Revista: Caribeña de Ciencias Sociales
ISSN: 2254-7630


AS BASES CONSTITUTIVAS DO ESPIRITO MODERNO NO BRASIL E SEUS DILEMAS

Autores e infomación del artículo

Jorge Alberto Ramos Sarmento**

Rodrigo Lages Pessoa**

Heriberto Wagner Amanajás Pena

DEVRY/FACI, Brasil

professorheriberto@gmail.com

Resumo
O processo através do qual o moderno se institui no Brasil se desenrola dentro de uma multiplicidade de acontecimentos destacando-se dentre outros o descobrimento de um povo destituído de direitos e na mais completa miséria no campo brasileiro pelos integrantes militares da Coluna Prestes. Esta nova configuração adotada pela Igreja a partir de “moldes modernos” visando se adequar ao momento histórico e, sobretudo exercer influência sobre a ação estatal somando-se a isso o esforço dos intelectuais com vistas à elaboração de receitas capazes de construir e enfrentar a modernidade. Nesse sentido, em termos gerais pretende-se analisar as bases constitutivas do espírito moderno no Brasil. Especificamente identificar o arcabouço teórico e a importância das instituições formais na formação e constituição do espírito moderno atende aos microfundamentos deste artigo.

Palavras-Chave: Direitos, Espírito Moderno, Instituições, Mercado e Estrutura Ideológica

Resumen
El proceso por el cual se establece la moderna en Brasil tiene lugar dentro de una multitud de eventos destacando entre otros el descubrimiento de un pueblo privado de los derechos y en la miseria completa en el campo brasileño por los miembros militares de la Columna Prestes. Esta nueva configuración adoptada por la Iglesia de "forma moderna" con el fin de adaptarse al momento histórico y en especial para influir en la acción del estado añadiendo a la misma el esfuerzo de los intelectuales con el fin de preparar recetas capaz de construir y hacer frente a la modernidad . Por lo tanto, en términos generales nos proponemos analizar las bases constitutivas del espíritu moderno en Brasil. Específicamente identifican el marco teórico y la importancia de las instituciones formales en la formación y constitución del espíritu moderno se encuentra microfundamentos este artículo.

Palabras clave: derechos; Espíritu moderno; instituciones; Estructura del mercado e Ideológica

Abstract
The process through which the modern is instituted in Brazil unfolds in a multiplicity of events highlighting among others the discovery of a people destituído of rights and in the most complete misery in the Brazilian field by the military members of the Prestes Column. This new configuration adopted by the Church from "modern molds" aimed at adjusting to the historical moment and, above all, exerting influence on the state action, adding to this the effort of the intellectuals with a view to the elaboration of recipes capable of constructing and facing modernity . In this sense, in general terms we intend to analyze the constitutive bases of the modern spirit in Brazil. Specifically identifying the theoretical framework and the importance of formal institutions in the formation and constitution of the modern spirit attends to the micro foundations of this article.

Keywords: Rights; Modern Spirit; Institutions; Market and Ideological Structure



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Jorge Alberto Ramos Sarmento, Rodrigo Lages Pessoa y Heriberto Wagner Amanajás Pena (2017): “As bases constitutivas do espirito moderno no Brasil e seus dilemas”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (abril 2017). En línea:
https://www.eumed.net/rev/caribe/2017/04/brasil-dilemas.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/caribe1704brasil-dilemas


Introdução

A forma de estabelecer um grau de prioridade ou predomínio do princípio “estatal” sobre o princípio “político” tal como se deu nesse período é característico, segundo Lamounier (1978) das sociedades que foram formadas através da expansão europeia, quando essas sociedades passam a ingressar no processo denominado de industrialização tardia, uma vez superado o esquema agroexportador. Nessa fase, o predomínio da matriz “estatal” em detrimento do princípio de mercado pode melhor ser compreendida em função de pressupostos que apontam para a necessidade da exaltação das virtualidades criadoras da intervenção deliberada, bem como do caráter coercitivo por meio do qual deve ser exercido o controle através dos mecanismos burocráticos do poder.
Ao estabelecer o caráter de ideologia de Estado a esse pensamento autoritário que se desenvolveu no Brasil, Lamounier (1978) apresenta algumas características dessa estrutura ideológica tais como: o predomínio do “estatal” sobre o princípio de “mercado”; uma visão orgânico corporativa da sociedade; objetivismo tecnocrático; visão paternalista-autoritário do conflito social; não organização da sociedade civil; não mobilização política; elitismo e voluntarismo como visão dos processos de mudança política; o leviatã benevolente. A visão orgânico-corporativa da sociedade tem como representação preferencial da estrutura econômica uma sociedade de pequenos produtores, onde se assegura a existência e o apoio para a pequena empresa, estimulando-se a competição entre os produtores. Em tal perspectiva, o homem passa a ser definido como um produtor que através da acumulação do seu trabalho, passa a dispor da propriedade. A exaltação dessa visão, que de certa forma revela um espírito nacionalista brasileiro, aparece em oposição à grande propriedade, tanto a agrária quanto a industrial, e cujo histórico no Brasil foi marcado por processo de exclusão social, o que teria sido um dos elementos que ainda hoje são reveladores das desigualdades.
A formação dessa peculiar ideologia de Estado não pode ser compreendida fora das influencias de correntes sociológicas, e nesse aspecto, Lamounier (1978) aponta para as de caráter protofascistas, as quais embora tenham exercido influencias na formação da doutrina e do movimento político fascista, são muito anteriores a ele e especificamente no Brasil é notório a forma como tais correntes passaram a exercer uma forte influencia sobre a elite intelectual das últimas décadas do século XIX e cuja produção encontra-se mesclada por elementos do pensamento organicista-histórico e do positivismo comtiano da sociologia protofascista européia. No entanto, aquele autor salienta que diferentemente daquilo que muitos teóricos sustentam, não teria ocorrido uma utilização indiferenciada ou uma assimilação meramente imitativa dessas linhas de pensamento. O que realmente ocorreu foi “uma leitura seletiva e uma hierarquização das diversas influencias, mesmo daquelas igualmente pertencentes ao amplo leito protofascista” (LAMOUNIER, 1978, p. 361).
No pensamento de Oliveira Viana podemos observar a necessidade do estabelecimento de um poder estatal forte e intervencionista, através do qual se torne possível a erradicação de todos os males do passado, responsáveis pela inércia predominante na sociedade brasileira, a qual somente poderá ser superada por uma ação enérgica. Nota-se que o pensamento de Oliveira Viana se direciona em particular para uma ideologia nacionalista-autoritária, a qual é defendida em detrimento à incapacidade histórica do povo brasileiro possuir uma consciência política.

Não temos nenhuma mística incorporada ao povo; portanto não tem o nosso povo – considerado na sua expressão de povo-massa, a consciência clara de nenhum objetivo nacional a realizar ou a defender, de nenhuma grande tradição a manter, de nenhum ideal coletivo, de que o Estado seja o órgão necessário à sua realização (...) Esse auto sentimento e essa clara e perfeita consciência só serão realizados pela ação lenta e contínua do Estado – em Estado – um Estado soberano, incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional (VIANNA, 1952, p. 395).

