Contribuciones a las Ciencias Sociales
Septiembre 2013

A MEMÓRIA DO PATRIMÔNIO



Cristina Jeannes Rozisky (CV)
crisroz@hotmail.com
Universidade Federal de Pelotas

Resumo: Este artigo discorre sobre alguns aspectos da memória, no que diz respeito ao patrimônio, e como se desenvolveu o processo de patrimonialização memorial que se vivencia atualmente. A preservação do patrimônio, dos bens patrimoniais enquanto memória, identidade e pertencimento. O conhecimento da história, do valor agregado como significado de determinado bem material, seja ele imóvel, móvel ou integrado.
Palavras chave: memória, patrimônio, preservação, bens culturais.



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Rozisky, C.: "A memória do patrimônio", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Septiembre 2013, www.eumed.net/rev/cccss/25/bens-culturais.html

A memória está na ordem do dia, ela está presente na multiplicação dos museus, nas instituições de memória, centros de memória, arquivos, memórias de empresas, de partidos, de igrejas, de famílias, de clubes, nos documentários, novelas de época, moda retrô, movimentos sociais de preservação de bens culturais, reivindicações de identidades e cidadania etc. são todos recursos mobilizadores de memória. Acrescenta-se ainda a preservação de áreas urbanas, o tombamento de bairros, a atração das biografias e autobiografias, o mercado de antiguidades, lutas contra o esquecimento e por aí afora. É como se a memória transbordasse. Essa efervescência deve significar ainda que a preocupação com a coleta e o registro de informação e documentação atinge por vezes níveis preocupantes. Atualmente, vivencia-se o processo de patrimonialização que Françoise Choay denomina de “expansão ecumênica das práticas patrimoniais” (2006, p.207). Este é relacionado com a ampliação do universo de bens culturais, através da noção de referência cultural, e engloba objetos, práticas e lugares apropriados pela cultura na construção de sentidos de identidade. São o que popularmente chama-se de raiz de uma cultura.
A UNESCO coloca que os bens culturais “são de fundamental importância para a memória dos povos e a riqueza das culturas”. O entendimento dessa relação da aproximação das questões relativas à preservação e transmissão da memória, se tornam indispensáveis para a compreensão da importância do patrimônio para a humanidade.
Os países que praticam a memória são mais vívidos, mais criativos, fazem melhores negócios, melhor turismo, são mais distintos. Os países sem memória são anêmicos, não se movem, são conformistas, e caem numa espécie de cultura de sofá, gente que está sentada no sofá assistindo a televisão… E não se movem. Acredito que a memória é um conceito tão importante quanto a circulação do sangue. (Patrício Guzmán, documentarista chileno em entrevista à revista Carta Maior, em 17/07/2012).
Esta citação de Patrício Guzman ilustra o quanto memória, conhecimento histórico, cultura e identidade estão ligados à educação, a transmissão do conhecimento e consequentemente ao desenvolvimento de sociedade, de nação. Mas essa efervescência toda representa alguma consistência da memória no presente, é capaz de produzir consciência histórica? Seria então desejável que uma das funções da memória fosse aumentar a capacidade de perceber as transformações da sociedade pela ação humana, permitindo que se tenha quase que efetivamente a experiência da dinâmica social, da ação das forças que constroem a sociedade e que podem muda-la a todo instante.
Mas qual o tempo da memória? Seria o passado? Sem dúvida, o tempo da memória é o presente, mas ela necessita do passado.  O tempo da memória é o presente, pois é no presente que se constrói a memória – a memória não se constrói no passado, se constrói no presente, pois são as necessidades do presente que a memória responde, não as necessidades do passado nem as do futuro, embora muitas vezes, retoricamente, seja representado assim. Contudo, os usos da memória são usos no presente – tradição só existe no presente das sociedades. Mas é claro, então que o conteúdo da memória, sim, implica o passado, porque a inteligibilidade das transformações da vida precisa do passado para ser identificada e entendida. Entretanto a natureza do objeto histórico é do presente, ele funciona no presente, na contemporaneidade (ele próprio ou por referência). Foi produzido no passado, claro, mas, a interação com ele é no momento contemporâneo. A contemporaneidade reúne em um tempo sincrônico diversas temporalidades.
