BIBLIOTECA VIRTUAL de Derecho, Economía y Ciencias Sociales

SEXUALIDAD Y PODER. TENSIONES Y TENTACIONES DESDE DIFERENTES TIEMPOS Y PERSPECTIVAS HISTÓRICAS

Ángel Christian Luna Alfaro y José Luís Montero Badillo (Editores)




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Do Poema Medieval Anônimo “Da Donzela que Vai à Guerra” aos Cordéis Nordestinos: um Estudo da Donzela Guerreira

Edilene Ribeiro Batista1

Desde aproximadamente 1970, a questão de gênero tem sido analisada de forma mais avançada, especialmente pelas feministas da linha anglo-saxã. A revisão e o questionamento da adequação de estruturas conceituais aceitas como universais, a investigação consistente da literatura feita por mulheres, o estudo da mulher como escritora e como leitora, a psicodinâmica da criatividade feminina, dentre outras, são temáticas abordadas pela Teoria e Crítica Literária Feminista. Na busca da construção/reconstrução da identidade feminina, partindo-se do questionamento da prática acadêmica patriarcal, essa linha teórica/crítica tem tentado desconstruir as associações estereotipadas, relativas à mulher, com a inferioridade.

De forma geral, o estudo de gênero não abarca apenas uma questão de diferença, mas uma questão de poder - da dominação do feminino pelo masculino. Em A Mínima Diferença: Masculino e Feminino na Cultura, Maria Rita Kehl traça uma interessante análise sobre a visão do feminino e do masculino na sociedade moderna. Para a Autora, a mulher tem conseguido galgar, ao longo da história, seu espaço: independência econômica, poder, cultura, questões e atitudes impensáveis para ela antes restrita ao espaço doméstico. Enfim, a possibilidade de ser parceira do homem, reduzindo a distância entre os sexos até o limite da mínima diferença.

Saindo da esfera histórica, encontraremos, no campo literário, perfis femininos repletos de força (embora essa força seja definida segundo os paradigmas patriarcais). Essas mulheres são representantes do mito da donzela guerreira. A fim de melhor compreendermos essa figura mítica presente nos textos aqui propostos, inicialmente analisaremos o conceito de mito.

1. Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília - UnB (Brasil). Desenvolve pesquisas na área de gênero. É Professora Adjunta, em regime de dedicação exclusiva, no curso de Letras da Universidade Federal do Tocantins - UFT/Câmpus de Porto Nacional (Brasil). Atua, também, como consultora pedagógica e conferencista na área educacional, sendo autora de livros e diversos artigos em revistas. Rua Dom Domingos Carrerote nº 775, Setor Imperial – Centro, Porto Nacional – Tocantins, Brasil, CEP 77500-000, Telefone: 5563 33632074. ribeiroedilene@yahoo.com.br

Do grego mythos e do latim mythu, etimologicamente mito representa uma narrativa sobre divindades, inventada pelos homens para explicar a origem das coisas ou justificar padrões de comportamento (D’ONOFRIO, 1995:106). Segundo Mircea Eliade, há muito tempo o mito vem sendo estudado, às vezes como uma história verdadeira de caráter sagrado, pois que sempre se reporta à realidade; outras, como sinônimo de ficção.

Narrativa de autor não identificado, o mito faz parte de um patrimônio cultural coletivo. Localizando-se em tempo indeterminando, seu tema fundamenta-se em uma tradição integrada a um sistema, na maior parte dos casos, religioso. Por ser dinâmico, tem a possibilidade de se desenvolver, se atualizar, ou até mesmo se anular. Suas personagens não envelhecem e representam modelos para a conduta humana. A função mítica é de imitatio dei e sua materialização se dá, principalmente, sob as formas artísticas, cuja manifestação literária (oral ou escrita) é uma recorrência. O vínculo entre mito e literatura se dá desde os tempos mais remotos. A Ilíada e a Odisséia, de Homero, por exemplo, uniam deuses e mortais, espaços terreno e olímpico na construção de narrativas cuja ação ocorria in illo tempore. Para Jabouille, o fato de um mesmo mito poder regressar de tempos em tempos mantém implícita a noção de que a arte já não cria novos mitos, mas somente reanima e recria os mitos antigos. Afirma o Autor: “a realidade histórica, a vida tentam reproduzir, no plano material, uma verdade lendária, uma plenitude espiritual. A História se origina de mito; o mito é o embrião da História. Algo da potencialidade embrionária do mito continua latente nos acontecimentos, fazendo com que se perpetue a aspiração utópica à sua plena realização” (JABOUILLE,1993:69).

