Observatorio de la Economía Latinoamericana

 


Revista académica de economía
con el Número Internacional Normalizado de
Publicaciones Seriadas  ISSN 1696-8352

ECONOMÍA DO BRASIL

 

A EXPERIÊNCIA DOS ANOS 1990 DA INDÚSTRIA DE ENERGIA ELÉTRICA BRASILEIRA: PRIVATIZAÇÃO E EXPANSÃO
 

José Paulo Vieira
zep@usp.br
Nivalde José de Castro
nivalde@ufrj.br
Sinclair Mallet-Guy Guerra
sguerra@iee.usp.br




RESUMO

A reforma da indústria brasileira de energia elétrica dos anos 1990, que incluiu a privatização de concessionárias e a constituição de um marco regulatório, não conseguiu equacionar adequadamente a expansão dessa indústria, incapacidade que levou à crise do racionamento de 2001. O principal objetivo deste artigo se concentra em revisar a concepção e implantação dessas reformas e examiná-las no contexto da problemática da expansão setorial. A metodologia empregada consiste em analisar as mudanças e seus efeitos a partir de levantamento de dados e informações em instituições públicas e privadas. Os resultados indicam que o processo brasileiro de reformas e privatização da energia elétrica dos anos 1990 frustrou as promessas de que seria a solução para ampliar os investimentos na expansão dos serviços.

Palavras-chave: Eletricidade, Privatização, Globalização, Investimentos

Classificação JEL: Q43

ABSTRACT

The reform of the Brazilian electrical industry (BEI) of the 1990 included extensive process of privatization of utilities. The modeling of this process was directly associated with the establishment of a regulatory framework, but failed to properly consider its expansion, inability that led to rationing in 2001. The main objectives of this article focuses on the design and deployment of these reforms and examine them in the context of the problem of expanding sector. The methodology consists of analyzing the changes and their effect on the survey data and information in public and private institutions. The results indicate that the process of reforms and privatization of BEI 1990s foiled the promises that the solution would be to increase investments in the expansion of services.

Key words: Electricity, Privatization, Globalization, Investments

JEL Classification: Q43

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Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Paulo Vieira, José de Castro y Mallet-Guy Guerra: A experiência dos anos 1990 da indústria de energia elétrica brasileira: privatização e expansão, en Observatorio de la Economía Latinoamericana, Número 152, 2010. Texto completo en http://www.eumed.net/cursecon/ecolat/br/


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo central analisar a reforma do setor elétrico brasileiro (SEB) , dos anos 1990. Tal reforma pretendeu criar um novo ambiente de mercado capaz de garantir os investimentos necessários à expansão do sistema através exclusivamente da iniciativa privada. A concepção desse modelo requeria alterações substanciais na legislação de modo a construir um novo ambiente institucional que, via introdução de mecanismos competitivos e privatização de concessionárias, aumentaria a eficiência técnica e econômica do setor, viabilizando a atração de capitais privados necessários e estratégicos para a expansão da capacidade instalada em geração e transmissão.

O processo de privatização do SEB foi marcado por forte desnacionalização a partir da entrada de grandes grupos econômicos, atuantes em vários setores e países, o que resultou em significativa alteração na estrutura de mercado. A entrada de grupos estrangeiros era esperada e estimulada pelas autoridades públicas da área econômica dada a necessidade de divisas para ajudar no processo de ajuste macroeconômico. A hipótese central do estudo é que foi criado um conflito de base entre as fragilidades da regulamentação e a modelagem dos processos de privatização o qual explica, em grande parte, a carência de investimentos e a inadequação do modelo no que se refere à expansão da capacidade instalada.

Este trabalho está estruturado em quatro partes. Na primeira analisa-se a modelagem adotada nas privatizações. Na segunda analisam-se os principais objetivos da reforma e regulamentação do SEB nos anos 1990. A terceira parte é dedicada à análise dos impactos resultantes destas mudanças, na economia do país e no SEB, e na última parte são apresentadas as conclusões que atestam a precária atuação dos grupos entrantes com relação aos investimentos necessários para a expansão do SEB.

Parte I: A modelagem dos processos de privatização

Pode-se considerar que o processo de privatização foi efetivamente iniciado no ano 1990, especialmente pela promulgação do Programa Nacional de Privatização e edição da Lei nº 8031 de 12 de abril, cujo artigo 1º definia como objetivos “fundamentais”:

I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público;

II - contribuir para a redução da dívida pública, concorrendo para o saneamento das finanças do setor público;

III - permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada;

IV - contribuir para modernização do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia;

V - permitir que a administração pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais;

VI - contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa.

