Contribuciones a las Ciencias Sociales
Noviembre 2014

DIREITOS SOCIAIS E CONSERVADORISMO LIBERAL: UMA ANÁLISE A PARTIR DE MICHAEL OAKESHOTT



Daniel Lena Marchiori Neto (CV)
danielmarchiorineto@gmail.com
Universidade Católica de Pelotas



Resumo: Michael Oakeshott articula uma distinção entre dois estilos acerca da atividade de governar, que ele denominou “política de fé” e “política de ceticismo”. A primeira condiciona o papel do Estado à realização de um propósito comum, percebendo a sociedade como uma associação empreendedora. A segunda relaciona-se à associação civil, reduzindo a atuação do Estado à manutenção da ordem, considerada como um mero sistema de direitos e deveres que permite a coexistência pacífica. Assim, a política de ceticismo vincula-se a uma forma de liberalismo econômico que qualifica como perfeccionista toda intervenção estatal. No entanto, o trabalho propõe uma readequação desta política de modo que não seja avessa a uma agenda mínima de direitos sociais e econômicos. Para tanto, parte-se de certa interpretação do conceito de respublica e do reconhecimento de sua autoridade na obra de Oakeshott.
PALAVRAS-CHAVE: Política de ceticismo, manutenção da ordem, intervenção estatal, Michael Oakeshott.

ABSTRACT: Michael Oakeshott articulates a distinction between two styles concerning the activity of governing, which he denominates “Politics of Faith” and “Politics of Scepticism”. The first relates the role of State with the promotion of a common purpose, conceiving society as an enterprise association. The second relates itself to a civil association, reducing the function of State to the maintenance of order, considered as a mere system of rights and duties which permit the pacific coexistence. Thereby, the Politics of Scepticism is joined to a form of economic liberalism that qualifies as perfectionist every state intervention. On the other hand, this paper purposes a defense of this politics so that it is not opposite to a minimal agenda of economic and social rights. It starts from a certain interpretation of the respublica and the recognition of its authority in the work of Michael Oakeshott.
KEY-WORDS: Politics of Scepticism, maintenance of order, state intervention, Michael Oakeshott.

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Marchiori Neto, D.: "Direitos sociais e conservadorismo liberal: uma análise a partir de Michael Oakeshott", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Noviembre 2014, www.eumed.net/rev/cccss/30/oakeshott.html

1. Introdução

            Michael Joseph Oakeshott (1901-1990) é um filósofo britânico, falecido em 1990, e que durante as décadas de 1950 e 1960 exerceu a cátedra de Ciência Política na prestigiosa London School of Economics (LSE), tendo sido o sucessor de Harold Laski. Autor de trabalhos que versam sobre os mais diversos aspectos do conhecimento, é geralmente enquadrado como um dos mais proeminentes pensadores conservadores do século XX1 .
            Em sua vida acadêmica, publicou relativamente pouco. Além de alguns artigos e pequenos ensaios, constam essencialmente quatro livros: Experience and its modes (1933), On human conduct (1975), On History (1983) e Rationalism in politics and other essays (1962). Este último, sem dúvida a principal obra de divulgação de seu pensamento, foi muito mal recebido pelo público que, ao taxá-lo de “pessimista”,  “tradicionalista”, “burkeano”, refletia o descrédito do pensamento conservador neste período 2 . Por outro lado, foi bastante reconhecido por sua pesquisa acerca de Thomas Hobbes, destacando-se a sua apresentação à reedição inglesa de Leviatã.
            Após sua morte, em 1990, surge no cenário acadêmico norte-americano e inglês uma série de importantes trabalhos buscando resgatar o pensamento de Oakeshott3 . Um fato considerável é a organização e publicação de inúmeros manuscritos, ensaios e anotações de aulas proferidas na LSE. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objeto a análise de uma dessas obras póstumas, o livro The Politics of Faith and The Politics of Scepticism. Elaborado após a Segunda Guerra Mundial e completado provavelmente em 19524 , a obra traça uma diferenciação entre dois modos ou estilos da atividade de governar: a política de fé e a política de ceticismo.
            Após relatar as nuances desta diferenciação conceitual, a pesquisa toma para si o desafio de questionar a oposição estabelecida por Oakeshott entre a política de ceticismo e a intervenção estatal5 . De outro modo, o argumento aqui desenvolvido busca conciliar o conservadorismo liberal oakeshottiano a uma agenda mínima de direitos sociais e econômicos.
           
2. POLÍTICAS DE FÉ E POLÍTICAS DE CETICISMO

            Na obra The Politics of Faith and The politics of Scepticism, Michael Oakeshott esboça uma análise acerca da moderna política européia no que tange ao governo e à atividade de governar e de ser governado. Para ele, o cenário das ideologias políticas está relacionados a dois aspectos do governo, sintetizados a partir dos seguintes questionamentos: (a) Quem deve governar e sob que autoridade? (b) O que deve o governo fazer?6
            Segundo Oakeshott, a história política européia fixou a atenção na primeira pergunta, firmando a premissa de que as constituições são o instrumento que confere a autoridade e a competência legítimas para a atuação do governo. O problema é quando se estende este raciocínio para o segundo ponto: a idéia de que as tarefas do governo do governo também derivam diretamente das constituições. Para Oakeshott, “não há uma simples e direta relação entre a constituição e o que o governo faz. Devemos considerar tal relação como tem se revelado tempo ao tempo, sendo que o principal objetivo é avaliar e refletir sobre as práticas e pensamentos a despeito do exercício do poder pelo governo” 7 .
            Dentro desta avaliação, é importante diferenciar as práticas de governo propriamente ditas daquilo que se entende por essas práticas. De outro modo, Oakeshott objetiva não meramente descrever as atividades, mas sim contextualizá-las de acordo com um “caráter”  ou um “estilo” de política. Sua preocupação tem sentido à medida que toma os eventos descritos historicamente (como, e.g., o fechamento de um parlamento ou a planificação da economia) não como meros eventos, mas como produtos da ação humana. Como a principal característica da conduta humana é o fato de não ser precedida por decisões ou intenções racionais (as quais possam ser obscuras e dificilmente reveladas), verifica-se, pois, que cada acontecimento histórico não pode ser isoladamente compreendido. Segundo Oakeshott:

Entendida em termos de seus postulados, a “conduta humana” pressupõe agentes livres (em outras palavras, inteligentes) atuando entre si através das respostas de seus entendimentos sobre as situações contingentes advindas das ações escolhidas e dos enunciados relacionados às satisfações imaginadas ou desejadas na resposta a outros agentes, enquanto submetido a condições e contrições de uma multiplicidade de práticas e, em particular, aquelas oriundas da linguagem moral reconhecida e praticada. Uma relação humana não é um “processo” composto de elementos que compreendem uma funcionalidade ou uma causalidade; é uma relação inteligente ligada somente na virtude de ser aprendida e entendida ou desentendida.8