Oliveira Viana, tido como o grande ideólogo do pensamento autoritário brasileiro faz jus a essa afirmação ao expressar certa radicalidade em relação aos demais intelectuais daquele período, afirmando que no Brasil o “povo-massa”, vivendo sob a doença dos trópicos uma vida puramente negativa bastaria “apenas ensinar a ler, escrever e contar já que as nações dependem exclusivamente de suas elites” (VIANNA, 1952, p. 382).
Eis aí reproduzido o velho discurso ocidental em suas origens mais remotas, como o de Platão, para quem o Estado (numa visão organicista) deveria ser governado por uma elite, dos mais sábios, porque a razão é quem deve dominar, ou Aristóteles, que defende um governo dos melhores em cuja ordem natural, existem os que nasceram para comandar e aqueles que devem ser comandados, sem direito a cidadania, conforme enfatizamos anteriormente. Discurso análogo a do colonizador sobre o colonizado que se tornou dominado, do civilizado sobre o bárbaro, do senhor sobre o escravo. Discurso esse que estabelece a dicotomia entre cidadãos e não-cidadãos.
Ressaltamos que no ideário desse pensamento autoritário, a relação ou essa dualidade massa/elite tornou-se um elemento de recorrência não só em Oliveira Viana, como também em outros teóricos, como Azevedo Amaral, para quem o despertar das massas somente se tornaria possível na medida em que sobre elas se exercesse determinada ação deflagradora da inteligência e da vontade de domínio.
Para a maioria desses autores do pensamento autoritário brasileiro a modernização no Brasil deveria ocorrer de forma passiva, sem a necessidade de se atacar ou destruir as instituições tradicionais, como a propriedade individual, a empresa privada a autoridade patronal ou as tradições cristãs, conforme assinala Vianna (1952, p. 382). E nesse ponto de vista o referido autor parece colaborar com a construção de uma modernidade a partir dos pressupostos que se afirmam com os interesses das elites da época, que conforme assinalamos anteriormente foi responsável pela canalização e adequação do ideário liberal e moderno no Brasil, que deveria ocorrer de forma pacífica, excluindo-se desse processo qualquer tipo de revolta ou revolução que pudesse despertar o temor por parte da sociedade em relação ao seu advento.
Aspecto não menos importante é a utilização, por parte dos pensadores autoritários, de um ideário de representações do modelo organicista, tendo em vista tal modelo adquirir uma conotação muito propícia, na medida em que a pretensão do seu uso se prende ao sentido de dar forma ao que não a possui, ou conforme assinala Lamounier (1978, p. 362) “trata-se de imprimir forma, de produzir estrutura e diferenciação funcional numa sociedade percebida como amorfa e amebóide”. É a partir dessa análise sintomática que o Estado deve agir de modo a proporcionar uma ordem a partir da qual se obtenha o progresso.
 
A transformação orgânico-vitalista impulsionada e dirigida pelo Estado permitiria, de inicio, salvar o país do processo de degenerescência, ou pelo menos do amorfismo invertebrado que, segundo o diagnóstico destes ideólogos, o caracteriza. E em seguida, estruturar a divisão do trabalho e a vida social de modo a permitir que cada órgão encontre sua “verdadeira” função e essência (LAMOUNIER, 1978, p. 363).

Portanto, a utilização do ideário de representações do organicismo, que se desenvolveu a partir do século XIX e cujo emprego foi conveniente aos ideólogos do período autoritário, teve entre seus propósitos principais, conforme salienta Lamounier (1978, p. 363) a necessidade de preservar uma sociedade de pequenos produtores, de amortecer os efeitos provocados pela acumulação capitalista, de justificar o enorme poder exercido sobre as entidades políticas de caráter “pré-moderno” pelo poder estatal, assim como combater as formas mais radicais de questionamento do poder estatal, sobretudo a anarquista.
A apropriação e a consequente utilização de uma visão organicista e positivista da história por parte dos pensadores autoritários irá fundamentar um importante componente na ideologia do Estado, da forma como a mesma se processou no Brasil, a saber, o chamado objetivismo tecnocrático, que dentre outras ideias estabelece que é necessário adaptar as instituições à realidade brasileira, e que tem em Wanderley Guilherme dos Santos um de seus elementos mais representativos. Segundo esse autor, o paradigma contido na expressão de “adaptar” as instituições á “realidade nacional” é o indicio da emancipação de quem o utiliza em função dos vícios da reificação institucional, e a ideia de reificação institucional aparece na concepção do referido autor como “uma tendência de se acreditar que as mesmas instituições produzem sempre os mesmos efeitos políticos, independentemente da ordem social em que se inserem” (SANTOS, 1975, p. 42). Seguindo essa linha de raciocínio, os pensadores do período autoritário passam a desenvolver uma contraposição em relação dedutivismo jurídico-formal em função do qual passam a se utilizar do contraste entre o “país legal” e o “país real”, no sentido de tornar evidente que as instituições de 1989 se encontravam completamente inadequadas ao processo de evolução que se encontrava em curso no país.
Outro traço importante no repertório ideológico desse período, diz respeito a visão paternalista-autoritária do conflito social, a qual pode ser percebida pela forma através da qual essa ideologia ressalta a necessidade de uma coerção organizada, assim como seu fortalecimento, levando-se em conta uma teoria bastante peculiar a respeito do conflito social, o qual possa a ser visto conforme Lamounier, (1978, p. 366) “como irracionalidade, manifestação dos impulsos infantis e malévolos da natureza humana”. Tal percepção teria suas raízes na matriz protofascista européia, destacando-se de forma particular a influência do organicismo sociológico de Gumplowicz, cuja concepção estabelece que assim como na relação entre as sociedades verifica-se uma permanente e inelutável beligerância e tentativa de extermínio, o mesmo quadro pode ser observado nas relações que compõem os grupos que compõem uma sociedade, sendo que neste último caso, a possibilidade de se apaziguar os conflitos se torna possível através da figura do Estado. Em tal concepção, o problema central gira em torno da permanência do conflito entre os grupos sociais, e não em sua natureza, daí que a vinculação ao campo político desse axioma passa a fundamentar a ideia de um Estado que deve ser universal e necessariamente violento, na medida em que pelo uso da força (coação) se busca o fim dos conflitos sociais. Ao desenvolver uma análise a respeito do assunto, Lamounier (1978) chama atenção para o fato de que os pensadores pertencentes a essa linha de pensamento, como Pareto, Mosca e Michels, desenvolvem um ataque tanto ao liberalismo, em função deste apresentar uma visão otimista em relação aos ajustamentos automáticos do ponto de vista político e econômico que esse modelo se diz proporcionar às sociedades, quanto ao modelo socialista devido a utopia da integração social protagonizada como princípio fundamental do mesmo.
Dentre os teóricos brasileiros do pensamento autoritário, Francisco Campos é, ao que tudo indica, o ensaísta que mais claramente expressa uma influência da concepção gumplowicziana, o que pode ser observado em suas críticas tanto ao liberalismo quanto ao socialismo. Em suas reflexões, esse autor desenvolve uma visão de Estado moderno enquanto Estado autoritário e antiliberal que entre seus princípios mais fundamentais encontrava-se a tarefa de reconstruir, pelo ponto mais elevado, as instituições políticas e burocráticas, modernizando-as, onde a compreensão de sociedade moderna remete a idéia de uma sociedade de massas.

Os Estados autoritários não são criação arbitrária de um reduzido número de indivíduos: resultam, ao contrário, da própria presença das massas (...) o clima das massas (...) não obedece às regras do jogo parlamentar e desconhece as premissas do liberalismo (CAMPOS, 1941, p. 17-23).

Em relação às criticas desenvolvidas às teorias totalitárias, o referido autor destaca, entre outros aspectos que

A integração política totalitária apesar do nome, não consegue eliminar, de modo completo, as tensões políticas internas. Se conseguisse, deixaria de existir Estado, que é precisamente a expressão de um modo parcial de integração política das massas (CAMPOS, 1941, p. 30).

