Adrielli Santos de Santana *
João Carlos de Pádua Andrade **
Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil
adrielli_santana@outlook.com
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Resumo
                                                               
  O presente artigo traz reflexões  sobre a dinâmica do trabalho em comunidades tradicionais. Especificadamente,  procura demonstrar a participação da mulher na pesca artesanal, através da  vivência das marisqueiras da comunidade de Pedras de Una, localizada no sul da  Bahia. Os resultados são frutos de pesquisa bibliográfica e de pesquisa-ação, a  qual pressupõe o engajamento entre os pesquisadores e o grupo analisado. Eles  apontam para um contexto de extrema vulnerabilidade socioeconômica da mulher,  justificado, entre outros fatores, pela invisibilidade do trabalho feminino no  ambiente pesqueiro, assim como pelo desconhecimento das marisqueiras de seus  direitos sociais e pelas lacunas existentes na cadeia produtiva da pesca  artesanal.
Palavras-chave: Marisqueiras. Comunidades tradicionais. Divisão do trabalho. Pesca Artesanal.
Resumen
El presente artículo aporta reflexiones sobre la dinámica del trabajo en comunidades tradicionales. Específicamente, busca demostrar la participación de la mujer en la pesca artesanal, a través de la vivencia de las marisqueras de la comunidad de Piedras de Una, ubicada en el sur de Bahía. Los resultados son frutos de investigación bibliográfica y de investigación-acción, la cual presupone el compromiso entre los investigadores y el grupo analizado. Apuntan a un contexto de extrema vulnerabilidad socioeconómica, justificado, entre otros factores, por la invisibilidad del trabajo de las mujeres en el entorno pesquero, así como por la ignorancia de los restaurantes de mariscos de sus derechos sociales y las brechas en la cadena productiva de la pesca artesanal.
Palabras clave: Marisqueras. Comunidades tradicionales. División del trabajo. Pesca artesanal.
Abstract
This article reflects on the dynamics of the work in traditional communities. Specifically, it seeks to demonstrate the participation of women in artisanal fisheries, through the experience of the shellfish gatherers of community of Pedras of Una, located in southern Bahia. The results are the result of bibliographic research and action research, which presupposes the engagement between the researchers and the group analyzed. They point to a context of extreme socio-economic vulnerability of women, justified, among other factors, by the invisibility of women's work in the fishing environment, as well as the ignorance of the s shellfish gatherers of their social rights and existing gaps in the supply chain of artisanal fisheries.
Keywords: Shellfish gatherers. Traditional communities. Division of labor. Artisanal Fishing.
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato: 
Adrielli Santos de Santana y João Carlos de Pádua Andrade  (2017): “Ilustrações do trabalho feminino em comunidades pesqueiras tradicionais”, Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, Brasil, (septiembre 2017). En línea: 
http://www.eumed.net/cursecon/ecolat/br/17/trabalho-feminino.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/br17trabalho-feminino
1 INTRODUÇÃO
Buscando  demonstrar a dinâmica socioeconômica das marisqueiras da comunidade de Pedras  de Una, localizada no município de Una, sul da Bahia, o presente artigo  centra-se em alguns questionamentos: é possível que as mulheres assumam o papel  de agentes transformadoras da realidade social local? São elas capazes de  impulsionar o desenvolvimento das localidades onde vivem? Embora,  intuitivamente a resposta seja “sim”, a realidade demostra uma desvalorização  da figura feminina, diante da desigualdade de gêneros, pautada na ideologia,  errônea, da mulher como o “sexo frágil”.
   Em uma  análise histórica, a imagem feminina sempre esteve associada ao trabalho  doméstico e aos cuidados familiares, impondo um contexto de inferioridade e  subordinação com relação à figura masculina. Durante as duas Guerras Mundiais,  responsáveis pela morte e mutilação de milhões de homens, a alternativa para a  escassez da força de trabalho foi a introdução da mulher no cenário produtivo  (PROBST, 2002). Essa nova condição gerou anseios de conflitos sociais e de  desestruturação do sistema familiar, que serviram para restringir a ascensão  feminina, através de baixos salários e ausência de instrumentos que  assegurassem seus direitos trabalhistas.
