Revista: Turydes Revista Turismo y Desarrollo. ISSN 1988-5261


A TURISTIFICAÇÃO DE SÃO MIGUEL DO GOSTOSO: A INTERNACIONALIZAÇÃO DA “CIDADE DOS VENTOS”

Autores e infomación del artículo

Marcelo da Silva Taveira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

marceloturismo@yahoo.com.br

Resumo: Este texto é um recorte teórico-metodológico da tese intitulada de “Turismo e comunidades de praia: São Miguel do Gostoso: no caminho do mar e na direção dos ventos” apresentada em 2015 junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN. Nesse sentido, faz-se importante discutir os dados empíricos, pesquisas bibliográfica, documental e de campo, e, por meio de diálogo junto aos acadêmicos e pesquisadores do campo científico que desenvolvem estudos sobre o fenômeno turístico contemporâneo. São Miguel do Gostoso é um importante destino de turismo de sol e praia do litoral potiguar, sobretudo, para a prática de esportes náuticos (kitesurf e windsurf) que dependem de condições climáticas, da presença e da intensidade dos ventos. Esse destino é conhecido, internacionalmente, pela a ação dos ventos alísios, que são propícios para a realização de diversos esportes de aventura, geração de energia eólica e o desenho da paisagem local. O objetivo central desse texto é promover a reflexão teórica sobre o desenvolvimento do turismo em São Miguel do Gostoso pela via do processo de turistificação, o que resultou em uma discussão sobre essa categoria conceitual em consonância com as evidências empíricas e nos estudos teóricos de Remy Knafou (1996).

Palavras-chave: São Miguel do Gostoso, Paisagem, Turistificação, Esportes. Internacionalização.

THE TOURISTIFICATION OF SÃO MIGUEL DO GOSTOSO: THE INTERNATIONALIZATION THE "CITY OF WINDS"

Abstract: This paper is a theoretical and methodological approach of the thesis titled "Tourism and beach communities: São Miguel do Gostoso: the way of the sea and in the direction of the winds" presented in 2015 by the Graduate Program in Social Sciences UFRN. In this sense, it is important to discuss the empirical data, bibliographic research, documentary and field, and through dialogue with the academics and researchers who develop the scientific field studies on contemporary tourist phenomenon. São Miguel do Gostoso is an important sun and beach tourism destination of the coast, especially for water sports (windsurfing and kitesurfing) that depend on weather conditions, the presence and intensity of the winds. This destination is known, internationally, by the action of the trade winds, which are conducive to making various adventure sports, wind power generation and the design of the local landscape. The central aim of this paper is to promote theoretical reflection on the development of tourism in São Miguel do Gostoso via the touristification process, which resulted in a discussion of this conceptual category in line with empirical evidence and theoretical studies of Remy Knafou (1996).
Keywords: São Miguel do Gostoso. Landscape. Touristification. Sports. Internationalization.



Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Marcelo da Silva Taveira (2015): “A turistificação de São Miguel do Gostoso: a internacionalização da “Cidade dos Ventos””, Revista Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 19 (diciembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/turydes/19/paisagem.html