            A política não conhece nada acerca de necessidades genuínas. Não há nada no mundo da política que não provenha da atividade humana, embora haja muita coisa que não seja conseqüência do desígnio humano. Por isso, ao estudar as atividades do governo, Oakeshott considera que as ações concretizadas tornam-se distintas não porque a intenção é diferente, mas porque elas pertencem a um outro contexto de atividade.
            Na busca por compreender esse contexto é que surge o livro The Politics of Faith and the Politics of Scepticism. O argumento principal da obra é que os governos europeus, desde o século XV, convivem com diferentes modos ou estilos de política, os quais ele denominou (I) “políticas de fé” (politics of faith) e (II) “políticas de ceticismo” (politics of scepticism). Tais formas são expressões que resultam de dois pólos extremos nos quais é empreendida a atividade de governar. Enquanto extremos, são construções ideais; dificilmente são encontradas em sua forma pura, constituindo-se muito mais em tendências do que em teorias ou doutrinas propriamente ditas.

(I)

            A política de fé é o estilo de governar caracterizado pela incessante busca pela perfeição da humanidade. Conforme Oakeshott, há um grande otimismo cósmico que, derivado não da observação, mas da inferência da perfeição do seu criador, atribui uma indiscutível perfeição do universo 9. Essa idéia de “perfeição” (ou “salvação”) consiste na busca de uma visão compreensiva de bem (doutrina religiosa, econômica, filosófica, moral, etc) a ser alcançada no mundo, porém não como uma tipologia do caráter humano, mas como uma condição mundana das circunstâncias humanas10 . De modo mais simples, “perfeição” é mudança para melhor, onde o “melhor” pode significar tanto o caminho específico a ser aprimorado quanto a direção geral pela qual deve a atividade humana deve ser guiada (pouco importando o caminho).
              O agente responsável para assegurar a perfeição é o Estado.  Se utópico ou se visa a aprimorar a sociedade em apenas em um determinado rumo, tal estilo sustenta que somente o poder humano pode atingi-lo; destarte, não apenas busca, mas supervaloriza este poder, deixando a cargo do governo uma competência quase ilimitada para conduzir a sociedade. Conseqüentemente, o estilo requer uma dupla confiança: a convicção de que o poder necessário é disponível ou pode ser gerado e uma convicção que, mesmo que não se saiba exatamente o que constitui a perfeição, ao menos se sabe o caminho a ser percorrido.
            Parece claro que o papel do Estado, aqui, não é neutro e assume uma visão substantiva. Assim, torna-se o instrumento para alcançar a verdade (concebida a partir de uma visão particular) e exige dos cidadãos não apenas a obediência ou a submissão, mas principalmente entusiasmo e engajamento para a concretização desta finalidade. “Os inimigos do regime serão identificados não como meros dissidentes a serem inibidos, mas como descrentes a serem convertidos. Mera obediência não é suficiente; deve ser acompanhada pelo fervor. Na verdade, se o sujeito não é entusiasta com o governo, não há nenhum objeto legítimo de devoção; se ele é devotado à “perfeição”, ele deve ser devotado ao governo”11 .
            Fazendo uma analogia com um conceito descrito na obra On Human Conduct, a política de fé encara a sociedade como uma associação empreendedora (enterprise association). Neste modo de associação, os agentes estão interligados a partir de um propósito comum substantivo, reconhecido como uma condição exeqüível pelos homens. Esse engajamento tem por escopo direcionar a conduta humana a partir de ações que estejam meticulosamente relacionadas para administrar e maximizar o propósito desejado. As eventuais regras emitidas são meramente instrumentais e, por si só, não definem e nem identificam a associação12 .  
            Oakeshott destaca algumas conclusões para a política de fé13 . Em primeiro lugar, ela não é uma invenção que surgiu nos últimos séculos contra um período de negligência ou indiferença governamental. Tampouco foi um fruto da revolução industrial ou da democracia liberal. A política de fé deve ser compreendida num contexto histórico de legitimação e idealização do governo como operador racional da atividade humana 14. Em segundo lugar, não é identificada com nenhum movimento, partido ou causa no mundo moderno. Há representantes desse estilo de política em todo campo, todo partido, cada momento e entre advogados de toda causa. Em terceiro lugar, a política de fé não é, e nunca foi, o único estilo de política que surgiu na história moderna. Essa impressão é causada especialmente pelo sucesso deste estilo especialmente a partir do século dezessete 15.
            Finalmente, a política de fé é encarada como uma política da imortalidade, que dá atenção excessiva ao futuro e se esquece do passado. Ao conduzir a conduta humana para um determinado fim, transmite a idéia de que a própria história possui um sentido. Ao ironizar este aspecto, Oakeshott pondera que:

(...) não conhecemos a “direção com a qual o mundo está se movendo”, não porque nos faltam provas que poderiam nos revelar tal direção, mas porque a noção de que tal direção exista depende de uma distinção entre o que é resultado legítimo e ilegítimo, algo estranho ao estudo histórico. Uma simples e homogênea linha de desenvolvimento é possível de ser encontrada na história somente se a história é feita de um boneco com o qual é possível praticar a habilidade de um ventriloquista.16

            A nemesis da política de fé é que ela não está imune da sua própria dissolução. Tomando a idéia de que governar é uma atividade sem controle, ele próprio não tem controle sobre a própria permanência. O engajamento para impor um único modelo de atividade sobre a comunidade é o elemento que pode levá-la à ruína. Isso pode ser explicado pela “lógica da segurança”.
            Em um determinado sentido, a palavra “segurança” está ligada à proteção contra algum mal, uma espécie de socorro. Aqui, prevalece um olhar cético, pois não é pressuposto nenhum modelo compreensivo de atividade sobre a comunidade. Oakeshott estabelece um limite claro: “quando o homem é protegido contra algum infortúnio de tal modo que o priva da autoridade de se defender ele mesmo, o limite é passado”. 17
            Por outro lado,  quando “segurança” é entendida como a garantia de um certo nível de bem-estar, e o governo é o responsável por fazê-lo, caracteriza-se a política de fé. A segurança é encarada como uma forma de perfeição. A primeira necessidade do governo, conseqüentemente, é uma imensa quantidade de poder – supostamente para assegurar esse nível.
            Ainda que se objetive a intervenções limitadas, o resultado muitas vezes é diverso do que foi antecipado. Enquanto pequenas proteções são providas, lançam-se inevitáveis e imensas concentrações de poder. Em suma, a idéia de perfeição está sempre associada à incapacidade de autolimitar-se. A perfeição, cabe ressaltar, não está atrelada ao poder; o poder é que está atrelado a uma forma de perfeição.

