ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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1 – RELAÇÕES DE TRABALHO

1.1 – TRABALHO ESCRAVO

Por definição, um escravo é um objecto humano, propriedade absoluta do seu dono, não possui qualquer direito individual e não beneficia de qualquer protecção legal. A lei apenas se ocupa em assegurar a sujeição total ao seu senhor. A sua situação jurídica, social e cultural não passa da categoria de um objecto, podendo ser comprado, vendido ou legado em testamento. A condição de escravo excluí a existência de personalidade jurídica e, em consequência, os escravos permanecem à margem das relações sociais reguladas pelas leis comuns.

O grau de pressão económica e social atingia o máximo possível. A coerção física resultava na propriedade da pessoa do escravo e do facto de ele não possuir a mínima esfera de acção individual. Ao escravo não pertencia qualquer meio de trabalho e, por vezes, nem sequer os mais simples objectos de consumo. Não dispunha de qualquer iniciativa no processo produtivo, pelo que não tinha qualquer estímulo. O senhor só lhe assegurava o mínimo fisiológico vital. Os escravos, embora transformados na prática em trabalhadores, não podiam participar das possibilidades de expressão concedidas a estes. Eram estabelecidos castigos aos escravos que fugissem dos seus donos. As sangrentas repressões estimulavam a rebelião que levava à fuga isolada ou colectiva. Por vezes, o desespero manifestava-se pelo suicídio, pela automutilação, pela sabotagem dos bens do patrão, pela sua destruição física, por envenenamento ou utilização de armas ou ferramentas disponíveis.

Uma das principais fontes de escravos foi, pelo menos no início, a captura de prisioneiros. Os escravos oriundos de outras tribos eram considerados como uma espécie de membros da família, subalternos e sem plenos direitos, a quem eram atribuídas as tarefas mais pesadas. Os vencedores, nas contínuas guerras inertribais e entre estados, reduziam os prisioneiros à escravidão. Os escravos eram também utilizados como tributos humanos entregues pelos povos vassalos

Surgiram também indivíduos que se tornaram escravos devido à impossibilidade do pagamento das suas dívidas. A escravidão dos camponeses e das suas famílias, juntamente com a confiscação do gado, era uma ameaça sempre presente quando não podiam pagar a renda ou os empréstimos. As classes dominantes, quando os escravos eram caros e pouco numerosos, procuravam escravizar os agricultores livres por meio de empréstimos usurários exigindo como penhor terras, casas ou mesmo membros da família. Por vezes, eram entregues indivíduos como escravos para pagamento de tributos ou de impostos em dívida.

A escravatura era também alimentada por indivíduos comprados e pelas crianças nascidas de mães escravas. Os próprios membros do clero aproveitavam o trabalho escravo, comprando ou vendendo esta mercadoria humana e aceitando-a em doação ou em testamento de fieis. Os habitantes empobrecidos chegavam a vender os filhos como escravos a fim de os salvarem de morrer à fome.

O estatuto de escravo podia ser acidental e não forçosamente permanente. A escravatura temporária surgia como uma forma de punição, na qual o acusado servia como escravo do seu acusador por um período de tempo específico.

As expedições longínquas constituíram na estrutura mercantil a principal fonte de alimentação dos mercados de trabalho escravo ao trazerem grandes quantidades de cativos, importados como qualquer outra mercadoria. O regime de escravidão era conseguido também pela acção de pirataria e dos corsários que actuavam com autorização real. Era hábito dos piratas fenícios capturarem homens livres com o fim de os venderem.

Com a adopção da produção agrícola os indivíduos capturados passaram a ser usados para vigiar o gado, iniciando-se o aproveitamento do homem como meio de trabalho e o nascimento duma primeira forma de escravismo. No desempenho das tarefas agrícolas, os escravos trabalhavam também na cultivação da terra, nos lagares de azeite, na criação de gado, etc. O escravo passou a ser entendido, em relação ao seu possuidor, como um aparelho gerador de força e movimento utilizável na produção. Estava inteiramente privado da posse de instrumentos de trabalho e de meios de produção. O seu dono adquiria o direito de propriedade absoluta e praticamente sem qualquer limite. Podia apropriar-se de todos os bens produzidos e, em contrapartida, limitar-se a fornecer-lhe exclusivamente os bens indispensáveis à sua subsistência.

Exceptuando o seu emprego no serviço doméstico, o trabalho físico do escravo passa a estar sempre ligado à produção de bens. Esta situação pressupunha a existência dum detentor dos meios de trabalho e uma divisão de trabalho que reduz o escravo ao emprego da força gerada pelos seus músculos no manejo das ferramentas necessárias à criação de bens.