Introdução

O turismo além de se espraiar pelo espaço litorâneo e se configurar como uma das principais atividades econômicas do Nordeste do Brasil, também se interioriza, incipientemente, para as demais regiões do Rio Grande do Norte, promovendo dessa forma, o surgimento de empresas especializadas, postos de trabalho, oportunidades de negócios e geração de divisas. O Rio Grande do Norte apresenta-se no mundo globalizado com uma oferta turística expressiva, estruturando territórios e efetivando políticas públicas para o ordenamento e fortalecimento da atividade turística em todas as regiões geográficas do estado, especialmente na faixa litorânea, a qual abrange a instância de governança turística “Polo de Turismo Costa das Dunas”, cujo território que concentra a maioria dos atrativos e serviços turísticos especializados no segmento de Turismo de Sol e Praia.
A pequena e “pacata” vila de pescadores como é conhecida até os dias atuais, foi distrito do município de Touros (denominada na época de São Miguel de Touros), situando-se na divisa dos territórios dos municípios de Parazinho e Pedra Grande, limites geográficos que até a presente data é motivo de discussão política e impasses entre os gestores públicos e populações residentes desses municípios. Emancipado no ano de 1993, adquiriu juridicamente, o status de cidade, de município independente, agora São Miguel do Gostoso, o que provocou transformações profundas na organização espacial, na configuração geomorfológica, sobretudo, na paisagem, principal atrativo turístico da recente cidade.
São Miguel do Gostoso é o terceiro destino turístico mais visitado do Rio Grande do Norte, depois de Natal e Pipa (destinos indutores segundo o Ministério do Turismo), mas ganha a cada ano mais expressão internacional no segmento de turismo de aventura de natureza náutica como Kitesurf1 e Windsurf 2, atividades de expressiva relevância econômica e turística na região. Os esportes de aventura que têm como pano de fundo além dos ventos, outros elementos da natureza como o sol e o mar, apresentam-se no contexto atual, especialmente, a partir dos anos 2000, como uma verdadeira coqueluche para a atração de turistas nacionais e internacionais, que visitam a cidade ao longo do ano.
A partir dos anos de 2010, outras atividades de aventura também começaram a ser praticadas com maior frequência pelos visitantes como: Stand Up Paddle, cicloturismo e trilhas ecológicas são alguns dos exemplos. As atividades têm influenciado o aumento do fluxo turístico diversificando a oferta de atividades desenvolvidas na natureza.
A localização geográfica de São Miguel do Gostoso é o principal diferencial competitivo no cenário turístico, pois se situa na chamada “esquina do Brasil”, ponto mais próximo dos continentes africano e europeu, justificado também pela frequência e intensidade dos ventos alísios durante o ano inteiro, o que faz com que a alta temporada turística local se estenda por seis meses (setembro a fevereiro), aproximadamente.
São Miguel do Gostoso (figura 1) é um dos 167 municípios do Rio Grande do Norte e está localizado a 102 km da capital potiguar (Natal), na Mesorregião Leste Potiguar e Microrregião Litoral Nordeste, cuja área territorial total é de 343,750 km². Limita-se ao Norte com o Oceano Atlântico, ao Sul e Leste com o município de Touros e ao Oeste com os municípios potiguares de Pedra Grande e Parazinho. (IDEMA 3, 2008).
A população residente de acordo com o Censo 2010 do IBGE era de 8.670 habitantes e a estimava populacional para o ano de 2014 foi de 9.333 moradores, aproximadamente (Estimativas da população residente com data de referência 1º de julho de 2014, publicada no Diário Oficial da União em 28/08/2014). Com uma localização privilegiada do litoral potiguar, região conhecida popularmente como “esquina do Brasil ou do continente”, encontra-se próximo ao km 0 da BR 101, tendo como principal acesso a Rodovia Estadual RN 221 (via de acesso entre a BR 101 e a sede municipal de São Miguel do Gostoso). O município possui as seguintes coordenadas geográficas: latitude = 5º 07’ 29” Sul e longitude = 35º 38’ 21” Oeste. Tais coordenadas contribuem para a presença de ventos fortes e contínuos na região de São Miguel do Gostoso, assim como a localização geográfica privilegiada, ou seja, na “esquina do continente sul-americano”, o que tem contribuído de forma determinante para a prática de esportes e atividades de aventura nas praias do município.
No que concerne ao plano metodológico, a pesquisa aborda técnicas distintas que se fundamentam no levantamento preliminar de referências bibliográficas sobre o objeto estudado, porém estas são consubstanciadas pelo caráter empírico de observações que foram realizadas in loco e por meio da realidade vivenciada durante as atividades de campo para o levantamento dos dados primários.
   A pesquisa documental foi realizada por meio de consultas a textos oficiais de órgãos públicos como o IBGE e IDEMA, o que subsidiou a construção deste trabalho por meio de um conjunto de dados sobre o município de São Miguel do Gostoso.
Os estudos de Remy Knafou foram revisitados para uma melhor compreensão do processo de turistificação, o que possibilitou por meio de aprofundamento teórico e análises críticas, a pujança de mais uma contribuição a respeito dos estudos sobre esse relevante tema, que tem sido caro para os pesquisados no campo do turismo e áreas afins.
              Sendo assim, fez-se necessária a reflexão teórica a partir deste ponto para uma melhor compreensão dos efeitos da atividade turística via processo de turistificação, impulsionado pela internacionalização do turismo em São Miguel do Gostoso e, por conseguinte, a apresentação de algumas evidências empíricas, resultados de pesquisas de campo de natureza qualiquanti.