(II)
 
            O estilo de governo que se opõe abstratamente à política de fé chama-se “política de ceticismo”. Essa oposição, conforme já explicitado acima, é de cunho meramente ideal, pois ambos compõem tanto o complexo e ambivalente modo de governar quanto o igualmente complexo e ambíguo entendimento sobre o que significa propriamente o ofício de governar.
            Ao contrário da fé, a política de ceticismo desconfia da capacidade humana em atingir a perfeição e sustenta que o governo possui uma função bastante específica e limitada: estabelecer e manter um sistema de direitos e deveres que tem o único propósito de evitar conflitos e garantir a convivência pacífica, dando aos indivíduos o poder para alcançar desejos e suas vontades substantivas. Segundo Oakeshott:

O ofício do governo, aqui, não é ser o arquiteto de um modo perfeito de vida, ou (como a fé prescreve) de um aprimorado modo de vida ou de qualquer modo de vida. Mas para ser privado disso não importa privar-se de tudo. E as afirmações da política de ceticismo acerca da atividade de governar serão baseadas não, como a fé, numa doutrina sobre a natureza humana, mas sim através da leitura da conduta humana. O cético em política observa que os homens vivem em proximidade um com o outro e, cada um perseguindo várias atividades, estando aptos a entrar em conflito. E este conflito, quando atinge determinadas dimensões, não apenas pode tornar a vida bárbara e intolerável, como pode até terminar abruptamente. Neste entendimento da política, portanto, a atividade de governar subsiste não porque é boa, mas porque é necessária.18

            De outro modo, este estilo crê na ordem espontânea dos agentes e na ação social independente para deliberar sobre os seus fins e não atribui ao Estado o poder de decidir sobre uma finalidade comum segundo a qual todos devem compartilhar e empenhar-se para obter êxito. Para o cético, governar é, antes de tudo, uma atividade judicial 19, onde o Estado decide sobre os conflitos, possibilitando a vida pacífica. O poder concentrado não é  disponível para quem tem um projeto favorito para impor ou promover. Os governantes ocupam um “honorável e respeitável, mas não elevado, lugar” 20. Na política de ceticismo, portanto, a atividade de governar não é entusiasta e tampouco demanda entusiasmo ou engajamento; exige apenas submissão e obediência 21.
            Este estilo percebe a sociedade enquanto uma associação civil (civil association). Nesta modalidade, os agentes não são parceiros ou colegas num empreendimento com um propósito a seguir ou um interesse a promover. Tampouco são agentes individualmente vinculados entre si numa relação de barganha para a promoção de seus interesses individuais ou coletivos. Estão relacionados em termos de uma prática não-instrumental (no sentido da satisfação de valores substantivos), que pode ser traduzida numa linguagem comum. No caso da associação civil, a linguagem é a lei (lex).
            A condição civil (civil condition) é aquela onde os indivíduos se reconhecem enquanto cives por duas razões: primeiro, porque estão relacionados mediante uma prática composta exclusivamente por regras22; segundo, porque reconhecem a autoridade dessas regras 23. Os termos da prática da civilidade não são conclusões deduzidas a partir de postulados da associação civil, de teoremas gerais sobre a conduta humana, sobre enunciados da razão, ou sobre máximas ou ideologias políticas. Tampouco correspondem a meras opiniões, preferências racionais ou julgamentos subjetivos de valor. Logo, as regras que compõem a respublica são definições a respeito de propostas políticas.24
            A política de ceticismo é o estilo de governar próprio da associação civil. O governo possui um papel bastante limitado de atuação. Seu primeiro objetivo está vinculado à manutenção da ordem. Utilizando-se as palavras de Oakeshott, “o modesto governante deste estilo não se considera ele mesmo mais hábil que seu vizinho para determinar o curso geral da atividade humana” 25; “como o alho na cozinha, o governo deve ser usado discretamente de modo que somente sua ausência deve ser notada” 26; “o governo é como bom humor e gracejo: um não nos levará ao céu e o outro não nos demonstra a ‘verdade’, mas o primeiro pode nos salvar do inferno e o segundo da estupidez” 27.
            Isso quer dizer que o fulcro do governo não é estabelecer uma verdade e conduzir a sociedade num determinado rumo. Governar é garantir o império da lei, ou seja, garantir um sistema de direitos e deveres que não estejam vinculados a satisfações substantivas (não-instrumentais), mas que apenas possibilitem a convivência pacífica e segura onde os cives poderão buscar a realização de seus desejos e vontades privadamente.
             Assim, pode-se afirmar que a política de ceticismo é cética no que tange aos limites de atuação do governo e quanto a grandes mudanças institucionais. Embora o conservadorismo seja um dos traços marcantes, nenhum ceticismo é absoluto e intolerante a qualquer espécie mudança. Tampouco se confunde com uma forma de anarquismo 28. O que se prefere, em geral, são mudanças lentas e reparatórias a grandes rupturas ou criações 29.
            O segundo objetivo da política de ceticismo é o que ele denominou busca por aprimoramentos (improvements) nos sistemas de direitos e deveres e nos concomitantes sistemas de meios de reparação. Este aprimorar, no entanto, deve ser distinguido daquele que as políticas de fé entendem ser um propósito compreensivo do governo. Aqui, o que busca ser aprimorado não são os seres humanos, a conduta humana ou até mesmo o amplo largo das circunstâncias humanas. E as direções as quais o aprimoramento deve ser entendido são claras: nenhuma carrega a atividade de governar fora de seu primeiro objetivo. Na verdade, o “aprimoramento” é meramente uma parte da articulação da ordem. Não como uma atividade independente e adicional, mas como a própria manutenção da ordem 30.
            Nesse sentido, a busca por aprimoramentos deve ser vista como uma conseqüência da deliberação política dada num determinado momento histórico. Sendo a respublica um conjunto de regras, o mesmo poder que a constituiu pode também modificá-la de acordo com as situações contingentes 31 32.
            Do que foi exposto, é possível concluir que a política de ceticismo está vinculada à defesa de uma ordem própria de um liberalismo econômico que qualifica como perfeccionista toda e qualquer forma de intervenção estatal visando a garantir direitos que não os direitos civis 33. E o próprio Oakeshott afirma isto de forma muito clara: “O império da lei não assa pão algum, é incapaz de distribuir pães ou peixes (porque não tem nenhum), e não pode proteger a si mesma de um ataque externo. Contudo, permanece sendo a mais civilizada e menos opressiva concepção de Estado já inventada”. 34 Durante sua vida, mostrou-se hostil a todo traço da moderna política social-democrática, bem como ao welfare state e à economia redistributiva 35.
            No entanto, este trabalho não tem por principal objetivo a opinião de Oakeshott sobre sua própria obra, mas sim sobre os possíveis usos que se pode fazer dela. Mais especificamente, o trabalho versa sobre as nuances que diferenciam a política de ceticismo (conservadorismo, individualismo, associação civil, ordem espontânea, lei não-instrumental) da política de fé (racionalismo, coletivismo, associação empreendedora, ordem feita, lei instrumental). Nesse sentido, o problema desta pesquisa consiste na possibilidade de fazer, a partir da obra de Michael Oakeshott, uma defesa da política de ceticismo que relacione a intervenção estatal como uma forma de aprimoramento da manutenção da ordem. Em outras palavras, será possível conciliar o “conservadorismo liberal cético” de Oakeshott a uma agenda mínima de direitos sociais e econômicos?

