TERRITÓRIOS DO CINEMA. REPRESENTAÇÕES E PAISAGENS DA PÓS-MODERNIDADE

TERRITÓRIOS DO CINEMA. REPRESENTAÇÕES E PAISAGENS DA PÓS-MODERNIDADE

Fátima Velez de Castro
João Luís J. Fernandes
(Coordinadores)

Universidade de Coimbra

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O cinema e o ecrã omnipresente nas paisagens e nas territorialidades contemporâneas

João Luís J. Fernandes
CEGOT/Departamento de Geografia e Turismo
Universidade de Coimbra
jfernandes@fl.uc.pt

O cinema como representação que condiciona a imagem dos lugares

São muitas as linhas de reflexão sobre o modo como a Geografia e o cinema se relacionam, sobre as pontes e os múltiplos focos de análise das espacialidades associadas à linguagem e à criatividade cinematográficas (Azevedo, 2006, Velez de Castro, 2008).
Desde logo, numa sociedade contemporânea centrada no poder do visual, é relevante a forma como um filme representa um espaço geográfico, uma paisagem e as territorialidades das múltiplas personagens que participam e constroem a diégese de cada narrativa.
Ainda que o cinema não seja um retrato dessas geografias sugeridas nos planos dos cineastas mas apenas o reflexo das perceções e dos mapas mentais dos autores, a imagem veiculada deixa um rasto de efeitos diretos e indiretos nas opções geográficas de consumidores, potenciais residentes, turistas, em- presários ou outros (Kim e Richardson, 2003). Essa influência é amplificada e, porventura, mais duradoura porque o caráter visual da mesma aumenta e prolonga o seu poder de sedução/dissuasão (Claval, 2006).
Enquanto indústria criativa, o cinema é reflexo dos modos de ver e sentir os lugares daqueles que escrevem os guiões e depois orientam as câmaras de filmar, mas é também um meio de condicionamento dos mapas mentais de espetadores que, de uma forma ou de outra, não são insensíveis a uma experiência cinema- tográfica. Isso ocorre apesar dessa influência não ter um efeito direto, como se os espetadores de um filme fossem atores passivos perante um cinema que seria, deste modo, um instrumento ativo e unívoco de propaganda (Wichels, 2014).
De modo intencional ou não, o cinema será um instrumento de soft power (Nye, 2014), uma forma de sedução dos atores, levando-os a tomar decisões geográficas num ou noutro sentido, passando férias aqui e não ali, investindo neste lugar e não noutro, fixando residência nestes países ou cidades mas evi- tando outros/as. A lista de opções geográficas é extensa e relevante, porque são diversas as formas de capital em movimento que se podem territorializar em diferentes lugares, respondendo a um complexo sistema de influências mútuas, no qual este poder subtil (mas efetivo) das imagens tem uma posição importante.

A construção da imagem de um lugar é um processo multidimensional no cruzamento de múltiplas linguagens e circunstâncias. Essa modelação pode interferir quer com a intensidade dessa imagem – um lugar que é mais ou me- nos conhecido e familiar, quer com a diversidade de valências e propriedades às quais se vincula esse lugar.
Como referem Avraham e Ketter (2008), o ideal será sempre a heterogeneidade, os lugares que se revelam por múltiplas propriedades. Em sentido contrário, no outro extremo, encontram-se os estereótipos, as perceções unidimensionais, os espaços geográficos agregados a traços únicos e simplificadores, lugares que se associam a poucas palavras e a escassos fatores de identidade. Nalguns casos, poder-se-ão tra- tar de estereótipos positivos e atrativos, propriedades que causam boa impressão e sentimentos positivos, associações que reforcem as perceções e filiações topofílicas. Noutros, pode ocorrer o contrário, a simplificação da imagem do lugar, reduzindo- -a a propriedades negativas e repulsivas e a sentimentos topofóbicos, aqueles que afastam o turista, o investidor, o estudante ou o novo residente.
Num ou noutro caso, enquanto indústria criativa integrada numa avalanche caótica e frenética de mensagens visuais, o cinema não é neutro e pode de- sempenhar um papel central. Não veiculará uma mensagem única e exclusiva, mas reforçará tendências já evidenciadas por outros canais de comunicação e informação, como os media. Tome-se como exemplo o caso da África subsaariana, região de uma forma geral representada no cinema de consumo de massas ora como um paraíso ecológico mitificado de savanas, animais selvagens e tribos exóticas, ora como um território instável e violento de guerras civis e disputas, cidades agressivas e inseguras (Fernandes, 2012).
Segundo Baker (2007), a imagem de um lugar resulta de três fontes de informa- ção. Por um lado, a experiência vivida, o estar num lugar como visitante, turista, empresário ou estudante. Este contacto direto, as impressões que daí resultam, deixa rasto, pode prolongar-se para o futuro e condicionar opções posteriores.
Essa perceção do lugar pode resultar de contactos e fontes indiretas de informação. Estas poderão ser controladas in situ e resultar de estratégias próativas e profissionais de marketing territorial, um processo que tanto pode visar o reforço de imagens positivas anteriores, como a reorientação deste espaço para uma imagem inovadora.

