ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

ANTECEDENTES DO CAPITALISMO

Carlos Gomes

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2.3 – PRODUÇÃO AGRÍCOLA

O volume e as espécies das produções agrícolas variam segundo a natureza, a utilização e a superfície das terras consideradas. Estas podem incluir culturas permanentes ou temporárias, terras de pousio, florestas, pastagens e mesmo áreas incultas. A área agrícola não é só por si suficiente para avaliar a dimensão da produção, que depende naturalmente do solo, da fertilidade da terra, dos meios de produção utilizados e da força de trabalho disponível.

Entre as entidades privadas, ou entre estas e os poderes públicos, estabelecem-se relações variadas e, por vezes, complexas. É possível enunciar as mais significativas e que são as seguintes: entre o detentor do solo e a entidade que o explora; entre o dono de animais e de equipamentos ou máquinas e a entidade que os utiliza; entre rendeiros e proprietários fundiários; entre o possuidor do dinheiro e a entidade a quem o cede; entre o patrão e os trabalhadores assalariados, permanentes ou temporários; entre produtores e consumidores, vendedores e compradores; entre produtores agrícolas e entidades transportadoras e mercantis; entre contribuintes agricultores, o Estado e as autarquias locais.

O produtor directo detém a posse dos seus meios de produção, em geral movíveis, das condições materiais indispensáveis à realização do seu trabalho e à produção dos seus meios de subsistência. Os instrumentos de trabalho fixos eram entregues ao produtor em usufruto, que deste modo ficava na situação de dependente em relação ao dono da terra. Para utilizar estes meios de produção, os camponeses eram obrigados a ceder mais uma parte da sua colheita ou a pagar uma taxa por essa utilização. Além da renda, a família camponesa é ainda, por vezes, sobrecarregada com outras obrigações para com o senhorio como: ceder uma parte do produto da terra que explora por conta própria; ceder alguns dos animais que cria e dos peixes que pesca; moer o seu grão no moinho senhorial; cozer o pão no forno senhorial; fabricar a cerveja nas instalações senhoriais. Estavam ainda sujeitos à justiça senhorial, o que muitas vezes implicava o pagamento de multas. Além disso, tinham de pagar dízimas às instituições religiosas e de se sujeitar a impostos estatais ou municipais.

Interesses económicos levaram os senhores das áreas dominadas a exigir um maior esforço dos agricultores instalados nos seus domínios, visto daí depender o quantitativo da renda a embolsar. As contingências da vida política e militar não possibilitava aos senhorios uma fiscalização eficaz e duradoura nos seus domínios o que facilitou o nascimento do regime agrário de colonato, que permitiu uma progressiva ampliação da produção e da produtividade, bem como o inicio dum novo tipo de relacionamento entre o produtor e o proprietário rural.

Os colonos formaram uma classe média composta por população livre e uma parte de camponeses de origem servil cuja situação havia melhorado. O colonato destinava-se a manter o camponês estavelmente na terra, a obrigá-lo a entregar ao senhor as múltiplas prestações de géneros, excepcionalmente em dinheiro ou mistas. A terra não pertencia ao cultivador que a explora por sua conta mas sob a condição de destinar parte da produção ao proprietário. As terras divididas entre colonos eram arroteadas com utensílios e animais que lhes pertenciam, estando os colonos obrigados a entregar uma parte da produção aos senhores. Eles e suas famílias eram ainda compelidos a fornecer um certo número de dias de trabalho gratuito, empregando os seus instrumentos de produção. O proprietário conservava o direito de orientação e verificação do cultivo. Para ser autorizado a dedicar-se a determinadas actividades, cujo produto desejava reservar para si ou vender o excedente das suas necessidades de consumo, o colono estava sujeito ao pagamento adicional dum tributo em géneros ou em dinheiro. O colonato permitiu ainda ampliar as trocas com a comercialização duma parcela do produto social, assim transformado em mercadoria. O lento progresso do comércio exercia uma influência reforçada no mesmo sentido.

Com o decorrer do modo de produção mercantil, a pouco e pouco, uma camada de camponeses mais prósperos foi surgindo, ávidos de reunir um campo a outro como meio de aperfeiçoar o cultivo e a sua progressão. Esta transição não representou uma imediata libertação do cultivador das obrigações servis, pois a tradição e o costume desempenhavam um papel muito poderoso, permanecendo durante longos períodos a partilha do produto entre servo e senhor. Entretanto, estabeleceu-se em particular uma relação próxima entre os agricultores e o mercado. Esta relação apresentava as seguintes características: em certas regiões, os agricultores abandonaram gradualmente a terra, dedicando-se ao comércio; alguns mercadores, que possuíam terras e capital, contratavam terceiros para a produção agrícola e venda das mercadorias; a produção duma quantidade crescente de produtos agrícolas secundários com o objectivo de ampliar as vendas no mercado.