Para Francisco Campos, haveria uma premente necessidade da implantação progressiva de um Estado corporativo no Brasil. E uma vez que isso se tornasse possível todos os grupos “desarticulados”, “separatistas” semelhantes aqueles que foram gerados através das autonomias regionalistas, pelos partidos políticos e sindicatos, deveriam ser retirados do cenário de uma dimensão tipicamente contraditória e individualista, onde o liberalismo os havia gestado, no sentido de serem integrados segundo sua concepção autoritária, dentro do Estado e pelo Estado. Outro aspecto que chama atenção no pensamento desse autor – assim como em toda a linha do pensamento autoritário -, diz respeito à defesa da integração econômica entre as várias regiões e, em particular, à integração do mercado interno, fato que se encontra relacionado às aspirações da burguesia industrial da época. A esse respeito Eli Diniz faz a seguinte observação: “a demanda da abolição das barreiras interestaduais pela extinção de impostos e taxas que dificultavam a livre circulação dos produtos encontra respaldo no pensamento autoritário” (DINIZ, 1978, p. 93).
Em relação a esse assunto, convém ressaltar o trabalho desenvolvido por Francisco Campos na elaboração da Constituição de 1937, a qual trouxe como uma de suas principais inovações a eliminação de impostos interestaduais.
Aspecto não menos importante desse pensamento autoritário diz respeito a uma inclinação para a visão solidarista, a qual surge em função da necessidade de se fazer uma contraposição ao caráter negativo do onipresente e irremovível conflito social, do qual nos reportamos anteriormente. Os conflitos se destacam pela sua irracionalidade e pelos seus incontroláveis determinismos sociais. No sentido de propor uma solução a esse problema, o pensamento autoritário brasileiro passará a desenvolver uma concepção que se dirige à ideia de uma bondade intrínseca do caráter nacional, a partir da qual a ideia de conflito adquire o significado de uma perversidade dos desejos sociais. Na análise desenvolvida por Lamounier (1978), a formulação dessa concepção tem como pressuposto uma visão de sociedade a qual passa a ser vista

Mais ou menos como uma panela de pressão, inofensiva ou facilmente controlável, desde que manipulada com prudência. Assim, como o conhecimento sociológico positivo identifica na luta de facções..... (LAMOUNIER, 1978, p. 368).

Nesse contexto, adquire especial significado as interpretações de caráter histórico-culturalistas que procuram ressaltar entre outras coisas, a ideia de uma intrínseca bondade e cordialidade do caráter nacional. Apesar das origens dessa ideia no pensamento autoritário brasileiro remontar a Cassiano Ricardo em sua conferencia intitulada Contribuição para a defesa do pensamento original do Brasil assim como O homem cordial, tal ideia passou a ser associada a Sérgio Buarque de Holanda em função da obra Raízes do Brasil, na qual essa questão parece ter adquirido um contorno bem especial.
Em Cassiano Ricardo essa bondade e cordialidade do brasileiro passa a ser inferida através de uma análise histórica sobre as próprias origens do processo de colonização que se efetivou no Brasil, que entre outras consequências contribuiu para uma forma de mestiçamento conciliador das arestas psicológicas e raciais; pela formação de uma índole que foi herdada do português, pela soma de tendências coincidentes na direção de certos objetivos, por uma determinada euforia espacial; por um sentimento de hospitalidade que é comum do aborígene e pela ausência de um pensamento que leve à reflexão sobre o destino. Tal discurso apresenta as diretrizes de uma visão que fundamenta uma cidadania tutelada, de uma cidadania incompleta e tipicamente moldada pelas estruturas coloniais, refletindo o discurso existente entre o colonizador e o colonizado, tão característico das visões predominantes nas sociedades periféricas, conforme procuramos mostrar anteriormente.

2. Novos discursos para antigas abordagens

Ao analisarmos as diversas abordagens desenvolvidas por esses intelectuais do assim chamado período autoritário, responsáveis pela introdução e difusão dos estudos sociológicos no Brasil, podemos perceber que o elemento que mais claramente transparece nessas abordagens sem dúvida é aquele que se encontra relacionado ao modo como se dá a relação entre a tradição e a modernidade, relação essa que pode ser elucidada através de uma acurada analise a respeito da “formação da nação”, conforme procuramos mostrar nas considerações acima. Convém ressaltar que as elaborações teóricas desenvolvidas por esses autores, muito embora possam ser passiveis de toda sorte de críticas, não deixaram de exercer influência sobre as gerações futuras de intelectuais e pensadores brasileiros, sobretudo na sociologia. A esse respeito gostaríamos de ressaltar que o desenvolvimento do espírito moderno nas ciências sociais do Brasil parece seguir o mesmo rumo de tais abordagens, embora que por força das circunstâncias em esferas de ordem menos autoritária e sob novas roupagens metodológicas, as quais passaram a integrar a visão mais abrangente da realidade brasileira. A seguir vamos desenvolver uma análise bastante sumária a respeito desses autores, nos quais embora a cidadania não seja tratada de forma central, ela pode ser compreendida de forma implícita nos argumentos apresentados que regra geral, ainda apresenta certa continuidade com a idéia de uma cidadania colonizada e incompleta, cujas causas devem ser buscadas no passado colonial.

2.1 - Sérgio Buarque de Holanda: o problema centrado na herança ibérica

            Na interpretação apresentada por Sérgio Buarque de Holanda a respeito da sociedade brasileira, a qual se encontra fundamentada na obra Raízes do Brasil, o elemento chave a partir do qual se busca compreender essa formação é justamente a herança ibérica, tema que aliás, integra de forma direta ou indireta o repertório dos pensadores autoritários, apesar de Sérgio Buarque apresentar novas possibilidades em detrimento ao caminho do autoritarismo. Na concepção desse autor, a ideia de herança ibérica se torna fator indispensável para o conhecimento daquilo que se define como especificidade da sociedade brasileira. Seguindo essa linha de pensamento, o autor inicia sua argumentação mostrando que

A tentativa de implantação da cultura europeia em nosso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências (HOLANDA, 1991, p. 4).