Mas o passado não é apenas uma anterioridade temporal, deve-se ter a percepção do que é insubstituível para entender a condição básica da vida humana e que a história fornece que é a diferenciação do tempo. A história precisa do passado para identificar e explicar a diferença, assim ela não é disciplina do passado, mas da diferença. Pela diferença se compreende a transformação, a dinâmica que rege a vida humana. A memória é a faculdade neurobiológica de reter, gravar, recuperar, conservar impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente. A construção da memória está diretamente ligada ao emocional, à identidade na medida em que ela é um fator de extrema importância no sentimento de continuidade, pertencimento e coerência de uma pessoa e/ou de um grupo. Memória é o que nos torna essencialmente humanos, sem ela não há imaginação, não é possível contratos ou vínculos sociais.
É impossível falar de memória como se memória fosse um dado que tivesse significação em si, abstrata, sem história. Só é possível falar da memória quando se leva em conta que ela também tem uma história. E quando se fala história da memória, não é apenas nas teorias e dos conceitos sobre memória, isso também é fundamental, mas quando se menciona o conceito de quadros sociais da memória formulado na virada do século XIX para o XX por Maurice Halbwachs, em que ele diz que a memória somente pode ser entendida a partir das condições preexistentes na sociedade, para que determinadas lembranças possam estabelecer a coesão social. Este conceito só se entende integralmente se levarmos em conta essa virada de século, quando o grande problema das ciências sociais estava naquilo que manteria a sociedade como um todo, ou seja, na busca de coesão, de unidade. A memória não só transmite conhecimento e significações, mas cria significados. Os significados como tudo aquilo que é histórico, são mutáveis.
A memória se altera conforme o distanciamento com o fato. Segundo Henri Bergson (2006), o passado sobrevive por inteiro no presente, as lembranças são acumulativas. Só se entende o presente, pois o passado informa, assim da mesma forma, só se projeta o futuro, através do presente porque as experiências vividas permitem que se avance em sua direção. Mas, sem uma ideia de passado que assegure divisar os sentidos, os mecanismos, as lógicas, os vetores, os agentes da diferença e da transformação, a mudança é ininteligível, é apenas um fator de angustia. A ruptura e a descontinuidade vão ser fundamentais para definir o passado. É a partir desse rompimento da conexão orgânica com o passado e da descoberta do tempo histórico, pela experiência de acompanhar mudanças em estruturas sociais consideradas eternas, que começa uma crise de memória, representada pelo marco da revolução francesa século XVIII. Uma ruptura de paradigmas.
De acordo com Ivan Izquierdo (1988), a memória é a capacidade de armazenar e evocar informações, é a conservação do passado através de imagens ou representações que podem ser evocadas. Para este autor, a construção da memória envolve processos que se convencionaram denominar “consolidação”, entendidos tanto no sentido de solidificação de memórias, como no da junção de várias memórias. A reconstrução, que é à base da evocação, e, portanto, o único meio de medir ou determinar se cada memória existe, envolve também processos de consolidação, análogos àqueles desenvolvidos na construção. De tal modo, como destaca o autor, recebemos informações constantemente através de nossos sentidos, mas não memorizamos todas. Há, portanto, um processo de seleção prévia à formação de memórias, que determina quais informações serão armazenadas e quais não.
Para Maurice Halbwachs (1990), o conceito de memória coletiva defende que a memória individual é socialmente constituída por quadros sociais e tudo o que nos lembramos do passado faz parte dessas construções, que são realizadas no presente. O contexto social é a base da memória do individuo: a relatividade da memória será condizente com os quadros sociais que o individuo viverá em sociedade e que estarão presentes em todas as fases de sua vida como família, amigos, etc. Assim a memória possui sempre um caráter social. Não existe uma memória que seja estritamente individual, pois a memória é formada coletivamente. Sempre se aprende ou apreende-se algo através de outrem, nunca se está só, pois carrega-se consigo impressões, ensinamentos, observações de outro; isto ocorre por ser seres sociais inseridos em determinados grupos e em determinados momentos.