   A partir da  década de 1950, a participação da mulher no mercado de trabalho assumiu números  significativos, e junto com esse crescimento surgiram as “Ondas Feministas”,  movimentos sociais centralizados na busca por liberdade de expressão, igualdade  de direitos entre os gêneros e maior participação da mulher no contexto  socioeconômico e político. No Brasil, a intensificação do trabalho feminino  ocorreu durante a década de 1970, impulsionado pelo crescimento econômico,  fruto da industrialização da produção nacional. Nesse período, a taxa de participação  das mulheres no mercado de trabalho já somavam, aproximadamente, 18,5%, e  permaneceu crescente nas décadas seguinte (GUEDES; ALVES, 2004). Entretanto,  somente com a Constituição Federal de 1988 que os direitos do trabalho feminino  e de igualdade de gêneros foram assegurados por Lei, conforme descrito: 
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem  distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos  estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à  liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 
   I - homens e mulheres são iguais em direitos  e obrigações, nos termos desta Constituição; [...]
   XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho,  ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei  estabelecer; [...] 
   Art. 7º São direitos dos trabalhadores  urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:  [...] 
   XXX - proibição de diferença de salários, de  exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor  ou estado civil; (BRASIL, 1988).
De fato,  nas últimas décadas as mulheres alcançaram conquistas importantes, a maior  delas, sem dúvida, foi sua inserção no mercado de trabalho, em decorrência do  maior acesso à educação em diversas áreas do conhecimento, antes restrita ao  universo masculino, e também pela necessidade do sistema capitalista de  aumentar a força produtiva no mercado (GUEDES; ALVES, 2004; PROBST, 2002). Para  este último argumento, vale uma profunda reflexão: se por um lado, esse sistema  cria condições para a integração feminina, como, portanto, essa mesma  integração ocorre em sociedades tradicionais? 
   Essa é uma  questão substantiva e que, portanto, merece ser investigada, visto que a  representação feminina no mercado de trabalho continua sem a devida  valorização, revelando a necessidade de se conhecer todas as dimensões desse  problema. A tarefa, nesse sentido, é de estimular a discussão e retomar os  olhares para os grupos de mulheres, que de alguma forma se mantém isoladas do  contexto social que abrange essa temática. Em face disso, o presente artigo  pretende expor a construção da identidade do trabalho feminino em comunidades  pesqueiras tradicionais. 
   Denota-se a  crescente participação das mulheres na pesca artesanal, consequência do aumento  da demanda por produtos pesqueiros. Estima-se que, somente para o consumo  humano, são coletados mais de 100 milhões de toneladas por ano, a nível  mundial, e este processo é responsável por ocupar cerca de 84 milhões de pessoas,  direta e indiretamente, no mercado de trabalho (SILVA et al., 2013). No cenário  nacional, a representatividade da pesca artesanal no mercado é de,  aproximadamente, 45% do total produzido no país (LOPES, 2004; MPA, 2011).
   De acordo  com Palheta (2013) é nesse cenário de ampliação da demanda, e consequentemente  a diminuição da quantidade de espécies marinhas disponíveis para consumo, que  as mulheres estão inseridas, oferecendo o conhecimento tradicional sobre o  ecossistema marinho e de práticas sustentáveis de manejo. Além disso,  considera-se, também, fator pertinente o aumento da pobreza, que despertam a  necessidade das mulheres buscarem meios para contribuir com a renda familiar. 
  “Na pesca artesanal as  mulheres representam 24,35 % do registro geral e mais de 25% desta atividade  produtiva é por elas desenvolvida” (STADTLER, 2013, p. 4). As mulheres passaram a assumir funções mais ativas dentro  da cadeia produtiva da pesca e a serem remuneradas pelas atividades realizadas.  Entretanto, a pesca continua sendo vista como uma extensão do trabalho  doméstico. Diante disso, a autora ainda ressalta que:
É possível dizer, então, que a mulher findou por transitar entre o espaço doméstico e de mercado do setor pesqueiro. Essa característica findou por conferir à mulher um domínio sobre dois mundos que se traduziu na possibilidade de, ao dominar conhecimentos sobre recursos pesqueiros, ampliar a inserção dos mesmos em um mercado com maior demanda (PALHETA, 2013, 74).