1 O turismo e a cidade dos ventos

O desenvolvimento do turismo em territórios mundiais, focado no “Modelo de Turismo de Sol e Praia” como se referem diversos autores dessa área de conhecimento, inclusive nos discursos e documentos oficiais do Ministério do Turismo, ganha cada vez mais notoriedade na perspectiva econômica internacional e nacional, dada a importância na economia de vários países, especialmente, nos espaços de produção e reprodução da atividade turística em proporções de menor envergadura territorial como é o caso das médias e pequenas cidades do nordeste brasileiro (Taveira, 2015).
O turismo além de ser uma atividade econômica, também é um fenômeno sociocultural, e como tal, é construído, historicamente, pela ação dos sujeitos sociais e agentes econômicos por meio de processos capitalistas que evoluem no decorrer dos anos, sofrendo as intempéries globais e influenciando as particularidades locais. Portanto, as relações capitalistas produzidas na sociedade são também de natureza dialética, como são os discursos teóricos e a realidade empírica do turismo.
O turismo na “cidade dos ventos” ou em “Gostoso”, como é comumente conhecida entre turistas e residentes, projetou-se, internacionalmente, como destino de turismo especializado em turismo de aventura e de esportes de natureza náutica, a partir da década de 2000, após ser contemplada com investimentos do poder público e da inciativa privado, o que contribuiu com a melhoria da infraestrutura urbana e com a rede de serviços da cidade. A presença constante dos ventos alísios que desnudam o litoral de São Miguel do Gostoso é a responsável pela instalação de parques eólicos (figura 2) de capital nacional e estrangeiro, atraindo grandes investimentos e gerando efeitos economicamente viáveis e, socialmente insustentáveis em longo prazo.
Os esportes windsurf (figura 3) e kitesurf (figura 4) são os principais responsáveis pela atração de turistas brasileiros e estrangeiros, o que movimenta a economia e a vida cotidiana desse destino turístico, que passa por intenso processo de turistificação, promovido pelas políticas públicas setoriais, agentes de mercados, residentes e turistas, atores que fazem parte desse processo. Os ventos são os atributos naturais, a força motriz para o desenvolvimento dessas modalidades esportivas, ambientalmente, preservados e desenhados por paisagens autênticas que despertam o interesse nos turistas o interesse pelo consumo do conjunto natural que a compõem (clima, relevo, praias, ventos e o sol).
Os esportes ilustrados nas imagens mencionadas são praticados por nativos e visitantes nacionais e estrangeiros, sendo uma das principais fontes de riqueza do turismo local, impulsionado o comércio da cidade e a rede de serviços turísticos. Os ventos também são responsáveis pela matriz energética da região e contribui para a dinâmica da economia local por meio de instalação de parques de energia eólica, que aquece o setor econômico, mas também promove impactos ambientais, especialmente na paisagem, e de ordem social devido o aumento do fluxo de trabalhadores que circulam, diariamente, na cidade.