3. A (DIFÍCIL) RELAÇÃO ENTRE A POLÍTICA DE CETICISMO E A INTERVENÇÃO ESTATAL

            A hipótese deste trabalho é a de que a política de ceticismo não é necessariamente avessa à intervenção estatal, que poderia incluir direitos sociais e econômicos como formas de aprimoramento da manutenção da ordem, sem prejuízo do caráter civil da associação civil. O ponto de partida desta análise é a dimensão política da respublica e o reconhecimento da sua autoridade.
            Assim, o argumento a ser desenvolvido constata uma assimetria na obra de Michael Oakeshott, no sentido de que ele considera o lócus da política apenas quanto às concepções sobre o bem comum, excluindo-o do conceito de respublica. Neste caso, a autoridade das regras é tomada a partir de uma espécie de consenso sobre o conteúdo das leis que uma associação civil pode promulgar. Isso de fato constitui uma verdadeira exclusão política? (I) Se sim, o reconhecimento desta exclusão pode ensejar uma reação crítica a este consenso, o que possibilita novas interpretações sobre a política de ceticismo e o significado da manutenção da ordem? (II) A tese da não-instrumentalidade das leis é coerente a ponto de tornar incompatível a intervenção estatal numa política de ceticismo? 

(I)

            Dentro da associação civil, a respublica é conjunto de leis que consistem na linguagem comum dos cives. Os cidadãos se reconhecem não pelos seus interesses substantivos, mas pelo reconhecimento da mesma autoridade legítima. Desta forma, a prática da civilidade está relacionada ao reconhecimento da autoridade da respublica e não no compartilhamento de uma mesma visão sobre o bem comum ou no estabelecimento de uma finalidade a ser perseguida por todos, conforme uma associação empreendedora.
            Para Oakeshott, é imprescindível reconhecer que a autoridade da respublica não pode ser contestada pelos cidadãos36 . Esse reconhecimento, por sua vez, está vinculado à condição não-instrumental da associação civil; conseqüentemente, não pode discordar conteúdo da respublica, ou seja, do próprio conjunto de leis civis que mantém a ordem superficial de convivência pacífica e civilidade. Isso não significa, contudo, que as leis sejam imutáveis: aprimoramentos (improvements) – tomados de forma sempre lenta e cautelosa – são permitidos e até bem vindos, mas desde que não percam o que seria a sua essência: a não-instrumentalidade, a não realização de vontades substantivas.
            De forma mais clara e objetiva, a associação civil requer um consenso sobre a autoridade, de modo que um Estado só pode produzir um determinado tipo de leis, sob pena de perder seu caráter civil e a associação ser considerada uma forma de empresa (enterprise association). Em outras palavras, associação civil dispõe apenas direitos civis, e toda forma de intervencionismo para a promoção de outros direitos recairia numa associação empreendedora.
            O mais interessante é que Oakeshott dá a entender que esse consenso não está vinculado a nenhuma ideologia política: pelo contrário, é neutro a qualquer concepção compreensiva sobre o bem. No entanto, alguns de seus intérpretes contemporâneos37 ressaltam a existência de uma assimetria com relação ao lócus da política. De um lado, Oakeshott reconhece a dimensão do conflito e do antagonismo no que tange ao bem comum: reafirma a inexistência de superioridade moral de uma concepção privada sobre outra, deixando a cargo dos cidadãos decidir sobre qual concepção será buscada, tendo por cenário uma multiplicidade de interesses individuais ou coletivos. De outro, exclui da respublica a capacidade de crítica, pois não é dado aos cidadãos questionar a sua autoridade.
            Nesse ínterim, é possível visualizar as bases da crítica de Chantal Mouffe a Oakeshott. Para ela, é perfeitamente justificável a intervenção estatal com base numa interpretação não restrita do conceito de respublica. Sua crítica volta-se à negação da dimensão política que Oakeshott exclui deste conceito ao reduzi-lo a uma forma de consenso sobre sua autoridade: “para introduzir conflito e antagonismo no modelo oakeshottiano, é necessário reconhecer que a respublica é um produto de uma determinada hegemonia, a expressão de relações de poder, e que isso pode ser contestado”.38
            Ao se expandir o caráter da decisão política para a esfera da respublica, ou seja, permitir o questionamento sobre a esfera da atuação do Estado, abre-se uma possibilidade de alegar que a manutenção da ordem e sua conseqüente garantia da paz e segurança coletivas dependam, e.g., de uma agenda mínima de direitos sociais e econômicos e não apenas de direitos civis (liberdade, propriedade, etc). Ou ainda, que os direitos civis só podem ser suficientemente e pragmaticamente garantidos a partir de prestações positivas por parte do Estado, que requerem um certo intervencionismo.
             O grande risco de assumir esta defesa consiste em lidar com a diferença entre a política de ceticismo e a política de fé. Em nenhum momento Oakeshott sugere que tais estilos possam ou devam existir de maneira pura, induzindo a idéia de que um visa a eliminar o outro. Apenas se limita a constatar o caráter de oposição ideal, abstrata, e indica como diferenciá-las. Agora, sendo a intervenção estatal uma característica conceitual da política de fé, como justificá-la dentro da política de ceticismo em termos oakeshottianos?
            A primeira impressão que se tem da obra de Oakeshott, contextualizando-a no debate moderno acerca do liberalismo, é que ele teria uma posição política bastante próxima ao libertarianismo. Contudo, vale transcrever a seguinte passagem:

Proteção contra algumas das vicissitudes da sorte é reconhecida como uma das atividades do governo. Aqui a inspiração é a observação das reais misérias sofridas; e “segurança” é entendida como a garantia de uma ajuda.Todavia, o alcance desta não é determinado pela magnitude da miséria, mas pela percepção do deslocamento conseqüente sobre sua remoção. Toda “proteção” envolve o governo encarregando-se de algumas das atividades dos sujeitos, mas o limite, aqui, é que esta “proteção” pode ser fornecida sem impor nenhum modelo compreensivo da atividade sobre a comunidade.39

