o papel de reprodução, que está implicitamente indicado nas imagens e dados empregados no texto. Quando se mencionam claramente as famílias de outros tempos: “a maior parte das mulheres se casava muito jovem, com 14, 15, 16 anos”. No material, há também uma fotografia da “família Vecchia, na cidade de São Paulo, no ano de 1935”, representando uma família numerosa com adultos assentados e ladeada por seis crianças. (Apolinário, 2005: 28) Ademais, a informação sobre a diminuição das taxas de natalidade entre os tempos comparados são citadas textualmente por 03 vezes no capítulo.
De certa maneira, o livro tenta abordar “um papel de gênero” para a mulher, apresentando um breve resumo biográfico de Chiquinha Gonzaga; considerada “exemplo de mulher compositora que conseguiu trabalhar fora de casa para o seu próprio sustento”. Confira-se o texto do livro sobre a personagem:
“As mulheres em outro papel

Algumas mulheres, porém, conseguiam trabalhar fora de casa e garantir o seu próprio sustento.
Um exemplo foi a compositora Chiquinha Gonzaga. Algumas músicas feitas por ela são tocadas até hoje”.
[Imagem da personagem seguida pela legenda:] “Chiquinha Gonzaga aos 18 anos. A música Ó abre alas é o seu maior sucesso.” (Apolinário, 2005: 29)
Nesta obra que analisamos não há um questionamento dos chamados “papéis de gênero” nas sociedades das famílias de antigamente ou contemporâneas. Ao mesmo tempo, em nenhum momento ao tratar de Chiquinha Gonzaga não se abordou o papel transgressor da personagem, sua estrutura familiar, o abandonar dos estereótipos de uma família tradicional e o seu envolvimento na música popular brasileira. (Apolinário, 2005: 29)
Ao tratar do tema em foco, o texto do livro investe muito na concepção de maternidade feminina. Ao final dos conteúdos concebe-se uma atividade que investiga o número de filhos que as mulheres de sua família tiveram: “Bisavós paternas e maternas, avós maternas e paternas e sua mãe”. A atividade solicita comparação de quem teve mais filhos e menos filhos, assim como estimula compartilhamento e debate dos resultados com os colegas em classe. (Apolinário, 2005: 33)
O livro apresenta conteúdo mais crítico acerca de gênero apenas em seu caderno de informações para o professor.
“O trabalho com a noção de família constitui mais uma etapa no processo de construção do autoconhecimento e de identificação da realidade social mais próxima do aluno. Os alunos devem perceber que uma família é muito mais do que o núcleo composto por pai, mãe e filhos naturais, como ensina a visão tradicional. A família é constituída daqueles que convivem em determinado ambiente e estabelecem entre si relações afetivas”. (Apolinário, 2005: 22, caderno do professor)
No caderno anexo ao livro do docente, quando se debate “a família de outros tempos” é indicado ao profissional que trabalhe com costumes, valores, relações de gênero e relatos de memórias do passado estimulando os estudantes a refletirem sobre as semelhanças e as diferenças entre as temporalidades e variações espaciais.