3 O processo de turistificação em São Miguel do Gostoso

O conceito turistificação defendido aqui como processo, condição necessária e inerente ao desenvolvimento da atividade turístico em determinado espaço geográfico, é discutido neste trabalho com base nos pressupostos teóricos relativos ao domínio do território pelo fenômeno turístico, que é materializado pela práxis (fusão de teoria e prática) de ordem econômica e política.
É fundamental entender de que forma a intervenção estatal por meio de políticas públicas de turismo repercute em espaços litorâneos em processo de turistificação ou já turistificados, e como essas políticas aceleram a segregação espacial e acentuam, ainda mais, as desigualdades socioculturais das comunidades existentes nas localidades litorâneas contempladas na pesquisa.
Segundo Almeida Filho (2014, p. 16) a turistificação é percebida como sendo “como o processo de implantação da infraestrutura turística em lugares com potencial turístico, ou seja, é a apropriação deste espaço, bem como a transformação, para atender aos interesses de pessoas de outras localidades que praticam o turismo”.
O conceito apropriação é empregado para designar o uso cotidiano que é dado ao território, motivado pelas novas lógicas de uso impostas pelo turismo. Para Cruz (2001, p. 75): “o uso efêmero desses espaços e a inserção dessa nova atividade econômica na vida do lugar, impõe-lhe transformações, uma adaptação à nova realidade em construção”. Tomada esta explicação como premissa teórica, discutiremos sobre como se dá a apropriação do território para o uso turístico no litoral potiguar.
O geógrafo francês Remy Knafou comentou sobre o tema turistificação no texto: “Turismo e Território – por uma abordagem científica do turismo”, em 1996, no qual iniciou a discussão teórica no cenário científico brasileiro sobre o processo de turistificação, uma contribuição do olhar geográfica para os estudos epistemológicos do turismo.
  A turistificação é a materialização de espaços eleitos para a produção e consumo turísticos. A relação entre turismo e território possui três fontes que alimentam esse processo: os turistas que estão na origem do turismo, promovendo a criação de lugares turísticos; o mercado como sendo a segunda fonte de criação desses lugares, que tem por finalidade principal a concepção e na colocação de produtos turísticos, deixando as questões relativas às práticas turísticas em si em segundo plano; e os planejadores e promotores territoriais, que tratam de iniciativas locais, regionais ou mesmo nacionais no esforço de planejamento cuja ideologia é o desenvolvimento local. Essas três lógicas são fundamentais para a compreensão da existência do turismo e dos lugares turísticos, nas quais a ligação dos três atores mencionados é desigual e, em todos os casos, o processo de turistificação não vem do próprio lugar (Knafou, 1996, p. 69-71).
Com base na reflexão teórica de Knafou, entende-se que a turistificação é um processo que passa pela apropriação do espaço geográfico, transformando-o, histórico e socialmente, em território turístico por três vias lideradas por atores sociais (turistas, mercado e, planejadores/promotores do território), que na percepção do autor, esse processo se origina de forma exógena e repercute na realidade local em que o turismo se materializa.
Corrobora-se com Knafou ao afirmar que a turistificação é um processo de apropriação de um dado espaço geográfico para fins turísticos, e devido à condição de apropriação imprime um novo território quando existe esforço político e estratégico para isso, cujos agentes de produção desse território são exógenos ao espaço selecionado pelo e para a produção e reprodução do capital privado, os quais possuem origem exógena à lógica do próprio espaço (visitantes, mercado e planejadores/promotores).
Entretanto, discorda-se em relação a não inclusão da população residente como ator social que também produz e reproduz dinâmicas socioculturais e políticas do cotidiano que fazem parte do processo de turistificação de diversos espaços apropriados para fins turísticos, que resultam em territórios construídos, histórico e socialmente, para atender interesses multifacetados imbuídos de relações de poder (dominação e subordinação).
Nesse sentido, Gomes (1997, p. 14) ratifica a posição entendida por território defendida nesta tese, que segundo a pesquisadora é: “a qualificação do espaço pelo trabalho resulta no território. A construção do território se dá num quadro de relações representadas pela exploração, dominação e apropriação”. Sendo assim, o território que é fruto do espaço modificado pela inserção do trabalho, traduz relações humanas no campo do poder (incluindo todos os elementos que fazem parte da construção do poder).
Essa categoria conceitual da ciência geográfica, território, que tem na organização do espaço a origem e nas relações de poder seu sentido, é indispensável para o entendimento do processo de turistificação, uma vez que, o espaço apropriado para fins turísticos resulta em determinado território (turístico) por meio desse processo gerenciado por atores diversos (agentes de mercado, poder público, turistas e residentes).
A influência dos atores sociais envolvidos no processo de turistificação de um dado lugar, não possui na maioria das vezes, o mesmo peso político e econômico e sociocultural, pois os residentes fazem parte de um grupo social, ou seja, de moradores e/ou “nativos” que apesar de fazerem a opção pelo turismo enquanto atividade econômica são excluídos da elaboração das políticas e dos processos decisórios (dominados de maneira hegemônica pelo capital privado e pelo Estado), o que caracteriza um paradoxo no contexto da democracia e da participação plena dos atores.
Para corroborar com a reflexão posta, faz-se necessário explicitar qual o papel desses atores sociais no percurso de construção de um território turístico de determinado espaço geográfico apropriado responsável por processos de turistificação:

  1. Agentes Públicos (Estado) – o Estado em todas as esferas e ramificações de poder é o principal ator no que diz respeito ao planejamento, organização e gestão dos territórios turísticos construídos pela via das políticas públicas setoriais, quer sejam essas políticas focadas diretamente no setor turístico, quer sejam direcionadas às atividades afins (infraestrutura básica, educação, saúde, segurança, inclusão social, cultura...). Nesse sentido, os agentes públicos que representam a ação do Estado são atores que produzem o território turístico por meio de intervenção política e investimentos financeiros, que visam estrutura e organizar o espaço geográfico para atender às demandas turísticas, o que resulta em uma construção de determinado território para fins turísticos, orientada pelo processo de turistificação pelo qual o território foi apropriado e modificado para atender os interesses políticos, econômicos e sociais do Estado;
  2. Agentes de Mercado (Empresários e Setor Produtivo, o Mercado) – representado pelos atores que compõem o trade turístico (grupo de negócios e empresas turísticas), o empresariado que vê no turismo uma forma de produção e reprodução do capital, atua nesse setor produtivo na área de Serviços, cuja oferta desses serviços se estrutura por meio de equipamentos de hospedagem, transportes, alimentação, lazer, entretenimento, além da intervenção junto ao Estado no campo do fomento de políticas públicas e investimentos direcionados ao setor turístico. O binômio de poder Capital Privado – Estado, configura-se como a mais poderosa ferramenta de apropriação do espaço, transformando-o em território para uso turístico. O processo de turistificação, muitas vezes, essa parceria é movida de forma unilateral e hegemônica pelo capital privado (o mercado), com a cumplicidade do Estado. Outras vezes, o Estado se torna um empecilho ao desenvolvimento do capital privado, ao não fomentar políticas setoriais como na economia, por não liberar investimentos de expressiva envergadura para o crescimento turístico e o aparelhamento da infraestrutura adequada, ao não compartilhar da mesma ideologia do modelo de desenvolvimento adotado, por não facilitar a liberação de licenças ambientais com maior agilidade e flexibilidade e, por não incentivar o capital privado a se reproduzir por meio de incentivos ficais e tributários das mais diversas naturezas. Essa relação complexa entre o capital privado e os demais atores, sobretudo, o Estado, interfere diretamente no processo de turistificação, em que o território é formado, essencialmente, por interesses similares ou antagônicos aos desejos do capital privado, sendo o território a arena de conflitos e de poder forjado pelos interesses públicos e privados da sociedade;
  3. Residentes – a população local (moradores) dos destinos de viagem em processo de turistificação ou turistificados, também se apresenta como importante ator nesse processo, uma vez que, o território turístico é construído social e, historicamente, pelos residentes em vivência cotidiana, ora pela via do trabalho, ora pelo viés das relações socioculturais e humanas que produzem esse território. Isso acontece quando o espaço geográfico possui elementos, especialmente, da natureza, que são apropriados para o uso turístico, e nessa relação dialética homem-natureza, a população por meio de experiências e relação com o espaço de interesse turístico, contribui para o processo de turistificação, pois o residente constrói, modifica e é modificado por esse processo que atinge não apenas a quem lida diretamente com o fenômeno turístico, mas que reside em ambientes turistificados e integram os territórios como atores sociais de forma passiva (indiferente ao que acontece) ou ativa (atua diretamente nas discussões, organizações sociais e, muitas vezes, força de trabalho). Esse ator foi desprezado por Knafou (1996) na teoria sobre o processo de turistificação, mas nessa análise ele tem papel indispensável para a construção de territórios turísticos, pois se é o trabalho que o anima, que dá vida ao espaço, é a população, as pessoas que dão sentido e significado ao fazer turístico. E nessa perspectiva, o residente é compreendido como um ator que ao fazer parte do processo de turistificação de dado espaço geográfico, ele muitas vezes, também é turistificado (aquisição de novos hábitos e costumes, incorporação de outras culturais, crise de identidade), o que alguns autores denominam de aculturação;
  4. Turistas – consumidores de produtos e serviços turísticos que visitam destinos de viagem com potencial ou com a atividade turística consolidada. Os turistas contribuem diretamente com fenômeno de apropriação do espaço para fins comerciais, sobretudo no campo do turismo, pois ao consumir o espaço (principal objeto de consumo do turismo), ele colabora com a construção do território turístico e, por conseguinte, com todo o processo de turistificação dos espaços. Assim como o capital privado, o turista também é seletivo e modifica o espaço, o que imprimi ao fazer turístico à condição imprescindível de produção e reprodução do espaço (turistificado ou não). Leva-se em consideração que o espaço é formado, especialmente, pelas vidas que o anima, o turista, bem como, os demais atores sociais, é fundamental para a viabilização de existência do território turístico, pois ele também se apresenta no cenário contemporâneo como uma das forças desse jogo de poder, que movimenta o capital privado e alimenta às ações intervencionistas do Estado. A permanência no destino de viagem é intermediada pelos agentes do mercado e, sobretudo, pela relação com a população residente, quer seja pelo mundo do trabalho, quer seja pela interação sociocultural alicerçada pelos princípios da hostilidade, ou seja, a relação sine qua non entre visitante-anfitrião, movidas pelas premissas: acolher, receber, alimentar e entreter (Camargo, 2004).