Os lavradores com uma posição mais desafogada tendo ao seu dispor, além da mão-de-obra familiar, a que lhes era fornecida por alguns assalariados, encontravam condições mais favoráveis para ampliar o seu espaço de cultivo. O aumento dos arrendamentos e o crescente uso do trabalho assalariado fomenta uma diferenciação económica entre os camponeses e o surgimento duma fracção de agricultores, capazes de acumular pequenos montantes de capital, incentivados pelo crescimento do comércio local e dos mercados. Estes agricultores foram capazes de executar um cultivo mais eficiente, aumentar as suas posses arrendando mais terra e utilizar os serviços em regime de assalariado dos seus vizinhos mais pobres. A desigualdade em tipo de solo, situação e fortuna deram a lugar a diferenciações entre os próprios camponeses, e até mesmo entre a população de determinadas regiões. Formou-se uma classe de agricultores médios ligados ao mercado, tanto na posição de vendedores como de consumidores.

Da apropriação da terra e dos instrumentos para a cultivar resultou o incremento de desigualdades nas relações de produção. Certas famílias ficaram na posse dos melhores lotes de terra e dos maiores rebanhos de gado, enquanto outros empobreciam e se arruinavam. Os camponeses mais pobres são empregados como jornaleiros ou simples pastores, o que permite aos produtores directos apropriarem-se duma mais-valia utilizada em parte no aumento da produção destinada ao mercado. A situação económica do camponês tornou-se muito débil, não passando muitas vezes dum modest o cavador sem terra e sem gado de trabalho.

A formação de grandes complexos agrícolas deu lugar a que muitos camponeses rendeiros ao ficarem sem terra para cultivar e que não dispunham de meios suficientes para resistir à pressão dos poderosos, acabassem por abandonar os seus campos e trabalhar como assalariados, por vezes, nas suas próprias terras ou migrar para as cidades para trabalhar na indústria. Os latifundiários aproveitavam-se do trabalho assalariado e do sistema de arrendamento das suas terras. No primeiro caso, a força de trabalho era contratada e as alfaias fornecidas pelo senhor aos trabalhadores assalariados responsáveis pela produção, sendo-lhes pago um salário e, por vezes, alojamento e habitação. No sistema de arrendamento, a terra era arrendada aos locatários que a trabalhavam, pagando ao senhorio o direito da sua ocupação em condições que dificilmente conseguiam suportar, face aos aumentos regulares das suas pesadas rendas.

O conjunto das relações sociais de produção é também determinado, entre outros factores, pelo nível médio da técnica agrária. Porém, não basta conhecer os novos instrumentos de trabalho, é necessário aplicá-los, pois só a partir daí podem influenciar a produção. As relações de produção e de distribuição entre os agricultores e a aristocracia não permitiam que o ritmo de produção agrária se ajustasse automaticamente aos progressos tecnológicos. O ritmo de avanço era muito lento. Isto originava tensões internas no processo de desenvolvimento sócio-económico, mas eram tensões que impulsionaram a sua evolução.

Nas regiões onde se iniciou a formação do modo de produção capitalista assistiu-se ao rompimento de laços familiares ou comunitários existentes na agricultura, sem contudo os eliminar. Nas grandes propriedades agrárias o camponês é substituído pelo trabalhador assalariado. Os mercadores das cidades investem na compra de propriedades rurais, embora a intenção imediata não fosse, em geral, explorar directamente a terra, mas especular ou arrendar os terrenos para auferir lucros.

Uma classe de agricultores mais prósperos tornou-se empregadora de trabalho assalariado e competidora nos mercados locais. Os proprietários das terras, mais susceptíveis à influência urbana, adoptavam cada vez mais o hábito de contrair empréstimos junto dos mercadores. Assiste-se a um processo de transformação que conduz a uma produção essencialmente destinada à troca, motivada pelo interesse pessoal e a realização de lucros monetários. Os grandes proprietários ampliam as suas propriedades fundiárias apoderando-se das terras destinadas à utilização comunitária das aldeias bem como das terras dos pequenos proprietários camponeses, o que lhes permite aumentar a superfície das unidades agrícolas e utilizá-las para a produção extensiva agrícola e pecuária.

A organização requerida pelo trabalho agrícola desencadeou um processo de diferenciação social que alargou a variedade das ocupações e das possibilidades. Assim se alterou a organização social da agricultura, passando o capital a dominar a produção agrícola e a concentrar em poucas mãos a propriedade fundiária. Os próprios comerciantes das cidades começaram a investir as suas fortunas na compra de grandes propriedades fundiárias.