Tendo em  vista essas considerações, o desenvolvimento do presente artigo envolveu uma  pesquisa bibliográfica, visando a identificação dos conceitos norteadores  relacionados à pesca artesanal, comunidades tradicionais e a construção da  relação entre o trabalho feminino e o meio ambiente da pesca, apresentados nas  duas primeiras seções. A terceira seção é resultado das observações e da  pesquisa-ação realizada na comunidade de Pedras de Una, com a finalidade de  apresentar o cotidiano do trabalho das marisqueiras e os entraves que afetam a  cadeia produtiva da pesca artesanal local. 
   Os métodos  de investigação do presente artigo têm origens na pesquisa-ação (MISKOVIC & HOOP, 2006;  THIOLLENT  & SILVA, 2007), em razão do engajamento dos autores em ações de  extensão na comunidade de pescadores analisada. Essa forma de abordagem  metodológica parte do princípio de que os desafios socioeconômicos e ambientais  demandam novos métodos de investigação capazes de superar as visões econômicas  predominantes que se revelaram restritiva para a compreensão da complexidade  socioambiental (THIOLLENT & SILVA, 2007). 
   A  utilização de metodologias que foquem em ações participativas configura-se como  um método flexível que permite o investigador ter acesso à comunidade a fim de  buscar, em conjunto, soluções para problemas específicos (THIOLLENT & SILVA, 2007). Nesse processo,  o método da pesquisa-ação segue um ciclo onde ocorre oscilação sistemática  entre agir no campo da prática e investigar a respeito dela (TRIPP, 2005). “Planeja-se, implementa-se,  descreve-se e avalia-se uma mudança (...), aprendendo mais, no correr do  processo, tanto a respeito da prática quanto da própria investigação”(TRIPP, 2005, p. 446).
   A  pesquisa-ação surgiu como uma nova proposta metodológica dentro de um contexto  caracterizado por várias preocupações teóricas e práticas que incidem na busca  de novas formas de intervenção e investigação (BALDISSERA,  2001). Essa técnica de pesquisa permite compreender a prática, avaliá-la  e questioná-la, exigindo, assim, formas de ação e tomada consciente de decisões  (ABDALLA, 2005), com foco de provocar mudança social (ABRAHAM & PURKAYASTHA, 2012).  Suas características são situacionais, uma vez  que busca diagnosticar um problema específico numa situação específica, com  vistas a alcançar algum resultado prático (NICHTER,  1984; NOVAES & GIL, 2009).
   A  realização de diagnósticos participativos, desenvolvimento de ações de  capacitações, estruturação produtiva, introdução de novas fontes de renda e  busca de mercado para os produtos oriundos da comunidade, com intuito de  resolver uma problemática local referente à falta de oportunidades de geração  de renda, possibilitou aos pesquisadores o desenvolvimento de diversas  pesquisas no ceio da comunidade.
2 PESCA ARTESANAL E COMUNIIDADES TRADICIONAIS: UMA BREVE DESCRIÇÃO
A pesca é considerada  como uma das práticas produtivas mais antigas da humanidade, sendo fonte de subsistência  e de renda para muitos seres humanos.
   A atividade pesqueira  evoluiu, em decorrência dos avanços tecnológicos nos equipamentos, nas  embarcações e, nos métodos de manejo (MAZOYER e ROUDART, 2010), bem como diante  do acúmulo de conhecimentos e informações sobre os ecossistemas marinhos.  Entretanto, essa tecnologia não é disponível para todos, o que levam muitos a  recorrerem às formas mais simples de execução dessa atividade. Além disso,  existem grupos sociais onde a pesca se mistura com a identidade cultural e com  a história individual e coletiva dos envolvidos. 
   A pesca artesanal  realizada por pescador profissional de maneira autônoma ou em família, ou,  ainda, com auxílio momentâneo de outros parceiros (DIEGUES, 1973; OLIVEIRA  & SILVA, 2012), é realizada na costa brasileira desde períodos anteriores a  sua colonização (DIEGUES, 1999; SANTOS et al., 2012). No Brasil, a pesca  artesanal possui grande representatividade, sendo responsável por  aproximadamente 45% da produção total no país, com destaque para a região  Nordeste nesta modalidade (LOPES, 2004; MPA, 2011). 
