ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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5.2 - MERCADORES

O mundo dos mercadores nunca consistiu exclusivamente na venda ambulante e nunca os mercadores se dispensaram totalmente de viajar. A sua actividade consistia na compra de excedentes em certos locais para os vender noutros lugares. O artesão e o camponês podiam vender mas apenas o que eles próprios tinham produzido; o mercador vendia os artigos que tinha antecipadamente comprado aos produtores ou a outros mercadores, facto que revela um progresso na divisão de trabalho e uma elevação na escala social. Com aquilo que trouxeram à vida económica, os interesses próprios e as perspectivas que abriram, desempenharam um importante papel no sentido da evolução no modo de produção mercantil.

O pequeno mercador de profissão vendia certos artigos, mas o seu volume de negócio era restrito, quer tivesse tenda ou barraca numa rua ou nos mercados da povoação, quer andasse de feira em feira ou de terra em terra. Os mercadores mais evoluídos transaccionavam maior quantidade de artigos e transportavam as mercadorias por via terrestre, fluvial ou marítima para outros locais. Dedicavam-se à travessia de grandes distâncias em busca de locais de escoamento dos seus produtos, da aquisição de outros, recolhendo os excedentes num local e colocando-os num terceiro. As pessoas com estas ocupações faziam parte da classe mercantil. O mercador que trazia artigos de outras regiões ou países esforçava-se por vendê-los pelo preço mais elevado possível e procurava fazer subir a massa global dos seus lucros através do acréscimo do volume de vendas.

A sua função era essencialmente a de intermediário entre o produtor e o consumidor, não sendo do seu interesse imediato converter-se em classe dominante, mas antes ligar-se ao modo de produção existente, esforçando-se por participar da apropriação duma parcela do trabalho excedente, sem o tentar modificar. A sua posição caracterizava-se mais como parceira do que como antagonista da aristocracia.

Alguns mercadores, importavam géneros alimentícios e matérias-primas; outros, dedicavam-se mais ao comércio entre zonas mais afastadas, organizavam caravanas e fretavam navios; alguns especializavam-se no armazenamento dos bens e procediam à sua venda por grosso.

As caravanas terrestres eram normalmente consideradas como meio de contacto com povoações numerosas e distantes. Ao longo das suas rotas, os mercadores aproveitavam as paragens de abastecimento para trocarem as suas mercadorias. Muitas aldeias remotas dependiam destas visitas para contactos e comércio com o exterior. Por vezes, os mercadores seguiam os exércitos imperiais que estavam em constante movimento.

No comércio de longa distância, os mercadores adoptaram formas de especialização: uns, possuíam navios a navegar de porto em porto, onde ofereciam os seus serviços; outros obtinham um mandato estatal, podendo desta forma transportar também ouro e transmitir mensagens; outros ainda, agiam como simples intermediários, tomando à consignação mercadorias destinadas a outros locais de destino. Em certas comunidades, como as cidades costeiras fenícias, os mercadores desempenhavam um papel fundamental e variado. Nos portos onde fundeavam as suas embarcações, os mercadores, por vezes organizados em associações privadas, conseguiam habilitar-se a ganhar o acesso directo a vários tipos de matérias-primas.

Os mercadores desempenharam importantes funções ligadas ao serviço das classes dominantes como intermediários pela mão dos quais passavam os produtos que especialmente lhes interessavam. Conseguiram assim conservar um certo grau de independência pois as classes dominantes necessitavam deles para importar tanto as matérias-primas como objectos de luxo e de prestígio. Cresceram em riqueza e influência, tendo conquistado certos privilégios. A sua posição específica traduziu-se numa elevação na escala social.

Na estrutura urbana o prestígio dos mercadores, nem sempre era particularmente alto, mas a sua riqueza já era notória e, como tal, digna de especial distinção. Os mercadores agiam como agentes de comércio do palácio, segundo as ordens do soberano e beneficiando do seu apoio financeiro. Recebiam uma dotação, em prata ou em bens, e partiam para terras remotas para adquirir os materiais de que não dispunham na sua terra de origem. Quando regressavam acertavam contas com a administração governamental, garantindo que o valor das mercadorias adquiridas era equivalente à dotação original. Os mercadores eram o único grupo social a receber antecipadamente “dinheiro de caixa e créditos”.

Com o decorrer do tempo, passaram a aliar as suas próprias actividades com as realizadas por conta de outrem. Até à prestação de contas envolviam-se em aplicações sob a forma de empréstimos, granjeando assim uma riqueza adicional com a obtenção de juros, garantias pessoais ou hipotecas. Os mercadores ficaram aptos a reorganizar as suas actividades através de empresas privadas, com o domínio das matérias-primas, de outros meios de produção e dos bens produzidos destinados ao consumo, com a pluralidade e diversidade dos clientes, a intervenção no sector dos transportes e os melhoramentos tecnológicos entretanto ocorridos.

A relação de vassalagem perante a aristocracia expressava-se no pagamento dum tributo, envolvendo uma situação simultânea de interdependência e de aliança, da qual as duas partes beneficiavam. Estas relações exprimiam-se por vezes sob a forma dum tratado que incluía cláusulas comerciais. Quanto mais os governantes dependiam dos mercadores pela necessidade de fornecimento de muitos bens essenciais ou de luxo, mais lhes davam protecção política e oportunidades para contactos internacionais. Esta relação simbiótica caracterizou claramente a actividade comercial durante algum tempo.

