ANÁLISE DOS ASPECTOS DE REPRESENTAÇÃO, AUTO-REAPRESENTAÇÃO, NARRATIVIDADE E MARGINALIDADE NA CRÔNICA BRASILEIRA

Cleber José De Oliveira

4.2 - Santiago e o narrador pós-moderno: algumas considerações

Por meio das “malhas da letra”, Silviano Santiago tece o conceito de narrador pós-moderno como sendo

aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante (SANTIAGO,2002, p.45)

         Essa afirmação nos evidencia uma das principais características do narrador pós-moderno: o ato de narrar experiências alheias e não as que por ele foram vividas. Este narrador busca um certo distanciamento em relação ao fato narrado, isso no espaço ficcional. Esse ato fica mais evidente quando comparado às formas clássicas de narrar, como por exemplo à memorialista, que parte das experiências do próprio narrador na tentativa de, talvez, obter mais credibilidade frente ao leitor.Partindo desse pressuposto, cabe pergunta: em que medida as relações sócio-humanas na pós-modernidade contribui para o surgimento de um narrador que abdica de narrar suas próprias experiências, para narrar o que observa da vivência do outro?
         Na tentativa de responder essa questão e, melhor entender essa mudança de posicionamento do narrador, nos atentemos em uma das hipóteses levantada por Silviano:
Pode-se narrar uma ação de dentro dela, ou de fora dela. No primeiro caso, a narrativa expressa a experiência de uma ação; no outro, é a experiência proporcionada por um olhar lançado. Num caso, a ação é a experiência que se tem dela, e é isso que empresta autenticidade à matéria que é narrada e ao relato;  no outro caso, é discutível falar de autenticidade da experiência e do relato porque o que se transmite é uma informação obtida a partir da observação de um terceiro.  O que está em questão é a noção de autenticidade. Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu narro e conheço por ter observado?  Será sempre o saber humano decorrência da experiência concreta de uma ação, ou o saber poderá existir de uma forma exterior a essa experiência concreta de uma ação?(SANTIAGO, 2002, p.44,45).
         Essa hipótese centraliza a discussão na questão da autenticidade de uma narrativa. É um esforço para caracterizar uma forma de narrativa e narrador, na pós-modernidade. Neste, o narrador abdica do lugar central da ação narrada (lugar tão valoroso para o narrador clássico). De acordo com Santiago, a narrativa pós-moderna surge para evidenciar “a pobreza da experiência” e também “a pobreza da palavra escrita” enquanto processo de comunicação num mundo pós-moderno. Nessa esteira de pensamento, pode-se dizer que alguns escritores contemporâneos utilizam um em seus textos um narrador que narra a partir de um “saber” proporcionado por um olhar lançado sobre as experiências do outro, e não mais mergulhado em suas próprias experiências, num sentir na pele, numa verdade indiscutíveis e absoluta. O que lhe interessa mesmo é o outro e suas  experiências.
         Para Santiago, essa forma descentralizada de narrar advém da dificuldade de intercâmbio de experiências entre os indivíduos que se acentua na pós-modernidade “À medida que a sociedade se moderniza, torna-se mais e mais difícil o diálogo enquanto troca de opiniões sobre ações que foram vivenciadas. As pessoas já não conseguem hoje narrar o que experimentaram na própria pele”.(SANTIAGO,2002). Daí então surge, na sociedade contemporânea, uma espécie de necessidade de se conhecer as experiências vividas pelo outro. Essa necessidade, seria consequencia da modernização social que gera cada vez mais o isolamento humano. Essa modernização dificulta mais e mais o diálogo enquanto troca de opiniões sobre ações vivenciadas pelos indivíduos na sociedade. Além disso, entende que na pós-modernidade o saber humano também pode ser concebido a partir daquilo que se conhece apenas por se ter observado “digo que é autêntica a narrativa de um incêndio feita por uma das vítimas, pergunto se não é autêntica a narrativa do mesmo incêndio feita por alguém que esteve ali a observá-lo”. (SANTIAGO, 2002, p.44). Com isso, pode se dizer, então, que a caracterização do narrador pós-moderno está relacionada com a dificuldade da troca de experiência entre os indivíduos na contemporaneidade.
      Então pode-se entender que a pós-modernidade se configura sob aspectos de fragmentação das narrativas e das experiências individuais, dispersão, desintegração das unidades, entre outras. Dessa perspectiva, refletiremos uma das problemáticas, talvez a mais relevante, levantadas por Silviano para pensar o perfil de um narrador pós-moderno, a saber:

Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Ou seja: é aquele que narra ações a partir da experiência que  tem delas, ou é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que passou a ter delas por tê-las observado em outro? (SANTIAGO, 2002, p.44).

        Partindo desses pressupostos, a investigação prossegue, agora, para evidenciar se este narrador manifesta-se na crônica “Provocações”, de Luiz Fernando Veríssimo.
            Tomemos contato com o texto na integra: 

 

A primeira provocação ele agüentou calado. Na  verdade, gritou esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas.  E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação foi à alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta  de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. Foram  lhe provocando por toda a vida. Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava. Estavam lhe provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era.   Parece que a idéia era lhe dar  uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou  anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma. Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma  agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e  foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária  não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou. Na décima milésima  provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: -Violência, não! (VERISSIMO,1999, p. 51)

         Numa primeira leitura, é possível constatar que são denunciados problemas crônicos da vida social brasileira tais como: o êxodo rural, o descaso com a saúde da população de baixa renda, a falta de emprego digno, o movimento cíclico da pobreza no Brasil evidenciados nas palavras “subemprego,submulher, subfilhos, subnutridos”, entre outros. Nesta crônica, o narrador apresenta a condição e as experiências vivenciadas por um terceiro, não a sua. Este é um personagem anônimo pertencente a uma determinada classe social brasileira e, assim como muitos, sobrevive com os restos que lhe é jogado.
Essas experiências, causam-lhe indignação devido à subvida que lhe é imposta por um sistema social cruel e à falta de dignidade advinda daí. Um sofrimento que gera, entre outros, angústia e, sobretudo, um sentimento de impotência diante do descaso político-social. Este narrador observa os acontecimentos, distancia-se dos fatos, dá voz ao outro, ao marginalizado e, na narrativa em estudo, utilizando o espaço ficcional para fazer crítica aos valores tradicionais e aos regimes autoritários.
Em síntese, o cronista narra a condição de um terceiro, um personagem que tem muito em comum com a grande maioria do povo brasileiro, um trabalhador que depois de ser privado, por muito tempo, de saúde, emprego, família (tudo isso se resume à dignidade) resolve reagir e “ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: - Violência, não!”. Neste desfecho, (da crônica) o impressionante é que tudo aquilo a que foi submetido não é reconhecido como violência por grande parte da sociedade.   
          A partir da problemática abordada anteriormente, o que se evidência é que Veríssimo, nesta crônica, trabalha com o narrador que lança um olhar sobre a condição do outro, e não com o que narra mergulhado na própria experiência. Este, narra uma experiência alheia e não enquanto atuante. Narra a partir da observação de situações vivenciadas e ações sofridas pelo outro, ou seja, apenas reproduz o que observa o que vê. Este procedimento de observação do alheio é aquilo que Silviano entende como sendo um movimento de distanciamento e rechaço que o narrador pós-moderno faz em relação ao narrador moderno clássico caracterizado por Benjamim (1985).
       Com isso, pode ser entendido que um fato ou uma ação podem ser narrados de duas maneiras, sendo a primeira: quando a narrativa é utilizada para evidenciar experiências autênticas do próprio narrador, e é isso que empresta autenticidade à matéria que é narrada. A segunda, onde se manifesta o narrador pós-moderno, é discutível falar de autenticidade da experiência, pois este transmite uma informação obtida a partir da observação de um terceiro. Novamente, nos deparamos com a questão da autenticidade da narrativa. Diante disso, cabe questionar, o que tem mais credibilidade “as cicatrizes” que estão no narrador e por ele próprio são narradas, ou as que, observada em outro, são explicitadas por ele?
         Essa questão pode ser analisada sob duas perspectivas: da narrativa memorialista, e da pós-moderna. Esta primeira, segundo Silviano é onde se manifesta, com mais intensidade, o narrador clássico. Este é um narrador que tem "senso prático", pretende ensinar algo e sabe dar conselhos; este conselho é tecido na substância viva de sua experiência. Exemplo desse tipo de narrativa, onde se configura esse narrador, é a obra “Grande Sertão: veredas” de Guimarães Rosa, livro de maior expressão da literatura nacional. Obra cujo autor se embrenha na realidade para coletar o modo de vida do sertanejo em meio ao árido sertão. E logo depois, no tecido ficcional “empresta” a seu personagem, o ex-jagunço Riobaldo, as experiências vividas por ele (autor), para que este narre com maior autenticidade e conseqüentemente, obtendo maior “autoridade” no que diz respeito às outras narrativas . Assim, nas narrativas memorialistas o narrador se manifesta como figura central, detentora de uma sabedoria tecida na suas vivências
         Já na narrativa pós-moderna, a autenticidade de ter vivido e sentido na pele o que se narra, não é tomada pelo narrador pós-moderno como sendo algo essencial. Pois, o que ele deseja é transmitir uma sabedoria decorrente de um olhar lançado sobre o outro, e não uma experiência pessoal sua. Isso porque,essa sabedoria é ofertada ao leitor como uma informação, ou seja, não tenta transmitir uma sabedoria em si mas sim um ponto de vista. Isso pode fica evidente nas palavras de Silviano:
o narrador pós-moderno é o que transmite uma "sabedoria" que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar "autenticidade" a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato.O narrador pós-moderno sabe que o "real" e o "autêntico" são construções de linguagem. (SANTIAGO, 2002, p.44).

