ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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6 – ACTIVIDADES ADMINISTRATIVAS

6.1 – SERVIÇOS E FUNÇÕES ADMINISTRATIVAS

Já, talvez há dois ou três milénios a.C., os métodos de governação conduziram alguns Estados a organizar o trabalho administrativo. Surgiram sistemas administrativos suficientemente bem estruturados, capazes de gerir as actividades económicas territoriais e controlar o sistema produtivo. Sob a administração estatal desenvolveram-se níveis apreciáveis de burocracia e intensificou-se uma considerável autonomia concedida a províncias, cidades, domínios senhoriais, instituições religiosas e, por vezes, minorias étnicas ou culturais.

Pela mesma época, surge uma outra prova do elevado nível de desenvolvimento da sociedade – a escrita. Os funcionários a desempenhar serviços vitais para as tarefas administrativas, necessitavam da escrita e dum sistema aritmético aperfeiçoados para o desempenho das suas funções burocráticas, o que constituiu um factor importante para o desenvolvimento da escrita e da enumeração. A escrita tornou-se num meio tecnológico administrativo a sustentar a capacidade organizacional e a memória institucional das sociedades, dos templos e dos palácios. As actividades económicas constituíram o pano de fundo decisivo para a evolução da escrita. O domínio da escrita estava destinado a desempenhar o principal papel de afirmação de competência profissional e a ocasionar uma distinção social, privilégios e prestígio decorrentes da nomeação para o funcionalismo administrativo.

O desenvolvimento da comunicação escrita foi um dos principais factores de estímulo do progresso científico e tecnológico e de aceleração dos processos sociais e políticos. O controlo administrativo tornou-se mais intenso, a coesão social mais fácil e as distinções sociais mais acentuadas. Tornou-se mais simples registar as geneologias dos clãs e famílias, promover o recenseamento da população, a colecta de impostos ou o recrutamento de trabalhadores.

No século VII a.C., surgiu uma escrita popular (demótica) cujo aparecimento se deve ao aumento da necessidade de firmar contratos escritos relacionados com o desenvolvimento das relações mercantis, da escrituração na administração do Estado e nos domínios dos aristocratas.

A escrita desempenhou um papel primordial no controlo das actividades económicas. Os documentos encontrados atestam a existência de inventários de rebanhos pertencentes aos templos, entrega e recepção de bens, relações de trabalho, listas de profissões e a existência duma mão-de-obra hierarquicamente ordenada. Estes documentos abrangiam ainda a supervisão dos ofícios, a gestão dos meios de produção, anotações respeitantes ao comércio externo, controlo da qualidade dos produtos. Quase todos os aspectos da economia estatal eram registados num elaborado sistema contabilístico. Existiam muitas escolas cujo objectivo era preparar escribas para satisfazer as necessidades administrativas e económicas.

As diferentes linguagens usadas nos vários países e regiões percorridas pelos mercadores, constituíam uma enorme dificuldade à expansão comercial. Daí a necessidade de utilização de línguas comuns e de sistemas únicos de caracteres que facilitassem a comunicação entre as pessoas alfabetizadas e as relações comerciais e diplomáticas. A partir do século VIII a. C., a língua aramaica transformou-se gradualmente na língua do comércio regional e da diplomacia de todo o Próximo Oriente. No I milénio d. C., a escrita foi normalizada na China e eliminadas as variantes locais. A suplantar os dialectos tribais, aparecem o latim na Europa, o árabe no mundo islâmico. Outras línguas serviam os mercadores duma forma mais limitada. Os caracteres hebraicos e a escrita arménia, que não podiam ser lidos, permitiam aos mercadores vantagens comerciais. Algumas linguagens comerciais híbridas permitiam a pessoas de terras diferentes comunicarem entre si. A “língua franca comercial”, já extinta, era a língua do comércio do Mediterrâneo. Na África Oriental, o suaíli, língua africana arabizada, chamada “língua dos povos da costa”, era utilizada no comércio e escrituração. A parte continental e insular do Sudeste da Ásia tinha também uma língua comercial baseada numa forma simplificada do malaio. O Império Mongol introduziu um novo sistema de escrita adoptado para transcrever todas as diversas linguagens dos povos do império, substituindo as escritas existentes. O latim, língua cultural da Europa Ocidental e Central na Idade Média, apresentou-se como um importante elemento de unificação de línguas instáveis e dos dialectos de numerosas tribos e povos.

Nos primeiros séculos da nossa era, o funcionamento administrativo e burocrático foi muito aperfeiçoado com a adopção do papel. Os mensageiros oficiais distribuíam cópias de decretos, ordens para as províncias, relatórios de funcionários locais.