Desta forma, os objetivos da privatização estavam subordinados e articulados com:

i. re-orientação do papel do Estado - incisos I e V;

ii. “equilíbrio fiscal” - inciso II; e,

iii. atração de investidores e capitais privados – incisos III, IV e VI.

No que tange à retomada dos investimentos (inciso III), convém destacar que as dificuldades de investir das empresas estatais, em grande medida, eram decorrentes da crise financeira internacional, que afetou negativamente a capacidade de financiamento e investimento destas empresas, iniciada pelo aumento das taxas de juros dos títulos públicos dos EUA e reafirmada pela Crise Mexicana, na década de 1980. Todavia, a situação econômico-financeira das empresas do SEB foi significativamente melhorada após o encontro de contas e as demais disposições da Lei nº 8631 de 1993, conforme será analisado no item 2.1.

Assim, a partir da Lei 8631/93 foi o “imperativo fiscal” – a arrecadação de recursos para o ajuste macroeconômico – que presidiu e justificou a modelagem da privatização do SEB. Foram adotadas inúmeras medidas com o objetivo de maximizar o valor dos ativos a serem leiloados a fim de aumentar, simultaneamente, a atração de capitais privados e maximizar a receita extra-orçamentária.

Desta forma, os editais de privatização do SEB estimularam ampla participação dos interessados nos leilões, mesmo através de pessoas jurídicas isoladas, nacionais ou estrangeiras, ou mesmo quando os participantes formavam um grupo de empresas através de Sociedades de Propósito Específico (SPE´s) .

Os editais permitiram, adicionalmente, que os controladores das SPEs fossem empresas offshore, constituídas em paraísos fiscais. Foi também permitido que as SPE´s assumissem o caráter non-recourse, ou seja, suas responsabilidades não podiam ser transferidas aos seus controladores. Segundo Camargo Penteado:

“a empresa offshore pode ser conceituada como uma pessoa jurídica que opera fora dos limites territoriais onde está localizada. [ela] não tem forma jurídica determinada, podendo se revestir da forma e tipo que se amoldem às necessidades de cada caso específico para atingir a sua finalidade principal que é servir seus sócios, outras empresas ou até mesmo controlá-las.” (2004, p. 32)

Isso foi verificado no leilão que alienou o controle acionário da Eletropaulo para a Lightgás Ltda., subsidiária da Light que foi criada apenas para participar desse leilão. O único ativo que a Lightgás veio a deter, vencendo o leilão, foram ações ordinárias da Eletropaulo e sua única receita passou a ser o recebimento de dividendos pagos por essas ações. Portanto seus novos controladores (AES, EDF, Houston Energy e CSN) não aportaram nenhum capital próprio nesse leilão, pois obtiveram empréstimos:

i). do BNDES, de 50% do preço mínimo; e,

ii). de um sindicato de bancos, obtido por meio de uma subsidiária sediada nas Ilhas Cayman (LIREnergy Limited).

No nível mais geral a modelagem dos processos de privatização seguia recomendações do FMI, as quais enfatizavam a importância de se privatizar rapidamente, em função da emergência do ajuste macroeconômico, que implicaria que as questões relacionadas à concorrência e regulamentação poderiam ser tratadas mais tarde. Todavia,

“o perigo aqui é que uma vez que um interesse real tenha sido criado, ele passe a contar com o incentivo e os recursos financeiros para manter sua posição como monopólio, passando por cima da regulamentação e da concorrência e distorcendo, no percurso, o processo político”.

Essa situação de um novo grupo, entrante, ampliar seu poder de mercado através da privatização efetivamente ocorreu em leilões paulistas. A privatização da Eletropaulo despertou inúmeras inquietações decorrentes da sua modelagem: “O risco maior é criar um monopólio privado ao privatizar o monopólio estatal na área de distribuição”, alertava editorial da Folha de SP, ressaltando: “a privatização a toque de caixa, em ano eleitoral, em um governo estadual cujo mandatário disputa a reeleição, deve ser rigorosamente fiscalizada. Mas como fazê-lo se os órgãos federais de regulamentação ainda não podem ou não conseguem cumprir o seu papel?”.

