Contribuciones a las Ciencias Sociales
Febrero 2014

DEMOCRATIZAR, DESCOLONIZAR E DESMERCADORIZAR: REPENSAR DA AMÉRICA LATINA



Jean Lucca de Oliveira Becker (CV)
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (CV)
raquel7778@hotmail.com
Universidade Federal do Rio Grande





 

RESUMO: O presente trabalho visa compreender, num primeiro momento, de que forma os discursos foram fundando a nossa história e os nossos sentidos a partir de uma lógica de subalternização e de conseqüentes práticas coloniais de dominação. Esta análise discursiva mostra-se de fundamental importância na medida em que revela no contexto contemporâneo, uma perpetuação da colonialidade, notadamente a partir dos projetos neoliberais. Por conseguinte, parte-se para um segundo momento em que se expõe o fato de que estes projetos neoliberais produzem uma extrainstitucionalidade capaz de corroer as bases do contrato social. Assim, por vivermos no contexto de uma geopolítica de acumulação capitalista apoiada na exclusão, temos no terceiro momento do artigo uma visão dos direitos humanos enquanto ferramenta intercultural e de racionalidade de resistência.

PALAVRAS-CHAVES: Democratizar. Descolonizar. Desmercadorizar.

RESUMEN: El presente trabajo busca comprender, en el primer momento, de qué manera los discursos fueron fundando nuestra historia y nuestros sentidos, partiendo de una lógica de subordinación y de consecuentes practicas coloniales de dominación. Este análisis discursivo se muestra de fundamental importancia al paso que revela, en el contexto contemporáneo, una perpetuación de la colonialidad, especialmente a partir de los proyectos neoliberales. Por consiguiente, se parte para un segundo momento, en lo cual se expone el fato de que estos proyectos neoliberales producen una extrainstitucionalidad capaz de desgastar las bases del contrato social. Así, porque vivimos en el contexto de una geopolítica de acumulación capitalista, apoyada en la exclusión, tenemos en el tercer momento de este artículo una visión de los derechos humanos como herramienta intercultural e de racionalidad de resistencia.

 Palabras clave: Democratizar. Descolonizar. Desmercadorizar.

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de Oliveira Becker, J. y Lopes Sparemberger, R:: "Democratizar, descolonizar e desmercadorizar: repensar da América Latina", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Febrero 2014, www.eumed.net/rev/cccss/27/democratizar-descolonizar.html

INTRODUÇÃO
Partindo-se da concepção de que não há acontecimento histórico que não aguarde interpretação ou até mesmo que não “peça” que se lhe localizem causas e conseqüências, estamos presenciando no cenário contemporâneo um momento de fortes movimentos sociais com protestos, indignação e revolta. Não obstante, a grande maioria dos cidadãos, em especial os latino-americanos, se tornou não sujeitos de direitos humanos, mas sim objetos de discursos destes direitos. Deste modo, existem sinais de que estamos entrando num processo de guerra civil com baixa intensidade: uma grande agitação social em virtude de as instituições não funcionarem propriamente. Percebe-se uma deterioração destas instituições, uma idéia de que a democracia foi derrotada pelo capitalismo. Neste cenário, as ruas e as praças, por exemplo, acabam se tornando os únicos espaços públicos que ainda não foram colonizados pelo capital financeiro.
Na tentativa de compreender estes movimentos que surgem a partir de períodos em que as instituições parecem não dar respostas às aspirações populares, é que o presente artigo se estrutura, e da seguinte maneira: num primeiro momento analisa de que forma os discursos foram fundando a nossa história e os nossos sentidos a partir de uma lógica de subalternização e de conseqüentes práticas coloniais de dominação. Esta análise discursiva mostra-se de fundamental importância na medida em que revela no contexto contemporâneo, uma perpetuação da colonialidade, notadamente a partir dos projetos neoliberais. Por conseguinte, parte-se para um segundo momento em que se expõe o fato de que estes projetos neoliberais produzem uma extrainstitucionalidade capaz de corroer as bases do contrato social. Assim, por vivermos no contexto de uma geopolítica de acumulação capitalista apoiada na exclusão, temos no terceiro momento do trabalho uma visão dos direitos humanos enquanto ferramenta intercultural e de racionalidade de resistência.