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que os outros estejam presentes, (...), pois sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem. (HALBWACHS, 2006, p. 30).
Desse modo, a memória é socialmente construída. Mesmo que um indivíduo esteja sozinho, ele irá recordar através de quadros coletivos da memória que foram construídos através de interações entre indivíduos, em diversos contextos. Memória é construção parcial e seletiva do passado cujos pontos de referencia são fornecidos pela sociedade. A memória coletiva se formula naturalmente por seres sociais, e dentro de cada grupo sofre evoluções e adaptações. Porém não pode-se esquecer a importância do indivíduo que evoca as lembranças de acordo com o seu contexto, com o seu presente, de sua memória individual, onde o grupo se torna a base de sua memória. E para que a memória coletiva sobreviva é necessário trocas, interações, evoluções, comunicação, resgate dentro deste contexto social.
Porém, Joel Candau (2001) afirma que o conceito de memória coletiva é muito difuso, mas prático, pois não é possível designar de outro modo certas formas de consciência do passado, aparentemente compartilhadas por um grupo de indivíduos. A memória coletiva é um elemento unificador do grupo, um elemento de representação coletiva compartilhado por vários indivíduos de um determinado grupo e serve como mediador para alcançar e assumir uma característica real de memória. Entretanto, é evidente que a memória de um indivíduo, por mais que seja construído isoladamente, em seu íntimo, sofre, a todo instante, influências das relações sociais, de seu grupo. A memória permite fazer o tempo passado se presentificar, permite construções e reconstruções sociais de fatos vividos, permite romper silêncios e entender formas e representações simbólicas. Permite, assim, entender as múltiplas camadas de tempos e espaços que necessitam de valores e significados culturais. Ainda, o conceito de sóciotransmissores de Candau, com o qual ele designa todas as produções e comportamentos humanos que estabelecem uma cadeia cognitiva social ou cultural entre indivíduos. Sendo, portanto, indispensáveis para a transmissão cultural e para a partilha memorial, pois são considerados dispositivos de transmissão da memória.
A memória é sempre feita de memórias e esquecimentos e a sociedade compartilha principalmente o que se esquece de seu passado comum. Há muito mais esquecimentos do que recordações, pois se escolhe algumas coisas para lembrar, enquanto uma infinidade de outras serão esquecidas. O esquecimento é uma complementação da memória. Mais compartilhamos esquecimentos do que memórias. A cada memória criada, gera-se um esquecimento (CANDAU, 2001). No nível mais elementar desse binômio, memória e esquecimento, a memória não é considerada apenas um mecanismo de registro, conservação e recuperação. Mas de qualquer maneira, quando se pensa em memória costuma-se pensar em aspectos de retenção de registro, de depósito de informações, conhecimento ou experiências. No entanto, a memória é, também, um mecanismo de seleção, de descarte, de eliminação. Não é possível entender a memória sem entendê-la, também, e talvez mais ainda, como mecanismo de eliminação: a memória é um mecanismo de esquecimento programado. Esquecer é requisito para pensar. O pensamento se faz por eliminação, por abstração. Abstrair é eliminar, é esquecer. Só pensa quem é capaz de esquecer. Nessa mesma direção se deveria reconhecer que o museu, muitas vezes chamado de casa da memória, poderia igualmente ser chamado de casa de esquecimento, pois o que está fora dele é muito mais numeroso que o que está dentro e não goza do mesmo privilégio de conservação. Pode-se concluir que a memória é um campo de negociação, de eleição.
Mas de que forma chega-se a essa era memorial, onde tudo se conserva e nada se quer esquecer? Através da ótica da evolução do conceito de patrimônio, percorre-se caminho da inflação memorial.