Por último, esta experiência indireta e distanciada de um espaço geográ- fico pode ser o resultado de fontes indiretas que, sem um evidente propósito para esse efeito, veiculem determinadas mensagens e conteúdos a respeito dos lugares representados.
O cinema pode estar implicado em cada uma destas vias de construção da imagem de uma cidade, de uma região, país ou mesmo (sub) continente, como atrás se referiu a propósito da África subsaariana.
Por um lado, a experiência direta pode ser impulsionada pelo cinema, pela curiosidade e pelas procuras suscitadas por um filme. Categorias como o movie induced tourism, o cinema tourism ou o set-jetting tourism, se bem que não apre- sentem uma clara demarcação concetual, vão ao encontro dessas mobilidades que, de modo direto ou indireto, podem ser motivadas ou influenciadas pelos conteúdos cinematográficos, pelas paisagens representadas nos planos, pelos percursos espaciais quer dos personagens, quer dos atores, atrizes e realizadores. Nalguns casos, neste celebrity system, estes star icons têm o condão de deixar uma marca nos lugares onde residem, onde passam férias e vivem momentos de lazer ou apenas onde fazem compras, não fosse este um mundo produzido e associado ao consumo (Herwitz, 2008).
Por outro, enquanto experiência geográfica indireta, o cinema tem o poder de influenciar a perceção que se tem de um determinado lugar. Desde logo, pelo modo como o filme pode ser instrumentalizado e associado a estratégias de marketing territorial. Refira-se aqui o cinema em sentido lato, as técnicas cinematográficas aplicadas na produção de filmes publicitários explícitos, mas tenham-se também em consideração os filmes de ficção patrocinados por cidades e regiões que serão objeto de representação na diégese daquelas obras. Estes territórios seduzem produtores e realizadores para que estes criem um produto que veicule o melhor perfil deste ou daquele espaço geográfico.
No entanto, mesmo não estando integrado, de modo explícito, em nenhum processo ativo e direcionado de promoção dos lugares, mesmo enquanto mera obra de ficção, em especial no caso do cinema comercial e de audiências alarga- das, o filme não deixa de se inscrever no modo como os lugares são percebidos e nas imagens que se associam a estes espaços geográficos. Filmar narrativas de violência ou, pelo contrário, histórias românticas, não é indiferente à perceção que se fica de cada lugar. A representação da guerra ou da paz, de uma paisagem caótica e agressiva ou de uma paisagem idílica e tranquilizadora, acompanhar personagens do mal ou personagens do bem, filmar ações agressivas ou altruistas, tudo se regista e se pode vincular aos lugares. Isto é verdade sobretudo se se repetir o sentido das representações, se estes se sucederem no tempo, se aquela cidade for quase sempre o território ficcionado da luz e do romantismo, do glamour e da elegância, como Paris, ou se for o espaço da narrativa violenta, da insegurança, da cityscape caótica, suja e desordenada, como ocorre com a maior parte das cidades africanas.
Por vezes, pode mesmo haver colisão entre diferentes perspetiva, como ocorre no caso brasileiro com as imagens contraditórias entre o país idílico das campanhas publicitárias, muitas delas recorrendo a técnicas cinematográficas para difusão de uma mensagem apelativa, e o Brasil do urbanismo popular, espontâneo e violento das favelas representado em filmes de projeção global, como o Cidade de Deus, realizado por Fernando Meireles em 2002.
Tudo isto se amplifica, porque a linguagem do cinema é, na verdade, inter- textual, não se enclausura numa tela ou em qualquer ecrã. Pelo contrário, nesta modernidade líquida, tudo agora é inconstante e fluído, tudo se interpenetra e condiciona mutuamente (Bauman, 2006). O conteúdo cinematográfico pode ter origem na literatura, mas poderá depois derivar, numa relação biunívoca dinâmica, para a televisão, para os videojogos, para a banda desenhada, para toda a diversidade de merchandising visual ou textual. Num mundo de relações circulares, múltiplas e de geometria variável o cinema representa espaços geográ- ficos mas é também responsável direto e indireto pela modelação dos mesmos.