  1. Discurso das descobertas, colonialidade e projetos neoliberais.

Partindo-se do pressuposto de que não há fato histórico que não faça sentindo, não há como compreendermos a realidade do mundo em que vivemos, principalmente no contexto latino-americano pautado pelo aumento da pobreza, pela má distribuição de renda, pela marginalização dos movimentos sociais, pela privação dos direitos básicos, enfim pela opressão e insegurança econômica, jurídica e social, sem remontarmos, primeiramente, ao fenômeno da colonização (que aliás possui muitas formas, inclusive as que não são categorizadas por este acontecimento) na América Latina.
O estabelecimento do discurso das descobertas (discurso da conquista ou discurso da dominação), a partir do contato entre culturas diferentes, ou seja, a partir da retórica de contato entre índios e ocidentais, permitiu a constituição dos discursos da construção do “outro”. Dessa forma, os discursos foram fundando a nossa história e os nossos sentidos. Na visão de Eni Puccinelli Orlandi (2008, p.19):

O princípio talvez mais forte de constituição do discurso colonial, que é o produto mais eficaz do discurso das descobertas, é reconhecer apenas o cultural e des-conhecer (apagar) o histórico, o político. Os efeitos de sentindo que até hoje nos submetem ao “espírito” de colônia são os que nos negam a historicidade e nos apontam como seres-culturais (singulares), a – históricos.

Nessa seara, percebe-se que a produção do discurso colonial condenou a população latino-americana a condição apenas de um sujeito-cultural, negando-lhe o estatuto de sujeito-histórico. Esta análise de discurso problematiza fundamentalmente, no plano das ciências humanas e sociais, a natureza de concepção de sujeito sobre as quais essas áreas do conhecimento se pautam. Assim, a produção de conhecimento da América Latina sobre a América Latina pode (e deve) adquirir uma forma crítica de modo a não ser mera reprodução do olhar europeu. Visto que construíram para nós, enquanto latino-americanos, uma história capaz de apagar nossa alteridade, acabamos nos tornando somente “singulares” com algumas “particularidades”. Ainda para Orlandi (2008, p. 56): “[...] não somos o ‘outro’ constitutivo porque não ‘somos’ (seres históricos etc.).”
Logo, verifica-se que o sujeito colonizado não possui a capacidade de ocupar posições discursivas que o colonizador ocupa. Não obstante, é a partir das posições deste que foram projetadas as posições possíveis daquele. É a partir desta lógica de subalternização e de conseqüentes práticas coloniais de dominação que foi moldada a inferioridade imposta aos seres humanos que não se encaixavam ao projeto de dominação hegemônica da cultura ocidental, moderna, colonial e da economia de mercado capitalista.
Portanto, em que pese à importância do debate crítico sobre a América Latina na perspectiva descolonial, nota-se que no contexto contemporâneo1 , há uma seqüência da colonialidade – para Walter Mignolo em seu livro La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial, colonialidade é uma estrutura lógico-cognitiva de domínio colonial que subjaz o controle das metrópoles ou impérios – notadamente a partir dos projetos neoliberais. Em linhas gerais, o neoliberalismo ressurge com a crise do Welfare State dos anos 70, que nos países centrais permitiu o renascimento de um novo liberalismo, propondo-se uma retomada das idéias de A. Smith: “o melhor estado é o menor estado (SMITH, 1976).” Deste modo, na visão dos neoliberais, o estado entrou em crise por ter se ampliado de mais, assumindo tarefas que não lhe pertenciam.
Acrescenta Baumgarten (1995, p. 47): “[...] uma política econômica ortodoxa que vai do corte do gasto social, passando pela contenção do crédito, retomada do equilíbrio orçamentário e diminuição de tributos.” Ou seja, o neoliberalismo, na condição de manifestação contemporânea de perpetuação da colonialidade, propõe um corte entre a política econômica e a política social, esta última vista como subordinada àquela. Alguns economistas apontam que esta ênfase dada no corte dos programas sociais teria como causa o fato de que estes provocariam alterações no funcionamento do capitalismo, aumentando o poder de barganha dos trabalhadores e conseqüentemente diminuindo a capacidade de redução dos salários, por exemplo.
Não obstante, este neoliberalismo conservador é capaz de potencializar a segmentação e a exclusão econômica e social inerente ao capitalismo, logo, Boaventura de Sousa Santos realiza em suas obras uma série de críticas a ideologia e a prática dos projetos neoliberais:

[...] o Estado parece estar a perder o estatuto de unidade privilegiada de análise e de prática social. Esta perda relativa de protagonismo do Estado nos países centrais tem tido um papel determinante nas políticas sociais. Desregularão, privatização, mercado interno do Estado, co-participação nos custos, mercadorização, cidadania ativa, ressurgimento da comunidade são algumas das denominações do variado conjunto de políticas estatais com o objetivo comum de reduzir a responsabilidade do Estado na produção de bem-estar social. O fato de, na maioria dos países, a degradação do desempenho social do Estado não lhe ter diminuído significativamente o peso burocrático faz com que ao crescente enfraquecimento e ineficácia da administração pública venha juntar-se o crescimento de um sem-número de burocracias desajustadas, cada vez mais impotentes e politicamente incapazes (SANTOS, 2000, p. 155).

Ainda para este autor: “[...] o conservadorismo floresce sob o nome enganador de neoliberalismo. O neoliberalismo não é uma versão nova do liberalismo, mas antes uma versão velha do conservadorismo (SANTOS, 2003, p. 6).” Portanto contata-se que esta política econômica significou, em termos políticos, no contexto atual, um modo de assinalar um prosseguimento da colonialidade2 , de maneira a bloquear a via legal para a emancipação social.

  1. As condições de exercício da democracia e da cidadania

A cidadania pode ser compreendida como um conjunto de direitos que os indivíduos detêm por serem membros de uma comunidade específica, que na modernidade denomina-se Estado-Nação. Há uma comunidade de pertença coletiva capaz de criar direitos e obrigações às pessoas que se concertou chamar cidadãos. De acordo com Pedro Paulo Funari (2003, p.49): “No sentindo moderno, cidadania é um conceito derivado da Revolução Francesa (1789) para designar o conjunto de membros da sociedade que têm direitos e decidem o destino do Estado.”
Por outro lado, a democracia pode ser conceituada como um processo de fato através do qual uma relação de poder desigual se transforma em relações de autoridade partilhada. Boaventura de Sousa Santos, em Conferência realizada no dia 09 de maio de 2011, no Plenário da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, afirmou que democratizar é isto: passar de poderes desiguais para autoridade partilhada na família, na escola, na fabrica, no escritório, enfim, no sistema político e em geral. Na opinião do cientista político Paulo Bonavides (2001, p.267), “[...] nos dias correntes, a palavra democracia domina com tal força a linguagem política deste século, que raro o governo, a sociedade ou o Estado que não se proclamem democráticos.” Dessa maneira, nota-se que democracia é um conjunto que funciona naturalmente articulado com a cidadania.
Assim, faz-se necessário, neste trabalho, a análise de nossa sociedade a partir da “saúde” da nossa democracia e da nossa cidadania, na medida em que vivemos em um tempo paradoxal em sentindo específico. Na opinião do sociólogo português, as pessoas possuem uma idéia de que todas as construções do Estado moderno, das sociedades modernas, da democracia e da cidadania estão baseadas em um conjunto coerente de instituições. Contudo, verifica-se que tais instituições não se adéqüem perfeitamente à democracia e à cidadania como o grande horizonte de possibilidades de direitos que temos no nosso tempo. 3 Tanto é verdade que possuímos uma realidade pautada pelo aumento da pobreza, pela má distribuição de renda, pela marginalização dos movimentos sociais, pela privação dos direitos básicos, enfim pela opressão e insegurança econômica, jurídica e social.
Por conseguinte, nota-se que estas instituições estão a aniquilar-se de forma a perder sua vitalidade, na medida em que não correspondem às exigências que os cidadãos lhes fazem, tanto ao nível das práticas democráticas quanto do exercício dos direitos da cidadania. Na visão do professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, essa dificuldade de as instituições de captarem a vitalidade social vai em sentidos políticos diferentes, pois hoje temos ações de rua, de protesto, ação direta das massas, dos povos organizados espontaneamente para lutar por uma sociedade melhor, na construção da democracia, ações dos cidadãos que se organizam através das redes sociais – como se elas fossem as instituições do futuro.
A extrainstitucionalidade, ou seja, essa incapacidade das instituições de satisfazer os anseios e as expectativas dos cidadãos ocorre porque o capitalismo global, traduzido através do neoliberalismo, que por sua vez é uma política econômica que assinala a continuidade da colonialidade, corroe as bases do contrato social. 4 Assim, há uma obrigação política vertical (o Estado com o seu poder de soberania, os cidadãos com obrigações perante o Estado, e o Estado com obrigações perante seus cidadãos) e uma relação horizontal (obrigação cidadão a cidadão). E conseqüentemente, no entendimento de Boaventura de Sousa Santos, quando a obrigação vertical se corrói, a obrigação horizontal também se corrói. A intolerância, a violência e a desagregação social são sintomas de que tanto a obrigação vertical quanto horizontal está a abrir brechas.