Para o referido autor é fundamental proceder uma análise a respeito desse processo de colonização desenvolvido pelos povos ibéricos, cujo traço mais importante de sua cultura se reflete no “culto à personalidade” e que melhor se traduz numa extremada valorização da autonomia individual e na repulsa a qualquer forma de dependência. Entre os ibéricos se observa uma maior importância dada à competição individual do que ao principio da hierarquia, que traz como consequência um enfraquecimento nas formas de organização e associação que impliquem solidariedade e ordenação baseado em interesses. Desse modo, tem-se como consequência uma forma de moral que se opõe aos aos princípios do culto ao trabalho e que se ajusta de forma mais adequada a uma reduzida capacidade de organização e racionalização da vida social, criando, dessa forma, as condições necessárias para a existência de uma estrutura social frouxa e que necessita de uma força exterior como elemento capaz de proporcionar um mínimo de integração e coesão social. A esse respeito, citamos o comentário de Holanda (1991, p. 4) “Em terra onde todos são barões não é possível um acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. Em outras palavras, o referido autor aponta para a necessidade da renúncia ao chamado “culto da personalidade” a essa autonomia da vontade como pressuposto para o bem comum e a felicidade universal.
Na caracterização do tipo de colonização que se processou no Brasil, Sérgio Buarque de Holanda enfatiza o fato de termos herdado os traços da cultura ibérica, os quais podem ser conhecidos pela audácia e pela busca de ganho imediato em detrimento a um tipo de trabalho que valorize os princípios metódicos e criteriosos, com vistas a uma compensação final. Em relação a questão do ganho fácil, essa característica parece ter sido realmente a marca do processo de colonização do Brasil, cujo reflexo pode ser observado na escolha do modelo de produção, no caso latifúndios monocultores, com emprego de trabalho escravo e utilização de técnicas rudimentares e predatórias.
A caracterização desse tipo de colonização, realizada com ausência quase completa de planejamento e empreendida de forma quase anárquica, aliada ao desejo de se misturar com o colonizado, assim como de um espírito aventureiro, revelam, segundo Sérgio Buarque a ausência daquilo que se denomina como “orgulho de raça” e que encarna o aspecto de uma certa plasticidade do colonizador e que não se encontra em outras formas de colonização como por exemplo a praticada pelos holandeses.
Esse tipo de colonização, marcada de forma acentuada por um processo de dominação que se expressa muito mais na feitorização de uma riqueza fácil do que em estabelecer planos para um desenvolvimento econômico ou social, repercutirá de forma decisiva na primazia da vida rural em detrimento do desenvolvimento da vida urbana, fato que passará a determinar a nova estrutura social brasileira, resultante desse processo de colonização, cujo traço principal passa a ser rural e patrimonial.
A partir desse círculo familiar e patrimonial, estende-se para o meio público os traços que formarão o indivíduo, acarretando uma grande dificuldade o desvinculamento desses laços familiares para a formação de um espírito cidadão. O emprego do braço escravo como base da riqueza aliado á exploração extensiva de terras de lavoura, a predominância de senhores e escravos com uma tipologia de classes sociais, no caso a familiar patriarcal, constituída de forma semelhante às da Antiguidade clássica e estreitamente vinculada à escravidão como base de toda a organização social estabeleceram um quadro de ordem familiar que persiste na consciência dos indivíduos mesmo nos espaços públicos. Em consequência disso, Holanda (1991) acrescenta que passa a haver a predominância em toda a vida social de sentimentos que são próprios da comunidade doméstica, a qual é particularista e antipolítica, o que irá determinar a invasão da dimensão pública pela dimensão privada.
É a partir do contexto acima que surge no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda o conceito de “homem cordial”, o qual passa a encarnar o legado da cultura ibérica, da forma como essa cultura se cristaliza e se concretiza na estrutura social brasileira, na qual a ideia de homem público adquire uma representação onde esses homens foram moldados em um círculo doméstico com a predominância de laços sentimentais e familiares que passam a ser transportados para o contexto público. Nesse ponto de vista a conotação de “homem cordial” passa a representar uma forma de tratamento peculiar do brasileiro, através da qual ele precisa criar uma certa intimidade com aqueles que se relaciona.
Torna-se procedente destacarmos que o Estado moderno, tal como preconizado pelo modelo liberal precisa superar a ordem doméstica e familiar, no sentido de dar ênfase a uma realização social voltada para o universal, necessitando dessa forma, passar da relação emocional para a relação racional, distanciando-se do particular em favor do geral. E é dentro dessa perspectiva que a ideia de “homem cordial” como desenvolvida e apresentada por Sérgio Buarque pretende mostrar que no Brasil não se desenvolveram as condições necessárias para o estabelecimento de uma sociedade civil que pudesse servir de base para um Estado impessoal, tendo em vista a forte influência dos padrões de convívio que se estabeleceram através do meio rural e patriarcal, que entre outras coisas determinaram a prevalência do concreto sobre o abstrato, do emocional sobre o racional e do intimo sobre o impessoal, fatores esses que se tornaram responsáveis pela projeção do chamado “homem cordial” nas esferas social e política, o que causou uma completa perversão dos princípios democráticos e liberais, uma vez que tais princípios foram adaptados aos privilégios da aristocracia rural, acarretando dessa forma a ausência completa de uma verdadeira sociedade civil.
No capítulo final de sua obra Raízes do Brasil, Holanda faz referência a um “lento cataclismo”, dando ensejo a “um novo sistema com seu centro de gravidade não mais nos domínios rurais, mas nos centros urbanos (HOLANDA, 1991, p. 127), o que significa o “aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de americano” (HOLANDA, 1991, p. 127). Nesse ponto de vista, Sérgio Buarque procura apresentar uma via através da qual seja possível a transposição das formas tradicionais de convívio, que se vincularam à chamada herança ibérica em proveito do surgimento de novas formas de convívio que se encontram fundamentados em princípios considerados essencialmente modernos.
Gilberto Freyre ao lado de Sérgio Buarque de Holanda é igualmente outro grande sociólogo que exerceu e continua exercendo grande influência sobre o pensamento brasileiro, cuja concepção encontra-se voltada não somente para apresentar uma visão de continuidade entre o passado e o presente da realidade brasileira, mas sobretudo em mostrar que existe uma continuidade entre as instituições familiares e estatais, ou em outros termos, entre o público e o privado, tema que se encontra muito bem apresentado na obra Casa-grande & senzala, na qual esse autor procura fundamentar as bases através das quais se estabeleceram as condições propicias na sociedade brasileira que permitiram que as esferas “intima” das relações entre o senhor e o escravo passassem a se manifestar na própria esfera pública, em um processo que torna possível o reconhecimento do ethos brasileiro através de um esforço teórico que procura romper com a historiografia tradicional priorizando a compreensão, no que se denomina de sociologia genética, a qual se caracteriza por dar prioridade aos fatores sócio-culturais como elementos fundamentais para a compreensão das relações entre os homens e o meio-ambiente.

Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político. Cremos surpreendê-lo em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vitimas em quem exercer-se com requintes às vezes sádicos (...). A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar “povo brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático (FREYRE, 1994, p. 51).

2.2 - Gilberto Freyre e a plasticidade do colonizador

Diferentemente de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre não se preocupa em problematizar a reprodução das relações domésticas na esfera política, ao que tudo indica pelo fato de entender que a mesma é na verdade um prolongamento da esfera privada.
Em uma perspectiva que procura conciliar e integrar o passado com o presente, o público com o privado, o senhor com o escravo e ambiente com cultura, Freyre (1994) destaca a predominância de um ethos brasileiro que se infere a partir de determinados fatores sócio-culturais e que se constitui como um importante elemento para a compreensão da formação social brasileira, tornando-se necessário estabelecer diferenciações entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influencias sociais. A partir desse ponto de vista, o trabalho de Freyre (1994) se estrutura em um certo direcionamento, com vistas a estabelecer uma clara distinção entre “hereditariedade de raça” e “hereditariedade de família” onde se passa a priorizar esta última para a compreensão da sociedade brasileira, na qual a idéia de família se refere a família patriarcal, vinculada ao latifúndio monocultor e ao sistema escravista, que se constituiu desde a origem do sistema colonial como o núcleo básico da nossa sociedade.
Além da ênfase na predominância dos fatores sócio-culturais, Freyre (1994) apresenta uma perspectiva da miscigenação de um ponto de vista positivo, na qual se destaca a plasticidade do colonizador português como um aspecto importante no processo de adaptação aos trópicos e na formação da sociedade brasileira. É a partir desse ponto de vista que Freyre expressa o traço principal da colonização desenvolvida no Brasil, onde se evidencia a “plasticidade” da cultura portuguesa e a capacidade da mesma em proporcionar “um equilíbrio de antagonismos”. Mas se para Freyre (1994) essa “plasticidade” surge como um atributo capaz de possibilitar uma melhor compreensão a respeito da especificidade da sociedade brasileira, para o referido autor, tal idéia surge como uma contraposição à própria cultura européia no sentido de melhor caracterizar os traços da cultura portuguesa em seu processo colonizador, destacando através da categoria de “plasticidade” o que a torna peculiar em relação a outras culturas.
Em relação ao assunto acima, na abordagem desenvolvida por Freyre (1994) fica bastante evidente que foi graças a essa “plasticidade” que se viabilizou, através do colonizador português uma sociedade “agrária, escravocrata e hibrida”, a qual não seria possível sem uma aptidão para a vida tropical presente no espírito português em virtude de suas experiências em outras colônias. Dessa forma, o autor aponta para uma colonização que de certa forma se processou em condições mais estáveis do que às protagonizadas em outras partes do mundo, daí que se torna possível afirmar que foi no Brasil que se concretizou a aptidão do espírito colonialista português para a vida tropical.

Organizada a sociedade colonial sobre base mais sólida e em condições mais estáveis que na Índia ou nas feitorias africanas, no Brasil é que se realizaria a prova definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica e social do invasor (FREYRE, 1994, p. 4).