No passado, monumentos históricos e patrimônio poderiam ser confundidos e até considerados sinônimos. Desde há algum tempo que os monumentos históricos são uma parte de uma herança que não cessa de aumentar, quer pela anexação de novos bens, quer pelo alargamento cronológico e geográfico em que se inserem estes bens, quer pelo conceito atual de referência cultural. Quando, na França, é criada a primeira Comissão dos Monumentos Históricos, em 1837, as três grandes categorias de monumentos históricos eram constituídas pelos vestígios da Antiguidade, pelos edifícios religiosos da Idade Média e por alguns castelos. No final da Segunda Guerra Mundial, o número de bens inventariados tinha sido multiplicado por dez, mas a sua natureza não tinha mudado quase nada. Eles derivam, essencialmente, da arqueologia da história erudita da arquitetura. Desde então, todas as formas da arte de edificar, eruditas e populares, urbanas e rurais e todas as categorias de edifícios, públicos e privados, estéticos e utilitários, foram anexadas através de novas denominações: arquitetura menor, expressão oriunda da Itália para designar as construções privadas, não monumentais, muitas vezes erguidas sem concurso de arquitetos; arquitetura vernacular, expressão oriunda da Inglaterra usada para distinguir os edifícios característicos dos diversos territórios; arquitetura industrial das fábricas, das estações, dos altos-fornos, reconhecida em primeiro lugar pelos ingleses (CHOAY, 2006). Assim o domínio patrimonial deixou de estar limitado aos edifícios individuais: ele compreende, daqui em diante, os conjuntos edificados e o tecido urbano – quarteirões e bairros urbanos, aldeias, cidades inteiras e mesmo conjuntos de cidades – como demonstra a lista do Patrimônio Mundial estabelecida pela UNESCO (1972).
Até os anos 1960, o quadro cronológico no qual se inscreviam os monumentos históricos não ultrapassava as barreiras da segunda metade do século XIX. Hoje em dia, os Belgas deploram a perda da Maison du Peuple (1896), obra-prima de Horta, demolida em 1968; e os Franceses a perda dos Halles de Baltard, destruídos em 1970, apesar de protestos vigorosos oriundos de quase toda a França e do mundo inteiro. Por muito prestigiosas que fossem essas vozes, eram apenas uma minoria, confrontada com a indiferença geral. Para a administração e para a maioria do público, os pavilhões encomendados por Napoleão III e Haussman tinham apenas uma função trivial, que não lhes concedia a classe de monumentos. Além disso, pertenciam a uma época reputada pelo seu mau gosto. Atualmente, uma parte de Paris haussmanniana está classificada e, em princípio, intocável daqui em diante. O mesmo se passa com a arquitetura modern style, celebrizada na França, na virada do século por Guimard, por Lavirotte e pela escola de Nancy, cuja brevidade de carreira rapidamente fez associar a uma moda e a depreciá-la. O próprio século XX forçou as portas do domínio patrimonial. Hoje estariam, sem sombra de dúvida, classificados e protegidos vários monumentos demolidos até a década de 70. Na França, uma comissão encarregada do património do século XX, procurou elaborar critérios e uma tipologia que não deixasse escapar qualquer testemunho historicamente significativo (CHOAY, 2006).
A noção de monumento histórico e as práticas de conservação que lhe estão associadas expandiram-se para fora da Europa, onde tinham nascido e onde tinham permanecido exclusivas durante muito tempo. Exceto no Japão, para este país que sempre mantivera as suas tradições até ao presente, não conhecia outra história além da dinástica, não concebia arte antiga ou moderna que não fosse viva, que conservava sempre novos os seus monumentos através da sua reconstrução ritual, como a maneira de não esquecer a tradição, o saber fazer se mantém. A assimilação do tempo ocidental passava pelo reconhecimento de uma história universal, pela adoção do museu e pela preservação dos monumentos enquanto testemunhos do passado.
