BIBLIOTECA VIRTUAL de Derecho, Economía y Ciencias Sociales

A UTOPIA NEGATIVA: LEITURAS DE SOCIOLOGIA DA LITERATURA

Jacob J. Lumier




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A Carência de Contato

A defesa do exemplo de Proust passa não só pelo resgate da arte de Dostoyevski em face da supervalorização do mo-delo do romance de Kafka – o homo absurdus –, mas tam-bém passa pelo esclarecimento das origens deste na obra daquele.

Mas não é só isso que encontra nesta análise. Serve a mesma para introduzir a interpretação que Sarraute nos oferece para a fórmula dostoyevskiana da composição da fantasia ligando autor-personagem-leitor na ação dramáti-ca. Nessa fórmula se apreende o fundo das impressões do sujeito humano de que nos falou Proust na arte do monólogo interior.

Aliás, Dostoyevski ele próprio dizia tirar a matéria de cada uma de suas obras de um eterno fundo, ainda que em conformidade aos seus próprios procedimentos, portanto não interpretado em sentido idêntico a Proust.

Para chegar a uma compreensão de tal lugar de reen-contro nossa autora desenvolve uma reflexão com André Gide tendo sob os olhos a constatação da recorrência “em mil situações diversas” dos movimentos da fantasia em todos os personagens dostoyevskianos, em maneira mais complicada, precisa e delicada, sobretudo em “O Eterno Marido”, de tal sorte que, no seu dizer, “tem-se a impressão por momentos de que se está em presença de uma verdadeira obsessão, de uma idéia fixa”.

Com efeito, para Gide todos os personagens de Dosto-yevski são talhados no mesmo estofo; o orgulho e a hu-mildade permanecem as molas secretas de seus atos, a-inda que as reações sejam matizadas.

Todavia nossa autora observa que o orgulho e a hu-mildade são repercussões e que a impulsão percorrendo “a imensa massa tumultuosa” deve ser formulada como “a carência contínua e quase maníaca de contato”, acolhendo nisso a sugestão de Katherine Mansfield (Ver Sarraute, op.cit. págs.42,43).

Quer dizer, nossa autora encontra nessa formulação o elemento de explicação da ação dramática em Dosto-yevski, na qual prevalece a imagem dos outros. Na trama dessa ação, tal carência contínua e quase maníaca de contato, em seu impossível e apaziguante aperto doloro-so, funciona atraindo todos os personagens como uma vertigem, incitando-os em todo o momento para que for-jem de qualquer maneira um caminho até os outros; para que os faça perder sua insuportável opacidade e, por sua vez, para que esses personagens consigam abrir-se e lhes revelar seus recônditos.

Assim a humildade deles não passa de um apelo tími-do, desviado, certa maneira de se mostrar próximo e a-cessível à compreensão de outrem. Seus sobressaltos de orgulho igualmente não passam de tentativas dolorosas diante da intolerável recusa e surgem como a finalidade da não-aceitação anteposta a seu apelo quando o cami-nho que sua humildade havia buscado se encontra barra-do e, caso aconteça então de se forjar outro caminho em marcha-ré pelo desprezo, o ódio, a dor infringida ou qual-quer ação de impacto, plena de audácia e de generosida-de, que surpreende e confunde isso será feito para che-gar a restabelecer o contato, para retomar possessão de outrem (ib.pág.44).

Por outras palavras, há na ação dramática em Dosto-yevski uma impossibilidade em colocar-se alguém soli-damente à distância e com indiferença, provindo daí a maleabilidade estranha pela qual os personagens se mo-delam sobre a imagem deles mesmos que os outros lhas devolvem.

Apoiando-se em André Gide, nossa autora põe em re-levo que eles não sabem ou não podem se tornar ciumen-tos. Pela ternura ou pelo desprezo seu apelo é sempre ouvido, tornando excluída a rivalidade que o ciúme ou a inveja supõe e eles querem evitar a todo o custo. Neste sentido, pode-se distinguir os personagens de Dosto-yevski em dois grupos. Há aqueles como Aliocha, o sta-retz Zósima ou o príncipi Miuchine para quem os cami-nhos que conduzem ao outro são vias de realeza, amplas e diretas; enquanto os personagens menos felizes encon-tram diante deles os caminhos tortuosos e não sabem andar senão por recuos, tropeçando em mil obstáculos, mas ambos os tipos vão ao mesmo objetivo. Sarraute a-centua que cada um sabe ser apenas um apanhado fortui-to de elementos oriundos do mesmo fundo comum, que todos os outros descobrem neles suas próprias possibili-dades, suas próprias veleidades.