            Em contraste com o libertarianismo, a política de ceticismo aceita a necessidade de intervenção social; porém, diferentemente da política de fé, intervém apenas para responder a misérias reais – problemas que são defeitos visíveis presentes nos arranjos, não simplesmente desvios de um suposto ideal. Assim,

Pobreza, poluição do ar, congestionamento e crimes são todos problemas políticos que podem ser detectados sem recurso a um completo esquema alternativo de organização social, mas imaginar a sociedade sem eles requer precisamente uma alternativa. De um ponto de vista libertário, mesmo  uma reconhecida miséria não deve justificar uma ação pública. Do ponto de vista da perspectiva da fé, não apenas justifica a ação como demanda nada mais que a vitória total. Uma política de ceticismo acha que uma reconhecida miséria fornece um raciocínio e uma direção para a ação estatal, mas aquelas vitórias são mais facilmente imaginadas que simplesmente vencer, podendo custar um alto preço. Sua autorização para ação é limitada pelos desvios que qualquer intervenção vai causar – a qual, como a seção seguinte deste artigo pretende demonstrar pode ser substancial – e pela diminuição da capacidade para a ação espontânea que toda intervenção deve induzir sobre.40

            O cético prefere responder a misérias buscando facilitar e ordem espontânea do que simplesmente substituí-la por um planejamento total do estado. Prefere pequenas mudanças a grandes rupturas. Sua tentativa, portanto, seria estimular a capacidade dos agentes de conseguir solucionar, eles próprios, seus problemas mais graves. Nesse sentido, o político cético tenta curar os males sociais mantendo “a capacidade da sociedade de agir de forma indireta e espontânea no caso de futuras misérias – e dimensiona o governo para agir, se possível, de tal modo que aumente esta capacidade. Isso demonstra uma agenda substancial para o governo e ao menos um esboço de um estado de bem-estar social cético” 41.
            Um problema intrínseco à tentativa de eliminar todo traço de intervenção estatal da política de ceticismo é lidar justamente com o conflito e o antagonismo na sociedade. Sem dúvida, a manutenção de arranjos institucionais que geram (ou pelo menos não impeçam) grandes níveis de desigualdade e miséria certamente pode ser questionada, e mudanças podem parecem imprescindíveis.
            Este cenário torna-se ainda mais desafiador numa democracia. Como já foi dito, a política de ceticismo não é entusiasta e exige apenas obediência e submissão a respublica; não exige entusiasmo justamente porque desconhece qualquer interesse substantivo. Contudo, ao instituir um sistema que negue a enfaticamente a intervenção estatal, como ela espera ser aceita, democraticamente, por aqueles que se encontram na camada mais desfavorecida da sociedade? A política de ceticismo, nestes moldes, necessitaria sim de um grande “entusiasmo” por parte de uma maioria desprivilegiada, pois parece irrealizável que tais pessoas aceitem voluntariamente a manutenção de uma ordem que é insensível (para não dizer prejudicial) a suas necessidades mais básicas.
             Assim, num regime democrático, o consenso necessário acerca da respublica só consegue prevalecer se esvaziado completamente o seu caráter político. Como tal situação é difícil de ponderar fora de um contexto autoritário, a política de ceticismo tenderia à autodestruição, não pela falta de limites (como na política de fé), mas pelo excesso de limitação.
            Por isso, é necessário encontrar um meio-termo entre a intervenção estatal mínima e racionalmente dirigida daquela que visa à lógica da “perfeição” 42 . Sem dúvida que esta não é uma tarefa simples. Contudo, ao ampliar as possibilidades de aprimoramento nos sistemas de direitos e deveres, a política de ceticismo se tornaria uma alternativa mais consistente e passível de ser aceita por um número maior de interessados. 
           
(II)

            Segundo Oakeshott, as normas promulgadas possuem caráter certo e não-instrumental43 , à semelhança com as “normas de justa conduta carentes de propósito” (purpose-independent) de Hayek 44. De qualquer forma, em ambos os casos, o custo desta insistência é de um caráter puramente “adverbial” ou “procedimental” das regras jurídicas é demasiadamente elevado. Isso porque a idéia de uma “não-instrumentalidade” é bastante questionável.
            Ao supor que as leis impõem obrigações, é de se presumir que o que está sendo imposto são restrições colaterais à ação humana: independentemente do que se deseja fazer, a lei é justamente um limite que deve ser evitado sob pena de recair em uma obrigação. De outra forma, a lei passa a ser uma espécie de meta ou objetivo próprio, tanto daquela conduta que ela proíbe quanto da conduta que se exige que seja tomada. Assim, desde o ângulo de assegurar a prevenção ou realização de atos proibitivos ou obrigatórios, as leis distanciam-se muito de ser não-instrumentais.
            Essa crítica, no entanto, é razoavelmente fácil de ser contestada. A defesa do ponto de vista de Oakeshott, em linhas gerais, pode ser assim empreendida:

É possível ao menos imaginar um Estado desprovido de qualquer propósito? Nesse sentido, podemos de forma convincente descrever a “associação civil” como “não-propositada? Eu argumentei que as leis civis não envolvem intenções particulares. Para isso, há um tipo de “liberdade” inerente à idéia de associação civil, ou seja, um tipo de liberdade que deriva de “comandos” que são inerentes a qualquer associação constituída em termos de regras. Contudo, argumentei que as leis civis podem e devem proibir ações-tipo, e para esta medida que Oakeshott deve reconhecer a idéia de que uma associação civil deve envolver restrições à liberdade de ação. Na verdade, toda lei tem propósitos. Portanto, uma associação civil deve tantos propósitos quanto os têm as leis. Ainda que uma associação civil deva ter propósitos, não há nenhum grupo de propósitos que ela deva ter: neste sentido, Oakeshott articulou uma interessante idéia de um estado mínimo, que é organizado por nada mais que o reconhecimento da sua autoridade. 45