  1. Direitos Humanos versus direitos de cidadania

A observação crítica dos fatos históricos revela que os direitos humanos iniciam no momento em que começam a fracassar os direitos de cidadania, pois na medida em que o conjunto de direitos que os indivíduos detêm por serem membros de uma comunidade específica vai se corroendo, começam a surgir os sistemas internacionais de direitos humanos – estes mais “diluídos”, com menos capacidade de coerção e aplicação direta. Por isso a necessidade de utilizarmos os direitos humanos de uma maneira contra-hegemônica, intercultural e vindo de lutas coletivas, para assim afirmá-los a nível local, nacional e internacional.
Na visão de Boaventura de Sousa Santos, co-coordenador científico dos programas de doutoramento: Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI; Democracia no Século XXI; Pós-Colonialismos e Cidadania Global, os próprios direitos de cidadania vinham de lutas coletivas dos trabalhadores, das mulheres, do movimento LGBT, dos indígenas, dos afrodescendentes, etc. Nesta conjuntura, Joaquín Herrera Flores, em A (re)invenção dos direitos humanos, trabalha com uma perspectiva dos direitos humanos contextualizada em práticas sociais emancipadoras, o que se permite ir contra a homogeneização, a invisibilização, a centralização e a hierarquização das práticas institucionais tradicionais:
Não podemos entender os direitos sem vê-los como parte da luta dos grupos socais empenhados em promover a emancipação humana, apesar das correntes que amarram a humanidade na maior parte de nosso planeta. Os direitos humanos não são conquistados apenas por meio das normas jurídicas que propiciam seu reconhecimento, mas também, e de modo muito especial, por meio das práticas socias de ONGs, de Associações, de Movimentos Sociais, de Sindicatos, de Partidos Políticos, de Iniciativas Cidadãs e de reivindicações de grupos, minoritários (indígenas) ou não (mulheres), que de um modo ou de outro restaram tradicionalmente marginalizados do processo de positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas (FLORES, 2009, p. 77).
 