Não obstante os alertas, no dia 15/4/1998 a Eletropaulo foi adquirida pelo preço mínimo pela EDF (Électricité de France), grupo estatal recém entrado no país através aquisição da Light/RJ. De modo similar se deu a venda em 17/9/1998 da Empresa Bandeirante de Energia, pelo preço mínimo, para a CPFL (que no ano anterior havia passado à gestão de um consórcio de grupos privados), aliada à EDP, Eletricidade de Portugal.

Por conseguinte, considera-se que a modelagem da privatização do SEB concedeu privilégios e reduziu garantias e seguranças jurídicas em desacordo com as correspondentes responsabilidades, relacionadas ao vulto e à complexidade da gestão dos serviços que estavam sendo concedidos. Os elevados fluxos de recursos que ingressaram nos países emergentes, principalmente por conta das privatizações, estavam relacionados à deflação da riqueza que afetava os países desenvolvidos desde os anos 1980 e, portanto à busca de melhores rendimentos. À situação de sobre liquidez e reduzidas taxas de juros, juntou-se a oportunidade de comprar, nos países emergentes, ações depreciadas, empresas públicas quebradas e empresas privadas em dificuldades.

Parte II: Regulamentação e reforma do SEB nos anos 1990

2.1. Ajuste e adequação das Empresas do SEB: a Lei 8631/93

Etapa fundamental do processo de ajuste e adequação das Empresas para a privatização foi vencida com a edição da Lei nº 8631/1993. Esta, além de equacionar a crise setorial, através de amplo ajuste patrimonial e financeiro das empresas, através da chamada Lei Eliseu Rezende, promoveu importantes alterações na regulação econômica do SEB. Dentre elas merecem ser destacadas:

i. fim do regime de “remuneração garantida” até então vigente ;

ii. substituição da sistemática de fixação das tarifas – do tradicional regime do “serviço pelo custo”, baseado na integral recuperação dos custos reconhecidos e no direito à remuneração legal assegurada sobre os ativos – pela “tarifa pelo preço” que não garantia mais uma taxa mínima de remuneração;

iii. fim da equalização tarifária nacional, criada em 1974 com a finalidade de reduzir as desigualdades regionais. Desta forma, as tarifas voltaram a ser fixadas individualmente para cada concessionária, conforme as respectivas fórmulas paramétricas e estruturas de custos.

Observe-se que a Lei nº 8631/93 era parte indissolúvel das mudanças em curso da reforma setorial e a privatização das empresas do setor elétrico:

“Com elas (estas medidas) estaremos propondo (sic) a Vossa Excelência a racionalização do setor empresarial ligado à energia elétrica, inclusive com a fusão de empresas e sua eventual privatização – tudo para restaurar o seu dinamismo e permitir o aporte de capitais privados ao setor” e “cumpre-nos destacar que as medidas ora propostas são pré-requisitos importantes na preparação do setor para encontrar o melhor arranjo de seu modelo institucional, dentro da nova legislação que virá sobre a outorga de concessão de serviços públicos, ora em andamento no Congresso Nacional, visando sua modernização, sempre em consonância com os propósitos de incremento da qualidade e produtividade das empresas e com a alta responsabilidade social desse segmento da infra-estrutura nacional”.

A Lei 8631 literalmente acabou com a crise financeira do SEB, já que ela “resultou em imediata melhoria dos resultados econômico-financeiros das concessionárias do setor”. Em 1995 as Empresas do SEB exibiam “uma situação de excepcional solidez econômica, caracterizada por amplas margens de comercialização e pelo indicador de endividamento (dívida/ativo) de apenas 14,43% para o total das concessionárias”. Sob a lógica que dava ênfase à privatização, Peano (2005) destaca que as empresas ficaram “atrativas para venda”: “A partir dessa mudança (Lei 8631) foi possível implantar a recuperação e o rebalanceamento tarifário do setor com vistas à privatização das concessionárias de energia, prevista no PND” (cf. Vieira, 2007, pp.78 e 291).

Por outro lado, segundo Amaral Filho, as razões microeconômicas, fundada na crítica situação financeira das empresas, “não mais podiam ser justificativas para a privatização, a qual passou a buscar suas motivações na arrecadação de recursos fiscais e na adaptação às recomendações de políticas de “ajustamento estrutural’ feitas pelas instituições financeiras internacionais” (2007, p.95).