            A lex “não-instrumental” seria, para Oakeshott, um sistema de direitos e deveres baseados em proibições tão genéricas e abstratas que, vistas isoladamente, não se imputariam como pertencentes a nenhuma doutrina compreensiva em especial. A norma que condena o homicídio ou que estabeleça a velocidade máxima do tráfego numa rodovia, por exemplo, possui evidentemente um propósito, mas é “desprovida de propósito” no sentido oakeshottiano porque não está ligada a um ideal específico 46, a uma forma de perfeccionismo, e sim a práticas surgidas espontaneamente. Seria o oposto de uma norma “ação-tipo” (e.g., uma lei que vise a promover a “justiça social” ou a “felicidade”), a qual, para ser considerada, pressupõe uma doutrina (uma construção ideal) que lhe dê sentido.
            A não-instrumentalidade, quando considerada a partir da visão de bem comum que a sociedade deve exercer, é plenamente aceitável porque reconhece a dimensão da pluralidade e do antagonismo. O grande problema surge quando se desloca essa idéia para a respublica; em suma, o fato de que as leis produzidas sejam somente “não propositadas” (reconhecendo apenas direitos civis e deixando de lado os direitos sociais e econômicos) faz parte de um propósito específico, qual seja, a criação de um status quo baseado não em direitos, tecnicamente, mas em deveres de não violar determinadas constrições deontológicas. 
            Este é o ponto mais complicado na teoria de Oakeshott. A hipótese que parece ser a mais adequada é reconhecer que a autoridade da respublica (por consistir muito mais num sistema de deveres do que direitos) está vinculada a uma visão política bastante particular e determinada. A possibilidade de sua contestação, para a medida deste trabalho, representaria uma forma de praticar a civilidade (através da busca por aprimoramentos, vistos de forma mais ampla), mantendo viva a associação civil.  

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Após relatar as diferenças conceituais entre os dois estilos de governo na obra de Michael Oakeshott, verificou-se que a política de ceticismo está vinculada a uma forma de liberalismo econômico que resume a atuação do Estado à manutenção da ordem – considerada como um mero arranjo de direitos e deveres não-instrumentais. A intervenção estatal com fins de promover direitos prestativos, de cunho social e econômico, seria uma busca pela perfeição (política de fé).
            Há que se ressaltar que o livro The Politics of Faith and the Politics of Scepticism foi escrito num período histórico marcado pelo auge do fascismo e do comunismo na Europa. Nesse cenário, não era estranho à literatura conservadora temer que o intervencionismo estatal pudesse conduzir as sociedades européias a regimes totalitários47.
            No entanto, Oakeshott, à diferença de outros conservadores, não tem a preocupação de racionalizar acerca de uma doutrina ideal que indique aos governantes o caminho “correto” de sua atividade. Em toda a sua obra, aliás, há um grande desprezo pela introdução do racionalismo (tanto por parte de liberais quanto por socialistas); para ele, a política é um oceano ilimitado de opções, e deve ser avaliada a partir da observação empírica das práticas tradicionais.
            Nestes termos, ainda que suas preferências estejam vinculadas ao individualismo, ao livre-mercado e à limitação da atuação do Estado, a forma como desenvolve seu raciocínio difere substancialmente da tradição liberal clássica. Não é à toa que o fascínio por Oakeshott tem motivado autores das mais diversas correntes teóricas a estudá-lo e, aproveitando-se de suas análises originais, buscar releituras críticas de seus conceitos.
            Este trabalho, dentro dos seus limites, discute a relação entre a manutenção da ordem e a intervenção estatal, argumentando que a política de ceticismo não é, a priori, absolutamente incompatível com uma agenda mínima de direitos sociais e econômicos.  Não se objetiva, com isso, anular a essência do pensamento oakeshottiano sobre as diferenças entre as políticas de fé e as de ceticismo. O que se pretende, por fim, é readequar o sentido da última, evitando extremos de que toda intervenção é necessariamente uma forma de perfeccionismo da humanidade, e que, por fim, possa significar o meio mais adequado para manter a ordem civilizada e pacífica de direitos e deveres entre os cives

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1 Steven Anthony GERENCSER. A democratic Oakeshott? Political Research Quarterly, vol. 52, n. 4, p. 845, dez. 1999.

2 Timothy FULLER. Oakeshott’s rationalism in politics today. In: OAKESHOTT, Michael. Rationalism in politics and other essays. 2 ed. Indianápolis: Liberty Fund, 1991, p. xv.

3 Em destaque, os trabalhos de Timothy Fuller, Paul Franco, David Mapel, Terry Nardin, John Wendell Coasts Jr. e Steven Anthony Gerencser. 

4 FULLER, 1991, p. ix.

5 Antes de prosseguir na análise do problema, é necessário fazer uma pequena digressão: a expressão “intervenção estatal” é utilizada no sentido de promoção ou efetivação de direitos sociais e econômicos. Não é pretensão deste trabalho, por outro lado, discutir a vasta doutrina que qualifica e diferencia os direitos em estágios ou gerações evolutivas. O objetivo aqui é menos ambicioso e mais pragmático: o que se busca ponderar é o papel da atuação do Estado enquanto agente meramente omissivo (que se abstém de violar, e pune outros que violem, os direitos civis tradicionais de uma ordem liberal) e sujeito ativo (que reconhece direitos além dos civis; em outras palavras, direitos que exigem prestações positivas). O uso que a pesquisa faz da “intervenção estatal” está diretamente relacionado a este papel ativo do Estado, enquanto arquiteto de políticas que envolvam a distribuição de benefícios econômicos, alterando o curso gradual destes num regime de livre-mercado.

6 Michael OAKESHOTT. The Politics of Faith and the Politics of Scepticism. New Haven: Yale University Press, 1996, p. 3.

7 Idem, Ibidem, p. 3.

8 Michael OAKESHOTT. On Human Conduct. Oxford: Oxford University Press, 1975, p. 112.

9 OAKESHOTT, 1996, p. 23.

10 Idem, Ibidem, p. 57.

11 OAKESHOTT, 1996, p. 97.

12 Esta observação é de grande importância. Toda associação empreendedora, em geral, possui um corpo de regras que estabelece parâmetros para a atuação dos agentes. Todavia, essas “regras” são na verdade transações entre os determinados indivíduos que buscam a satisfação de suas vontades substantivas. “Eles podem estar autorizados por regras, podem estar envolvidos na execução das regras, e qualquer obrigação existente pode estar conectada por regras; mas eles não são eles mesmos a proclamação das regras. E mais, as escolhas nas quais a associação empreendedora é constituída não são elas mesmas regras, embora possam reconhecer regras; são escolhas de propósitos comuns. E as decisões “gerenciais” nas quais um propósito comum de uma associação é buscado não são elas mesmas proclamações de regras; são ofertas para satisfazer vontades, e não são diferentes de escolhas contingentes na qual os indivíduos respondem a suas próprias situações.” (OAKESHOTT, 1975, p. 124-125). Para ilustrar este raciocínio, basta pensar no caso de uma igreja: ela é uma associação empreendedora porque os agentes estão unidos para a realização de um propósito comum (que pode ser, por exemplo, a perpetuação dos ensinamentos de Jesus); ela até mesmo pode editar algumas regras, como os cânones que regulam a nomeação de bispos e o procedimento de beatificação. No entanto, o que define a igreja é a identificação do propósito comum e não a proclamação das regras – estas são simplesmente instrumentos para melhor atender ao objetivo compartilhado.