Quer dizer, na ação dramática em Dostoyevski cada um avalia as ações dos outros como julga as suas pró-prias, isto é, de muito perto, de dentro. Aliás, essas ob-servações de Sarraute sobre a impossibilidade de alguém guardar suas distâncias na ação dramática em Dostoyevs-ki se revestem de um alcance especial na reflexão de nos-sa autora. Isto porque conduzem à sua apreciação sobre a pista de Kafka em Dostoyevski e ao esclarecimento sobre o Homo Absurdus.

Por outras palavras, ao mesmo tempo em que, por um lado, (a) – insiste na impossibilidade de se ter aquela vi-são panorâmica da conduta do outro, subentendida no rancor ou no anátema; (b) – acentua igualmente a curio-sidade inquieta com que cada um perscruta sem cessar a alma do outro; ou ainda (c) – as adivinhações surpreen-dentes decorrentes da impossibilidade de se tomar suas distâncias, os pressentimentos que em Dostoyevski não são privilégio apenas dos personagens cristãos ilumina-dos pelo apego divino, mas contempla inclusive a todos os personagens sequiosos e de olhar atravessado, “lar-vas que fuçam o bas-fond da alma e farejam com delícias a lama nauseante”; por outro lado, não sem antes assina-lar o paralelismo que há entre Dostoyevski e Proust, Sar-raute vem mostrando a única exceção que em Dostoyevs-ki leva à ruptura definitiva, tirando a linha que conduz a Kafka.

Desta forma, a análise da ruptura deve ser feita con-frontando o Eterno Marido e as Memórias do Subsolo. No caso de Veltchaninov que estando convencido do desgas-te de suas relações há longo tempo “ousa tomar a lacuna de longe e do alto”, retornando ao papel de homem do mundo satisfeito consigo que ele havia sido anteriormen-te, antes de começarem as relações, a separação não passa segundo Sarraute de “um verniz húmido que esta-la”, permitindo seja retomado o contato, bastando para isso um breve chamado à ordem, “uma mão que recusa estender-se e três palavras: então, e a Lisa”?

Por contra, nas “Memórias do Subsolo” se poderia notar um relato verdadeiramente desesperado, na extre-ma ponta da obra de Dostoyevski, nos confins, em que a ruptura se realiza. Sarraute nos lembra que esta ruptura se dá entre o homem do subsolo e Zverkovi, a quem o narrador dostoyevskiano se refere como “o da estúpida cabeça de carneiro” que, porém tinha maneiras elegantes plenas de polidez distante. Zverkovi este que, ainda no dizer do narrador dostoyevskiano, examina o personagem do subsolo “em silêncio, como um inseto curioso”, en-quanto o perscrutado se debate diante de seus camara-das lançando-lhes em vão seus apelos vergonhosos e grotescos: tal a cena da ruptura.

Mas não é tudo. Sarraute nos esclarece que esta cena da qual se pode ampliar o mundo absurdo de Kafka não esgota a narrativa das “Memórias do Subsolo”, embora, acentuando os traços do universo simbólico de Kafka, nossa autora nos deixe ver a recorrência com que o nar-rador dostoyevskiano desenha insistentemente a imagem kafkeana do homem inseto, conjugada à cena da ruptura e configurando uma situação igualmente kafkeana. Com efeito, ao mesmo tempo em que nos deixa ver como o he-rói das “Memórias...” se reconhece em anti-herói como um inseto, o narrador dostoyevskiano nos conta como aquele Zverkovi, um esbirro dos aparelhos organizados, “o empurra pelas costas e, sem explicação alguma, sem palavra nenhuma, o desloca para o lado e passa como se ele não existisse”. O anti-herói sabe então que para a-quele Zverkovi ele não passa de mero objeto e, prosse-gue o narrador, “se esgueira em maneira odiosa entre os passantes”, “semelhante a um inseto”; ele toma consciên-cia muito nitidamente de que “no meio deles, ele não passa de uma mosca, uma vil mosca”. Tal o ponto extre-mo da ruptura onde por um curto instante o herói-anti-herói das Memórias do Subsolo se encontra. Um instan-te somente, pois, por contra, sublinha Sarraute, ele pude-ra encontrar facilmente ao alcance de sua mão os seres humanos com os quais em Dostoyevski a fusão será sempre possível, mesmo que à maneira do Eterno Mari-do, cuja Lisa o herói poderá no mesmo instante fazer so-frer e por quem ele poderá igualmente se fazer tanto a-mar quanto odiar. Portanto, será daquele ponto extremo que, “inchado às dimensões de um interminável pesade-lo”, se descortinará o mundo sem saída onde se debate-rão os personagens de Franz Kafka.


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