Para Freyre (1994), não obstante os antagonismos presentes no processo de miscigenação que marcaram profundamente o processo colonial desenvolvido no Brasil, estabeleceram-se “zonas de confraternização” que proporcionaram a existência de uma sociedade original e peculiar, caracterizada pelo equilíbrio dos antagonismos, idéia essa que passa a ser melhor desenvolvida na obra Sobrados e mucambos, onde o referido autor aprofunda suas análises a respeito do patriarcalismo no Brasil, tomando por base

O declínio do patriarcado rural ou o seu prolongamento no patriarcado menos severo dos senhores dos sobrados urbanos e semi-urbanos; o desenvolvimento das cidades; a formação do Império; íamos quase dizendo, a formação do povo brasileiro (FREYRE, 1951, p. 13).

Nessa abordagem, fica evidente o processo de transição do tradicional para o moderno no Brasil, onde podemos observar que nas reflexões de Freyre (1951), o período marcado pela industrialização e urbanização acarretou uma reativação dos antagonismos, tendo em vista que a nova forma de patriarcalismo urbanizado perdeu sua força original de absorção e de aglutinação em torno do chefe, dos demais elementos da sociedade, o que deu ensejo ao aparecimento de uma forma de individualismo cujas consequências se refletem na predominância da sociedade sobre a comunidade, caracterizando esse período pelos contrastes e antagonismos. É a partir desse momento que Freyre (1951) faz uma recorrência a tese do equilíbrio de antagonismos, no sentido de mostrar que nesse novo cenário se definem determinadas condições onde mesmo diante de tais antagonismos surjam possibilidades para uma sociedade integrada, onde o patriarca já não encarna mais a dimensão de um “pai natural ou social”, mas o “pai político”, representado pelo rei e posteriormente pelo imperador.

2.3 - Raymundo Faoro e a análise centrada na idéia de Estado

Outro importante teórico na consolidação do pensamento histórico-sociológico brasileiro é Raymundo Faoro (1925-2003), o qual desenvolveu uma concepção que vai de encontro às visões predominantes da época,-  embora recorrendo à relação entre o público e o privado como um dos eixos fundamentais de suas argumentações – às quais priorizavam a visão marxista através de uma historiografia de caráter estrutural na explicação da infra-estrutura da sociedade civil, Faoro, diferentemente procurou priorizar a superestrutura, no caso o Estado, o que melhor pode ser observado em sua obra Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro, onde o  autor  procurou mostrar que a sociedade brasileira, da mesma forma que a portuguesa, foi moldada por um estamento patrimonialista que em seu topo era representado pelos altos funcionários da Coroa, e posteriormente pelo grupo funcional que sempre cercou o Chefe de Estado, conforme pode ser observado no período da República.
Através das análises desenvolvidas a respeito desse processo que caracterizou esse estamento funcional, Faoro (2001) aponta para o fato de que o mesmo jamais correspondeu ao modelo de burocracia moderna, a qual se encontra fundamentada em padrões bem determinados de legalidade e racionalidade, conforme preconizado por Max Weber, mas ao contrário, corresponde ao tipo tradicional de dominação política, na qual o poder não é decorrente do exercício de uma função pública, mas de uma apropriação privada.
A respeito do processo que envolveu a entrada das ideias liberais e democráticas no Brasil, Faoro (1994) defende a tese de que houve um pensamento político que sempre lutou em prol dos ideais de liberdade e justiça, o qual, apesar de se encontrar banido da vida nacional ainda irrompe em momentos de desajustes e de crise.
Para o referido autor o liberalismo sempre esteve ausente da história do país, fato que se tornou responsável pela estagnação do movimento político, impossibilitando, dessa forma que, ao se desenvolver abrigasse a emancipação, como classe da indústria nacional. Esse processo de estagnação, segundo Faoro (1994) provocou a interrupção da luta que deveria ocorrer tanto na crise do sistema colonial quanto durante o processo em que a Revolução Industrial penetrou no Brasil. Caso houvesse o desenvolvimento autentico do liberalismo no Brasil, haveria a possibilidade de se ter ampliado o espaço democrático através da representação nacional, elemento fundamental do liberalismo, tornando viável o surgimento de uma realidade na qual houvesse o predomínio dos direitos e garantias liberais, ampliáveis socialmente. Se isso tivesse ocorrido, conforme assinala Faoro (1994, p. 35) “o Estado seria outro e não o monstro patrimonial-estamental-autoritário que está vivo na realidade brasileira”.
Faoro (1994) defende a ideia de que não existe um pensamento político brasileiro do tipo que se forma e se cristaliza em um determinado quadro cultural autônomo, moldado a partir de uma realidade social capaz de gerá-lo ou de com ele se soldar. O referido autor em seu esforço teórico procura reconstruir a tradição das modernizações brasileiras, as quais teriam sido realizadas segundo ele, pela ação do Estado e do estamento, que foram responsáveis pela imposição através da Nação das “queima de etapas”, deslocando-a de sua “lei natural de desenvolvimento”, a qual é própria da modernidade. Dessa forma, a modernidade exige que o país encontre o caminho natural de seu desenvolvimento, o que pode ser compreendido – para mencionar Aristóteles – como uma dialética da potencialidade, ou de um devenir natural.
Ressaltamos que no pensamento de Faoro a ideia da herança patrimonialista parece ser um ponto forte, o que faz com que sua concepção, embora metodologicamente diferenciada dos demais teóricos do pensamento sociológico brasileiro, não se afaste do núcleo central daquilo que a maioria buscou como explicação dos percalços e das desigualdades existentes na organização da sociedade brasileira: a herança colonial e o principal de seus males, no caso o patrimonialismo, que se tornou o eixo da cultura política brasileira e responsável pelo fracasso das revoluções, pelo aniquilamento das demandas populares e, sobretudo pelo aborto das insurreições democráticas.