         À luz dessa afirmação, nossa investigação volta-se na função do cronista como narrador. Todo cronista é por essência um observador seja do local ou do global, já afirmaram os críticos (Cf. CANDIDO, 1981; ARRIGUCCI, 1987; SÁ, 1985). Este toma pra si a “função” de observador do alheio, de falar sobre qualquer assunto sem ser especialista em nenhum, de narrar experiências do outro. Nessa perspectiva, será o cronista um narrador pós-moderno por essência, já que observa e narra à ação ou fenômeno, quase sempre vividas pelo outro?
         No que diz respeito às crônicas modernistas, (vimos como exemplo “O padeiro” de Braga) isso não pode ser afirmado já que priorizam a narração em primeira pessoa e narram, quase sempre, suas experiências individuais (Que fique bem claro o nosso conhecimento sobre crônicas modernista com foco narrativo em terceira pessoa e em vivencias alheias, mas partimos da análise de um todo e não das exceções). Talvez, tal denominação melhor se encaixe em grande parte dos cronistas contemporâneos, principalmente os que focam suas crônicas na observação da vida política de nosso país. Os que observam de longe, mas não menos atento, as façanhas sócio-políticas de “nossos representantes”. Com isso, buscam, no mínimo, provocar uma reflexão social sobre a condição brasileira, como vimos na crônica “Provocações” de Veríssimo. Tudo isso, com a intenção de manter informado o seu leitor. Mas quem é o leitor da crônica?
         Abro agora um parêntese, para pensar sobre um perfil do leitor contemporâneo, individuo essencial na esfera de comunicação escrita. Em síntese, o leitor pressuposto da crônica, no século XXI, é em geral urbano e, em princípio, um leitor de jornal, de revista, de Internet. Talvez esse leitor, dê credibilidade ao cronista justamente por também se reconhecer como sendo um observador, dos problemas do mundo contemporâ

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