   Ao longo da história  brasileira, as diretrizes “políticas e econômicas para o setor pesqueiro  brasileiro fomentaram e privilegiaram o agronegócio da pesca oceânica e da  aquicultura” (SILVA; WANDERLEY; CONSERVA, 2014, p. 176-177). Essa situação  provocou sobre-exploração dos estoques e danos ambientais, uma vez que essas  políticas não consideraram “reais necessidades dos pescadores artesanais e não  reconheceram as atividades da cadeia produtiva da pesca, realizadas  principalmente por mulheres que trabalham na terra” (SILVA; WANDERLEY;  CONSERVA, 2014, p. 177). 
   A importância da pesca  como atividade econômica cresceu consideravelmente em razão de atender a  demanda mundial de alimentos, resultando numa crescente pressão sobre os  estoques pesqueiros do mundo, dos quais, cerca de 77% encontram-se intensamente  explorados ou em situação de esgotamento (KALIKOSKI et al., 2009; BERKES et  al., 2001). Estima-se que cerca de 20% das espécies de peixes de água doce do  mundo (cerca de 1.800 espécies), já estão extintas ou em sério declínio em  razão da competição por água, da alteração do habitat, da poluição, da  introdução de espécies exóticas e da exploração comercial (MOYLE & LEIDY,  1992). 
   A atividade pesqueira  tem sido essencial para o desenvolvimento socioeconômico de comunidades no  mundo, principalmente em países subdesenvolvidos (WHITMARSH et al., 2003),  contribuindo, por exemplo, com a formação de culturas litorâneas regionais  ligadas à pesca, a exemplo do jangadeiro localizado em praticamente todo  litoral nordestino do Ceará até o sul da Bahia; o caiçara no litoral do Rio de  Janeiro e São Paulo; e o açoriano, no litoral de Santa Catarina e Rio Grande do  Sul (DIEGUES, 1999).
   O pescador artesanal é o indivíduo conhecedor  dos manejos de pesca e do ecossistema onde atua, sendo responsável pela  realização da atividade pesqueira individualmente ou incluindo o grupo familiar  (CLAUZET; RAMIRES; BARRELLA, 2005). Para Capellesso  (2011), uma das características marcantes na atividade pesqueira artesanal é a  intensidade do contato “com a natureza pouco transformada [...] existindo dificuldades  para estabelecer o controle antrópico sobre os recursos, dada a fluidez dos  recursos pesqueiros”. 
   Percebe-se que a pesca  representa mais do que uma fonte de renda, ela é uma forma de transmissão da  identidade cultural de grupos sociais, que mantêm uma relação de respeito com o  meio ambiente. Esses grupos, em muitos casos, vivem em ambientes comunitários,  organizados com base nos princípios do cooperativismo e nas regras culturais, e  apresentando-se com variados graus de isolamento dos demais membros da  sociedade (DIEGUES, 2000). O sentimento de pertencimento aproxima os indivíduos,  promovendo uma consciência coletiva que os fazem enxergar suas semelhanças,  contribuindo para a harmonia e simplificação da vida em sociedade, e para a  transmissão dos valores morais, afetivos, culturais e tradicionais entre as  gerações.
   As comunidades  tradicionais são evidências empíricas desta forma de organização social. De  acordo com Toledo (2001), “existem mais de 300 milhões de pessoas pertencentes  a povos e comunidades tradicionais [...] ocupando praticamente cada um dos  principais biomas do planeta”. Apesar do grande número de indivíduos agrupados  em comunidades tradicionais, a primeira definição surgiu somente após a Lei n°  9.985/2000, evidenciando a dificuldade de agrupá-los em uma denominação única  (IPEA, 2012). Para fins legais, o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007,  em seu artigo 3º, inciso I, define comunidades tradicionais como:
[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).
Nos últimos anos, tem-se dado muita atenção às comunidades tradicionais visando, principalmente, seus conhecimentos sobre a natureza. Nesse contexto, Terra e Dorsa (2011) ressaltam que:
As comunidades tradicionais, que no percorrer da história interagem com a natureza e com os costumes repassados de geração em geração, como os indígenas, quilombolas, ribeirinhos, entre outras, tentam dar continuidade às tradições recebidas dos antepassados. Principalmente por meio da oralidade, estão sendo vistas nas últimas décadas com um novo olhar pelos cientistas sociais, pelo poder público e segmentos da sociedade em geral (TERRA; DORSA, 2011 p.3).