2.4 - Maria Sylvia de Carvalho Franco e a reavaliação das categorias de Weber

 Mas se em Raymundo Faoro encontramos um bom exemplo da aplicabilidade dos conceitos desenvolvidos por Max Weber à realidade brasileira, sobretudo no que diz respeito à compreensão da modernidade, vamos encontrar o oposto na concepção de Maria Sylvia de Carvalho Franco que em sua tese intitulada Homens livres na Ordem Escravocrata, publicada em 1969, parte do pressuposto de que os conceitos tradicionais de relação comunitária, de autoridade tradicional, e de sociedade estamental, da forma como representados nos tipos ideais de Weber não se configuram como bons parâmetros para uma análise a respeito da sociedade brasileira. Ao longos dos quatro capítulos dessa obra, a autora procura descrever as mais diferentes características da sociedade brasileira, cujas especificidades comprovariam a incompatibilidade da utilização das categorias weberianas, além de procurar proporcionar uma análise acerca da estrutura da sociedade cafeeira brasileira do século XIX que se desenvolveu no Vale do Paraíba. Conforme argumenta Maria Sylvia de Carvalho Franco, embora a utilização de mão-de-obra escrava tenha sido de fundamental importância para a instalação do sistema de produção mercantil, a manutenção dessa mão-de-obra tornou-se opcional, na medida em que havia naquela região mão-de-obra livre disponível suficiente para o trabalho, tendo em vista que o sistema econômico mercantil do Brasil, o qual se encontrava baseado na escravidão, deu possibilidade ao surgimento de homens livres e expropriados dos meios de produção, os quais se encontravam desvinculados dos processos principais da sociedade, constituindo-se assim, num grupo desnecessário e dispensável.
A referida autora parte do pressuposto de que apesar do sistema colonial desenvolvido no Brasil por Portugal ter privilegiado a monocultura, tal atividade não apresentou entraves para a instalação de sitiantes, vendeiros e tropeiros nas cercanias das plantações, com o objetivo de suprir as demandas da vizinhança por alimentos, animais para transporte e outros produtos. Nesse contexto, Maria Sylvia de Carvalho Franco passa a descrever um quadro caracterizado por uma violência institucionalizada na convivência entre homens livres e pobres. Violência essa que se manifesta nas mais variadas dimensões da vida social dos mesmos, determinando uma relação comunitária onde a bravura, a ousadia, assim como as ações de violência passam a adquirir um caráter de legitimidade e imperatividade. Tal situação torna-se um ponto relevante na argumentação da autora que percebe que tal violência existente no interior dessa vizinhança é incompatível com o conceito weberiano de comunidade na qual prevalecem formas de relações fundadas na amizade e ajuda mútua, as quais apesar de se fazerem sentir, encontram-se vinculadas a um grau muito elevado de violência.
Ao dirigir suas analises para a relação existente entre os extratos da sociedade, no caso os tropeiros, vendeiros e sitiantes, que compõem os níveis inferiores e os fazendeiros, pertencentes ao extrato superior, a referida autora argumenta que apesar desses agentes manterem uma relação baseada em troca de favores, é possível perceber através de uma análise mais acurada que os fazendeiros exercem uma dominação em relação aos demais, e nesse ponto de vista, torna-se improcedente, segundo a autora, a utilização da teoria weberiana de uma dominação tradicional do tipo patriarcal, muito embora seja possível encontrar naquela sociedade estudada as principais características dessa tipologia, como o caráter comunitário e a fidelidade das relações que passam a ser legitimadas pelo hábito. O que se torna inexistente é justamente a relação entre “senhor e súdito” tal como descrito por Max Weber, muito embora haja possibilidade do estabelecimento de relações de proximidade na figura do chefe de família do fazendeiro que cria uma relação de respeito, mascarando sua dominação sobre os demais membros, tal relação se estabelece de forma muito diferenciada daquela proposta por Weber. A esse respeito, a autora acrescenta que “os homens eram ricos apenas em terras, possuindo poucos escravos e estando a gente branca em pé de excessiva igualdade para que pudessem servir uns aos outros” (FRANCO, 1997, p. 118).
Em linhas gerais, Maria Sylvia de Carvalho Franco desenvolve sua argumentação no sentido de demonstrar que no contexto estudado, tanto os homens livres pobres, assim como aqueles que lograram mais êxito, conseguindo fazer fortuna, desenvolviam regularmente uma forma de agir sempre voltado para uma forma individualizada, impossibilitando a formação de uma classe de trabalhadores, devido a existência do trabalho escravo assim como uma dominação pessoal por parte dos fazendeiros, a qual era circunscrita apenas aos limites do latifúndio e arredores, tornando difícil a organização e grupos e, consequentemente, a caracterização de tal sociedade como estamental, tipificadas por classes sociais fechadas, estáveis, bem como claramente diferenciadas e reconhecidas em um espaço geográfico maior que suas propriedades. Dessa forma, a autora procura demonstrar que a definição de uma estratificação social se fazia em função de uma situação econômica e não baseada em critérios honoríficos.
O que a nosso ver torna o discurso de Marya Silvia muito próximo dos discursos até agora apresentados é justamente a recorrência – para não dizer a persistência – de uma estreita relação entre o público e o privado, que no caso da sociedade estudada impossibilitava as ações do Governo central de burocratizar a administração pública da região, inibindo a utilização de recursos privados para solucionar problemas de ordem pública, através de reformas fiscais, fato que desagradava a classe dominante local. Nesse sentido, a autora procura retratar o fato de que os responsáveis para promover tais mudanças eram muito mais fiéis aos fazendeiros – que representavam o poder local -, do que propriamente ao Governo central, realidade essa que ainda pode ser observada nos dias atuais.

2.5 - A sociologia dual de Roberto Da Matta

Outro importante intelectual que não pode ter sua importância desconsiderada é Roberto Da Matta, em cuja argumentação podemos notar o predomínio de duas categorias que o mesmo procura privilegiar e que permitem compreender e penetrar na singularidade da sociedade brasileira, as quais são as categorias de indivíduo e de pessoa. E é através da eleição dessas categorias que esse autor busca a chave para a compreensão de dois conceitos de fundamental importância para as ciências sociais, no caso a idéia de “liminaridade” e a idéia de “individualidade”. E conforme esclarece o próprio Da Matta, a idéia de liminaridade

(...) leva-nos ao reino dos ritos de passagem e aos costumes exóticos dos grupos tribais, enquanto que individualidade nos remete aos domínios da filosofia política, ao universo do mercado e do capitalismo, enfim, ao nosso próprio cotidiano, ao nosso universalismo implícito e inconsciente (DA MATTA, 2000, p. 8).

No sentido de melhor elucidar essas duas categorias, relevantes, portanto na concepção dessa autora, podemos afirmar que a ideia de individualidade encontra-se vinculada a toda uma tradição clássica da filosofia política, sobre a qual encontram-se estabelecidos os princípios basilares do pensamento moderno, conforme procuramos demonstrar nos capítulos anteriores. Ideia essa que pode melhor ser compreendida a partir de uma perspectiva de pensar a sociedade tal como historicamente fundado. Em outros termos, refere-se ao “eu” da forma como tal ideia aparece no pensamento cartesiano, e que passa a ser privilegiado nas sociedades ocidentais, como descreve o próprio Da Matta (2000, p. 9) “a diferenciação entre o indivíduo como realidade empírica e o estabelecimento deste como uma entidade social autônoma ou de um valor social”. A partir das articulações desenvolvidas com essas categorias, o que passa a figurar como núcleo central nas análises desse autor é justamente a passagem das individualidades enquanto experiência individual universal para o individualismo, o qual não deixa de ser “uma ideologia (um valor ou uma determinação social coercitiva consciente) central apenas na chamada civilização ocidental” (DA MATTA, 2000, p. 10). De acordo com essa linha de raciocínio, se em todas as sociedades torna-se possível observar esse fenômeno, o referido autor passa a privilegiar a sociedade brasileira na análise de sujeitos isolados que representam papéis tal como os malandros e os heróis, enquanto uma forma de experiência universal da condição humana.
Em relação ao conceito de liminaridade, o qual se encontra associado aos ritos de passagem, o autor em questão acrescenta que “dentro de uma multiplicidade de formas conscientemente expressas ou meramente implícitas, existe um padrão típico sempre recorrente: o padrão dos ritos de passagem” (Da Matta, 2000 p. 10). Para o referido autor, a abordagem desenvolvida pelos antropólogos tradicionais reflete “uma leitura da liminaridade como algo invariavelmente paradoxal, ambíguo e no limite, perigoso e negativo” (Da Matta, 2000 p. 13). Ocorre que essa perspectiva reflete, na verdade, uma visão burguesa de uma sociedade puritana, na qual, conforme Da Matta (2000, p. 13) “não se admite o mais-ou-menos, a indecisão, o adiamento e, acima de tudo, o hibridismo, ou seja, a ausência de compartimentalização  e de indivisibilidade”. Importante destacar que essa visão encontra-se fundamentada, sobretudo, na experiência norte-americana, onde o autor desenvolveu parte de suas pesquisas, levando-o, inclusive, a uma percepção da clara diferença entre o liminar brasileiro e o norte-americano, a partir da qual procura fundamentar uma nova teoria social.
Enquanto a sociedade norte-americana apresenta uma visão negativa da liminaridade, em outras palavras, naquilo que se encontra situado entre “o que é e não é”, entre o “ser e não-ser ao mesmo tempo”, a liminaridade brasileira por seu turno apresenta uma característica contrária à das sociedades puritanas, como a norte-americana por exemplo, na qual passa a imperar a obrigatoriedade da alegria enquanto “um momento especial demarcado por uma festa que, simultaneamente salientava o coletivo e o individual, um ritual situado dentro e fora do mundo” (Da Matta, 2000, p. 13). Nesse ponto de vista o autor apresenta o carnaval como o elemento que traduz a inversão da realidade do brasileiro. Nesse sentido, o carnaval traduz uma ambigüidade, pois na medida em que ele pode ser considerado como uma das maiores festas nacionais, também é no carnaval que passa a ser celebrado o liminar da sociedade brasileira.
Na abordagem daquilo que caracteriza a identidade brasileira, Da Matta (1984) não perde de vista a utilização dessas categorias de indivíduo e pessoa. Assim, entre a casa e a rua é possível encontrarmos os elementos que formam o “esqueleto de nossa rotina diária”. Não obstante às diferenças que caracterizam essas duas dimensões, as mesmas se complementam, pois, conforme Da Matta (1984, p. 33) “formam os espaços básicos através dos quais circulamos na nossa sociabilidade”. Seria a partir desses espaços que se processam as mais diversas facetas de nossa sociedade. É aí, portanto, que observamos as realizações, tanto dos ritos de “reforço” os quais celebram a própria ordem social, como dos ritos de “inversão” que no caso do carnaval procedem uma inversão na lógica social. Entre a rua e a casa se estabelece, de acordo com o autor, o cenário onde os atores sociais desenvolvem as mais variadas estratégias da “navegação social”. Ao mostrar a singularidade das festas de carnaval, o mesmo procura ilustrar a maneira como passamos a conferir temporariamente à rua as conotações próprias da individualidade do lar.
Rua e casa passam então a representar os “modos de enfrentar essas contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro” (Da Matta, 1984, p. 97). É nesse espaço que ocorrem as transgressões e subversão das normas em detrimento aos nossos próprios interesses, tal como atualmente estamos acostumados a assistir nos escândalos que assolam as grandes instituições nacionais como o senado, câmara, tribunais e demais instituições em um contexto que reflete formas de agir baseadas na malandragem, ficar em cima do muro, enfim, expedientes que de certa forma caracterizam o “jeitinho brasileiro”.