O cinema e as paisagens cinematográficas. Dos territórios de exibição e representação à Avenue of Stars, de Hong Kong

Nas novas perspetivas da Geografia, a paisagem é uma realidade dinâmica e espessa. Mais que um artefacto representativo de determinados valores e contextos, é uma experiência multissensorial ampla. Esta paisagem total envolve a estética, mas também os acontecimentos, as celebrações, os elementos fixos e móveis, os atores e as suas territorialidades, as materialidades, as encenações e as hiper-realidades de uma sociedade hoje mais complexa e difusa (Fernandes, 2013a, Mácha, 2013).
É nesta perspetiva que se deve entender o cinema como uma indústria criativa que se territorializa, não apenas como uma atividade económica que deixa um rasto espacial e imprime uma pegada geográfica, mas como um processo de produção de conteúdos que se fazem paisagem, ao mesmo tempo material e simbólica, representada e vivida. Nesse sentido, seguindo Fernando Ilharco (2013), o cinema faz parte daquelas linguagens que não retratam a realidade mas que produzem essa mesma realidade, das invenções que acabam por inventar o próprio mundo, da representação que se confunde com o representado, sendo o segundo criado pela primeira.
Nesta passagem da imagem em movimento a paisagem, destaquem-se os lugares da diégese fílmica e os lugares efetivos das filmagens, realidades que, nesta arte da ilusão e da encenação, nem sempre coincidem (Fernandes, 2013b). Esta não correspondência acontece porque alguns dos espaços geográficos das narrativas são irreais e fruto da imaginação de algum criador, como ocorreu com a Middle Earth da trilogia Lord of the Rings, rodada por Peter Jackson na Nova Zelândia. No entanto, pode acontecer também porque, cite-se apenas um exemplo, se filmam na Irlanda parte das paisagens e dos acontecimentos que o filme Braveheart (de Mel Gibson) localiza na Escócia.
Independentemente destas dessincronias entre espaços de rodagem e espa- ços representados, estes são a matriz central das paisagens aos quais o cinema acrescenta valores e narrativas, como ocorre com a aldeia de Cong, algures na costa ocidental da República da Irlanda, lugar de peregrinação para nortea- mericanos de ascendência irlandesa porque em 1952 ali se filmou The Quiet Man, de John Ford.
Estes territórios do cinema têm um dos seus epicentros nos estúdios de filmagens, espaços que ali recriam outros, interiores ou exteriores. É também a partir dos estúdios que o cinema faz viajar os espetadores por estas geografias da ilusão e da encenação, filmando-se na Paramount, na costa californiana, uma paisagem egípcia, um fragmento da cidade imperial romana ou um qualquer ambiente cósmico e estelar, da mesma forma que se rodaram em Roma, na Cinecittá, as ruas e as paisagens de Nova Iorque.
Foi nestas geografias de encenações e simulacros (Baudrillard, 1991), neste cinema que atravessa o mundo e encurtou distâncias, que se recriou o wild west norteamericano nos spaghetti westerns filmados na paisagem árida de Almeria, num sul de Espanha que assumiu algo que não era, um faroeste violento que representaria um outro lugar e um outro tempo (Capella e Font, 1999).
O cinema está ainda nos lugares das suas personagens e autores, os ficcio- nados e os reais. Por isso se seguem os passos de James Bond, ao mesmo tempo que se dá relevância aos lugares por onde passam, ou passaram, protagonistas como Charles Chaplin, Marylin Monroe ou Woody Alllen. Daqui deriva uma certa cartografia topobiográfica, em especial de realizadores e atores/atrizes, sobretudo estes últimos que, em muitos lugares, vão gentrificando espaços ur- banos como Los Angeles ou Santa Fé, vão produzindo cartografias emocionais de curiosidade e desejo, porque ir ali, ao território de alguma celebridade, é uma outra experiência cinematográfica, é a imersão num filme de múltiplas espacialidades (Fernandes, 2013c).
Esta territorialização do cinema faz-se também pela exaltação da memória, pelos espaços museológicos votados à arte cinematográfica, pelos museus do cinema que renovam interesses e diversificam os atrativos turísticos de cidades como Paris, Londres ou Turim.
Uma das mais relevantes expressões desta geografia produzida pela sétima arte está nos lugares e nos momentos de celebração, exibição e/ou competição, com expoente máximo no Kodac/Dolby Theater, em Hollywood, espaço mí- tico de atribuição anual dos óscares desde 2001. Daqui resulta uma geografia dinâmica e sazonal definida por festivais e acontecimentos paralelos que vão reforçando a relevância pontual de Veneza, Berlim ou Cannes. Neste último caso, o cinema tem o poder de simplificar e estereotipar o lugar. Na perceção geral, Cannes será cinema, nada existindo para além do charme deste enca- deamento de atividades económicas e criativas que é o filme e a sua exibição.