Toledo (2001) destaca  os seguintes argumentos para caracterizar uma comunidade como tradicional: (i)  possuir descendência com os primeiros habitantes locais; (ii) possuir atividades  econômicas, culturais e sociais diretamente relacionadas ao uso da natureza e  dos recursos naturais; (iii) serem produtores de pequeno porte, dado que a  produção é voltada para suprir as necessidades básicas individuais e coletivas;  (iv) possui organização pautada no interesse comunitário; (v) compartilhar as  mesmas características socioculturais e linguísticas entre seus integrantes;  (vi) possuir relação de afeto com a natureza e o ambiente onde vivem; e, (vii)  reconhecerem como povos e/ou  comunidades  tradicionais.
   Em análise geral,  pode-se então definir comunidades tradicionais como:
[...] grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperação social e formas específicas de relações com a natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noção se refere tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos (DIEGUES et al, 2000).
Esta definição deixa evidente a importância das comunidades tradicionais para preservação do conhecimento cultural e da própria natureza, transparecendo sua importância sociocultural para a formação de povos com características específicas.
3 A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA PESCA
As mulheres  desempenham um papel importante para a manutenção das comunidades pesqueiras.  Suas funções vão além do trabalho doméstico e dos cuidados familiares, e, em  alguns casos, além da execução de atividades econômicas para contribuir com a  renda familiar. Elas assumem um papel importante para a preservação dos  recursos naturais, diante do conhecimento adquirido pela vivência e contato com  a terra, e pela relação de pertencimento com o território, característico em  comunidades tradicionais (TERRA; DORSA, 2011). Essas relações servem como  expressão da existência de um vínculo social, econômico e ambiental ligado ao  trabalho feminino no ambiente marinho (OLIVEIRA, 1993). 
   As  comunidades tradicionais apresentam uma maior divisão do trabalho entre homens  e mulheres. Essa afirmativa é facilmente verificada quando a base da renda  local é oriunda da produção pesqueira. A pesca, como principal atividade dessas  comunidades, é executada majoritariamente pelos homens, “chefes de família”,  responsáveis pelo sustento familiar (OLIVEIRA, 1993; MANESCHY, 2000). Cabe,  portanto, às mulheres a realização de atividades secundárias, diretamente  ligadas ao ambiente doméstico. De acordo com Cardoso (2002), a invisibilidade  da participação feminina na pesca é resultado da cultura e do tradicionalismo  dessas comunidades, que sinalizam uma hierarquização entre os variados níveis  de proximidade entre o indivíduo e o ambiente marinho.
   Woortmann  (1991) acrescenta que a atividade pesqueira não é a única prática desenvolvida  nessas comunidades, apesar das denominações “pesqueiras” e “marinhas” induzem a  esse pensamento. A manutenção social advém, também, da produção agrícola e do  cultivo de animais, considerados de responsabilidade feminina. A partir dessas  considerações, a autora estabelece uma analogia entre o ambiente espacial e a  divisão sexual do trabalho, revelando um dualismo nas relações homem/mar e  mulher/terra, representado na Figura 1. As considerações ressalvam a existência  de subdivisões do território capazes de criar uma nova interpretação sobre as  relações de gênero.
Admite-se a  dominação masculina no “mar de fora”, simbolizando o espaço representativo do  conhecimento, da força e das habilidades no manejo da pesca e, de forma  semelhante, a dominação feminina ocorre nas “terras de roça”, pautados nas  atividades agrícolas (WOORTMANN, 1991). Além disso, considera a existência de  ambientes de cooperação mútua, onde homens e mulheres podem desenvolver  diferentes atividades produtivas.
   A  participação feminina nas atividades de pesca ocorre, sobretudo, em espaços  intermediários, entre a terra e o mar, ou seja, no “mar de dentro”, onde se  situam as praias, rios e mangues. Esse fato é decorrente da necessidade das  mulheres permanecerem próximas de suas casas, priorizando o bem-estar da  família. De acordo com Maneschy (2000, p. 88):
[...] muitos dos trabalhos assumidos por mulheres em comunidades pesqueiras apresentam como características a variabilidade no tempo e no espaço, a irregularidade na demanda, sua compatibilização com as tarefas domésticas e, por consequência, a dificuldade de contabilizar o tempo de trabalho.