Historicamente, sob domínio romano, a exploração agrícola fazia-se predominantemente através dos colonos e de pequenos rendeiros que pagavam parte das suas rendas em géneros. Simultaneamente, desenvolveu-as uma classe de trabalhadores sem terra que se sustentava do trabalho sazonal nas grandes propriedades. Uma parte destes camponeses acabavam por abandonar as suas comunidades e ir para as cidades ou tornarem-se rendeiros dos grandes latifundiários. Os romanos não tinham capacidade de escravizar a totalidade das tribos conquistadas e mantiveram-nas nas suas unidades originais como “colonos”. Foi o primeiro estádio duma síntese de simbiose com as comunidades tribais periféricas, iniciando-se um novo período de relações mútuas entre centro e periferia, primeiro sob domínio romano mas depressa sob o controlo das próprias comunidades tribais. No seio da sociedade romana, século IV, o colonato passou a dominar a produção agrícola. Criaram-se explorações auto-suficientes, onde trabalhava gente que dependia dos latifundiários a quem tinha de pagar tributos.

Durante o período otomano, o usufruto da terra começou a ser distribuído pelos camponeses que ficavam obrigados ao pagamento duma renda para os cultivar. O sistema agrícola baseava-se em unidades económicas, compostas por famílias camponesas independentes com uma produção destinada a alimentar a família e a utilizar os excedentes para cumprir as exigências fiscais perante o único proprietário, o Estado. O aparelho burocrático otomano defendeu estas unidades agrícolas e impediu as tendências para a fusão destes minifúndios em propriedades de grandes dimensões. Os camponeses não ficavam proprietários dessas terras, mas tinham a obrigação de as cultivar indefinidamente enquanto pagassem a renda e os impostos. Os impostos eram cobrados por agentes estatais que recolhiam também as rendas. No século XVIII, o peso da carga fiscal e a rigidez do aparelho administrativo revelaram-se particularmente opressores para os camponeses pelo que alguns destes optaram pela fuga, abandonando os seus campos. A terra doada à estrutura religiosa encontrava-se isenta do pagamento de impostos, embora pagasse uma taxa simbólica. A terra de pastagem não se encontrava sujeita a impostos, garantindo a alimentação dos cavalos dos governadores. Em contrapartida, o corpo administrativo das aldeias impunha aos camponeses contribuições sobre produtos como a manteiga, as ovelhas, o mel, o queijo, os cereais, as galinhas e outros produtos. O controlo total sobre os territórios agrícolas, a produção e o trabalho dos camponeses constituiu uma das principais causas da estagnação da economia e da sociedade otomana. Nesta situação, não havia possibilidade da economia de carácter rural se ter adaptado à economia mercantil, vivendo-se num sistema estático de subsistência ao longo do tempo.

Na Índia, os principais produtores que trabalhavam no campo eram membros livres da comunidade. Quando ficavam arruinados e perdiam as suas terras e os seus instrumentos de trabalho viam-se compelidos a trabalhar como rendeiros. A agricultura era conduzida por camponeses individuais, existindo poucos vestígios de cultivo em comunidade. Havia um grau considerável de diferenciação entre os agricultores, existindo alguns que possuíam grandes campos, cultivavam muitas espécies e empregavam trabalhadores, pagando-lhes em dinheiro e em géneros. Num extremo inferior da sociedade rural estavam muitos trabalhadores sem terra, a maioria deles “intocáveis”, que devem ter chegado a constituir mais dum quarto da população rural. Os direitos sobre os terrenos desocupados pertenciam por direito aos aldeãos influentes. A produção agrícola tinha de ser colocada no mercado de forma que o imposto sobre a terra pudesse ser pago em dinheiro. A dimensão deste imposto era tal que absorvia a maior parte dos excedentes. O Estado tinha de tomar conhecimento detalhado das condições de agricultura e fazer um esforço para a sua melhoria, sendo estas tarefas executadas por latifundiários.

Na China, a agricultura era o principal sector de produção. Os pequenos camponeses eram proprietários ou rendeiros e constituíam a maioria dos habitantes rurais, mas a sua posição social não era elevada. No século XVI, foi encorajado o cultivo de terras baldias, através dum sistema de recompensa e da construção de obras hidráulicas. A terra que pertencera ao anterior estado senhorial foi distribuída pelos camponeses que a trabalhavam aumentando a sua motivação. As técnicas de produção foram melhoradas com uma lavra cuidada, plantação intensiva, utilização de fertilizantes naturais, melhores alfaias e progressos na hidráulica. Fizeram-se também progressos na selecção e melhoramento das variedades e espécies cultivadas já com fins comerciais.