Os quatro principais atores sociais, aqui apresentados, são partes diretamente envolvidas no processo de turistificação na perspectiva da apropriação do espaço para fins turísticos e, da construção do próprio território turístico (cenário de relações força e poder – dimensões ideológica, política e econômica). Esse processo não se materializa com a mesma forma e conteúdo nos espaços selecionados pelos atores, de forma isolada ou coletivamente, pois depende da composição do espaço geográfico, das condições de apropriação para fins turísticos e, de sobremaneira, do território turístico construído (ou em construção) do ponto de vista histórico e social.
Turistificação é uma das categorias conceituais e análise do turismo, embora pouco explorada no campo científico. Enquanto categoria analítica, a turistificação assume a natureza de processo e, no que corresponde ao caráter conceitual, deve-se compreendê-la nos domínios da forma e do conteúdo.
A turistificação conceituada a partir da forma significa como se dar o processo de apropriação do espaço pelo turismo, ou seja, refere-se ao espaço geográfico que foi fragmentado para atender os interesses do capital privado e dos demais atores sociais envolvidos no processo, quer tenha sido de forma imediata ou, gradativamente. Nesse caso o espaço pode assumir diferentes formas e cenários de cunho geográfico (urbano, litorâneo, ecológico, histórico etc.), pois tem haver com a construção espacial e a geomorfologia do lugar apropriado. A partir da apropriação, o espaço em turistificação ou turistificado, abrigará diferentes territórios, dentre eles, o turístico, consequência política, econômica, e ideológica desse processo.
O conteúdo do processo da turistificação é um misto de complexidade e dialética, uma vez que, pode possuir fatores nos campos da política, economia, tecnologia, cultura, social, ambiental e, do simbólico (Bourdieu, 2010), isoladamente ou em integralmente, o que afere ao espaço ou lugar turistificado a condição de território construído pelo e para o turismo. Esse processo é o principal responsável pela dinâmica, especialmente, econômica da atividade turística contemporânea, com destaque para os destinos de viagens de massa inspirada nos moldes de produção e de consumo fordistas.
Nesse sentido, o quadro 1 demonstra a construção da turistificação enquanto processo pelas vias da forma e do conteúdo.
A descrição detalhada de forma didática apresentada no quadro sobre o processo de turistificação evidencia que esse processo pode ser compreendido por meio de dois eixos conceituais (forma e conteúdo) e, que em ambos os casos, os processos imprimem resultados quanto ao espaço apropriado e a construção de territórios turísticos, potente engrenagem que aborda questões de interesses políticos, econômicos e sociais, o que reflete um cenário dinâmico e contínuo de relações de poder.
Em São Miguel do Gostoso, o capital privado é a força motriz no que concerne à apropriação do espaço, especialmente, o de domínio natural, para uso turístico, impulsionada posteriormente pelos agentes públicos que viabilizaram políticas voltadas à organização do espaço e do setor produtivo do turismo. Os turistas contribuíram, com certa timidez, para o processo de turistificação nas décadas de 1980 e 1990, mas obtiveram mais destaque a partir dos anos de 2000, depois da emancipação política do município e das ações de divulgação realizadas por empresários e jornalistas, o que provou expressiva procura pelo recente destino turístico. A população residente, inicialmente, voltada para a cultura da pesca, participou do processo de turistificação se inserindo pela via do trabalho e, mais tarde como anfitriã, na qualidade de “povo hospitaleiro”, denominação aferida pelos residentes e turistas.