Por vários meios, os mercadores procuravam reduzir o montante dos tributos a pagar às autoridades senhoriais ou urbanas. Em primeiro lugar, à parte algumas modalidades de renda fixa, as rendas não correspondiam à proporção das reais possibilidades de lucros; em segundo lugar, os próprios réditos, cobrados nos portos, à entrada das povoações, nas pontes e nos mercados, não podiam acompanhar com rigor as manipulações dos preços que o mercador realizava, sobretudo quando vendia produtos importados do estrangeiro.

Os mercadores realizavam lucros substanciais mas também corriam muitos riscos, tais como: naufrágios, banditismo, guerras ou piratarias. A escassez de informação acerca da oferta e da procura em localidades distantes podia resultar numa situação em que os mercadores compravam num sítio onde os preços estavam altos e tinham de vender noutro local com um mercado superabundante.

O desenvolvimento mercantil fez ascender uma classe de comerciantes que já dispunha de capitais acumulados em dinheiro. Esta classe alcançou tal poder que chegou a tornar-se credora de reis e príncipes. Entre esta burguesia e a aristocracia existia um abismo que separava tanto a posição económico-social como os seus interesses e ideologias.

Face à amplificação e regularização dos negócios comerciais, alguns mercadores começaram a não sair das suas casas, fixando-se no centro dos seus domicílios, confiando a corretores a realização de negócios longínquos ou a direcção de sucursais. Esta sedentarização do comércio reduziu o papel das feiras e conduziu a uma evolução das técnicas comerciais entre sede e sucursais, estabelecimento de contratos de crédito e regras organizacionais e contabilísticas.

Os comerciantes conseguiam permanecer relativamente independentes dos monarcas, da nobreza e dos sacerdotes. Como resultado do comércio externo, que envolvia matérias-primas e artigos de luxo, os comerciantes passaram a ocupar uma posição privilegiada na sociedade. Tanto os mercadores como os comerciantes desenvolveram para si próprios uma posição especial, tornando-se parte indispensável na estrutura social.

No Egipto, no II milénio a. C., tanto os particulares como os templos já tinham mercadores ao seu serviço. Na Mesopotâmia, os mercadores agiam individualmente por sua própria iniciativa mas nos limites da lei e liquidando os impostos decretados pelo Estado. Eram os próprios mercadores a organizar as expedições e a responsabilizarem-se pessoalmente pelas perdas. Os mercadores viviam num grande bairro urbano formando uma associação que estabelecia acordos com o governo local.

Na Grécia, o campo de acção dos mercadores alargou-se consideravelmente com a ocupação de novos territórios, a criação de vilas com os seus mercados, a melhoria das comunicações tanto por terra como por mar. Em contrapartida os mercadores esbarravam com múltiplos obstáculos: as mercadorias tinham de pagar direitos de entrada e de saída aos governos dos territórios por onde passavam; as guerras contínuas comportavam grandes perdas e riscos; as leis variavam duma região para outra; eram numerosos os embargos proteccionistas tanto para a exportação como para a importação.

Coube as mercadores árabes o estabelecimento de relações duradouras entre o espaço económico mediterrâneo e a África Ocidental quando organizaram o comércio, através das rotas de caravanas que faziam a ligação entre o espaço económico mediterrâneo e a massa dos produtores e consumidores que formigavam nas savanas e nas florestas. Daí os mercadores levavam para o norte o ouro, o marfim e os escravos.

Na China, no I milénio a. C., o elemento mais importante das cidades era constituído pelos mercadores que exerciam uma influência económica crescente. Porém, a sua riqueza, o carácter usurário dos empréstimos consentidos aos agricultores tornavam-nos impopulares e eram as primeiras vítimas nas revoltas campestres. Mesmo já no século XVI, os mercadores não eram considerados socialmente respeitáveis, uma vez que tinham lucros sem nada produzirem, e o comércio era considerado como uma ocupação secundária. Em termos de estatuto social surgem depois dos mandarins, dos agricultores e fabricantes.

No Japão, século XVI, os mercadores consideravam a vida quotidiana segundo o ponto de vista da ideologia dos samurais. Os mercadores, apesar de lhes ser atribuída uma posição social abaixo da dos agricultores, encontravam-se de facto cobertos de privilégios económicos, acumulando poder social. Existia uma grande disparidade entre os mercadores que se distribuíam em dois grupos: os grandes mercadores intimamente envolvidos nas questões financeiras, com capacidade de criar crédito, distribuindo promissórias como se estas fossem dinheiro, e os pequenos mercadores que se limitavam a negociar na rua.

Na Europa, os mais ricos mercadores eram suficientemente poderosos para prosseguir sem parceiros a sua rota individual. Os mais importantes possuíam as suas próprias instalações e os seus escritórios particulares, localizados nos grandes centros comerciais. Possuíam as suas próprias caravanas ou os seus próprios navios, quando se tratava de comércio marítimo.

Em algumas regiões do mundo andino, alguns mercadores de longa distância utilizavam velozes embarcações, enviadas para o interior, para trocar conchas marinhas, de grande significado religioso, peixe e artigos de luxo por carregamentos de cobre.