Nestes lugares de celebração, Los Angeles é o modelo, o centro de uma rede de difusão de espaços clonados como os múltiplos passeios da fama (Walk of Fame) que, a partir de Hollywood, se difundem pelo mundo, por cidades como Londres ou Berlim. Nestes, o espaço público não é apenas um corredor de passa- gem, é um palco de exibição e consagração de memórias de atores e atrizes que, também aqui, nestes passeios estrelados, vão deixando a sua marca na paisagem.
O cinema é o elo de ligação, a ponte entre cidades unidas pelo valor do filme, cidades que fazem parte de um sistema planetário filiado na emoção, no espetáculo e na exibição cinematográfica, não fosse o cinema uma das mais evidentes expressões da globalização contemporânea, no modo como, nalguns aspetos, encurtou as distâncias entre os lugares, mas também na forma como cria uma ethnoscape de técnicos e produtores, atores, atrizes e espetadores, todos animados por um movimento planetário de circulação. Para Stephen Groening (2014), esta mobilidade global junta o cinema e a aviação, dois mundos que se cruzam e sintetizam.
Ainda que o universo digital dos computadores e dos efeitos especiais tenha criado uma geografia à parte, um mundo encenado entre portas e monitores infor- máticos, o avião faz viajar a tribo do cinema para filmar em lugares remotos, para territorializar personagens e narrativas em geografias extremas. O avião desloca esta classe cinematográfica também por outras razões, para discutir contratos, para assistir a festivais e lançamentos de filmes, para promoção das suas obras.
Ainda segundo Groening (2014), o cinema e o avião cruzam-se porque as ae- ronaves não são meros meios de transporte, são espaços de lazer e entretenimento, lugares de exibição de filmes e derivados. Este avião que desloca passageiros mas que deve também entreter e suavizar o efeito do enclausuramento dos corpos em viagens cada vez mais longas, tornou-se uma nova fronteira de expansão do filme, um meio de disputa entre diferentes estúdios e distribuidoras, um novo território cinematográfico.
Por tudo isto, o cinema é também um fator de relevância territorial, com- petitividade e afirmação de uns territórios sobre outros. Em cada um desses lugares, pretende-se demonstrar que, também ali, o cinema está presente e que não se deixou de acompanhar o ritmo e as tendências mais vanguardistas do planeta global, porque o cinema é também isso, inovação e arte que nasce da técnica, da industrialização e do esplendor dos tempos modernos.
Nesta vocação para a mobilidade espacial e transformação do espaço geográ- fico, o cinema será um veículo de deslocação, um fator de hiperaceleração de diversas formas de capital, que assim vai criando pontes de contacto, unindo territórios longínquos, consolidando um sistema que, segundo David Harvey (2011), vive dessa mobilização constante, dessa extensão e desse alargamento sem interrupções.
Daqui deriva outra cartografia, a dos hotspots de produção de filmes, territórios onde mais se investe, se cria e contribui para esta máquina de cinema. É a partir destes lugares que mais se escreve e filma sobre o resto do mundo, como se a totalidade do planeta estivesse, afinal, a ser representada e difundida por poucos, por aqueles que, deste modo, vão concentrando uma outra forma de poder, o referido e não negligenciado soft power de Joseph Nye (2014).
Da costa ocidental dos EUA à Europa do noroeste, de Bollywood à Nigéria e daqui a Hong Kong, o mundo que produz cinema em massa está, afinal, concentrado nalguns vértices de uma rede que, podendo ser planetária na sua essência (talvez no gosto e na atratividade pelo imaginário do filme), acaba por ser assimétrica na localização espacial e no controlo das redes de distribuição da produção cinematográfica.
É precisamente para celebrar um dos nós deste sistema polarizado que o Walk of Fame de Hollywood se encena em Hong Kong, na Avenue of Stars, um corredor turístico de simbolismo cinematográfico criado no sudeste asiático.
Localizada na Tsim Sha Tshui Promenade, um dos atrativos turísticos da cidade, nesta Avenue of Stars celebra-se o cinema produzido naquela região, comemoram-se as vidas de realizadores, atores e atrizes que, a partir de Hong Kong, constribuiram para a difusão da indústria cinematográfica local. Para além das estrelas impressas no solo, cada uma dedicada a uma personalidade, expõem-se estátuas, murais, réplicas de objetos associados ao cinema, peças variadas de arte pública, daqui resultando um alinhamento que faz desta artéria urbana um corredor performativo de exposição.