Entre as actividades em que o trabalho escravo podia ser mais rentável estão a produção mineira e a execução de tarefas mais rudes em certas modalidades de trabalho artesanal. Os escravos eram utilizados nas minas e pedreiras, onde o trabalho era mais duro. Nas minas de prata da Hispânia, sob o domínio romano, chegaram a trabalhar cerca de 40 mil escravos. No trabalho realizado nas grandes oficinas o escravo precede a máquina na produção.

Como o trabalho de cada homem permitia criar um excedente de produtos acima do necessário para o consumo, era mais vantajoso não matar os prisioneiros, como se fazia antes, mas obrigá-los a trabalhar reduzindo-os à escravidão. Um escravo significava um acréscimo na força de trabalho usada nas plantações, na drenagem dos campos, nas minas ou nas cidades. A integração de escravos na instituição militar desempenhou um papel fundamental no sistema militar dos estados.

Um escravo doméstico nem sempre era mal tratado. O seu amo podia confiar-lhe um negócio ou ensinar-lhe um ofício. Muitos administraram mesmo a fortuna dos seus amos. Na utilização do escravo no trabalho intelectual ou de prestação de serviços, o senhor dispunha de poetas, cientistas, artistas, funcionários administrativos e chegava até a confiar a gestão e o controlo dos seus negócios a “gerentes escravos”. Por vezes, o estatuto dos escravos diferenciava-se, conforme a sua educação e a sua actividade, de acordo com as múltiplas funções que lhes eram atribuídas. Alguns tornavam-se agentes comerciais, ajudavam a administrar os negócios; outros alcançavam altas patentes no exército, na política ou na administração. Para o senhor, o trabalho era então considerado uma coisa desprezível!

Nas cidades, os escravos desempenhavam nos serviços públicos urbanos os trabalhos mais pesados, de maior sujidade e mais mal cheirosos, como a recolha de dejectos humanos. Como trabalhadores em obras públicas, eram utilizados no desbravamento de matas, aterros de pântanos, construtores de prédios, etc. Com o desenvolvimento da urbanização, muitos escravos empregados em trabalhos domésticos eram usados como um produto de luxo por camadas sociais médias ou personagens enriquecidas pela sua actividade política ou comercial.

Em quase todas formas de sociedades em que havia servidão, e em determinadas épocas, os escravos podiam conseguir a sua liberdade definitiva segundo regras estritas ou fundadas em usos ou costumes. Esta forma de libertação era denominada alforria. Por vezes, resultava dum testamento ou decisão dum senhor insolvente. Em certos casos o escravo podia resgatar-se a si mesmo ou ficar liberto indo para outra região. Quando as regras de alforria não estavam previstas, os costumes permitiam a venda fictícia a uma divindade ou à colectividade. Os escravos podiam ser libertos por várias razões: religiosas, humanitárias, pessoais ou económicas. No entanto, a relação entre o antigo escravo e o seu amo perdurava. A libertação do escravo dependia do dono, mas em determinadas condições e em troca duma determinada soma os escravos podiam comprar a sua liberdade, principalmente os temporários. Muitos escravos libertos desempenharam funções políticas e militares da grande importância.

O trabalho escravo contribuiu para o progresso quando os meios de produção eram bastante primitivos, mas converteu-se num embaraço à medida que a produção se tornava mais complexa. A partir de determinada fase, a escravatura com base na produção agrícola tornou-se cada vez menos habitual devido à sua ineficácia e despesa. Era difícil vigiar o labor do escravo, a sua produtividade era muito reduzida, pois o escravo não sentia o mínimo interesse pelo esforço que realizava, dado que nada revertia para si, quer produzisse mais ou produzisse menos, quer os produtos saídos das suas mãos fossem mais perfeitos ou mais toscos. Tornou-se vulgar a escravidão ser suplantada pela servidão ou pela colocação do escravo na situação mais favorável de adstrito à terra ou até na de colono, podendo sair da exploração senhorial. Ao arrecadar a renda o senhorio conseguia obter um lucro superior ao extraído do trabalho do simples escravo.

Na antiga sociedade egípcia, os escravos eram estrangeiros, prisioneiros de guerra, marcados a ferro e, em parte, incorporados no exército. Trazidos das campanhas militares eram empregues no palácio ou nos grandes templos como moços de quintas. O número de escravos pertencentes a particulares não era significativo. Os escravos desempenhavam na economia um papel inteiramente acessório, não tendo então a escravatura um papel relevante como instrumento privilegiado de produção. O Egipto era um país de camponeses e não uma sociedade escravista.