O mito também pode narrar uma história sagrada originada ab initio, capaz de declarar um mistério, como por exemplo, a formação do universo; pode ainda fazer uma revelação trans-humana da realidade que serve como paradigma de conduta humana, fazendo-se presente na atualidade psíquica. Sua origem está no começo do tempo - ab origine.

Para Campbell, os mitos "são os sonhos do mundo. São sonhos arquetípicos, e lidam com os magnos problemas humanos" (CAMPBELL, 1990:16). Se o mito pode ser assim definido, a mitologia representaria, como diria Jabouille, a racionalização, a ordenação desses mitos que podem não somente narrar a origem do mundo como também os acontecimentos que fizeram o ser humano se tornar o que ele é hoje. O mito lhe ensina as "histórias" primordiais que o constituíram existencialmente, e tudo o que se relaciona com a sua existência e com o seu próprio modo de existir no Cosmo o afeta diretamente. Assim sendo, ele é de fundamental importância para a civilização humana, podendo ser rememorado ou reatualizado, mas visando sempre à harmonia entre o homem e o universo. Seu simbolismo, principalmente na literatura, é uma das formas de expressão do imaginário humano. Marcado pela polissemia, ele acompanha a nossa existência. Por meio dele, fantasiamos, encontramos maneiras diferentes de dizer as coisas.

De acordo com Joseph Campbell, o material do mito é o "material da nossa vida, do nosso corpo, do nosso ambiente" (CAMPBELL, 1997:07). Ele nos ajuda na nossa busca da verdade; ele nos auxilia a encontrar a verdadeira significação da vida; ele nos conduz à descoberta de uma consciência espiritual. O mito pode nos conduzir às pistas que desvendam as nossas potencialidades espirituais, o nosso interior. Ele é capaz de transmitir mensagens importantes para nossa existência, pois que "a mitologia [...] ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre [...] a vida" (CAMPBELL,1990:12). Cabe ao ser humano encontrar no mito aquilo que se aplica à sua própria existência para que ele possa, enfim, atingir o amadurecimento - essa é pois a função pedagógica do mito: ensinar o ser humano a viver uma vida produtiva e feliz, independente das circunstâncias.

No estudo da donzela guerreira, ao universo mítico também se associa a noção de arquétipo, visto que esse perfil feminino aponta para padrões comportamentais construídos culturalmente.

Definido pela própria etimologia, já que "arque" significa início, origem, e "tipo" expressa a idéia de imagem, modelo, arquétipo reporta à idéia de imagem primeira, de "modelo originário", de padrão comportamental. Segundo Jolande Jacobi, o arquétipo funciona como uma espécie de "parábola lingüística", um modelo a ser seguido que existe no inconsciente coletivo e que pode, concomitantemente, influenciar a vida de cada indivíduo. De acordo com o Autor, esse termo foi retirado, por Jung, do Corpus Hermeticum, de Dionísio Areopagita. Para Jacobi, os arquétipos "não se propagam, de forma alguma, apenas pela tradição, a linguagem e a migração, mas podem renascer espontaneamente em qualquer lugar e tempo” (JACOBI,1995:41).

De conteúdo imaterial, o arquétipo vive dentro de cada um de nós, pois que ele se torna acessível, em primeiro plano, na imaginação; e retira do mundo objetivo a roupagem necessária para se fazer material. Apesar de imutável na sua essência, ele vive em constante transformação nas diversas formas de manifestar-se, sendo assim capaz de desenvolvimento infinito.

Para James Hillman, na obra Psicologia Arquetípica, arquétipos são as formas primárias que governam a psique, sendo que sua linguagem primeira e irredutível é o discurso metafórico dos mitos. É deles que a psicologia arquetípica retira "imagens universais" que satisfazem o mundo dos sonhos dos indivíduos que reproduzem gestos exemplares e paradigmáticos ad infinitum. No mito da donzela guerreira, por exemplo, encontramos figuras arquetípicas que, repetindo gestos de um herói, terão suas atitudes comportamentais regidas por ele. Em sua forma tradicional, a donzela guerreira, a partir de uma leitura de gênero, aponta para uma heroína que lutará a favor da "lei do pai". Dessa forma, essa figura mítica corresponde a um arquétipo, expressão simbólica de um fenômeno psíquico que pode ser observado ao longo da história literária, sendo assim apresentada:

Ei-la que ressurge a nosso lado em carne e osso, qual Mu-lan, a chinesa do século V, indo à guerra contra os tártaros para substituir o velho pai carente de filho [...]