Isso posto, adiante será detalhado como funciona a organização do trabalho feminino em uma comunidade pesqueira tradicional, localizada no sul da Bahia.
3.1 A organização do trabalho na comunidade de Pedras de Una, sul da Bahia
A pesquisa-ação foi realizada na comunidade de Pedras de Una, localizada no município de Una, sul da Bahia (Figura 2). A atividade pesqueira nesta localidade é favorecida pela posição geográfica e pela diversidade biológica, próxima ao Oceano Atlântico, do Rio Una, e de uma extensa faixa de manguezal. Além disso, a comunidade está localizada próxima de duas áreas de conservação ambiental: o Refúgio de Vida Silvestre de Una e a Reserva Extrativista de Canavieiras.
Estima-se  uma população de 950 habitantes, dos quais 90% têm a pesca como principal fonte  de renda. A comunidade de Pedras de Una é caracterizada como uma comunidade  tradicional, com fortes raízes culturais. A pesca não representa apenas um meio  de subsistência, ela é uma manifestação cultural e uma representação do  tradicionalismo passado entre gerações. Atualmente, é possível identificar  famílias com três gerações trabalhando de forma ativa na pesca local.
   A produção  pesqueira é de pequeno porte, caracterizada como artesanal, pois se utilizam de  instrumentos e petrechos de pesca rudimentares, tais como linha, tarrafa, rede,  cujo a confecção e o reparo são realizados pelos próprio pescadores. Diante dos  desafios que ameaçam a atividade pesqueira e a reprodução cultural na  comunidade, foi criada em 1998 a Associação de Pescadores e Marisqueiras de  Pedras de Una (AMEPEDRAS), com o intuito principal de fomentar práticas que  contribuíssem para o desenvolvimento econômico e produtivo da pesca e do  extrativismo. O grupo formado por homens e mulheres residentes na comunidade. 
   A pesca ainda é uma  atividade predominantemente masculina, devido ao perigo a atividade em alto  mar, e a necessidade de força física na condução na puxada das redes. As  mulheres praticam a atividade da pesca próximas as suas residências, ondem  dividem o tempo com os cuidados do lar e dos filhos. Há uma clara divisão do  trabalho entre os gêneros, conforme demostrado na Tabela 1.
   
            Observa-se,  portanto, um predomínio das mulheres na mariscagem, atividade desenvolvida nos  manguezais, o que denota a contribuição feminina para a manutenção da cadeia  produtiva da pesca artesanal.
              Foram  identificados vários fatores que afetam, negativamente o trabalho feminino  nessa cadeia: (i) baixo nível de escolaridade das marisqueiras; (ii) presença  de atravessadores durante a comercialização; (iii) técnicas rudimentares de  beneficiamento dos mariscos; (iv) ausência de equipamentos de proteção  individual (EPI), e de técnicas de correção da postura durante o trabalho; (v)  desconhecimento dos seus direitos trabalhistas. Além desse o ambiente social,  afeta diretamente o cotidiano dessas mulheres, tais como exposição a violência  doméstica, 
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente  estudo possibilitou identificar a importante da mulher para a manutenção da  cadeia produtiva da pesca artesanal. A marisqueiras e pescadoras, assim como  todas as mulheres, buscam o reconhecimento do seu trabalho diante da sociedade,  para que possam auferir de seus direitos legais. Observa-se ainda a dupla  jornada dessas mulheres, que se dividem em o trabalho doméstico e a atividade  pesqueira. Entretanto a invisibilidade do trabalho feminino é fruto de uma  percepção errônea da sociedade, que a veem com sinônimo de fragilidade e  subordinação ao ambiente familiar e ao homem. Em comunidades tradicionais, a  divisão do trabalho e a hierarquização entre os gêneros ocorre de forma mais intensa,  exaltada pela forte presença cultural e do tradicionalismo histórico desses  povos.
              
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** Professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (DCEC/UESC). Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente pela UESC. E-mail: jcpandrade@uesc.br
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