2.2. A regulamentação do SEB nos anos 1990

A evolução institucional do SEB, nos anos 1990, registra a construção de um novo ambiente no qual a introdução de mecanismos competitivos objetivava possibilitar maior eficiência técnica e econômica, e assim, viabilizar a atração de capitais privados que seria a única fonte de investimento para a expansão da capacidade instalada.

Esse objetivo estruturante norteava a Lei 8.987/95 (Lei das Concessões) que, em seu artigo 29, incumbiu o poder público de incentivar a competitividade privada. Esse preceito foi reiterado na lei que criou a ANEEL (Lei 9.427/96) e no decreto de sua regulamentação (Decreto 2.335/97), confirmando a intenção do governo federal e dos legisladores de fomentar a competição, através unicamente dos agentes privados. O movimento estratégico para se atingir este objetivo era adotar a política de privatização através de leilões. A Lei 9.074/95 antecipou as bases do novo modelo competitivo para o setor elétrico, instituindo a competição na geração e transmissão, via leilões, e na comercialização, via o livre acesso às redes elétricas. Para tanto, foram concebidos um operador independente e uma agência reguladora, e foram criados dois mercados: o de consumidores cativos, atendido pelas empresas concessionárias de distribuição e o ambiente para o chamado consumidor livre.

O avanço institucional do novo modelo foi reforçado com a promulgação da Lei 9.427/96, que criou a ANEEL, órgão regulador do setor em nível federal, e com o início das privatizações no segmento da distribuição, iniciadas com a ESCELSA (1995) e a Light (1996). As privatizações inauguraram o novo regime tarifário baseado na garantia de prazo mínimo de preservação do valor das tarifas, através de reajustes automáticos, conforme índice inflacionário, e o repasse de custos não controlados para os consumidores. Tal regime tarifário incluiria uma revisão periódica tendo por base a aplicação de um redutor tarifário (fator “X”) que objetivava repartir com o consumidor os ganhos de produtividade obtidos pela concessionária nesse período .

A Lei Federal 9.648, de 28 de maio de 1998, marca a definição mais abrangente do novo modelo do SEB resultante das reformas então em curso, pois definiu as regras de entrada, as tarifas e a estrutura de mercado. Nesse novo modelo foi estabelecida a forma de comercialização de energia elétrica, na qual as empresas geradoras venderiam sua produção através do mercado atacadista de energia (MAE), organização privada criada para centralizar os contratos de curto, médio e longo prazo, inclusive de produtores independentes de energia (PIEs).

Como a lógica do novo modelo era focada no setor privado, pretendia-se transferir ao mesmo todas as responsabilidades de planejamento e decisões dos investimentos. Neste sentido, inúmeros dispositivos e instrumentos foram criados para garantir, proteger e ampliar a lucratividade, de modo a viabilizar e estimular as ações do capital privado. Um exemplo dessa estratégia está no § 7o do artigo 15 da Lei 9.074:

“As tarifas das concessionárias, envolvidas na opção do consumidor, poderão ser revisadas para mais ou para menos, quando a perda ou ganho de mercado alterar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.”

Observe-se que este dispositivo legal protege o capital privado contra “a perda de mercado”, não obstante este risco seja implícito de qualquer negócio e, portanto, seria intrínseco à gestão privada assumi-lo .

Diversos dispositivos legais cuidaram de assegurar condições especiais aos consumidores livres, assim definidos os clientes do serviço de energia elétrica com maior consumo e que optem, voluntariamente, por esta condição. O artigo 15 da Lei 9.074 estabelece condições para que os consumidores livres negociem sua necessidade de energia elétrica com qualquer fornecedor.

No artigo 6o da Lei 8.987, que disciplina o serviço adequado, o texto final fez uma pequena exclusão redacional (apresentada a seguir, em negrito) que da mesma forma objetivava reduzir as exigências para as futuras concessionárias, não obstante se colocasse em sentido contrário ao objetivo maior do texto conforme o § 2o: “A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço. ... na medida das necessidades dos usuários.”3

Os artigos de que tratam as possíveis “intervenções do poder concedente” (artigos 32, 33 e 34 da Lei 8.987) denotavam maior cuidado em não ocasionar prejuízos às concessionárias do que uma efetiva preocupação com o rigor e competência da fiscalização. Nesse mesmo sentido, foi grande a preocupação em reiterar que as concessionárias têm o legítimo “direito de ampla defesa” e, além disso, terão assegurados o “direito à indenização” e à “prestação de contas pelo interventor”, que “responderá pelos atos praticados durante sua gestão”.