É difícil encontrar um centro na linearidade deste simbolismo espacial. Ainda assim, quem circula fixa-se mais tempo na estrela e na inscrição de uma celebridade, Jackie Chan. Os visitantes param também na estátua de Bruce Lee, talvez uma das mais planetárias personalidades cinematográficas do continente asiático, aqui exposto e devolvido ao público numa pose icónica, aquela que o celebrizou nos filmes de ação que nos remetiam, na perspetiva ocidental, para uma vaga e estereotipada imagem de um certo oriente.
É desta forma que o cinema confere densidade simbólica a um projeto de requalificação da frente urbana de ligação da cidade ao Rio das Pérolas. Para além de um espaço de lazer e atratividade turística, para além mesmo de uma mera intervenção urbanística, este é um território de imersão num cenário de cinema, uma hiper-realidade na qual o filme e a cidade se fundem em com- portamentos de transeuntes que, por devoção, identificação ou curiosidade, se prostram perante os nomes das celebridades gravadas na calçada, fazem gestos de imitação para assim se confundirem com o Bruce Lee que ali está representado, e se autofotografam em enquadramentos digitais individuais ou coletivos, mergulhando eles próprios numa qualquer película de artes marciais.
Como refere Stokes (2007, p. ix), “It is quite amazing that, despite its small size and population, Hong Kong has become so big in the field of cinema, exceeding the production of both Taiwan and the People’s Republic of China, and ranking just after giants Hollywood and Bollywood. Admittedly, in earlier years, it was more notable for quantity than quality, but that is rapidly chang- ing with increasingly sophisticated directors, producers, writers, and actors, and remarkable films that have won numerous awards at home and abroad. On top of this, rather than being restricted to their home market, Hong Kong films have gained a worldwide audience and contributed such genres as martial arts cinema to the broader public”.
Para além deste dinamismo, em Hong Kong o cinema celebra-se numa frente ribeirinha que é, ao mesmo tempo, topobiográfica, porque ali estão personagens, atores e realizadores, e um hotspot turístico, um atrativo a juntar a outros como o Victoria Peaks, um relevo urbano geossimbólico filmado e difundido por todo o mundo através deste cinema de place making e marketing geográfico.