Ademais, no texto dedicado aos estudantes não há elementos para abordagem da cultura e normas de gênero elaboradas e impostas pelas sociedades, assim como o texto não possibilita uma reflexão sobre os diferentes conceitos de família e de gênero. O caderno e o livro didático também investem conceitualmente na abordagem do “papel dos homens e das mulheres”. Embora o texto do caderno do professor estimule reflexões sobre as distinções entre gênero e sexo biológico, analisando as (des)construções sociais procedidas ao longo da história, o texto dedicado aos estudantes não conseguem problematizar tais questionamentos. Ademais, essas informações devem ser problematizadas pelo professor em seus conteúdos programáticos e didáticos. Em resumo, no livro de Apolinário, a estratégia de discutir gênero pelos comparativos entre as famílias do passado e do presente acaba por endossar um modelo tradicional de família, ou seja, com base patriarcal, assim como imputando a mulher o papel social da maternidade e da reprodução. Discussões teóricas mais recentes sobre o tema são apenas enfocadas no caderno didático anexo ao livro, mas não aparecem textualmente no livro dos estudantes, portanto, fica ao encargo do professor essa complementação pedagógica e temática.
Problematizamos os textos dos materiais didáticos como mecanismos de promoção de debates sobre normas e práticas sociais. Segundo Richard Miskolci (2012), ao analisar as práticas educacionais, os pesquisadores devem projetar as possibilidades de transformação das identidades sociais e das definições de sexualidades por meio das práticas discursivas dos livros didáticos.
No livro da editora Scipione, de autoria de Alves e Cavalcante, analisamos a Unidade 5, intitulada “Vivemos juntos”. Esse capítulo apresenta uma interpretação sobre o conceito de família. O livro aborda o termo família como “formada pelas pessoas com quem vivemos”, apresentando diferentes tipologias em imagens e em textos. O material ilustra diferentes grupos familiares com as respectivas legendas: “Família formada por pai, mãe e filho.”; “Família formada por duas mães e uma filha”.; “Família formada por avós, pais e filhos”.; “Família formada por casal e vários filhos.”; “Família formada por avós e neto.”; “Família formada por pai e filhos”. (Alves & Cavalcante, 2014: 78-19) Após apresentar as imagens em texto, as autoras indagam aos estudantes qual tipo de família se assemelha à das crianças. O manual também apresenta um boxe sobre a definição de família para crianças que vivem em abrigos e orfanatos. (Alves & Cavalcante, 2014: 80) Em uma atividade de desenho de família, seguindo o critério de hierarquia do mais velho ao mais jovem, solicita-se que os estudantes representem seu grupo com nome e idade de cada personagem, assim como incita a comparação dos desenhos da turma. (Alves & Cavalcante, 2014: 81)
O texto emprega o discurso comparativo entre temporalidades analisando “a família em outras épocas” (Alves & Cavalcante, 2014: 83). As autoras empregam o método do estudo comparativo das estruturas familiares de outras épocas com as da contemporaneidade. A estratégia empregada é o uso de fotografias de famílias numerosas do início do século XX, com uma família composta por apenas dois filhos e o casal. Nessa seção, denominada “Você é o historiador”, solicita-se um análise das representações destas famílias, indagando-se qual delas é a de antigamente e a mais recente. Alves e Cavalcante demandam aos alunos as pistas empregadas para análise das questões propostas. (ALVES & CAVALCANTE, 2014: 84)