No mesmo sentido, quando em seu artigo 30 trata da “fiscalização do serviço” a Lei 8.987 define fiscalizações a serem feitas “periodicamente”, por “comissão de representantes”, sem que fique determinada a periodicidade nem qual a composição dessa comissão. Destarte, os prazos em aberto permitem que as fiscalizações ocorram de forma assimétrica e sem objetivos e métodos. Por outro lado, a não definição dos componentes da comissão fiscalizadora pode transformar as visitas em peças meramente formais. O artigo 33 da Lei 9.074, que trata da fiscalização por parte dos usuários ou dos documentos informativos a serem disponibilizados ao público, merece a mesma ordem de considerações .

Esta configuração legal tão propícia e favorável ao capital privado, ator principal do novo modelo, deve ser entendida em um duplo sentido. O primeiro, mais evidente refere-se ao processo de atração do capital privado. Assim foram dadas condições especiais, e únicas, na economia brasileira para o investimento no setor. A segunda, pouco referida, conforme assinalado por Castro e Fernandez (2007) buscava gerar recursos extra-orçamentários, via os leilões, para mitigar os graves desequilíbrios macroeconômicos que o país atravessava ao longo dos anos 1990.

Parte III - Conseqüências da reforma e das privatizações

3.1. Resultados da forma de modelagem das privatizações do SEB

A privatização do SEB, sob a lógica das reformas econômicas dos anos 1990, implicou mudanças na estrutura e concentração de mercado sem que o ingresso de capital estrangeiro resultasse em aumento da capacidade produtiva. Esta incapacidade implicou diretamente na crise do racionamento de 2001 (conhecido como Apagão).

Uma estratégia exeqüível, praticada em diversos países, enfatizava o fomento para que empresas nacionais buscassem a modernização e integração à base nacional, via Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e Educação. Em sentido inverso, a reestruturação brasileira do SEB partiu do pressuposto de que a simples entrada de investimentos estrangeiros diretos (IED’s) poderia reconduzir a economia ao crescimento econômico e desenvolvimento social.

Todavia, considera-se que o IED representa instrumento de conquista de mercados com menores custos. Para isso utiliza-se da base econômica local da empresa investidora, e concentra as áreas críticas, como P&D, gestão, planejamento e estratégia, junto aos seus acionistas na matriz. Por conseguinte, a modelagem brasileira de conceder ao IED condições mais vantajosas do que as proporcionadas às companhias nacionais foi exatamente o contrário da concepção da competitividade sistêmica, a qual objetiva construir autonomia e inserção internacional com reflexos positivos para o desenvolvimento.

As reformas brasileiras dos anos 1990 impactaram negativamente várias cadeias produtivas, pois ao invés de gerar investimentos em ganhos de produtividade baseados em aumento de economia de escala e eficiência em gestão empresarial e tecnologia — ou gerar inovação em processos e produtos —, enfatizaram ganhos de produtividade pela diminuição da quantidade de trabalho, via demissões, terceirização e importação de soluções tecnológicas advindas do exterior. O resultado prático dessa política atingiu no curto prazo, a renda do mercado — via demissões e terceirizações a custos mais baixos — e, no longo prazo, as contas públicas, pela ampliação de importações e das remessas de lucros e dividendos.

Por conseguinte, o processo brasileiro de privatização provocou diminuição da quantidade de trabalho, disseminação de processos de terceirização e importação de soluções tecnológicas advindas do exterior, com o suposto propósito de que seriam ampliados os ganhos de produtividade. A alternativa, qualitativamente distinta, priorizaria a busca de ganhos de produtividade baseados em aumento de economia de escala e eficiência em gestão empresarial e tecnologia — ou gerar inovação em processos e produtos.

Tais políticas empresariais, efetivadas por incentivo ou fomento do Estado nacional, modificaram profundamente a lógica de reprodução da indústria de energia elétrica. As resultantes foram aumentos despropositados na lucratividade ou impactos negativos sobre setores e regiões, com perdas na lógica da eficiência macroeconômica das reformas, de que decorrem impactos indiretos para o consumidor.