Invoque-se Santa Joana D'Arc, Palas Atena, Parvati ou Iansã, a que roubou o raio de dentro da boca de Xangô tornando-se senhora das tempestades e das mulheres de cabeça forte, a padroeira de todas elas nunca falta em qualquer panteão.

Essa personagem freqüenta a literatura, as civilizações, as culturas, as épocas, a História, a mitologia. Filha de pai sem concurso de mãe, seu destino é assexuado, não pode ter amante nem filho. Interrompe a cadeia das gerações, como se fosse um desvio do tronco central e a natureza a abandonasse por inviabilidade. Sua potência vital é voltada para trás, para o pai; enquanto ela for só do pai, não tomará outro homem. Mulher maior, de um lado, acima da determinação anatômica; menor, de outro, suspensa de acesso à maturidade, presa ao laço paterno, mutilada nos múltiplos papéis que natureza e sociedade lhe oferecem.

Os traços básicos da personagem montam sempre uma mesma configuração, privilegiadora de algumas áreas da personalidade. Filha única ou mais velha, raramente a mais nova, de pai sem filhos homens, corta os cabelos, enverga trajes masculinos, abdica das fraquezas femininas - faceirice, esquivança, medo -, aperta os seios e as ancas, trata seus ferimentos em segredo assim como se banha escondida. Costuma ser descoberta quando, ferida, o corpo é desvendado; e guerreira; e morre.

Entretanto, a imolação da personagem está associada a sua atuação na vida pública. Destina-se à morte, real ou simbólica; mas, ao irromper da esfera privada de atuação, ganha outras dimensões, crescendo cada vez mais até atingir a grandeza e provocar um terremoto em nossa estreita conformidade (GALVÃO, 1998: 11,12).

Especificamente no que se refere à necessidade de cortar o cabelo, um esclarecimento deve ser dado. O cabelo representa força. Temos o exemplo de Sansão, personagem bíblico que ao cortar o cabelo torna-se fraco. No caso da donzela guerreira, o processo dá-se ao contrário, pois que, aqui, ela corta o cabelo para vencer a guerra. Sendo assim, o corte representa uma espécie de investidura. Esclarece Walnice Nogueira Galvão: “Para o homem, aquilo que cresce em seu corpo é a sua força; donde, para um homem, cortar aquilo que cresce em seu corpo é castração, é perda, é fraqueza. Para uma mulher, cortar aquilo que cresce em seu corpo não é castração, é ganho, é aquisição de força” (GALVÃO, 1998:175).

Acrescente-se que o corte de cabelo pode ainda representar, simbolicamente, o

abandono da animalidade, da instintividade, da sexualidade do ser humano, ou então, o sacrifício da criatividade inerente ao sexo feminino e a aceitação de padrões estereotipados, típicos do sexo masculino. Dessa forma, parece-nos subentendido que, para o feminino, o corte do cabelo significa que só há aquisição de poder pela imitação do masculino. Como para o homem o cabelo parece estar diretamente vinculado à sua masculinidade, cortá-lo significa perder o poder, tornar-se impotente (perder o falo).

Outras características também podem ser apontadas na figura da donzela guerreira: o poder de feitiçaria, a vidência, o grande dinamismo, o desempenho guerreiro espetacular, admiráveis dotes intelectuais. Nela, beleza e agressividade são balanceadas; está sempre a serviço de uma missão guerreira (daí a escolha da silhueta masculina) e, de um modo geral, mantém-se casta, virgem.

Essa questão da virgindade, entretanto, não foi sempre considerada no mito. Afirma a Professora Tania Serra que o mito tende a sofrer alterações para poder resistir à força do tempo. Essas alterações podem ser exemplificadas com personagens como Anita Garibaldi – mulher casada que acompanha o marido à guerra. A respeito desse desdobramento do mito em questão, estabelece a Professora Tania Serra:

[...] há uma duplicação da figura das jovens guerreiras. No primeiro caso temos uma "senhora" guerreira, que luta ao lado de seu marido [...] e morre ao seu lado guerreando. No segundo, a heroína casa-se no final [...]. Uma das principais características do mito, a virgindade, é substituída pela vida de casada ("O Andrógino/Donzela Guerreira, de Platão a Guimarães Rosa", s/d:6).