Na Mesopotâmia, no II e I milénios a.n.e., começaram a existir leis reguladoras do estatuto dos escravos. Faziam-se algumas distinções entre os escravos prisioneiros de guerra e os nascidos nas casas dos seus donos, os comprados ou escravizados por endividamento. Nas explorações económicas pertencentes aos templos e nas casas comerciais trabalhavam centenas de escravos. No entanto, dum modo geral, a quantidade de escravos era inferior ao total de agricultores e artesãos livres.

Na Grécia, em meados do I milénio a.n.e., os escravos não tinham família, os filhos eram chamados crias e tornavam-se igualmente escravos. Por norma, eram capturados em acções militares ou como resultado de ataques piratas, entrando depois nos mercados especiais de escravos, onde eram vendidos. Eram também fornecidos por mercadores que os compravam já em situação de escravidão. A generalização do trabalho escravo acentuou o desprezo pelo trabalho manual e acabou por aviltar o trabalho da terra. Os homens livres podiam fazer-se substituir por escravos. Nas grandes propriedades da aristocracia os escravos chegavam a desempenhar funções administrativas.

No Império Romano, a facilidade com que eram adquiridos a baixo preço conduziu à preferência dos escravos à mão-de-obra livre. Era considerável o número de escravos que trabalhavam nos serviços domésticos. Grandes massas de escravos concentravam-se nas grandes herdades dos proprietários ricos. Porém, o seu trabalho exigia um cuidadoso controlo e a aplicação de medidas de coacção, dado que não se interessavam pelo resultado do seu trabalho, que era vigiado por capatazes, por sua vez controlados pelos donos das propriedades. Tal situação forçou muitos agrários a dividirem as suas propriedades e a entregá-las de renda em pequenas parcelas a camponeses colonos. Era impossível oferecer estímulos aos escravos. A sua utilização exigia uma mão-de-obra muito mais numerosa e dava lugar à permanência de técnicas primitivas.

Na China, no II e I milénios a.n.e., os prisioneiros de guerra eram normalmente mortos, mas esta prática terminou posteriormente com o aproveitamento do trabalho escravo na produção; as mulheres prisioneiras eram também utilizadas na produção, além dos trabalhos domésticos. Eram também escravizados delinquentes condenados ou crianças vendidas pelos pais em períodos de pobreza. As ofertas de escravos eram constituídas por indivíduos ou por famílias completas. O imperador era o maior proprietário de escravos e, para conseguir o maior número possível, lançava constantes guerras contra as tribos. Frequentemente os escravos eram oferecidos como presentes ou sacrificados.

As comunidades africanas estiveram sujeitas a uma escravatura de características e magnitude diferentes. Nas regiões onde a evolução económica estava avançada, como em torno dos centros urbanos, a escravatura assumia um carácter de acentuada exploração; ranchos de cem a duzentos escravos pertenciam por vezes ao mesmo príncipe ou grande negociante. Por outro lado era frequente, os escravos viverem com as suas famílias como servos ligados a um domínio. Os escravos de guerra acabavam por passar, ao fim de algum tempo, a escravos domésticos e até a integrar-se na família. Os escravos predominantes eram os domésticos, mas gozavam de direitos semelhantes aos que assistiam aos homens livres. Em algumas tribos a escravatura era desconhecida, noutras quase não existia ou era menos notória, sobretudo em sociedades baseadas num sistema de linhagem. Na África Subsariana, século XVI, o sistema de escravatura interna era frequente nos regimes de controlo estatal, onde se praticava o tráfico de escravos tanto no interior como para o exterior.

Na América do Norte, durante o período da colonização, os escravos eram obtidos durante as lutas com as populações nativas, todos eram prisioneiros de guerra, instalados em acampamentos adjacentes e utilizados para produzir artefactos e reunir meios de subsistência para os seus donos. Na América Central e do Sul, a força de trabalho dos escravos de origem africana impulsionou fortemente a economia continental. O trabalho escravo utilizado constituiu um factor muito importante na criação de domínios agrícolas. Os escravos trabalharam nas plantações de cana-de-açúcar e nas empresas agro-industriais de fabricação do açúcar, nos campos de algodão, de café, nos arrozais e na cultura do tabaco. Em algumas regiões a percentagem dos escravos negros chegava a atingir mais de 40 % da população.

Em Portugal, durante o período de navegação nas costas atlânticas, a grande quantidade de cativos trazidos das costas africanas foram utilizados como remadores de galés e barcos de transporte, em serviços a bordo dos navios, em trabalhos portuários de carga e descarga, e até como intérpretes para facilitar o contacto com os povos nativos africanos.