3.2 Impactos na gestão das Empresas do SEB e explosão do endividamento

Os gestores das concessionárias de eletricidade entrantes passaram a enfatizar outras prioridades que não a expansão do sistema, quase que totalmente vinculados à lógica de maximização do retorno de curto prazo ou de ampliação do poder de mercado. Assim, passaram a direcionar seus investimentos, sobretudo para a compra de participação acionária em outras companhias do setor. Essa estratégia estava vinculada ao ganho de participação de mercado, pela compra de participações acionárias, o que provocou forte aumento do endividamento das concessionárias privatizadas.

Além da aquisição de participações em outras empresas, a prioridade dos novos gestores foi a remuneração dos controladores – distribuição de lucros –, o que os levou à excessiva alavancagem financeira: “a AES Eletropaulo tem uma dívida de US$ 3,7 bilhões, quase duas vezes o seu patrimônio líquido. Mas desde que foi privatizada, em 1998, nunca deixou de pagar dividendos” . No início do ano de 2003 uma reportagem de László Varga concluiu que “boa parte da atual crise das empresas de energia elétrica foi causada pela má gestão das companhias” (Folha de S.Paulo, 02/4/2003, pág. B10). A Economática constatou que o patrimônio de 21 empresas do SEB “caiu pela metade em 4 anos” e, nesse mesmo período – 1998 a 2002 –, a participação das dívidas em relação aos seus patrimônios saltou de 30% para 80%”. Estudo dos autores com amostragem relevante ilustra, nos Gráficos 1 e 2, essa explosão do endividamento das empresas privatizadas do SEB.

Uma conseqüência lógica dessa dinâmica foi o sub-investimento das empresas do SEB. O gráfico 3 ilustra o “hiato do investimento” desde 1992, o qual se agrava a partir de 1995. Em síntese, nesse período o consumo de energia elétrica cresceu cerca de 4% ao ano, contra 3,3% da capacidade instalada. O gráfico 3 ilustra o hiato para o período de 1992 a 1999, devido ao crescimento do consumo de energia de cerca de 36%, contra cerca de 26% de expansão da capacidade instalada de geração de energia elétrica.

O Gráfico 4 detalha os componentes desse “hiato do investimento” conforme os principais setores consumidores: industrial, comercial e residencial. Constata-se que no período 1992-1999 o consumo industrial expandiu-se apenas 15,3%, a par dos crescimentos de 74,5% do consumo comercial e de quase 60% do consumo residencial. Esses dados indicam que uma crise mais grave do SEB só não ocorreu devido à semi-estagnação da indústria brasileira, cujas causas estavam intimamente vinculadas às condições macroeconômicas de desajustes e crises e aos impactos negativos das reformas econômicas sobre as cadeias produtivas, sucintamente abordadas a seguir, mas que requisitam aprofundamento em artigo específico.

O “hiato do investimento” representaria um déficit potencial de fornecimento de eletricidade, o qual foi atendido – em caráter provisório – pela redução progressiva dos reservatórios das usinas hidrelétricas, os quais são dimensionados para suportar oscilações normais nos níveis de investimentos ou da hidrologia. Todavia, cabe destacar que não houve oscilações anormais nas afluências hidrológicas, que nos anos 2000 e 2001 ficaram 5% e 12% abaixo da média histórica, mas nos 3 anos anteriores ficaram acima desta. Tais oscilações seriam perfeitamente gerenciáveis caso o planejamento e as operações do SEB fossem feitos de acordo com os fundamentos para os quais eles foram projetados e construídos, o que não ocorreu devido ao longo período de sub-investimento .

3.3 Impactos sobre o SEB e sobre a economia nacional

A reforma do SEB desconsiderou a importância da empresa de capital nacional, especificamente sua capacidade de criar e desenvolver o vínculo natural da cultura com o trabalho e a tecnologia, que propiciam bases para o desenvolvimento tanto da mais-valia quanto das dimensões industrial e sistêmica da energia. Foi minimizada a possibilidade de o SEB exercer política de compra de serviços, equipamentos, insumos e de implantação de políticas científicas, tecnológicas, de meio ambiente e de geração de renda e emprego no País e em regiões específicas. No que concerne à dimensão de estrutural e organizacional do SEB, além de endividamento, remessas e outras alterações assinalados, o modelo de privatização buscou impor a desverticalização das grandes empresas existentes, com o objetivo de estimular e viabilizar a concorrência no setor. Para tanto, as empresas estatais – federais e estaduais – foram desmembradas em companhias de menor porte, para posterior venda nos leilões, como pode ser exemplificado com o processo adotado para a Eletrosul.