Como se pode ver em Marchetti e Kam (2007), Jackie Chan evocado na Avenue of Stars será, para Hong Kong, mais que um simples ator: poderá um embaixador na associação desta região administrativa ao mundo da pop cul- ture cinematográfica que será também, talvez em conjunto com a paisagem do jogo do vizinho Macau, uma das pontes da República Popular da China com o sistema capitalista contemporâneo: “Although the official image of Hong Kong presented by the tourism board and the depiction of the city in the cinema are often at odds, the interconnections between tourism and film cannot be denied or ignored. That Jackie Chan has been Hong Kong’s official tourism ambassador since 1995 is indeed not a matter of coincidence: Jackie Chan is a brand-name unto itself, and a star brand, no less. The opening of the Avenue of Stars as one of Hong Kong’s major sites of tourist attraction in 2004 is yet another case in point. Kowloon’s Tsim-Sha-Tsui Promenade, this avenue ‘pays tribute to the stars of the silver screen’ and has ‘handprints of individual stars, sculptures, movie history milestones of the past hundred years and movie memorabilia kiosks’” (Marchetti e Kam, 2007, pp.7-8).
A denominação anglossaxónica desta Avenue of Stars pode ser interpretada de outro modo, como sinal do cinema enquanto veículo de projeção global de uma certa cultura que, de acordo com Cosgrove (2008), se pode considerar como hegemónica e dominante, uma cultura que vai alargando fronteiras e ultrapassando barreiras.
Como se lê, mais uma vez, em Marchetti e Kam (2007, título de capa), “No film is as island”. O cinema não é um mundo à parte, um enclave cen- trado na sua própria linguagem e universo. O cinema não é também uma mera representação de lugares e paisagens mas será um meio de intermediação e construção de geografias e territorialidades. Em A Rosa Púrpura do Cairo, realizado por Woody Allen em 1985, o cinema é a porta de escape de Cecília (a personagem de Mia Farrow) face às amarguras quotidianas da depressão de 1929. Mais que uma linha de fuga, neste filme Cecília entra numa nova geografia, é levada para dentro da tela, para outra dimensão, para um cinema omnipresente que não substitui a realidade mas que se torna realidade no modo como é vivido e percebido.

É a este alargamento da experiência cinematográfica no mundo urbano pósmoderno que se referem Lipovetsky e Serroy (2010), quando introduzem o conceito de ecrã global, aqui interpretado como ecrã omnipresente no modo acompanha os quotidianos deste novo cidadão que, de forma consciente ou não, está inscrito num ritual cinematográfico permanente.

Notas finais. As paisagens pós-modernas como paisagens cinematográficas e o ecrã global de Lipovetsky e Serroy (2010)