No final do século XIX, os Estados Unidos foram os primeiros a proteger o seu património natural, no entanto não se interessavam quase nada pela conservação de um patrimônio edificado, cuja proteção é mais recente e que começou por envolver apenas as habitações individuais das grandes personalidades nacionais. Quanto à China, que se tinha mantido alheia a estes valores, a partir de 1970 abriu sistematicamente e explorou o filão dos seus monumentos históricos. A primeira conferência internacional para a conservação dos monumentos históricos, realizada em Atenas em 1931, reuniu apenas países europeus. A segunda, realizada em Veneza, em 1964, teve a participação três países não europeus: a Tunísia, o México e o Peru. Quinze anos mais tarde, oitenta países pertencentes aos cinco continentes tinham assinado a Convenção do Património Mundial. A tripla extensão – tipológica, cronológica e geográfica – dos bens patrimoniais foi acompanhada pelo crescimento exponencial do seu público. (CHOAY, 2006)
Industrial cultural, patrimônio e sociedade
O patrimônio cultural é a síntese simbólica dos valores que identificam uma sociedade e que ela reconhece como próprios. O patrimônio é um documento excepcional da memória histórica, chave da capacidade de construir a cultura, na medida em que permite verificar acumuladamente atitudes, comportamentos e valores implícitos e explícitos da produção cultural através do tempo. O patrimônio é um elemento essencial da produção do imaginário. Não se pode prescindir dele, é ele que ajuda a criar o futuro. A época atual leva à impossibilidade de definir a realidade, produto da contaminação de imagens e interpretações desconexas que chegam através dos meios de comunicação. Esta enorme ausência de valores com que a humanidade se vê a “braços” urge encontrar referenciais seguros. Para o Homem do presente, o patrimônio apresenta-se como uma garantia de solidez e estabilidade e como objeto mediador no processo de articulação entre tradição e modernidade emergindo das contradições do presente. Numa incapacidade de gerir a perda e a morte enfrenta-se o futuro mantendo a difusão do patrimônio, pretendendo conservar tudo, com um compromisso em que o desenvolvimento não ponha em perigo essa herança cultural e que as atividades que se desenvolvem em torno do patrimônio sejam ainda mais um fator de desenvolvimento social e econômico. A apropriação de determinado objeto para o campo patrimonial parte sempre de uma dimensão afetiva, ela resulta dos olhares convergentes de uma comunidade que elege determinado objeto como representativo da sua identidade.
A sociedade de hoje, de uma forma geral em todo o mundo, procede à divulgação do patrimônio, fazendo uso de uma Gestão Cultural Mediadora. Gestão porque, parte de um processo complexo que é documentado, valorizado, interpretado, manipulado que produz e divulga não só o objeto em si, mas um produto compreensível e assimilável na relação com o seu passado e com o presente; Cultural porque, opera-se com a obra do homem, tangível, intangível, passado, presente, que o rodeia e que influi o cidadão de hoje a ser parte da sua história e da sua identidade; e, Mediadora, pois requer uma estratégia, um programa e um suporte independentemente do objeto que recebe (KÜHL, 2006).
Posteriormente apropria-se de todas as ferramentas conceituais e práticas que permitem estabelecer toda a espécie de vínculos (afetivos, educativos, lúdicos, de identidade) entre patrimônio e sociedade. A eles chama-se museologia, a história, a exposição, a animação cultural, ou seja, todas as ferramentas que sirvam de vínculo entre patrimônio e sociedade. A natureza afetiva do seu propósito é essencial, não se trata de passar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, pelo sentimento, uma memória viva. A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória.  Pois como já foi visto a memória é elegível, se escolhe o que se quer lembrar, e só se lembra de aquilo que mais emociona, do que mais deixa marcas positivas ou mesmo negativas.
Adotar práticas de conservação de tais monumentos, obras, lembranças sem dispor de um referencial histórico, sem atribuir valor particular ao tempo e a duração, sem ter colocado a arte na história, é totalmente desprovido se sentido, acaba levando ao esquecimento.