Nos séculos XIV e XV, diversas monarquias de países europeus dominaram por fim o feudalismo político, reduziram os poderes das ordens privilegiadas e levaram a cabo a unidade territorial dos reinos, onde apenas o rei podia legislar, deter o domínio soberano, angariar impostos permanentes, recrutar forças armadas regulares, nomear juizes e criar cargos públicos. O desaparecimento da servidão feudal deu lugar a uma conversão de feudos hereditários em propriedades de bens de raiz. Com o fim de produzir mais quantidade para abastecer os mercados vizinhos os novos proprietários procuraram recuperar as terras comunais e mesmo apropriarem-se das parcelas de terra dos camponeses, reorganizar as culturas dos seus novos domínios com vista a obter o máximo lucro. Os grandes proprietários estavam claramente inclinados a ampliar os seus domínios em detrimento dos camponeses e a obter lucros monetários. Nos séculos posteriores, o preço das terras subiu e formou-se um vasto movimento de vedar os campos. Na Europa Ocidental, em meados do século XV, os rendeiros independentes, ou parcialmente independentes, podiam cultivar as terras como entendessem e vender as suas colheitas a quem lhe comprasse por melhor preço. O rendimento melhorou e os preços mais elevados incitavam os camponeses a adquirir mais terras. Os grandes proprietários procuravam manter os rendimentos de origem feudal e os baixos salários da mão-de-obra rural, preferindo guardar para si as melhores terras. Os camponeses sujeitos ainda a um regime senhorial tinham de abdicar de uma parte das suas colheitas, o que significava ficarem os benefícios concentrados nas mãos das classes dominantes. O ambiente económico era desfavorável para a maioria dos camponeses, uma vez que uma grande parte vivia do cultivo das terras que não lhe pertenciam. Esta situação era agravada pela subida de preços dos produtos que necessitavam adquirir no mercado. No século XVII, reinava a imobilidade no campo das relações sociais do mundo rural, fruto do domínio incontestado das classes dominantes, que incluíam já os grandes proprietários fundiários que muitas vezes exerciam simultaneamente poderes senhoriais. Em alguns países, a nobreza tentou ainda recuperar o controlo directo da terra através da expulsão dos rendeiros. No século seguinte assistiu-se a um significativo progresso em direcção à transformação das relações de produção nas zonas rurais, que viria a dar origem a profundas alterações no sistema senhorial herdado dos tempos medievais. Os grandes agricultores, muitas vezes eles próprios arrendatários de vastas extensões de terra, foram protagonistas deste duplo processo de opressão senhorial e modernização capitalista, o qual originou acções de resistência. Numerosos membros da pequena nobreza, desprovidos dos seus domínios, ficaram numa situação difícil. Vítimas destas mudanças, incapazes de se adaptar à nova economia, afundaram-se na pobreza e humilhação.

Em África as civilizações agrárias tiveram, em todas as regiões, um efeito preponderante sobre as outras. Além da agricultura, havia a pastorícia, a caça e as actividades recolectoras, ou a exploração mineira. No século XVI, embora a África fosse essencialmente rural, existiam já povoados urbanos prósperos mesmo antes da colonização. Nos países do Norte do Continente, século XVII, a utilização dum sistema de irrigação judicioso contribuiu para o facto de o imposto tributado às colheitas ter sido uma das principais fontes de rendimento do Estado. Porém, o pesado fardo dos impostos levou, em alguns casos, os camponeses a deixarem de cultivar a terra e a concentrarem-se apenas na criação de gado.

Entre os Astecas, os senhores concediam aos seus camponeses um lote de terreno para usufruto, obrigando-os a trabalhar as suas próprias terras em determinados períodos do ciclo agrícola. A região Andina destacou-se por uma vigorosa difusão da agricultura, principalmente baseada numa irrigação bem sucedida e em técnicas de previsão de tempo. Entre os incas, os colonos estatais podiam atingir milhares, mesmo localizados a grandes distâncias. As suas obrigações estavam ligadas à produção de milho, destinado especialmente à manutenção do exército e aos cuidados com a manutenção dos imensos rebanhos de camelídeos pertencentes ao Estado.

Nas colónias europeias da América, o sistema de plantação, em extensas áreas agrícolas, adquiriu uma grande importância, mais favorável para culturas remuneradoras como o tabaco, o algodão, a cana do açúcar, culturas pouco rendáveis nas pequenas explorações. A mão-de-obra necessária à plantação consistia sobretudo em escravos negros, a maior parte importados da costa ocidental de África.