13 OAKESHOTT, 1996, p. 65-75.

14 Nesse sentido, Oakeshott credita a Francis Bacon o papel de um dos principais teóricos que legitimaram a “invasão” do racionalismo na política, o que permitiu conferir ao governo a tarefa de conduzir a sociedade numa determinada direção. Na obra deste, o governo, em virtude de seu poder, direciona-o à “salvação” da humanidade. A busca pelo bem-estar (well-being) legou ao Estado poderes para interferir no comércio, regular os preços, etc. Em resumo, os escritos de Bacon sustentaram a idéia de que, ainda antes do fim do século dezesseis, o governo adquirisse poder necessário para promover as políticas de fé. (OAKESHOTT, 1996, p. 57).

15 Oakeshott destaca a versão econômica da política de fé, onde os poderes do governo são empregados (e, sobretudo, entendidos para serem propriamente empregados) na direção de dirigir e integrar todas as atividades do sujeito de modo com que haja convergência com a busca de uma condição das circunstâncias humanas através de expressões como “bem-estar” e “prosperidade”. Tais expressões são representações da “perfeição” própria de ser desejada pela humanidade. De acordo com o autor, as práticas dos governos europeus no século dezessete eram impor, através de minuciosas regulações, um modelo sobre as atividades dos indivíduos. (OAKESHOTT, 1996, p. 61).

16 Idem, Ibidem, p. 67.

17 Idem, Ibidem, p. 99-100.

18 Idem, Ibidem, p. 32.

19 “O governo é, neste estilo, primeiramente uma atividade judicial; e onde os homens estão decididos sobre uma realização, seja individual ou coletiva, a atividade judicial é facilmente confundida como um obstáculo. Ele abdica exatamente no ponto onde os ativistas esperam uma afirmação da autoridade; ele se abstém justamente quando se espera que avance; ele insiste em detalhes técnicos; é reduzido, severo e não entusiasmado; não possui coragem ou convicção. Eis o estilo de governo que reconhece uma multiplicidade de direções da atividade, embora não expresse aprovação por nenhuma delas; assume a “imperfeição” e ainda se arrisca a não realizar nenhum julgamento moral” (Idem, Ibidem, p. 109-110).

20 Idem, Ibidem, p. 38.

21 A relação entre governo e indivíduo reside, essencialmente, num direito do governante de governar e num dever do cidadão de obedecer. A questão a ser respondida aqui não é “por que, de fato, devo submeter-me àqueles que me governam?” ou “por que devo sentir-me avesso a submeter-me”. O que deve ser respondido é “porque devo submeter-me?” ou “por que autoridade um governante governa?”. Prevalece, aqui, a lógica do direito e não a lógica do fato; a autoridade do governo em nada tem a ver com o poder (potentia) que ele dispõe, mas sim com sua habilidade para compelir obediência dos seus comandados. A eventual ausência de poder não implica uma ausência do direito de ser obedecido e do dever de obedecer; em outras palavras, a força pode conquistar a obediência de fato, mas jamais estabelecerá o direito de ser obedecido. Nesse sentido, consultar Michael OAKESHOTT. Lectures in the History of Political Thought. Exeter: Imprint Academic, 2006, p. 428.

22  Bhikhu Parekh. The Political Philosophy of Michael Oakeshott.British Journal of Political Science, vol. 9, n. 4, p. 495, out. 1979.

23 A respublica é o trabalho das inteligências humanas e é reconhecida por compor um sistema mais ou menos coerente de regras. Neste sentido, respublica é o interesse público ou a consideração da categoria de cidadão. A associação civil é constituída pelo reconhecimento comum da autoridade da respublica: “o que liga um cidadão a outro e constitui a associação civil é o reconhecimento da autoridade da respublica e o reconhecimento da subscrição a suas condições como uma obrigação. Autoridade civil e obrigação civil são os pilares gêmeos da condição civil” (OAKESHOTT, 1975, p. 149). 

24 Idem, ibidem, p. 177.

25 OAKESHOTT, 1996, p. 35.

26 Idem, Ibidem, p. 36.

27 Idem, Ibidem, p. 36.

28 Este parece, no entanto, ser a grande nemesis da política de ceticismo. Este estilo caracteriza sua força à medida que não precisa ser esmagador ao invés de ser simplesmente forte: é supremo justamente porque é limitado. Contudo, o hábito de ser exato, e nunca excessivo, no cumprimento do seu dever por vezes pode representar uma indiferença a mudanças de toda espécie; conseqüentemente, está apto a ser insensível “mesmo para aqueles efeitos de mudança que surgem dentro de sua esfera, notavelmente o surgimento de condições que requerem ajustes nos sistemas de direitos e deveres caso uma relevante ordem seja mantida. Mas isto não é uma fraqueza contingente: é um defeito da virtude este estilo de governo” (Idem, Ibidem, p. 107). Ao contrário da política de fé, que em tudo vê “emergência”, “necessidade” ou “interesse público”, a política de ceticismo pode ignorar qualquer emergência real, confundindo-a com uma propensa forma de perfeição. “Enquanto a fé sofre a nemesis do excesso, o ceticismo é desprovido da sua autoridade por sua moderação” (Idem, Ibidem, p. 109).

29 Segundo Oakeshott, “ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o testado ao não testado, o fato ao mistério, o atual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a alegria presente à felicidade utópica”. Michael OAKESHOTT. Rationalism in Politics and other essays. 2 ed. Indianápolis: Liberty Fund, 1991, p. 408. Não raro, Oakeshott atrai para si muita polêmica (e também revolta), pois, em geral, o conservadorismo é associado à defesa de determinada visão compreensiva de bem - a exemplo do religioso, do nacionalista, do moralista, dentre outros. Para Oakeshott, no entanto, o conservadorismo não é uma idéia, mas sim uma postura quanto às capacidades humanas e aos limites da atividade de governar. Reconhecendo a política como um oceano ilimitado de alternativas, o conservador cético seleciona algumas invenções humanas (como o individualismo, a liberdade negativa, a associação civil) e procura conservá-las não porque as considera “perfeitas”, “naturais” ou “racionalmente preferíveis”, mas simplesmente porque não acredita que, eliminando-as, seja possível haver a possibilidade de uma vida menos opressora e mais pacífica. Por isso, vê a política enquanto um exercício que necessita de averiguação empírica, como práticas tradicionais de uma sociedade em termos históricos (aquilo que foi usado, testado e conhecido). Rejeita o racionalismo à medida que este, ao impor uma condição uniforme de perfeição sobre a conduta humana, idealiza sobre o futuro tentando encontrar um sentido para a história (algo absolutamente estranho ao estudo histórico). Além disso, “os racionalistas recusam-se a admitir o racionalismo na conduta humana, a não ser que se verifique uma deliberada e autoconsciente aplicação de princípios. Desta maneira, os hábitos, os costumes, as práticas que simplesmente herdamos ficam relegadas à categoria das irracionalidades, que tudo abrange”. R. Kenneth MINOGUE. Michael Oakeshott: o Oceano Ilimitado da Política. In: CRESPIGNY, Anthony de; MINOGUE, Kenneth R. Filosofia Política Contemporânea. 2 ed. Brasília: Editora da UnB, 1982, p. 131.  