Walnice Nogueira Galvão apresenta um outro ponto de vista. Para a Autora, o casamento simbolizaria a morte da donzela guerreira "que se transforma em mulher". De qualquer maneira, a donzela guerreira é capaz, segundo Simon Shepherd, de comportar-se como um homem e de sentir-se como uma mulher.

Enquanto figura mítica e arquetípica que vem povoando o imaginário popular há

séculos, a donzela guerreira, em sua forma tradicional, se faz presente em textos como o poema medieval anônimo “A Donzela que Vai à Guerra”, recolhido pelo escritor Almeida Garrett em sua obra Romanceiro – Vol. 3 (coletânea de poesias populares datada de 1851), cuja temática é voltada para romances cavalheirescos antigos. Embora de origem castelhana, o poema acima citado acabou por se tornar um interessante documento para a história romanesca de Portugal, tanto que, “descendo dos salões para o terreiro”, popularizou-se e naturalizou-se, fazendo-se português entre os aldeões.

“A Donzela que Vai à Guerra” teve como título primitivo “O Rapaz do Conde Daros” que, por fins do século XVI, ainda continuava sendo cantado, na sociedade, por damas e cavalheiros, ganhando o favoritismo do povo.

De muitas variantes, o poema em questão espalhou-se por diversas localidades, ganhando diferentes versões e títulos: “Dona Leonor”, “Dom João”, “Dom Carlos, “Isabel ou a Heroína de Aragão”, entre outros. Entretanto, neste trabalho, tomaremos o título dado por Almeida Garret em seu Romanceiro.

Analisando “A Donzela que Vai à Guerra”, observamos que o desempenho

guerreiro da moça perdurou por sete anos. Durante esse período, um capitão apaixonou-se por ela, pois desconfiou de seu olhar. Então, para descobrir a verdadeira identidade sexual da guerreira, ele lhe impingiu diversas provas: um jantar para ver como ela se sentaria; um passeio por um pomar para observar seu comportamento; uma visita a uma feira para analisar seu interesse por adornos femininos, etc. Em todas as provas a donzela se saiu muito bem. Finalmente, o que irá desvendar a verdadeira identidade sexual da guerreira é o choro: após receber uma carta que avisava da morte de sua mãe, ela chora, e com esse comportamento, ela se denuncia. Acaba voltando para casa, levando consigo o amado:

- «Senhor pai, trago-lhe um genro, Se o quiser aceitar; Foi meu capitão na guerra, De amores me quis contar... Se ainda me quer agora, Com meu pai há- de falar.» Sete anos andei na guerra E fiz de filho barão. Ninguém me conheceu nunca Senão o meu capitão; Conheceu-me pelos olhos, Que por outra coisa não.

Ora, esse conhecer descrito no verso 9 (“Ninguém me conheceu nunca”) significa reconhecer. O capitão reconhece pelos olhos da guerreira que se tratava de uma mulher e não de um homem. Por outro lado, a virgindade da donzela guerreira é preservada até o momento em que ela e seu capitão terminam a história juntos. O final desse poema nos faz perceber que, na versão tradicional da donzela guerreira, cabe ao homem colocar a mulher transgressora de volta ao seu “papel original” após ela ter ajudado o pai, concretizando, assim, sua morte simbólica por meio do casamento.

A estória de “A Donzela que Vai à Guerra” parece ter ganhado espaço em diversos

gêneros textuais tal como ocorre nos cordéis nordestinos “A Filha do Capitão”, de Oneyda Alvarenga, e “A Dama Guerreira”, de F. E. Pereira da Costa. Tal situação só vem comprovar a força do mito que adquire diferentes roupagens para adaptar-se a novas épocas e contextos culturais.

Tanto “A Dama Guerreira” quanto “A Filha do Capitão” apresentam o mesmo contexto histórico em que se dá a narrativa de “A Donzela que Vai à Guerra”:

Já si principio a guerra Em campo de aragão Valeroso má de guerra Com vós podeis mostrais Fortimenti castigais Esses miseráveis mouros (“A Filha do Capitão”)

- Grandes guerras se apregoam Lá nos campos de Aragão; Triste de mim que sou velho, Nas guerras me acabarão. De tantos filhos que tive Não me resta um só varão, Para me valer agora Nesta triste ocasião. (“A Dama Guerreira”)

Ambos os cordéis, tal como ocorre no poema medieval anônimo em questão, apresentam: pai sem filhos homens para representá-lo na guerra. Em função disso, a filha primogênita o substitui na batalha. Para esconder sua verdadeira identidade, ela corta os cabelos; enverga trajes masculinos, apertando os seios e as ancas, despindo-se da faceirice:

Como poderá sê isso Filha du meu coração – ou Tindes os cabelos loiros

Como mulher vus conhecerão – ou

Vô a casa du barbeiro Butá os cabelo nu chão – ou Na fumaça da Salva

Eles num me conhecerão - ou

(“A Filha do Capitão”)

- Tendes seios estufados, Filha, te conhecerão; “Mandarei ao alfaiate Cortar um justo gibão, Sendo bem apertadinho, Eles se encobrirão”.