Para Tom Gunning (2007), se a teoria clássica do cinema refletiu sobre a essência do filme, esta mesma teoria tem, na contemporaneidade, aprofundado as questões semióticas e a relação entre a arte cinematográfica e o espetador. No entanto, este não é agora um espetador sentado num qualquer reduto confinado de projeção. Enquanto experiência, o cinema ultrapassou os muros das salas e este espetador é agora um transeunte urbano que está imerso num ambiente cinematográfico permanente, ainda que marcado pelas cadências e pelos ritmos das intermitências próprias das paisagens tecnológicas que envol- vem este novo cidadão.
Nesta “City as a place of excitement” (Massey, 1999, p.153), na nova cidade de serviços, turismo e lazer, o cinema existe no modo como se tem construído um espaço hipervisual que é território de múltiplos protagonistas, das empre- sas privadas ao Estado, dos atores religiosos às tribos de subculturas, todos apropriando uma paisagem urbana que informa, seduz, condiciona, promove consumos e comportamentos, poderes e contrapoderes, mensagens de hege- monias e resistências.
Para José Machado Pais (2010, p.82), “[...] uma simples deslocação pela cidade converte-se numa permanente exposição a mensagens publicitárias, como se circulássemos num ‘shopping center global’ [...]. A publicidade urbana ficciona a cidade, ao estimular o desejo de quem a percorre a abraçar um mundo de fábula e de ficção. [...]as imagens publicitárias [...] convidam os transeuntes à evasão, ao serem transportados para mundos oníricos”.

Nestas espacialidades urbanas, o ecrã tem parte da responsabilidade nesta espécie de evasão para mundos oníricos referida por Machado Pais (2011). Em todo este quotidiano, o ecrã está presente, a linguagem fílmica é um meio de comunicação, a paisagem tecnológica da cidade é uma projeção cinemato- gráfica nos espaços privados mas também nos espaços públicos.
Para Lipovetsky e Serroy (2010), a paisagem cinematográfica é uma paisa- gem-ecrã resultante de uma lógica visual que invadiu o quotidiano. Este ecrã omnipresente multiplicou-se e miniaturizou-se. Por isso é um ecrã móvel que acompanha a mobilidade dos sujeitos que o transportam e dele demonstram elevada dependência. Pode estar fixo na praça pública mas também no café e no restaurante, caminha nas mãos de cada um, mas. é um imprescindível objeto de entretenimento, informação e orientação nos aeroportos e nos aviões (Groening, 2014).
Estas são paisagens hipervisualizadas de formas, cores e sons. É também esta a paisagem tecnológica do marketing, em espaços sedentários e nos corredores nómadas da circulação, nos aviões mas também nos comboios e nos automóveis. Esta é a vida quotidiana que absorveu e inscreveu os rituais cinematográficos (Lipovetsky e Serroy, 2010). É a “vida feita cinema”, a “ecranização do mundo” (Ilharco, 2013, pp.31-34), quando tudo acontece no ecrã e o ecrã está por todo o lado. Ainda para Ilharco (2013, pp.35-37), “Os média electrónicos cercam-nos sensorial e constantemente: vemos, ouvimos, tocamos, sentimos, tudo ao mesmo tem- po, de todos os lados, constantemente [...]. [...] de todo o lado os ecrãs interpelam, convocam, seduzem, envolvem, prendem, viciam [...]”.
Nesta paisagem cinemática e nesta cartografia variável de difícil distinção entre observador e observado, entre realidade e ficção, a viagem pode ser tam- bém uma experiência cinematográfica de corpos fixos e confinados que vêm o mundo em movimento a partir da janela de um comboio ou dos vidros de um automóvel. Nesta vivência, há o dentro e o fora, o nós e os outros, aquele que observa, sentado na poltrona do veículo, e os outros que lá estão fora, enquadrados por aquele ecrã de visualização, como se fossem personagens de um filme do qual o observador também faz parte, embora esteja mais protegido dos olhares alheios.