3.Uma análise comparativa dos livros
Vamos traçar um quadro comparativo dos dois livros analisados, porque as duas propostas elaboraram reflexões sobre o texto infantil de literatura “Histórias de avô e avó”, de autoria de Arthur Nestrovski (1998:14-15). Esse excerto literário aborda questões sobre as memórias e os parentes nas famílias. Destacamos um trecho do livro empregado por Alves e Cavalcante (2014: 86):
[...] Acho que é comum, na verdade, pensar em avós e comida ao mesmo tempo. Quando elas cozinham para nós, parece que estão preparando um presente. [...] É o tipo de presente que a gente só ganha em casa. Ou melhor, na casa das avós, que não tem de fazer comida para a gente todos os dias e podem se dedicar de verdade quando têm chance.” [...]. (Nestrovski apud Alves & Cavalcante, 2014: 86)
O manual aborda as discussões sobre as memórias familiares enfocando papéis de gênero para as mulheres, representadas pela figura das avós, figuras maternas e cozinheiras hábeis. Portanto, suscita certa discussão sobre as concepções de gênero, mas não desconstrói a ideia de normas de gênero na seção.
No texto de Apolinário há um boxe com texto de literatura, também de autoria de Nestrovski (1998:14-15), enfocando as “lembranças do tempo de menino”. E na página, em sequência, foi inserido “lembranças do tempo de menina”, escrita por Helena Morley (1999: 19). Pela disposição dos textos percebemos uma bipolarização do ser menino e menina na produção do texto. O parágrafo do livro escolhido para a análise da história dos tempos de menino enfoca uma visita a casa da avó, a modernidade dos elevadores e do bonde para o trajeto. (Apolinário, 2005: 30-31) Destacaremos o texto que aborda o conceito de memória do feminino, de autoria de Morley (1999: 19):
Nas quintas-feiras mamãe nos acorda de madrugada [...] Mamãe chama Emídio, da chácara, e põe na cabeça dele a bacia de roupa e um pão de sabão. Renato leva no carrinho as panelas e as coisas de comer, e vamos cedo. Mamãe e nós duas, eu e Luizinha, entramos debaixo da ponte para lavar a roupa [...]. Nós ficamos lavando a roupa e botando para corar, enquanto mamãe faz o almoço de tutu de feijão com torresmos e arroz [...]. Depois disso batemos as roupas na pedra, enxaguamos e pomos nos galhos para secar. (Morley apud Apolinário, 2005: 31)
O texto enfoca as memórias femininas ligadas às atividades domésticas, lavagem de roupa nos rios, cuidado dos filhos e cozer alimentos. O único elemento de comparação das histórias, proposto em atividade, é a datação de nascimento dos autores. Não há nenhuma reflexão sobre normas de gênero e concepções de masculinos e femininos. Pergunta-se aos estudantes como as roupas eram lavadas na história das meninas, e indaga-se “como se lava a roupa suja em sua casa?”. Ademais, não há nenhuma indicação nos comentários ao docente acerca da abordagem de gênero e de suas identidades, apenas enfocam-se as diferentes tecnologias na lavagem de roupas, com máquinas, no rio e à mão. (Apolinário, 2005: 31)
O livro de Alves e Cavalcante continua a discussão sobre “o dia a dia da família em épocas passadas”, comparando o que as famílias atuais fazem em seu cotidiano com uma foto de mulheres do início do século XX, tocando bandolim na sala de casa e a recitar poesias. O livro procede com uma comparação de imagens discutindo normas de gênero e concepções tradicionais de “papéis sociais” imputados a homens e mulheres. As autoras desconstroem normas ao mostrar um homem preparando a refeição familiar e as mulheres trabalhando em posto de combustível. O manual destaca que as mulheres em grande parte não estavam fora de casa e passavam o dia cuidando dos afazeres domésticos; mas que tal situação foi se modificando com o passar do tempo, com conquistas profissionais e políticas femininas. E as autoras destacaram textualmente: “outra mudança que aconteceu na família foi a atitude de homens que passaram a ajudar nos trabalhos domésticos e no cuidado com os filhos”. E elaboraram uma questão proposta para análise: “Você conhece homens que ajudam nos afazeres domésticos?”. (Alves & Cavalcante, 2014: 89)
A desconstrução destas normas de gênero no manual também é enfocada em outro boxe, ao citar a narrativa oral de Ariosto, um senhor de mais de 90 anos, que contou sobre a história de seus irmãos e mãe na execução das tarefas domésticas. Esse rico depoimento é retirado do magnífico livro da historiadora Ecléa Bosi. (Alves & Cavalcante, 2014: 90) Confira-se o trecho:
[...] “nós ajudávamos a mamãe a lavar a louça, a arear os talheres em pós de tijolo. [...] Minha mãe lavava a roupa para todos nós, tinha que cozinhar, engomar as camisas de meu pai com peito duro, colarinho duro, os punhos eram duros, postiços. Ela não passava com ferro de brasa, mas com um ferro pesado, esquentado no fogo. No fundo do quintal assava pão num forno redondinho de tijolos.” [...] (Bosi apud Alves & Cavalcante, 2014: 90)
As autoras tratam do texto em questões propostas aos alunos, e indagam sobre as atividades exercidas pelos irmãos e pela mãe de Ariosto. E também elas não se furtam de questionar quem realizava a maior parte do serviço na família. As autoras indagam quais as atividades domésticas que os estudantes realizam em suas residências. Elas discutem textualmente que muitas pessoas ainda pensam que essas tarefas devem ser desempenhadas apenas por mulheres. Portanto, o texto menciona de forma mais efetiva algumas representações sobre mulheres e homens. (Alves & Cavalcante, 2014: 90)
Segundo Vaitsman (1994), conforme foi crescendo a participação da mulher em todo meio social, redefiniram-se concepções de família e de relações de gênero, que eram fundadas sobre a divisão do espaço público e privado. Atualmente, as identidades e conceitos de gênero contestam os traços patriarcais da definição de papéis femininos e masculinos:
[...] as novas linguagens de expressão da subjetividade, inclusive com o apoio da psicanálise, os direitos das minorias, todos esses seriam elementos que levariam à emergência da problemática do outro, o que no âmbito das relações de gênero, expressou-se na constituição das mulheres enquanto sujeitos, indivíduos, desafiando discursos e práticas patriarcais. (Vaitsman, 1994: 70)