(“A Dama Guerreira”)

Embora “A Filha do Capitão” e “A Dama Guerreira” reproduzam, em linguagem de cordel, o enredo de “A Donzela que Vai à Guerra”, no caso do primeiro texto citado (“A Filha do Capitão”) a estória se encerra com a partida da primogênita para a guerra. Por sua vez, o segundo texto (“A Dama Guerreira”) segue a narrativa de acordo com a mesma perspectiva do poema anônimo medieval, a saber: a donzela, transfigurada em uma imagem masculina, passa por provações, tendo em vista que o capitão por ela se apaixona. Conseguindo manter sua identidade em segredo, será, igualmente, pelo choro, que ela, por fim, se denunciará ao amado:

E puxando de uma carta

Pôs-se a ler e a chorar. “Que tendes vós, meu varão Que assim vos vejo chorar?”

- É meu pai, que esta hora

Já se vai a enterrar. (“A Dama Guerreira”)

Uma vez descoberta sua verdadeira identidade, a dama guerreira retorna ao lar para se casar. Só então perderá sua castidade, reassumindo seu papel de mulher, morrendo, simbolicamente, após o casamento, como donzela guerreira:

Se quereis casar comigo, Ó meu lindo capitão,

É na terra de meus pais, Cá na vossa terra, não. (“A Dama Guerreira”)

“A Filha do Capitão” e “A Dama Guerreira” apontam para o fato de que o mito em análise tem sido apropriado por diversas manifestações literárias, entre elas, o cordel. Nesse último, entretanto, o mito tem sido narrado de forma a se adaptar à realidade brasileira. Tal situação se justifica pelo fato da história mítica ser dinâmica, por isso está sempre se alterando, obedecendo, assim, a uma mudança cultural típica do povo. Segundo Tavares Júnior, em O Mito na Literatura de Cordel, pode haver uma aproximação entre mito e cordel, pois que o mito, em nossos dias, sofreu uma alteração semântica, passando a ser interpretado, tal como o cordel, como narrativa, como história contada. Dirá o Autor: “O mundo do cordel, em seu espaço e tempo, podemos dizer, é um mundo mítico; suas narrativas não podem ser entendidas, segundo a ordem temporal dos acontecimentos, na superfície sintagmática do seu discurso. Sua compreensão requer a prática de um modelo paradigmático...” (TAVARES JÚNIOR, 1980:15).

Reforçando sua afirmativa, o Autor acrescentará que as narrativas de cordel são, de fato, histórias míticas, pois satisfazem às necessidades religiosas de uma ordem social. A nosso ver, é essa a função mítica da donzela guerreira enquanto uma imagem arquetípica: satisfazer, simbolicamente, as necessidades e aspirações do feminino frente aos imperativos de uma ordem social – o patriarcalismo.

Essa transfiguração do feminino em masculino ocorre, segundo as palavras de Bruce Flaming, porque as virtudes militares são invariavelmente expressas em linguagem de "macho". Por necessidade, então, a donzela guerreira confronta tarefas, obstáculos e perigos físicos e emocionais.

A afirmação de Bruce Flaming implicitamente aponta para a questão da dicotomia igualdade/diferença presente no contexto do mito em análise e faz referência, por conseguinte, à alteridade.

Segundo Nicola Abbagnano, alteridade (do latim alteritas, alietas) refere-se ao fato

de “colocar-se ou constituir-se como outro” (ABBAGNANO, 1982: 32). Na sociedade patriarcal, esse outro é a mulher, colocada em posição inferior em relação ao homem – o paradigma a ser seguido. Esse último, por sua vez, é valorizado socialmente por sua natureza tida como forte. Daí o fato de Bruce Flaming estabelecer que será o padrão masculino o exemplo das virtudes militares.

A questão da igualdade/diferença entre homens e mulheres deve ser analisada criticamente dentro do contexto do mito da donzela guerreira.