30 OAKESHOTT, 1996, p. 34.

31 “Política, portanto, é a deliberação e o enunciado concernentes às conveniências civis; ou seja, com aprovação ou desaprovação das condições prescritas ou prescritíveis na respublica. E esta respublica é a articulação do interesse público que a busca de todos os propósitos e a promoção de todos os interesses, a satisfação de todas as vontades e a propagação de todas as crenças devem estar subscritas às condições formuladas em regras indiferentes aos méritos de qualquer interesse, verdade ou erro de qualquer propósito; conseqüentemente, não é ele mesmo um interesse substantivo ou uma doutrina”. OAKESHOTT, 1975, p. 172.

32 “O exemplo favorito de Oakeshott a este respeito é a emancipação das mulheres no começo do século XX, quando os hábitos sociais e as leis de conduta tinham mudado a tal ponto que a emancipação apareceu como a correção de uma anomalia. Argumentos tendentes a derivar a emancipação feminina dos direitos da mulher podiam ser mais impressionantes, e dar um estatuto metafísico ao ato, mas já que a estrutura racional que tencionava concretizar estes argumentos com lógica não passava de um castelo de cartas, só se podia considerar aquela derivação como uma maneira confusa de apontar o único motivo pertinente, ou seja, o de que privar do direito de voto as mulheres era uma anomalia dentro do contexto dos hábitos da sociedade européia”. CRESPIGNY, 1982, p. 135.

33 Nesse sentido, vale a pena consultar: Wendell John Coasts Jr..Michael Oakeshott as Liberal Theorist. Canadian Journal of Political Science, vol. 18, n. 4, p. 773-787, dez. 1985.; Neil MACCORMICK. Orden Espontáneo y Imperio de la Ley: algunos problemas, Doxa, n. 6, p. 309-327, 1989.

34 Michael OAKESHOTT. On History and other essays. Indianapolis: Liberty Fund, 1999, p. 178.

35 Nesse sentido, consultar: John HORTON. A qualified defense of Oakeshott’s Politics of Scepticism. European Journal of Political Theory, vol. 4, n. 1, 2005, p. 23.; Steven TELES e Matthew KALINER. The Public Policy of Skepticism. Perspectives on Politics, vol. 2, n. 1, mar. 2004, p. 39.

36 “O ingrediente da aquiescência é assentada na sua autoridade [da respublica]. Sem isso, não pode haver política; negá-la não é meramente recusar a subscrever-se às condições especificadas na lex, mas sim negar a obrigação civil e, pois, extinguir a relação civil e com isso a possibilidade de reflexão acerca das condições em termos de sua conveniência. Dissenso sobre a autoridade da respublica é anunciar o fim da associação civil, e genuínos dissidentes são também secessionistas que desejam deslocar suas participações na relação civil para qualquer lugar, ou estão dispostos a destruir a condição civil numa guerra civil” (OAKESHOTT, 1975, p. 164).

37 Nesse sentido, consultar: GERENCSER, 1999; Chantal MOUFFE. Democratic Citizenship and the Political Community. In: MOUFFE, Chantal (Org.). Dimensions of Radical Democracy: Pluralism, Citizenship and Democracy. Londres: Verso, 1992.

38 MOUFFE, 1992, p. 234.

39 OAKESHOTT, 1996, p. 99-100.

40 TELES & KALINER, 2004, p. 42.

41 Idem, Ibidem, p. 42.

42 Nesse sentido, uma análise bastante capciosa é defendida por John Horton. Para ele, “enquanto há significativas diferenças de grau, e talvez de natureza, com respeito às mais extravagantes manifestações da política de fé, Oakeshott não estabelece que há uma distinção categórica genuína entre as suas mais modestas formas e a política de ceticismo. Eu argumento que as mais modestas formas de políticas de fé podem escapar da lógica da perfeição, e que os aprimoramentos associados com a política de ceticismo não devam ser tão diferentes em sua estrutura” (HORTON, 2005, p. 29-30).

43 “A primeira dessas condições é, portanto, que as regras sejam de um certo tipo (...) Não são as regras de uma associação empreendedora, as quais especificam condições alegadas para ser instrumentais ao propósito considerado comum (...) Eu as chamarei de lex; regras que prescrevem responsabilidades comuns (e os correspondentes ‘direitos’ para ter tais responsabilidades completadas) de agentes e nos termos dos quais eles colocam de lado seu caráter de empreendedores e desconsideram tudo o que os diferencia um do outro, reconhecendo-se como formalmente iguais – cives. Essa lex deve ser exata, pouco duvidosa, e, como econômica que deve ser, as condições que descreve e prescreve não devem entrar em conflito uma com a outra” (OAKESHOTT, 1975, p. 128).  

44 MACCORMICK, 1989, p. 325.

45 David MAPEL. Purpose and Politics: can there be a Non-Instrumental Civil Association? The Political Science Reviewer, vol. 21, n. 1, 1992, p. 78.

46 Em alguns casos, apenas a título de nota e sem a pretensão de aprofundar o tema aqui, a não-instrumentalidade pode ser razoavelmente contestada. É bem provável que uma lei que proíba o adultério ou a união civil entre homossexuais seja uma construção ligada a um propósito compreensivo (a cultura religiosa). Mas é igualmente razoável constatar que tais leis sejam veiculadas a práticas consolidadas historicamente e que, dependendo do momento histórico, podem ser abolidas como uma forma de aprimoramento no sistema de direitos e deveres. Por fim, uma associação civil pode subsistir ainda que tenha uma norma que proíba o adultério, mas é incompatível de modo absoluto com o reconhecimento de um Estado Católico, por exemplo. 

47 Nesse sentido, vale conferir: HAYEK, Friedrich August von. O caminho da servidão. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1946, p. 21-32; HALÉVY, Elie. L’ère des tyrannies: études sur le socialisme et la guerre. Paris : Librairie Gallimard, 1938, p. 213-221; SPENCER, Herbert. The Man versus the State. Indianápolis: Liberty Fund, 1981, p. 62-64.