No drama do “você sabe com quem está falando?” somos punidos pela tentativa de fazer cumprir a lei ou pela nossa idéia de que vivemos num universo realmente igualitário. Pois a identidade que surge do conflito é que vai permitir hierarquizar. (...) A moral da história aqui é a seguinte: confie sempre em pessoas e em relações (como nos contos de fadas), nunca em regras gerais ou em leis universais (DA MATTA, 1981, p. 167).

A concepção desenvolvida por Roberto Da Matta, a qual se insere como uma das mais importantes contribuições para as ciências sociais no Brasil propõe uma compreensão para o dilema brasileiro levando-se em conta o que existe entre “um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso seu sistema de relações pessoais” (Da Matta, 1984, p. 95). Dessa forma, a realidade brasileira possuiria um caráter dual: de um lado a existência de normas e leis às quais todos devem prestar obediência, e de outro a predominância de expedientes baseados em troca de favores, redes de contatos pessoais, tráfico de influência, etc. os quais compõem um ideário de princípios estabelecidos pelo nosso sistema burocrático e hierárquico.
Como pode ser observado acima, a concepção desenvolvida por Da Matta ainda que trazendo consigo elementos bem criativos, sobretudo nas comparações entre a realidade brasileira e a norte-americana, ainda se insere numa trajetória de continuidade com as antigas predominantes. E isso significa dizer que pelo discurso apresentado nessa concepção temos uma cidadania que não se realizou plenamente, e essa incompletude se deve aos problemas estruturais relacionados ao nosso passado histórico, de cunho patrimonialista e que impossibilita uma clara distinção entre o que é público e o que é privado, com repercussões profundas para o processo de organização moderna e para o próprio exercício da cidadania. O argumento proposto pelo autor parece apontar para uma cultura que se criou no Brasil e que impossibilita os brasileiros de serem cidadãos plenos como os cidadãos de países verdadeiramente modernos como os Estados Unidos e os da Europa, discurso esse que é recorrente e análogo ao discurso que envolve o colonizado e o colonizador e que em última análise parece apontar para uma imperfeição congênita que sofre nossa sociedade e que a impede de possuir verdadeiros cidadãos.

2.6 - A “sociologia engajada” de Florestam Fernandes

Complementando esse quadro de intelectuais responsáveis pela expressão do pensamento sociológico brasileiro citamos Florestam Fernandes, cujas análises se dirigem aos aspectos interpretativos dos problemas sociais e das relações de classe no Brasil, e em particular às especificidades da transformação burguesa no país, o que constitui o núcleo central de seu grande trabalho intitulado A revolução burguesa no Brasil. tal análise pode ser compreendida naquilo que ele denomina de “sociologia engajada radical” a qual se dirige a compreensão acerca da revolução operada no Brasil pela burguesia, o que faz com que esse autor em diversas passagens dessa obra apresente o dilema entre a objetividade e a opção política, conforme esclarece de inicio o próprio Florestan (2006, p. 3-4) “trata-se de um ensaio livre, que não poderia escrever se não fosse sociólogo. Mas que põe em primeiro plano as frustrações e as esperanças de um socialista militante”.
De acordo com Florestan (2006, p. 30), existe uma tradição dominante em nossa historiografia que levou os melhores espíritos a uma espécie de “história oficial”, a qual se encontra desprendida de intenções interpretativas e, de forma especial, muito sujeita a converter os móveis declarados, assim como as aspirações ideais conscientes dos agentes históricos em realidade histórica última, de forma tão irredutível quão verdadeira em si mesma.
Florestan (2006) utiliza de forma muito peculiar os conceitos da teoria marxista na reconstrução de processos históricos, em particular quando analisa a transição brasileira para a modernidade social capitalista, a qual passa a ser vista por esse autor segundo uma perspectiva de revolução burguesa, sendo que essa categoria de revolução burguesa não adquire uma conotação estrita, nem possui um estatuto teórico muito preciso, na medida em que a mesma de desloca de uma definição socioeconômica a uma outra definição de caráter essencialmente política desse fenômeno, desconsiderando-se nesse contexto a parte da “longa duração” e da “conjuntura histórica de transformação”. Na argumentação desenvolvida por esse autor, a revolução burguesa tal como compreendida num sentido genérico, viria a se constituir “um fenômeno estrutural” que pode se reproduzir de formas muito variadas, levando-se em consideração determinadas condições ou circunstancias, desde que certa sociedade nacional seja capaz de absorver o padrão de civilização capaz de converte-la numa necessidade histórico-social. Tomando por base esse pressuposto, Florestan (2006) defende a tese segundo a qual a atualização da “revolução burguesa” no Brasil, se em um primeiro momento encontra-se vinculada à emergência e consolidação do capitalismo, em uma segunda etapa passa a representar a própria crise do poder burguês.
A argumentação de Florestan apresenta nesse sentido uma critica a todos os teóricos que sempre desconsideraram a existência de uma “revolução burguesa no Brasil”, justamente pelo fato de que a admissão da mesma não implica pensar a história brasileira a partir de padrões e esquemas repetitivos de outras sociedades. Nesse ponto de vista, o referido autor passa a estabelecer uma distinção entre o que ele considera como modelo “clássico” de revolução burguesa, o qual foi o responsável pelo estabelecimento do capitalismo independente e da democracia política, e a revolução “periférica”, que trouxe consigo uma forma de capitalismo caracteristicamente dependente e submisso aos interesses externos. Essa linha de raciocínio se desenvolve na tentativa de demonstrar que a revolução burguesa, da forma como a mesma se processou no Brasil, pode ser compreendida no mesmo grupo sociológico das revoluções burguesas e nesse sentido, o trabalho de Florestan (2006) procura identificar o conteúdo essencial de tais fenômenos históricos, vinculando-os a um processo de absorção de um padrão estrutural e dinâmico da organização da economia, da sociedade e da cultura, o qual pode ser identificado como o da civilização capitalista moderna. É a partir do desenvolvimento desse contexto teórico que a idéia de uma revolução burguesa se aplicaria ao caso brasileiro, levando-se em conta que em nosso país a ocorrência de alguns fenômenos atestam a ocorrência de um processo de modernização como a universalização do trabalho assalariado e a expansão da ordem social competitiva.
De acordo com a argumentação de Florestam (2006), o processo de modernização das estruturas sociais, políticas e econômicas das formações capitalistas não levam em consideração um determinado padrão ou modelo pré-estabelecido, no que se deduz que seria incoerente pretender que no Brasil pudesse ocorrer uma forma de desenvolvimento capitalista tal como se deu nas nações consideradas como centrais e hegemônicas. No caso do Brasil, a análise de Florestan procura mostrar que ocorreu no país uma “dupla articulação” entre latifúndio e imperialismo, a qual se manteve preservada e que inviabilizou, do ponto de vista histórico, o processo de evolução do capitalismo da forma como se realizou por exemplo, na Inglaterra, França e Estados Unidos. No entanto, apesar de todos os percalços e das dificuldades enfrentadas, tanto no âmbito interno quanto no externo, ainda houve condições de se provocar uma “revolução econômica autentica”.
O que constitui um dos aspectos mais relevantes na argumentação de Florestan (2006) diz respeito a descoberta de conexões específicas de dominação burguesa com a transformação capitalista, em situações onde a “dupla articulação” anteriormente citada foi preservada, estabelecendo o conceito  de “modelo autocrático-burguês de transformação capitalista”, o qual seria peculiar das formações dependentes do capitalismo periférico e que passa a se constituir como elemento fundamental para a compreensão de uma modalidade específica de modernização capitalista tal como ocorreu no Brasil.
De acordo com a concepção apresentada por Florestan, é possível estabelecer dois princípios fundamentais relacionados ao processo de transformação capitalista. Em primeiro lugar, que tal transformação adquira em sua universalidade um caráter burguês, e em segundo lugar, que se torne inevitável a ideia de dominação burguesa independentemente das formas políticas oriundas de seu exercício. No caso da experiência histórica brasileira, na qual esse processo de transformação capitalista ocorreu de maneira autocrática, tal fato encontra-se satisfatoriamente enquadrado no quadro conceitual de revolução burguesa.