Em seu dicionário, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira define igualdade (do latim aequalitate) como paridade, identidade. Segundo os preceitos da igualdade moral, afirma o Autor que a “relação entre os indivíduos em virtude da qual todos eles são portadores dos mesmos direitos fundamentais que provêm da humanidade e definem a dignidade da pessoa” (FERREIRA, 1986: 915) deve ser respeitada. Defende Nicola Abbagnano os mesmos princípios da igualdade moral e jurídica expostos acima ao estabelecer que “um X que se encontre em determinadas condições possui prerrogativas ou possibilidades não diferentes daquelas possuídas por qualquer outro X nas mesmas condições” (ABBAGNANO, 1982: 508).

A desvalorização do feminino no mundo social e cultural talvez tenha como origem

o medo do homem frente àquela que tem o poder de gerar. Hélène Cixous afirmará em “The Laugh of the Medusa”, que a História sempre se baseou na supressão do feminino (in WARHOL, 1997: 351). Entretanto, mesmo entre adversidades, segundo a Autora, a mulher tem “construído sua história dentro da História”. Nesse processo de construção, necessário se faz romper e transformar conceitos tais como o de que a mulher é um “continente escuro”. Contradizendo essa crença masculina, Cixous afirmará que o continente (a mulher) não é impenetravelmente escuro. Afinal, ela (a mulher) sempre esteve lá. Na tentativa de reforçar o postulado da obscuridade feminina, os homens, segundo a Autora, fixaram a mulher entre dois mitos: a Medusa e o abismo. Afirma Cixous que, para o masculino, há duas coisas que não se podem explicar: a morte e o sexo feminino. Isso porque os homens necessitam associar a mulher com a morte, pois o feminino lhes causa temor. Daí a utilização da figura mítica da Medusa, por parte da Autora, para representar, simbolicamente, o que o homem sente sobre a mulher – medo. Dirá, metaforicamente, Cixous: “Olhe o temor de Perseu movendo-se em nossa direção [...]. Movimenta-se. Não há tempo a perder...” (in WARHOL, 1997: 355). O que os homens não foram capazes de perceber, e que Cixous nos revela, é que “ele (masculino) tem que encarar/olhar a Medusa para vê-la. Ela não é mortal. Ela é linda e está rindo” (in WARHOL, 1997: 355).

Desconhecendo sua força interna, a mulher, no mito da donzela guerreira, sob seu aspecto tradicional, procura seguir os parâmetros masculinos, sendo controlada por alguém que ela julga ser mais forte que ela - o "pai". Sua lei, seus propósitos serão os que o homem determinar. Será à “lei do pai” que a donzela guerreira servirá. É na tentativa de alcançar os objetivos paternos que ela estabelecerá seu código de conduta: “É bastante comum perceber-se em tais mulheres os dentes rangendo, a determinação inabalável. Para as que vivem segundo esse tipo de existência, a vida se torna uma missão e uma série de batalhas a serem vencidas, em vez de uma sucessão de momentos a serem desfrutados” (LEONARD,1997:109).

A análise da donzela guerreira pela perspectiva tradicional parece deixar implícito o interesse do patriarcado de que o mito se mantenha assim: com a mulher servindo aos propósitos do masculino, empunhando a espada e lutando como e para o homem, não se despertando para o fato de que deve se libertar da idéia de que precisa ser como um “macho” para ter poder. Esse poder é aqui entendido como a capacidade ou habilidade de obrigar outras pessoas a agirem como queremos, sendo uma criação exclusivamente humana que surgiu com o patriarcado. Também é esse poder que se encarrega da dominação da mulher pelos homens, de alguns homens sobre outros homens, incentivando a competição e a guerra. Dessa forma, em sua abordagem tradicional, o mito em análise reforça o discurso teórico-crítico pautado em uma autoridade epistêmica do falogocentrismo que acaba por permitir um monopólio do sujeito cultural dominante representado, no contexto patriarcal, pelo homem.

Pelo exposto acima, o mito da donzela guerreira, como aqui foi caracterizado, necessita ser repensado, observando princípios que contribuam para a construção cultural da subjetividade feminina, sob uma perspectiva de gênero, a fim de que a mulher deixe de ser considerada elemento social hierarquicamente inferior.

O mito da donzela guerreira, manifestado nos textos selecionados para este trabalho, nos propicia a possibilidade de pensar o feminino no transcurso da história, apontando para o fato de que o estudo do mito em questão deve levar à reflexão sobre a re-significação de valores de gênero e de papéis sociais assumidos pela mulher.

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