            Destarte, o romper desta dicotomia expressa a tendência de transformação nas  relações de dominação entre homens e mulheres, na qual uma hierarquia de gênero,  estabelecia as funções sociais de cada sexo, que limitava o caráter de escolhas próprias e de sua condição individual.

4.Algumas breves conclusões
Partindo das concepções de abordagem de gênero em uma amostra de dois livros didáticos, empregados pelas escolas do Estado de Minas Gerais, avaliamos algumas linhas de como se dá a compreensão e o debate do tema sob o viés historiográfico, assim como avaliamos os processos de construção das identidades sociais dos educandos. Avaliamos que as duas obras promovem o contato com diferentes debates e textos historiográficos, dispostos em boxes, por exemplo, e sugere pontos para que os alunos realizem pesquisas de grupo, produções de imagens/textos e debates em sala de aula. Estas seções, além de textos de alguns historiadores, enfocam outras fontes primárias e secundárias tais como fotografias, obras de arte, imagens, relatos orais e literatura; o que contribui para que os discentes estabeleçam relações entre o estudo da História com as suas vivências e experiências cotidianas. De acordo com os conteúdos abordados nos exercícios e de suas propostas de trabalho em classe, podemos argumentar que os livros estão em sintonia com os PCN’s e Diretrizes curriculares, pois visam despertar no leitor uma reflexão e espírito crítico sobre os conteúdos propostos. Assim, as obras promovem e consolidam as conclusões dos estudantes sob diversas formas de expressão: oral, escrita ou iconográfica.
O material de formação discente deve contribuir para que os sujeitos sejam capazes de compreenderem o que é História e o ofício do historiador, assim como refletirem sobre o papel da disciplina nas sociedades. Ademais, ao aproximar o conhecimento acadêmico e fontes documentais do cotidiano escolar, os discentes compreenderão que a história é “uma ciência em intensa mutação”, reescrita continuamente. Avaliando os fundamentos da pesquisa e a “operação histórica”, os alunos e professores compreenderão as relações entre passado e presente estabelecendo comparações no tempo e tendo como referência a anterioridade, a posteridade e a simultaneidade. Neste sentido, analisando e avaliando suas vivências cotidianas e correlacionando-as ao conteúdo proposto para o estudo, os discentes identificam permanências ou alterações no tempo e no espaço, além de identificar e interpretar alguns documentos históricos, caracterizando suas funções e observando a sua intencionalidade discursiva.  Com a análise dos dois livros pudemos mapear alterações no tratamento da temática de quase 10 anos, ou seja, abordando a data de publicação dos manuais (2005 e 2014).
Louro (2006) indica as diferentes hierarquizações no debate da consciência de gênero:
Sei que a sociedade trata desigualmente esses sujeitos e valoriza diferentemente essas práticas. Sei que tudo isso é atravessado e constituído por processos de classificação, hierarquização, de atribuição de valores de legitimidade e ilegitimidade; que sujeitos são acolhidos ou desprezados conforme as posições que ocupem ou ousem experimentar. Sei que tudo isso está, seguramente, embaralhado com questões de poder. (Louro, 2006)
Afinal, alguns padrões sociais definem e estabelecem o masculino ou o feminino, tendendo a ser aceitável ou tolerado. Desta maneira, nos processos educativos, os estudantes reafirmam algumas identidades pressupostas sobre masculino e feminino, ou seja, eles se igualam e se diferenciam ao sexo oposto, determinando e individualizando as suas identidades de gênero. Louro também enfatiza que a masculinidade, que todos consideram normal, não se estabelece apenas ao se contrapor à feminilidade, mas também ao se colocar em oposição às outras formas de masculinidade. Observamos esse aspecto quando os manuais não abordam a família homoafetiva e as que destoam do padrão “normativo” ou patriarcal.
Afinal, concluímos que quando debatemos normas de gênero e arranjos familiares nas séries iniciais do Ensino Fundamental possibilitamos o aperfeiçoamento de identidades individuais, bem como o pleno exercício de sua cidadania dos educandos.

Referências Bibliográficas:

ALVES, Rosemeire. CAVALCANTE, Maria Eugênia Bellusci. (2004) A escola é nossa: História. São Paulo: Scipione.
APOLINÁRIO, Maria Raquel. (2005) Projeto Pitanguá: história. 1ª Ed., São Paulo: Moderna.
CERTAU, Michel de. (1976) “A Operação Histórica”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (dir). História Novos Problemas. Trad. De Theo Santiago. Rio de janeiro: Francisco Alves.
LOURO, Guacira Lopes. “Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas às tensões teórico-metodológicas”. UFRGS, 2006. Disponible en: <http://www.ded.ufla.br/gt23/trabalhos_29.pdf>. Consultado em:  02/02/2018.
LOURO, Guacira Lopes. (1997) Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes.
MIRANDA, Sônia Regina & COSTA, Carina Martins. (2001)Por uma educação histórica do Aluno: Desafios e possibilidades pedagógicas, Boletim Pedagógico de Ciências Humanas, SIMAVE, Juiz de Fora.
MISKOLCI, Richard. (2012) Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica Editora: UFOP, Universidade Federal de Ouro Preto.
MORLEY, Helena. (1999) Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das Letras.
NESTROVSKI, Arthur R. (1998) Histórias de avô e avó.  São Paulo: Companhia das Letrinhas.
VAITSMAN, Jeni. (1994) Flexíveis e Plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós modernas. Rio de Janeiro: Rocco.
ZAMBONI, Ernesta. (2001) “O ensino de História e a construção da Identidade”, Boletim Pedagógico de Ciências Humanas, SIMAVE: Juiz de Fora.

*PAIVA é doutor em História pela UFMG, Belo Horizonte, Brasil (2013). Pós-doutor em História pela UFOP; Bolsista de Pós-doutorado PNPD-CAPES do PPGHIS/UFMG. Endereço eletrônico: adrianohis@yahoo.com.br;
** AMORIM é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Marília, Brasil (2015). Endereço eletrônico: ap.pi.amorim@gmail.com;

Recibido: 19/04/2018 Aceptado: 25/04/2018 Publicado: Abril de 2018

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