Todo objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem que para isso tenha tido, na origem, uma destinação memorial. De modo inverso, cumpre lembrar que todo artefato humano pode ser deliberadamente investido de uma função memorial. (CHOAY, 2006, p 26)
Sobre a evolução patrimonial pode-se de maneira simplificada fazer uma linha do tempo crescente em relação a seus suportes: coleções, museus, monumentos, edifícios, cidades, paisagens naturais, até chegar ao patrimônio imaterial, a patrimonialização, tudo pode ser patrimoniável. A partir deste conceito, tudo se quer guardar e nada esquecer, nascem as políticas de memória, vale citar alguns exemplos como a Memória do Holocaustro, Lei da Anistia, Comissão da Verdade, assim como os monumentos à memória, os memoriais.
Preservar a memória, o cotidiano, os acervos, marcos de existência de relação com a sociedade, um material raro de se encontrar, uma coisa que era cotidiana, um fazer que foi regra. Preservar a história, conhecer a história de si mesmo, do seu lugar. Provocar a memória através de intervenções, resgate histórico, memória da cidade. Reconhecer valor, significações ligados à história do estado, da nação. Todas estas ações são consequentes da cidadania. Dos anos 1990 em diante, vem se ampliando o conceito de preservação e de patrimônio, de cultura e de identidade. A memória e o patrimônio estão no dia a dia das pessoas, desenvolvendo um novo olhar de cada cidadão, despertando o sentimento de pertencimento sobre sua história. Provocando-os a ver com outros olhos, ouvir com outros ouvidos. Conhecer melhor sua identidade e intensificar a percepção de pertencimento de sua comunidade, sua cidade.
Percepção no espaço em que se vive e seu papel como sujeito capaz de compreender e intervir sobre sua realidade, capacidade de representar seus suportes de memória e pertencimento a sua comunidade, diálogos entre o patrimônio cultural e a memória coletiva. Memória social é plural e polifônica, é o patrimônio como algo muito dinâmico. A memória e patrimônio são vivos e dinâmicos, não são nostálgicos, lembrando alguma coisa que não faz mais sentido. Parceira dos movimentos sociais, criadora potencial de novos mundos, a memória se articula com as utopias. Novas experiências de patrimônio e museus, transformação da sociedade, trabalhos a favor da dignidade social, da reparação social. Produz novos sentidos, em permanente movimento, recriando-se através de ações humanas.
O cidadão deve manter sua identidade e o desejo de apropriação do patrimônio cultural. Preservação como ato de cultura. Preserva-se e restaura-se hoje por razões culturais, científicas e éticas. Culturais: pelos aspectos formais, documentais, simbólicos e memoriais. Científicas: pelo fato de os bens culturais serem portadores de conhecimento em vários campos do saber, abarcando tanto as humanidades quanto as ciências exatas e biológicas. Éticas: por não se ter o direito de apagar os traços de gerações passadas e privar as gerações presentes e futuras da possibilidade de conhecimento e de suporte da memória de que esses bens são portadores (KÜHL, 2006). Para a preservação, deve-se conhecer a relevância do papel da memória e da história enquanto quadro conceitual para atuação responsável.
A preservação é necessariamente seletiva, é um ato do presente, voltado para o futuro, testemunhos da operosidade humana que adquiriram significação cultural. O restauro e a conservação, hoje se voltam não mais apenas para aquilo que era entendido como “obra de arte”, mas dirigem suas atenções também às obras modestas que com o tempo assumiram conotação cultural. A preservação de monumentos históricos deve, por isso, ser discutida e enfrentada com os instrumentos e vinculada à realidade de cada época. O fato de, no futuro, as posturas serem diversas, não exime um dado grupo social da responsabilidade pela preservação dos bens culturais e da escolha dos bens a serem preservados. Evidencia ainda mais a necessidade de se agir, sempre, de modo crítico e fundamentado em relação ao legado de outras épocas, com os instrumentos de que se dispõem hoje, essencialmente aqueles vinculados à história e filosofia.