4 Algumas considerações

A paisagem apresenta-se no litoral de São Miguel do Gostoso como patrimônio paisagístico e coletivo dos moradores, sendo alvo de especulações e interesse turístico. Todavia, a relação paisagem-turismo é polêmica, muitas vezes conflitantes e tem sido objeto de estudo para cientistas das ciências humanas e sociais. Nesse sentido, compreender, conceitualmente, o fenômeno turístico no âmbito da cultura de consumo de massa e reflexos na paisagem, que constitui uma relação dialética e complexa no contexto socioeconômico e ambiental do mundo contemporâneo.
Compreender a dinamicidade da atividade turística tem sido um dos grandes desafios dos últimos anos enfrentados pelos pesquisadores e estudiosos do fenômeno turístico, uma vez que exige métodos científicos apropriados, dados empíricos e análises sobre o desenvolvimento do fenômeno em determinados espaços turistificados ou não, sobretudo no que diz respeito aos anseios de conciliar turismo e desenvolvimento sustentável com inserção e participação ativa das populações residentes em espaços litorâneos, na perspectiva da construção do capital turístico, categoria conceitual do campo do turismo.
Os ventos fazem de São Miguel do Gostoso, importante destino turístico no contexto internacional no que diz respeito à prática de esportes de aventura de natureza náutica (kitesurf e windsurf), o que afere ao lugar o status de destino especializado nesse segmento de mercado, voltado para a natureza e para as singularidades do lugar. Contudo, os ventos também movimenta a economia por outro prisma, por meio da geração de energia eólica, ambientalmente correta e sustentável em longo prazo.
No caso da geração de energia eólica, existe um conflito social eminente no município, devido ao fluxo de centenas de trabalhadores masculinos que circulam na região para trabalhar nesse setor produtivo, e que envolve pessoas do lugar (homens e mulheres), preferencialmente, jovens e adolescentes do sexo feminino, o que ocasiona diversos casos de gravidez não planejadas na cidade, e assim, gera problema de cunho social que requer destreza política e sociocultural para tal enfrentamento.
A pesar das tensões sociais que se estabeleceram em São Miguel do Gostoso em vários aspectos da vida em sociedade, os ventos também sopram a favor da cidade, que poderá ser conhecida, internacionalmente, como sendo a “cidade dos ventos”. Ventos esses que impulsionam as principais atividades econômicas modernas (turismo e geração de energia eólica) do município. Apesar, de ambas as atividades estarem com o sinal de alerta ativado em relação aos efeitos danosos, que podem ser irreversíveis nesse tipo destino turístico, ou seja, uma pequena cidade do litoral potiguar voltada para as culturas da pesca e agricultura (atividades econômicas primeiras, tradicionais), que há poucos anos despertou para a atividade turística e para novas funcionalidades existentes na cidade no campo econômico que podem contribuir para o desenvolvimento da população residente em todas as dimensões do contexto social.
Nesse artigo procurou-se aprofundar a concepção de turistificação com base nos estudos teóricos de Remy Knafou, chega-se ao entendimento que o processo que leva a turistificação de determinado espaço apropriado para fins turísticos, é dotado de forma e conteúdo e que cada processo adotado leva a determinado resultado. Esse entendimento de turistificação estar em fase de desenvolvimento intelectual e necessita de mais reflexões teórico-metodológicas, porém é um ponto de partida para novas análises no domínio da produção do saber turístico.

Referências

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TAVEIRA, M. da S. (2015). Turismo e comunidades de praia: São Miguel do Gostoso no caminho do mar e na direção dos ventos. Tese de Doutorado (Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais). Natal: UFRN.

1Junção de duas palavras inglesas: kite, que significa pipa e surf, que quer dizer navegar. Na prática, o kitesurfista utiliza uma prancha fixada aos pés e uma pipa inflável (semelhante a um parapente) possibilitando deslizar sobre a superfície da água e, ao mesmo tempo, alçar voos que se traduzem em movimentos singulares. Ou seja, o vento é o motor, e o grande fator de emoção do kitesurf. O cenário pode ser o mar, um rio, um lago, uma represa (Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura – ABETA).

2 Ventos e ondas são os principais ingredientes dessa atividade que uniu a prancha do surf à vela do iatismo. No Brasil, a atividade começou a ser praticada no final dos anos 1970 (ABETA).

3Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte.


Recibido: 09/09/2015 Aceptado: 16/11/2015 Publicado: Noviembre de 2015

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