A escrita e a enumeração foram fortemente incentivadas pela actividade mercantil. Os mercadores cedo se aperceberam das enormes vantagens práticas proporcionadas pela escrita para fazer o registo das compras e vendas, fazer inventários e assentar as contas das suas transacções. Os conhecimentos comuns relativos à escrita, à leitura e à aritmética aproximaram cada vez mais os mundos do comércio e da cultura. Os livros de contabilidade, a escrituração de guias para comerciantes, o alargamento do uso de cartas de crédito e outros documentos, foram uma consequência do novo nível de conhecimentos acessíveis ao mercador. O desenvolvimento da contabilidade é uma manifestação da crescente complexidade da vida económica e também um instrumento de organização e de controlo sobre os vários factores que entram na produção. A comparação das entradas com as saídas não é uma característica especificamente capitalista. Nos séculos XIV e XV, o desenvolvimento da contabilidade por partidas dobradas permitiu aos bancos tornar possível uma visão mais nítida do conjunto do activo e do passivo, dos lucros e das perdas, e permitiu também aos banqueiros e aos seus clientes possuírem extractos financeiros das operações realizadas. É difícil conceber como seria possível a realização de grandes negócios, por parte das grandes companhias comerciais e dos bancos, antes da criação deste método.

A contabilidade exacta constituiu um progresso relevante no domínio prático. A aritmética comercial desenvolveu-se rapidamente no século XIV e a utilização de algarismos indo-árabes tornou-se cada vez mais frequente. No século XVII começaram a aparecer as primeiras máquinas de somar e multiplicar.

As funções administrativas eram exercidas por uma camada de indivíduos, percursores do futuro funcionalismo público que em cada povoação cobravam rendas ou desempenhavam funções de mordomos.

Os núcleos de funcionalismo permanente ou semipermanente abrangiam os administradores das casas reais, os dirigentes militares e civis, legistas e um conjunto de funcionários desempenhando múltiplas tarefas, incluindo a administração do património real, dos rendimentos dos bens da coroa. Alguns destes funcionários acompanhavam os soberanos, vivendo mesmo junto dos palácios. O núcleo de funcionalismo permanente andava de terra em terra por exigências da administração da época e até por imposição de necessidades económicas.

No século XIV, a centralização progressiva do poder real engendrou um sistema burocrático e a formação duma classe burocrática. Mesmo os palácios dos soberanos dependiam sempre dum pessoal competente e experimentado, especializado na administração. Este pessoal tinha o seu lugar nos conselhos reais, nas chancelarias, na corte, nas finanças e mesmo no exército. As disposições administrativas dos soberanos variam segundo o grau de centralização.

No Egipto, a máquina administrativa valorizou dois aspectos fundamentais no seu funcionamento: a escrita e os funcionários. A administração era formada por escribas, talvez o elemento mais importante da organização administrativa do Estado. Autênticos delegados régios, regiam toda a economia e eram de facto o suporte de toda a administração. Sendo a sociedade egípcia fortemente burocratizada, eram necessários escribas para a elaboração dos numerosos documentos produzidos pela administração central, pela administração provincial e pelos templos. Muitos dos principais escribas e funcionários à administração pertenciam à família real ou às famílias mais importantes; mais tarde alargou-se a base social de recrutamento. É hábito dizer-se que o Egipto é a pátria da burocracia, e como tal é também pátria dos funcionários: os sacerdotes são funcionários, como o são os escribas, os capatazes, os artesãos.

Na Mesopotâmia, realizaram-se importantes reformas sociais que constavam dos mais antigos actos jurídicos conhecidos no campo das relações sócio-económicas. É o caso do célebre “Código de Hammourabi” que, seguindo modelos de anteriores códigos, introduziu novas disposições, incluindo reformas na agricultura, questões relativas à posse da terra, definição dos direitos de sectores específicos da sociedade, etc.

Durante o período otomano, as aldeias constituíram unidades administrativas e financeiras independentes. No século XVI, existia em cada uma delas um aparelho administrativo próprio que era responsável pelo seu controlo quotidiano e pela cobrança de impostos aos camponeses. A cobrança de impostos em espécie requeria um sistema de contabilidade muito sofisticado e o registo dos pagamentos.

Na China, no século VII, foi iniciado o sistema de preencher os postos burocráticos por candidatos extraídos do sistema de exames com teste da capacidade pessoal, o que se provou ser um golpe decisivo para a velha aristocracia. A partir do século XI, o sistema de recrutamento através de exame para o serviço público constituía o principal canal de nomeação de funcionários. A longo prazo o método destruiria o monopólio do poder sócio-político nas mãos da aristocracia.

Entre os astecas, os textos eram pintados a pincel sobre papel feito da casca interior duma espécie de figueira. Alguns livros estavam na posse de contabilistas que registavam os impostos, propriedades das terras ou edifícios, outros davam informações sobre a sucessão dinástica, relações genealógicas, actividades e feitos dos governantes ou eram utilizados pelos tribunais.