3 – Resultados e conclusões:
 
Nessas brevíssimas considerações a respeito dos principais representantes do pensamento social brasileiro procuramos mostrar que o grande dilema relacionado a formação social no Brasil ainda continua sendo a mola propulsora que levou e continua levando os mais renomados teóricos a buscarem nas mais diversificadas interpretações uma solução para esse problema. Ressaltamos que tais interpretações por seu turno, tem caracterizado o próprio surgimento e desenvolvimento das ciências sociais em nosso país, levando-se em conta que a sociedade brasileira caracterizada desde as suas bases constitutivas por grandes desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, ao mesmo tempo que se apresenta como um locus privilegiado para o questionamento da sociologia clássica e moderna, igualmente pode se transformar num terreno fértil para a profusão de ideias e concepções que podem recair na efetivação de produções ideológicas, conforme procuramos demonstrar tal como ocorreu esse processo durante o período da Primeira República, no discurso autoritário dos intelectuais desse período.
            Atualmente vivemos um período de crise política no Brasil, em um contexto em que se fala de um “golpe branco” que tirou uma presidente da República sob a alegação de que a mesma cometeu crime de responsabilidade; de um judiciário que age em função dos interesses da direita e do poder das elites que conta a seu favor com os meios de comunicação que desenvolve um papel ideológico de fundamental importância na disseminação de uma consciência coletiva hegemônica.
            Ressalte-se que neste novo cenário a imprensa internacional e a maioria dos grandes intelectuais assiste de forma impassível e incompreensível a escalada de um processo político no Brasil que regra geral pressupõe um verdadeiro retorno ao conservadorismo. Esses fatos não deixam de representar o reflexo de todo um processo de transições que trazem consigo uma aparente visibilidade desse cenário histórico complexo que tem se constituído o referencial de pesquisas de muitos teóricos sociais. Para além das ideologias, devemos compreender, em primeiro lugar, que a compreensão do moderno se torna mais pertinente quando se busca as bases sobre as quais se constroem sua própria história. No caso brasileiro, fica evidente o quanto a implementação desse “espírito moderno” seguiu uma via bastante peculiar e por vezes muito divergente de outras experiências sociais.

4  – REFERÊNCIAS:

DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Editora Sala, 1984.

__________________. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. Mana, abril 2000, vol. 6, n° 1. ISSN 0104-9313.

__________________. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
 
DINIZ, Eli. Empresários e capitalismo no Brasil: 1930-1945. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder, 3ª. ed., Rio de Janeiro: Globo, 2001.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Record, 1994.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2006.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1991.

LAMOUNIER, Bolivar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República: uma interpretação. In: FAUSTO, Bóris (Org.). O Brasil Republicano VI. Rio de Janeiro: Difel, 1978.

VIANNA, Oliveira. Problemas de organização e problemas de direção: o povo e o governo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952.

CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional – sua estrutura – seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941

* Licenciado em Filosofia (UFPA), mestre e doutor em Ciências Sociais (UFPA), possuindo bacharelado em Administração (UFPA) e Pós-Graduação (Lato sensu) em Educação e Problemas Regionais (UFPA). É professor Adjunto da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor de Ensino Superior da Faci/Devry. Possui experiência na área de Filosofia Política, Ciência Política, Filosofia do Direito, Sociologia do Direito e Ética.

** Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UNAMA). Graduado em Arquitetura e Urbanismo (UNAMA). Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Ideal ? FACI DEVRY, Arquiteto no Primeiro Comando Aéreo Regional da Força Aérea Brasileira e sócio-Diretor da RL Consultoria Urbana. Experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Projetos Arquitetônicos, com foco em mobilidade urbana e acessibilidade; comercial e hospitalar, execução e fiscalização de obras civis, militares. ambientação, arquitetura de interiores, publicação em capa de revista de decoração de interiores da revista C&D de ?O Liberal? (2012). Pesquisador na linha de mobilidade e acessibilidade urbana, com trabalhos publicados nas instituições: UFPA e UNAMA, em (2012) e apresentados em anais nacionais e internacionais, propondo estratégias de ação, para utilização do modo de transporte por bicicleta, a pé e de transporte fluvial (2013), tudo para melhoramento da qualidade de vida da população da região amazônica.

1 O termo estamento (stand) utilizado por Faoro foi tomado emprestado de Max Weber, para quem a sociedade feudal havia sido estruturada em três estamentos – o clero, a nobreza e o povo. No entanto, Weber estabeleceu a essa conotação de estamento uma ampla abrangência, na qual vamos encontrar uma das modalidades do senhorio político tradicional, a qual corresponderia a estamental-patrimonial onde o estamento dominante utiliza-se do poder político como se fosse sua propriedade, o que irá fundamentar a tese de Faoro, ensejando inclusive o próprio título de sua obra.


Recibido: 13/04/2017 Aceptado: 21/04/2017 Publicado: Abril de 2017

Nota Importante a Leer:

Los comentarios al artículo son responsabilidad exclusiva del remitente.
Si necesita algún tipo de información referente al articulo póngase en contacto con el email suministrado por el autor del articulo al principio del mismo.
Un comentario no es mas que un simple medio para comunicar su opinion a futuros lectores.
El autor del articulo no esta obligado a responder o leer comentarios referentes al articulo.
Al escribir un comentario, debe tener en cuenta que recibirá notificaciones cada vez que alguien escriba un nuevo comentario en este articulo.
Eumed.net se reserva el derecho de eliminar aquellos comentarios que tengan lenguaje inadecuado o agresivo.
Si usted considera que algún comentario de esta página es inadecuado o agresivo, por favor, escriba a lisette@eumed.net.
Este artículo es editado por Servicios Académicos Intercontinentales S.L. B-93417426.