Dessa forma, para falarmos de direitos humanos no mundo contemporâneo, faz-se necessário enfrentar desafios completamente distintos dos que tiveram de enfrentar os redatores da Declaração Universal de 1948. Hoje, no contexto de uma geopolítica de acumulação capitalista apoiada na exclusão (neoliberalismo, que por sua vez é uma política econômica que assinala a continuidade da colonialidade) e da conseqüente erosão das funções sociais do Estado, os direitos humanos devem ser encarados como uma ferramenta intercultural e de racionalidade de resistência.
Na opinião de Enrique Dussel, em suas 20 Teses de política, especificamente na 15ª tese onde o autor defende uma práxis de libertação dos movimentos sociais e políticos, há que se formular um “paradigma ou um modelo novo de ampla participação, de hegemonia popular, de identidade nacional (em especial nos países pós-coloniais ou periféricos), de defesa dos interesses econômicos dos mais débeis (DUSSEL, 2007, p. 117-118).” Reivindicações estas que são impossíveis de serem cumpridas por um capitalismo neoliberal de estratégia globalizadora como dominação e espoliação das nações subalternas. Entretanto, o autor cita uma renovação da eficiência administrativa, “[...] que se fundamente em um novo pacto social e, além disso, em novas constituições que permitam novas estruturas de um Estado transformado (DUSSEL, 2007, p.118).” Equador e Bolívia são dois países que podem ser mencionados na medida em que estão a fazer uma grande transformação constitucional.
 Joaquín Herra Flores, contextualiza nossa época de exclusão generalizada:
Um mundo no qual quatro quintos de seus habitantes sobrevivem à beira da miséria; um mundo no qual a pobreza aumenta em 400 milhões de pessoas ao ano, segundo o relatório do Banco Mundial de 1998, o que faz com que, atualmente, 30% da população mundial viva (?) com menos de um dólar ao dia, situação que atinge de forma especial às mulheres. Além disso, 20% da população mais pobre recebe menos de 2% da riqueza do mundo, enquanto os 20% mais ricos ficam com mais de 80% do total de riquezas produzidas. Um mundo em que mais de 1 milhão de trabalhadoras e trabalhadores morrem por acidentes de trabalho, 840 milhões de pessoas passam fome, um bilhão não tem acesso a água potável e a mesma quantidade é analfabeta, tudo em razão de planos de (des)ajuste estrutural que estão impondo o desaparecimento das mais diminutas garantias socais (PNUD, 1996)  (FLORES, 2009, p. 152).