Este ecrã-cinema estende-se para os territórios domésticos da habitação. Se é verdade, como nos mostram Andrews, Hockenhull e Pheasant-Kelly (2015), que esse mundo íntimo tem sido conteúdo de representações cinematográficas, também é certo que o cinema invadiu este reduto de vivências quotidianas. Tal como o avião e os aeroportos, a habitação tornou-se território do ecrã. Desde logo, nas classes médias mais abastadas, pela difusão (e dispersão) es- pacial da televisão nestes microterritórios. Esta janela de exposição do mundo saiu da sala de estar para a cozinha, desta para os quartos, num processo agora acompanhado pela multiplicação de ecrãs-móveis, de tablets a smarphones. Sem um centro de gravidade, as redes wireless desfocaram a vivência familiar e dispersaram os interfaces de contacto entre o privado e o público, entre os espaços da intimidade e o mundo exterior, erodindo a fronteira entre o privado e o público. Neste território doméstico, esta experiência cinematográfica pode viver-se em territórios individualizados e acantonados, porque a conetividade digital está por todo o lado, inclusive no quarto do adolescente que se encerra perante a ameaça de intrusos. Neste novo espaço cinemático, vão-se criando novas (micro) fronteiras, numa hiper-realidade difusa e contraditória que, ao mesmo tempo, abre e fecha, coloca em contacto e aquartela, como num filme tornado realidade.
Nos espaços urbanos da pós-modernidade, o ecrã e o cinema estão ainda na cidade-espetáculo, nos hologramas projetados em superfícies exteriores, como se de telas se tratassem. Neste video mapping show, a forma desses edifícios-ecrã, as suas rugosidades, tudo faz parte do cenário e é incorporado na narrativa. Este novo ecrã não é plano, tem recortes, saliências, desequilíbrios e assimetrias. Como na sala clássica do cinema, a experiência é multissensorial, sobretudo noturna. Aqui vivem-se personagens, cenários e movimentos, mas a diferença está na escala e está também no céu aberto, naquele que não existe na sala escura mas que já se viveu nos icónicos drive-in celebrizados também pelo cinema, a partir dos EUA.
Mas, este mesmo ecrã não se limita a mostrar. Pelo contrário, a sua presença condiciona e atua enquanto modelador de um certo ordenamento do território, de práticas de higienização espacial para que, naquele plano e no enquadramento daquele ecrã, apenas se mostre uma versão reabilitada e encenada da realidade. Por isso em eventos como os Jogos Olímpicos se prepara o espaço geográfico recetor como se este fosse um cenário e um palco, acautelando o que vai ser enquadrado pela câmara e será depois divulgado pelo mundo. Na verdade, já não é o ecrã que busca a realidade, mas a realidade que se adapta àquilo que se pretende mostrar nesse mesmo ecrã.
Enquanto observadores-atores, vemos o mundo através deste ecrã, assisti- mos a guerras e insurreições, a catástrofes naturais e tecnológicas, consumimos mensagens editadas por lógicas cinematográficas, fazendo do mundo um imenso cenário dramático, uma traumascape percebida à distância e intermediada por alguma tela tecnológica de exposição.
No entanto, se numa ponta está o ecrã, na outra pode estar uma câmara de vigilância. Esta segunda está exposta, de forma mais ou menos discreta, no espaço público ou privado que se pretende regular e disciplinar. Do ou- tro lado, alguém observa, acompanha os movimentos e exerce o seu poder. O acesso ao ecrã é aqui, nesta sociedade de voyeurismo e controlo e nesta cidade distópica (Lippolis, 2016), um privilégio de autoridade por parte de quem vê aquele fragmento de realidade seguindo os mesmos princípios do espetador cinematográfico, observando o cenário, acompanhando as personagens, os seus movimentos e gestos, as entradas e saídas do enquadramento, do mundo que se vê no plano que ali se observa e acompanha naquele ecrã discreto.
Nesta perspetiva, existem os ecrãs massificados, ao alcance de todos, mas também os ecrãs políticos, aqueles que apenas se mostram e estão acessíveis a quem, naquele momento, exerce algum ascendente sobre os outros.
Por tudo isso, se se pretende avaliar o peso do cinema nas vivências da contemporaneidade urbana, as estatísticas de audiências são uma parte in- significante do problema, precisamente porque o cinema deixou de ser uma experiência ocasional, nobre e de excelência vivida em lugares específicos aos quais apenas se tinha acesso depois da compra de um bilhete de entrada. Isto porque as práticas comportamentais do cinema passaram a estar por todo lado, os seus códigos de linguagem impuseram-se e os seus rituais, para o bem e para o mal, são hoje hegemónicos e omnipresentes.

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