Formulações teóricas permitem que pelo menos se circunscreva e se defina o campo de ação de maneira adequada e fundamentada. Na prática, numerosas ações não respeitam o documento histórico, configuração, aspectos memoriais e especificidades e características dos materiais de que são compostos. Ocorrem, mas não poderiam ser classificadas como ações de preservação (apesar de se autodenominarem como tal), pois são ditadas essencialmente por razões de uso, de especulação econômica (para obter maiores lucros), vinculadas a certas práticas políticas, inspiradas por vaidades e ignorâncias, pessoais e coletivas. São ações ditadas por interesses imediatistas e de setores restritos da sociedade e não verdadeiramente voltadas à coletividade como um todo considerando o tempo na “longa duração”. Conduzindo a resultados que vão contra os próprios objetivos da preservação, a saber, tutelar e transmitir para o futuro, da melhor maneira possível os bens culturais, respeitando seus aspectos materiais, históricos, formais, memoriais e simbólicos.
Distintas formas de perceber os monumentos históricos devem coexistir, é necessário ter em mente que o impulso, que de início motivou a preservação não foi seu valor monetário, nem possível aproveitamento para um uso qualquer. A preservação foi motivada pelo fato de se reconhecer um significado cultural – seu valor estético (ou, mesmo não sendo “obras de arte”, são obras que possuem imagem figurada) e histórico, e ainda os valores simbólicos, emocionais, afetivos. Deve-se reconhecer que todas as épocas, que as várias fases da produção humana, possuem interesse e são merecedoras de estudo e tutela. Isso não se traduz em preservar qualquer testemunho legado pelo passado, resulta de certas escolhas, voluntárias ou involuntárias.
O fato é que os instrumentos oferecidos para a preservação, através das suas vertentes teóricas, são adequados para atuar em monumentos históricos sem deformar e deturpar o documento, a memória, os bens legados pelo passado, que fazem parte integrante do presente. Não se trata de imobilismo, congelamento, muito menos de necrolatria, preservação é legítimo ato de respeito pelo passado em que se propõe, de maneira socialmente e culturalmente responsável, uma renovada forma de se relacionar com um monumento histórico, voltada para a transmissão do bem para as próximas gerações. E, portanto, uma ação que mantém sempre o futuro no horizonte de suas reflexões.
Monumentos e memórias são únicos e não reproduzíveis e devem portar consigo para o futuro seus elementos caracterizadores e as marcas de sua translação no tempo. Todo cuidado é pouco, pois esses monumentos-documentos, instrumentos e suportes materiais da memória, individual e coletiva permitem infinitas possibilidades de atualização e interpretação ao longo do tempo, por um grupo social ou por uma consciência individual. Oferecendo, sempre, renovadas leituras, que serão cada vez percebidas e apreendidas de modo diverso e podem, continuamente, de diferentes modos, por esta e pelas gerações do porvir, oferecer instrumentos importantes de reflexão para uma adaptação harmoniosa à realidade.
Enfim, para a multiforme paisagem da memória com suas ambiguidades, sua fluidez, sua complexidade, as inúmeras articulações e os paradoxos que escapam à prisão de teorias uniformizantes ou binômios mutuamente excludentes. Como coloca o mestre Ricouer (2007, p.126), “a questão permanece em aberto”...

Referencias bibliográficas:
ANOTAÇÕES de aula da autora na disciplina Memória e Identidade, no decorrer do primeiro semestre de 2012, do Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural, Universidade Federal de Pelotas.
BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes 2006, [1896].
CANDAU, Joel. Memória e Identidad. Buenos Aires: Del Sol, 2001.
CHOAY, Françoise.  A alegoria do patrimônio; trad. Luciano Vieira Machado. 3ª Edição. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006, [1990].
HALBWACHS, Maurice. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1952
IZQUIERDO, Ivan. Organização, consolidação, construção e reconstrução da memória. Porto Alegre: UFRGS, s.n; 1988.
KÜHL, Beatriz Mugayar. História e Ética na Conservação e na Restauração de Monumentos Históricos. CPC, São Paulo, v.1, n.1, p. 16-40, nov. 2005/abr. 2006. Disponível em: http://www.usp.br/cpc/v1/imagem/conteudo_revista_arti_arquivo_pdf/kuhl_pdf.pdf. Acesso em: 16/07/2012.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Unicamp, 2007.