Portanto, os efeitos das reformas do SEB se fizeram sentir tanto no âmbito da própria indústria quanto na sua participação como fator de competitividade para as demais cadeias produtivas, como pode ser ilustrado pela Figura 1.

CONCLUSÕES

A reforma do SEB dos anos 1990 implicou forte desnacionalização, ao impor condições negativas para as empresas brasileiras. Desconsiderando sua importância local, foram criadas condições que beneficiaram muito mais as empresas internacionais do que as tidas como “tradicionais” e “obsoletas” empresas nacionais. A atuação do Estado na regulamentação dos fatores, que objetiva criar as bases para a acumulação capitalista, neste caso privilegiou claramente as empresas de capital estrangeiro.

O poder econômico e a capacidade gerencial desses grupos entrantes passaram a contrastar com a fragilidade dos então incipientes órgãos de controle e regulação do país. Pode indicar que as transformações impostas ao SEB significaram um movimento de “desconstrução” do papel e funções do Estado mediante a utilização intensiva de mecanismos de privatização, descentralização, cortes e redução funcional. Em suma, a reforma dos anos 1990 desarticulou o aparelho estatal e diminuiu a organicidade e reduziu a capacidade de expansão do SEB.

Uma das conclusões de Joseph Stiglitz é que “Toda vez que as informações são imperfeitas e os mercados incompletos, ou seja, sempre, e principalmente nos países em desenvolvimento, a mão invisível (do mercado) funciona de maneira ainda mais imperfeita.” Assim, enfatiza a grande importância da existência de intervenções governamentais desejáveis que, a princípio, pudessem aumentar a eficiência do mercado, destacando que muitas das atividades-chave do governo podem ser compreendidas como respostas às falhas do mercado; “Se a concorrência fosse perfeita, não haveria nenhum papel a ser desempenhado pelas autoridades antitruste.” (p. 108)

Ao contrário do que indicaria Stiglitz, em nome das reformas econômicas dos anos 1990, promoveu-se um expressivo recuo do Estado nacional diante do fortalecimento da economia mundial e dos mercados. Tais reformas, cujo eixo foi mais “destruidor” do que “construtor”, desconsideraram os encadeamentos produtivos existentes no País; ao se desfazer de suas indústrias nacionais e das empresas de infra-estrutura, o Brasil incorreu em perda de eficiência sistêmica. Ao se desfazer de suas indústrias de infra-estrutura, desfez-se, por conseqüência, de toda uma estrutura de indústrias correlatas e de apoio, bem como das principais fomentadoras da base de conhecimento do País.

Em sentido contrário, o que o presente artigo defende é que uma postura diversa para as políticas públicas, com o Estado assumindo um papel mais atuante na coordenação e fomento do desenvolvimento social, o que se colocaria em linha com as práticas de países como os da Europa, Japão, Estados Unidos, a Coréia do Sul, que apresentam ação consistente para dotar os fatores de produção, promovendo a eficiência em infra-estrutura e fomento em P&D e Educação & Treinamento.

Nesse sentido, os agentes políticos e econômicos nacionais, locais ou regionais, aliariam seus interesses na busca do crescimento econômico, mais ainda sob a ameaça do capital externo entrante, ameaçando o controle das corporações nacionais. Às expensas de poupança interna forçada — via apropriação de mais-valia por impostos —, a economia brasileira estruturaria seu parque produtivo impulsionada por uma papel mais relevante do Estado na formação de infra-estrutura e fomento da base de conhecimento. Em ambos os casos, do básico ao avançado, os fatores sistêmicos da economia brasileira teriam o Estado como ator legítimo.

Dado que a competitividade das economias nacionais é algo mais que a simples agregação do desempenho de suas empresas, a reforma do SEB deveria ser conduzida sob a lógica da competitividade sistêmica do conjunto da economia do País, e não somente do âmbito intrínseco desse setor. Uma linha de fortalecimento sistêmico se daria pelo direcionamento de esforços públicos e governamentais para a constituição de atores globais brasileiros que, escorados no mercado interno, buscariam ocupar maiores espaços no exterior. Abrir-se-iam assim alternativas econômico-empresariais qualificadas para minimizar os impactos da reestruturação internacional sobre a economia brasileira. Um exemplo concreto e de sucesso deste movimento é exemplificado pela atuação da Petrobrás. Na mesmo sentido, embora de modo mais incipiente, o Sistema Eletrobrás criou uma área de atuação internacional focada na integração energética com países da América Latina.

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