Neste cenário, o autor propõe pensar os direitos humanos enquanto uma prática intercultural capaz de nos conduzir a uma resistência ativa. “[...] com essa visão, queremos superar a polêmica entre o pretendido universalismo dos direitos e a aparente particularidade das cultuas (FLORES, 2009, p. 156).” Para ilustrar seu pensamento, o doutor em Direito aplica sua metodologia ao caso das migrações: primeiramente, deve-se resistir ao discurso que reduz o tema migratório a uma luta contra o tráfico ilegal de seres humanos; em segundo lugar, também deve se resistir à postura de considerar as migrações como um problema policial e de controle de fronteiras; em terceiro lugar, também deve-se resistir a considerar a “realidade” da imigração e do contato entre culturas como a principal geradora de problemas sociais no mundo contemporâneo.
Assim, a economia deve ser controlada por uma política5 comprometida não só com a livre circulação dos capitais, mas também com a livre circulação das pessoas: “[...] uma política alheia a qualquer violação dos direitos insertos nos textos de direitos humanos; uma política, enfim, que nos aporte mecanismos para podermos resistir, imigrantes e residentes, a uma ordem global injusta e desigual (HERRA FLORES, 2009, p. 168 - 169).”
Em vistas dos argumentos apresentados, Boaventura de Sousa Santos, em Conferência realizada na cidade de Porto Alegre / RS no ano de 2011, com o intuito de pensarmos em uma forma capaz de conduzir a sociedade para uma melhor sociabilidade, propõe três palavras-chaves: democratizar, descolonizar e desmercadorizar.
A primeira tarefa para democratizar é democratizar a democracia, já que em muitos países esta está seqüestrada por seus inimigos, tirando-a do domínio político e democratizando-a na família, na rua, na comunidade, no mercado, na fábrica, no escritório, etc. Nesta democratização que é também a descolonização, temos o exemplo prático das ações afirmativas (as cotas) que estão a mostrar exatamente como é possível descolonizar a sociedade brasileira – uma forma de se combater a intolerância através de uma política pública de educação intercultural. E, por último, mas de igual importância, desmercadorizar, já que o capitalismo, se puder, vai transformar as sociedades onde tudo se compra e tudo se vende. Não apenas os produtos, mas também as convicções políticas e ideológicas. Apesar de existir valores que têm preço (e para isso há mercados), há valores que não têm preço e são exatamente estes que hão de conduzir a sociedade para uma melhor sociabilidade, para uma sociedade melhor através destas grandes três tarefas: democratizar, descolonizar e desmercadorizar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo procurou contribuir para as reflexões acerca dos discursos que foram fundando a nossa história e os nossos sentidos a partir de uma lógica de subalternização e de conseqüentes práticas coloniais de dominação. Esta análise discursiva mostrou-se de suma importância na medida em que revelou no contexto contemporâneo, uma perpetuação da colonialidade, notadamente a partir dos projetos neoliberais. Por conseguinte, foi exposto o fato de que estes projetos neoliberais produzem uma extrainstitucionalidade capaz de corroer as bases do contrato social. Assim, por vivermos no contexto de uma geopolítica de acumulação capitalista apoiada na exclusão, fez-se necessário termos uma visão dos direitos humanos enquanto ferramenta intercultural e de racionalidade de resistência.
Cabe destacar que a finalidade deste artigo não é oferecer respostas e soluções para essa problemática tão desafiadora, mas sim tecer considerações que possam contribuir para o despertar da complexidade das discussões que se apresentam.

REFERÊNCIAS
BAUMGARTEN, Maíra. Desenvolvimento capitalista, estado e políticas públicas. Momento (Rio Grande), Rio Grande, v. 8, p. 39-93, 1995.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. São Paulo: Expressão popular, 2007.
FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. 49 – 77.
HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à vista – Discurso do confronto: Velho e Novo Mundo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder e classificação social. In: MENESES, Maria Paula; SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. 2, 84 – 129.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Porto Alegre, RS: L&M, 2009.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2000.
__________________________. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 65, p. 3-76, 2003.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

1 “[...] vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas novos convivendo com antigos – a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica muito disseminadas, violação de liberdades políticas elementares e de liberdades formais básicas, ampla negligência diante dos interesses e da condição de agente das mulheres e ameaças cada vez mais graves ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade de nossa vida econômica e social.” (SEN, 2010, p. 9)

2 “A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal. Origina-se e mundializa-se a partir da América (QUIJANO, 2010, p. 84).”

3 Já na introdução de A Era dos Direitos, Norberto Bobbio trabalha com a idéia de que os direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos (BOBBIO, 2004, p. 1).” 

4 “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pala qual cada um, ao unir-se a todos, obedeça somente a si mesmo e continue tão livre quanto antes. Esse é o problema fundamental para o qual o contrato social oferece solução (ROUSSEAU, 2009, p. 33).”

5 “A política tem a ver essencialmente com ‘o social’ – embora equivocadamente H. Arendt o negue. Em última instância, os objetivos do conteúdo e a matéria da política são a satisfação das reivindicações sociais (passadas e já institucionalizadas em seu cumprimento, ou futuras e ainda não resolvidas, de onde procede a necessidade das transformações institucionais). O social é o âmbito ou subcampo do campo político atravessado pelos campos materiais (ecológico, econômico, cultural, etc., postos em ação por novos movimentos sociais) em que, quando os atores tomam consciência de suas reivindicações não cumpridas, se produz a crise (aparece o ‘problema social’). A política deve resolver esse ‘problema social’ (DUSSEL, 2007, p. 59 - 60).”